Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
576/13.2TBSXL.L1-7
Relator: LUÍS ESPÍRITO SANTO
Descritores: INSOLVÊNCIA
APREENSÃO DE SALÁRIO
CONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/18/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I – O artigo 46º, nº 1 do CIRE permite a apreensão para a massa insolvente de parte do montante pecuniário que o insolvente – declarado como tal – venha posteriormente a auferir por via do exercício de actividade laboral.
II – Os limites que obstam a tal apreensão reconduzem-se aos da impenhorabilidade em geral – in casu, correspondente a dois terços da parte líquida do salário auferido ( artº 738º, nº 1 do Código de Processo Civil ).
III – Tendo sido ordenada a apreensão na percentagem de 1/3 ( um terço ) do rendimento líquido dos insolventes, não inferior ao salário mínimo nacional, cumpre concluir que a mesma respeitou escrupulosamente o disposto no artigo 46º, nº 2 do CIRE.
IV - Esta afectação não colide de modo algum com ao direito ao trabalho, constitucionalmente protegido, que assistirá ao insolvente, nem lhe retira a possibilidade de auferir aquele mínimo que o legislador considerou como intangível, precisamente por constituir – esse sim - a salvaguarda e a garantia da subsistência económica compatível com a sua dignidade e integridade moral, tuteladas em geral pela Constituição da República Portuguesa.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa
( 7ª Secção ).

I – RELATÓRIO.
Nos presentes autos foi declarada, por sentença proferida em 20 de Setembro de 2013, a insolvência de M. e de R..
Na Assembleia de Credores que teve lugar em 13 de Novembro de 2013, foi proferida a seguinte decisão : “ Quanto ao requerimento da C., fica autorizada a apreensão de 1/3 ( um terço ) da parte líquida do rendimento dos insolventes, desde que ressalvado o salário mínimo nacional, conforme previsto pelas disposições conjugadas dos artigos 46º e 150º, do CIRE, e artº 738º, nº 1 a 3, do novo Código de Processo Civil “ ( cfr. fls. 29 ). 
Apresentaram os insolventes recurso desta decisão, o qual foi admitido como de apelação ( cfr. fls. 12 ).
Juntas as competentes alegações, a fls. 32 a 36, formularam os apelantes as seguintes conclusões :
1ª – Há que não confundir o acervo patrimonial dos bens adquiridos pelo falido com o que os credores razoavelmente podem contar – a massa insolvente – com a realidade física e jurídica da pessoa do insolvente, após a declaração de insolvência.
2ª – Apesar do artigo 46º, nº 1 do CIRE dizer que a massa insolvente abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como todos os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo, o nº 2 deste mesmo diploma legal vem explicar esta situação, ao dizer que “ os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta “.
3ª – Ora, a devedora, in casu, não apresentou voluntariamente o terço do seu vencimento para apreensão.
4ª- A intenção do legislador foi bem clara, deixando de fora do acervo da massa insolvente após a declaração de insolvência, a parte do vencimento ou salário auferido pelo devedor.
5ª – Tal disposição e entendimento legal está em perfeita sintonia com os princípios do direito da defesa da dignidade humana e do direito ao recebimento de retribuição pelo trabalho desenvolvido, bem como de tutela geral da personalidade ( cfr. artsº 58º, nº 1, 59º nºs 1, alínea a) e 2, alínea a) da CRP e 70º do Código Civil ).
6ª – Ao ordenar a apreensão de 1/3 dos rendimentos periódicos do insolvente a decisão recorrida violou o disposto no nº 2 do artigo 46º do C.I.R.E. e os artigos 58º, nº 1, 59º nºs 1, alínea a) e 2, alínea a) da CRP e 70º do Código Civil.
 Não houve resposta.

II – FACTOS PROVADOS.
Os indicados no RELATÓRIO supra.

