Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
356/16.3JAPDL-C.L1-9
Relator: MARGARIDA VIEIRA DE ALMEIDA
Descritores: ESCUTA TELEFÓNICA
ESCUTA TELEFÓNICA - VALIDAÇÃO E PRAZO
JUIZ DE TURNO - COMPETÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/30/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIMENTO
Sumário: I - para que se possa classificar a natureza de um acto como urgente necessário se torna que o mesmo se refira a questões relacionadas com os direitos, liberdades e garantias dos intervenientes processuais.
II - as intercepções telefónicas revestema natureza de acto
s urgentes no sentido de que se prendem com o constrangimento de direitos fundamentais, dos visados no processo, e com a fiscalização, em tempo útil, do constrangimento que desses direitos.
III - a organização de turnos para assegurar a realização dos referidos actos urgentes durante os períodos de férias judiciais e de encerramento dos serviços de secretaria estão previstos na Lei, e nesse período de tempo em que vigora o serviço de turnos legalmente organizado e homologado, os juízes que o asseguram têm competência para a realização de quaisquer actos urgentes, designadamente, os actos de controlo e validação das intercepções telefónicas realizadas durante aquele período de tempo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:

Acordam na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:

O MºPº junto do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, veio interpor o presente recurso da decisão do Mmo Juiz  de 22de Setembro de 2017 que declarou nulas as intercepções telefónicas validadas pelos despachos de 11.08.2017 (fls. 720), 23.08.2017(fls.744) e 31.08.2017 (fls.766) e 8.09.2017 (fls. 782), bem como as validades pelo despacho proferido pelo Tribunal “a quo” de 14.09.2017 (fls.803) nem se conformando com os subsequentes despachos proferidos em 29.09.2017, o primeiro, e o último a 11.10.2017 nos quais, face ao despacho proferido em 22 de Setembro de 2017 não validou as intercepções telefónicas entretanto efectuadas por não as considerar validamente efectuadas.

Conclui conforme segue:

1ª         Os actos previstos no artº 188º, nºs 4 e 5 do CPP (validação judicial das escutas), bem como os previstos no nº 7 do mesmo preceito, e ainda a prorrogação do prazo fixado para as escutas têm natureza urgente?

2ª         Perante a apresentação de um inquérito para a prática dos actos acima indicados, o Tribunal territorialmente incompetente tem competência residual para os praticar?

3ª        A apresentação de um inquérito a um Tribunal (territorialmente) incompetente para efeito da prática dos actos supra mencionados (face à impossibilidade de apresentação, atempada, no Tribunal territorialmente competente, decorrente do facto de se situar em ilha que não aquela onde está o processo) configura um desaforamento temporário da causa, na medida em que subtrai ao Tribunal territorialmente competente a apreciação da mesma?

4ª … a lei não define o que são actos processuais urgentes cabendo ao Tribunal, casuisticamente, avaliar e decidir os que tenham essa natureza sendo que…deverão integrar tal categoria não só os actos que podem (devem) ser praticados fora dos períodos normais (artº 103º, nº 2 do CPP) mas também todos os actos cuja dilacção inviabilize a prática ou finalidade, ou não seja consentânea com o regime que os rege.

5ª O regime jurídico consagrado para o controlo judicial das escutas é marcado por um incontornável caracter de urgência o qual não pode deixar (não obstante a lei não fixar limites temporais máximos) os actos a praticar pelo juiz que procede a esse controlo, razão porque os despachos relativos à validação das escutas, transcrições de escutas relevantes para a aplicação de medidas de coacção e prorrogações dos prazos previstos para a duração das escutas configuram actos processuais urgentes.

6ª Assim sendo, …, a apresentação de um inquérito a um territorialmente incompetente para a prática dos actos referidos obriga esse Tribunal a apreciar e decidir da validação, transcrição, prorrogação do prazo das escutas.

7ª Isso mesmo decorre do disposto no artº 33º, nº 2 do CPP, que confere competência residual ao Tribunal incompetente para a prática de “actos processuais urgentes”.

8ª Conferindo a referida norma competência residual ao Tribunal incompetente, e tendo os actos praticados por este sido praticados no âmbito dessa competência, não há violação das regras relativas à competência, (por inverso, há estrita observância das regras relativas à competência, ainda que residual, do tribunal incompetente) não integrando a situação (prolacção dos despachos de fls. 720, 744, 766, 782 e 803) a nulidade prevista no artº 119º, alínea e) do CPP.

9ª o procedimento traduzido na apresentação dos autos num Tribunal(territorialmente) incompetente para o efeito da prática dos actos urgentes não é ilegal, não está inquinado, não constitui fraude à lei e não leva a um desaforamento temporário da causa.

10ª Na verdade, e para além de ser a própria lei que confere a já aludida competência residual ao Tribunal incompetente, não há norma que sancione com nulidade tal procedimento, razão porque o mesmo não gera tal tipo de invalidade (nem, a nosso ver, qualquer outra.)

11ª …os actos praticados pelo tribunal incompetente ao abrigo da referida competência residual não deixam de ficar sujeitos ao crivo do Tribunal competente que, nas mesmas circunstâncias, não teria praticado, e ordenar a repetição dos actos necessários para conhecer da causa.

Apreciando, então:

Nos termos do disposto no artº 103º do CPP, os actos processuais praticam-se nos dias úteis, às horas de expediente dos serviços de justiça e fora do período das férias judiciais,

Com excepção,

2 a) os actos processuais …ou indispensáveis à garantia da liberdade das pessoas.

O mesmo resulta do teor de todas as alíneas b) a f) do mesmo nº 2 do referido preceito, isto é, que são urgentes os actos cuja realização requer atenção imediata por forma a que o constrangimento de direitos operado por força da pendência do processo seja imposto pelo menor período de tempo possível, apenas pelo período de tempo mesmo essencial a prossecução dos fins daquele processo (aqui, inquérito penal) em concreto

Ou seja, para que se possa classificar a natureza de um acto como urgente necessário se torna que o mesmo se refira a questões relacionadas com os direitos, liberdades e garantias dos intervenientes processuais.

Daí que a lei processual penal estabeleça, no nº 2 do artº 104º do CPP, que os actos  referidos nas alíneas a) a e) do nº 2 do artº 103º correm em férias.

Estes são os elementos a ter em conta para definir o que é um acto urgente como sendo aquele que se prende com os direitos, liberdades e garantias constrangidos por força do decurso de um processo, e cujo não exercício, em tempo útil, é susceptível de causar danos irreparáveis a esse direito.

No caso vertente, os actos que os despachos judiciais postos em causa declararam nulos, e de nenhum efeito, revestiam a natureza de actos urgentes no sentido de que se prendiam com o constrangimento de direitos fundamentais, dos visados no processo, e com a fiscalização, em tempo útil, do constrangimento que desses direitos foi feito, por intermédio de intercepções telefónicas efectuadas.

Com efeito, nos termos do disposto no artº 187º, nº 1 do CPP, a intercepção e gravação de comunicações telefónicas podem ser autorizadas durante o inquérito se houver razões para crer que tal diligência é indispensável para a descoberta da verdade.

No presente processo investigam-se ilícitos relacionados com criminalidade económico-financeira que revestem, segundo as regras da experiência comum, forma altamente organizada, pelo que a investigação está atribuída ao DIAP de Ponta Delgada por ser o competente para investigar este tipo de ilícitos.

Tratando-se, como se tratava, de cumprir com o imperativo legal de apresentar os elementos referidos em 3 do artº 188º do CPP ao Mmo Juiz no prazo máximo de 48 horas, preceito que se destina exactamente a permitir o controlo judicial da forma como estão, ou não, a ser cumpridos os formalismos impostos para a execução de um constrangimento de direitos fundamentais desta natureza, há que concluir que o referido acto reveste natureza urgente, não porque o prazo é de 48 horas, mas porque o legislador estabeleceu esse prazo para salvaguardar ao máximo o direito dos intervenientes processuais afectados por esta derrogação parcial dos seus direitos fundamentais, com vista à obtenção de prova.

E há que concluir igualmente que o desiderato pretendido pelo legislador com o estipulado no preceito, não seria atingido em tempo útil, logo, ficava irremediavelmente comprometido pelo não exercício nesse prazo.

Podia ser objecto de controlo mas não no prazo e com um controlo de legalidade estrita tão eficaz como o pretendido pelo legislador.

Assim bem andou o MºPº em submeter a apreciação das referidas intercepções telefónicas ao juiz de turno, pois a organização de turnos para assegurar a realização dos referidos actos urgentes durante os períodos de férias judiciais e de encerramento dos serviços de secretaria estão previstos na Lei, e nesse período de tempo em que vigora o serviço de turnos legalmente organizado e homologado, os juízes que o asseguram têm competência para a realização de quaisquer actos urgentes, designadamente, os actos de controlo e validação das intercepções telefónicas realizadas durante aquele período de tempo.

Não só foram bem validadas por quem detinha a competência para o efeito, como não podiam ser revogados pelo Mmo Juiz autor do despacho judicial posto em crise, sequer declaradas nulas, como foi o caso.