III – QUESTÕES JURÍDICAS ESSENCIAIS.
São as seguintes as questões jurídicas que importa dilucidar :
Apreensão de um terço do rendimento líquido dos insolventes, com salvaguarda pelo montante correspondente ao salário mínimo nacional. Alcance do artigo 46º do CIRE. Constitucionalidade.
Passemos à sua análise :
Não assiste razão aos recorrentes.
Dispõe o artigo 46º, nº 1 do CIRE : “ A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e dos direitos que ele adquira na pendência do processo “.
Resulta inequivocamente desta disposição legal que pode ser apreendida para a massa insolvente parte do montante pecuniário que o insolvente – declarado como tal – venha posteriormente a auferir por via do exercício de actividade laboral.
Entendimento diverso não permite o segmento expresso no preceito legal no sentido de que“ A massa insolvente … abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e dos direitos que ele adquira na pendência do processo[1].
Os limites que obstam a tal apreensão reconduzem-se aos da impenhorabilidade em geralin casu, correspondente a dois terços da parte líquida do salário auferido ( artº 738º, nº 1 do Código de Processo Civil ).
Ora,
Na situação sub judice, sendo a apreensão ordenada na percentagem de 1/3 ( um terço ) do rendimento líquido dos insolventes, não inferior ao salário mínimo nacional, cumpre concluir que a mesma respeitou escrupulosamente o disposto no artigo 46º, nº 2 do CIRE.
O bem concretamente afectado – na percentagem de um terço – é penhorável e portanto poderá, naturalmente, vir a ser apreendido no âmbito do processo de insolvência, ao abrigo do disposto no artigo 46º, nº 1 do CIRE.
Neste mesmo sentido, vide :
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de Junho de 2011 ( relator Bettencourt de Faria ), publicado in www.dgsi.pt, onde se salientou que “ …os bens penhoráveis integram a massa insolvente. Ora, a parte penhorável de um vencimento não é um bem relativamente impenhorável. É um bem penhorável. A qualificação de um bem como relativamente penhorável não resulta apenas da natureza do mesmo bem, mas desta conjugada com uma sua quota. Daqui decorre que, atendendo a que a impenhorabilidade relativa de um vencimento é de dois terços – artigo 824º, nº 1 do Código de Processo Civil – é a esta que se refere o nº 2 do citado artigo 46º. ( … ) O restante é um bem penhorável que deve obrigatoriamente fazer parte da referida massa, conforme o nº 1 do artigo 46º. Aliás, é esclarecedora a expressão utilizada pelo legislador ao fazer a dita ressalva no citado nº 2 : “ os bens isento de penhora “.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15 de Março de 2007 ( relator Oliveira Rocha ), publicado in www.dgsi.pt ( no âmbito do CPEREF ).
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Novembro de 2011 ( relator Pimental Marcos ), publicado in www.dgsi.pt, onde é referenciado, de forma particularmente desenvolvida, o conflito jurisprudencial gerado em torno desta concreta temática[2].
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Novembro de 2011 ( relatora Fernanda Isabel Pereira ), publicitado in www.jusnet.pt- Colectânea de Jurisprudência On Line.
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2011 ( relatora Dina Monteiro )[3], publicitado in www.dgsi.pt, onde pode ler-se : “Aqui chegados, podemos concluir, como se fez no Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 15.Novembro.2011, no âmbito do Proc. 17860/11.2T2SNT-A.L1, da 7.ª Secção, que “(…) a massa não abrange todos os bens do devedor susceptíveis de avaliação pecuniária, mas apenas os que forem penhoráveis e não sejam excluídos pró disposição especial em contrário, acrescidos dos que, não sendo penhoráveis, sejam voluntariamente oferecidos pelo próprio devedor, mas, neste caso, desde que não sejam absolutamente impenhoráveis”.
Aliás, leitura distinta permitiria que o insolvente beneficiasse de uma situação patrimonialmente mais confortável do que a de um executado, o que não é a ideia do legislador face à função desempenhada pelo instituto da insolvência em que se pretende que todo o património do devedor, com excepção dos bens impenhoráveis e dos contidos em legislação especial, seja adstrito á satisfação das suas dívidas (entre outros, CARVALHO FERNANDES e JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Lisboa, 2006, pág. 224).
A forma adoptada na insolvência para resolver os problemas de sobrevivência do insolvente não é a apontada pelo Apelante, mas sim, nos casos em que o salário mínimo é insuficiente para garantir o mínimo indispensável à sua sobrevivência e dignidade humana, é o recurso à fixação de alimentos, mecanismo previsto no artigo 84.º do CIRE “[4].
Por outro lado,
esta apreensão de parte dos rendimentos dos insolventes não afronta qualquer imperativo de ordem constitucional, nomeadamente o consagrado nos artsº 58º, nº 1, 59º nºs 1, alínea a) e 2, alínea a) da CRP, respeitantes ao direito ao trabalho e ao salário.
É óbvio que a afectação de um terço do salário destinado à satisfação dos credores do insolvente, com salvaguarda pelo montante corresponde ao salário mínimo nacional, legalmente prevista, não colide de modo algum com ao direito ao trabalho, constitucionalmente protegido, que assistirá ao insolvente, nem lhe retira a possibilidade de auferir aquele mínimo que o legislador considerou como intangível, precisamente por constituir – esse sim - a salvaguarda e a garantia da subsistência económica compatível com a sua dignidade e integridade moral, tuteladas em geral pela Constituição da República Portuguesa.
A apelação improcede.
 
  IV - DECISÃO : 
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelos apelantes.

Lisboa, 18 de Fevereiro de 2014.
 
Luís Espírito Santo
Gouveia Barros
Conceição Saavedra
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[1] Sublinhado nosso.
[2] Para o qual respeitosamente se remete.
[3] Igualmente subscrito pelo ora relator e pelo ora 1º Adjunto.
[4] Pronunciando-se em sentido oposto ao ora perfilhado, vide acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17 de Abril de 2012 ( relatora Maria João Areias ), com um voto de vencido, onde se expõe, em termos particularmente desenvolvidos, o conflito doutrinário e jurisprudencial em torno desta temática.