Tendo os referidos despachos sido proferidos por quem, naquele momento, detinha competência para o acto, e transitado, logo, tendo os mesmos despachos que validaram as escutas apresentadas aos juízes de turno em 48 horas, adquirido, dentro do processo, a força de caso julgado formal, não cabia ao Mmo Juiz tomar qualquer posição processual sobre os referidos despachos.

Caberá aos intervenientes processuais visados, se e quando tomarem conhecimento dos actos, reagir se assim o entenderem.

Assim, as escutas validadas por despachos de 11.08 (fls. 720), 23.08 (fls. 744), 31.08 (fls. 766) e 8.09 (fls. 782) não podiam ter sido declaradas nulas pelo despacho de 22 de Setembro de 2017.

Não podiam ser declaradas nulas igualmente pelo facto de a lei prever que quando se trata de criminalidade altamente organizada como a de natureza económico-financeira costuma ser, a autorização poder ser pedida ao juiz do lugar onde situa a sede da entidade competente para a investigação criminal.

Ora, no caso vertente, a sede da entidade competente é em Ponta Delgada, por ter sido deferida a competência do DIAP desta cidade, pelo que os juízes de turno da referida comarca, tendo competência para autorizar a realização das referidas intercepções, detinham igualmente competência para as validar, na lógica de que quem pode o mais, pode o menos.

Acresce que a situação de impossibilidade de apresentar as escutas para validação ao Tribunal territorialmente competente  (de Angra do Heroísmo) no prazo de 48 horas previsto na lei configura “uma espécie de justo impedimento” por parte do  MºPº,  um caso de força maior que o impede de apresentar as escutas para validação ao Mmo Juiz de Angra do Heroísmo, dentro do prazo legal, pelo que o fez junto do Juiz que exerce funções na sede  da entidade competente para a investigação criminal.

Logo, validadas que foram as escutas por quem no momento detinha competência face à lei, para apreciar e validar, não podia o Mmo Juiz do Tribunal a quem foi deferida competência territorial declarar, posteriormente, a nulidade das mesmas, e, com base nessa declaração de nulidade, continuar a proferir despachos que julgam nulas as intercepções telefónicas posteriormente efectuadas, que lhe são apresentadas para validação.

Não tem o Mmo Juiz razão quando defende que se está perante o desaforamento do processo, já que o que está, neste momento, em causa, é a prática de actos avulso, de fiscalização sobre o respeito dos limites impostos pelo legislador ao constrangimento permitido dos direitos fundamentais dos intervenientes processuais por elas visados, ainda por cima, na qualidade de suspeitos.

O recurso interposto pelo MºPº junto do Tribunal de Ponta Delgada merece provimento, ainda que com fundamentação parcialmente diversa da aduzida pelo MºPº.

O despacho do Mmo Juiz datado de 22 de Setembro de 2017 que declarou nulas as intercepções telefónicas validadas a fls. 720, 744, 766 e 782, bem como as validadas por despacho de 14 de Setembro de 2017( fls 803), e os despachos de 29 de Setembro   a 11 de Outubro de 2017 que não validaram as intercepções entretanto efectuadas por as considerar não validamente efectuadas são de revogar, mantendo-se os despachos proferidos pelos Mmos Juízes de turno de 11.08, (fls720), 23.08 (fls. 744), de 31.08 (fls.766) e de 08.09 (fls. 782),  e o despacho do Mmo Juiz “a quo” que validou as escutas em 14.09.2017 (fls 803), nos precisos termos em que foram proferidos, com  validação das escutas que haviam sido efectuadas.

E revogam-se igualmente os despachos proferidos em 29.09.2017 e 11.10.2017 que em consequência do decidido no despacho de 22 de Setembro 2017, não validou as intercepções entretanto efectuadas, que devem ser substituídos por outro que aprecia a validade das escutas em conformidade com o agora decidido.

Decisão:

Termos em que acordam, após conferência, em revogar o despacho proferido em 22 de Setembro de 2017, mantendo os despachos de 11.08.2017, de 23.08.2017, 31.08.2017, 8.09.2017 e 14.09.2017, a fls. 720, 744, 766, 782 e 803 dos autos.

E em revogar os subsequentes despachos proferidos em 29.09.2017 e 11.10.2017 que não validaram as escutas com fundamento no teor do despacho de 22 de Setembro de 2017, determinando que o mesmo seja substituído por outro que efectue a validação das intercepções efectuadas de acordo com o agora decidido.

Não é devida tributação.

Registe e notifique, nos termos legais.

Lisboa, 30.11.2017

Margarida Vieira de Almeida

Maria da Luz Batista