Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
579/12.4JAFUN.L1-3
Relator: CONCEIÇÃO GONÇALVES
Descritores: PERÍCIAS MÉDICO-LEGAIS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/22/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I.Havendo duas perícias médico-legais com resultados contraditórios, o tribunal ao divergir de um dos juízos científicos fundamenta a divergência aderindo aos fundamentos desse juízo. No fundo, o afastamento do juízo científico de uma das perícias é feito com base noutro juízo científico, não havendo, por isso, qualquer afastamento do disposto no artº 163º do CPP, pois a opção tomada não assentou na convicção do tribunal alicerçada em elementos fácticos, mas no confronto entre as perícias, considerando que o juízo científico de uma das perícias dá maiores garantias científicas.

II.A perícia científica confere maior consistência científica se tiver sido colegial e se tiver sido complementada por uma perícia psicológica, que consiste numa avaliação especializada.

III.No estabelecimento dos pressupostos da inimputabilidade em causas complexas - como são as causas de apreciação de perturbações de personalidade - é o próprio Código Processual Penal que apela à colegialidade das perícias e à necessidade de uma abordagem interdisciplinar, que confere maior abrangência de pontos de vista, proporcionando maior consistência científica.

IV.As exigências de prevenção geral positiva são tanto mais prementes quanto maior for a gravidade da violação jurídica cometida, designadamente estando em causa criminalidade violenta contra as pessoas, levando a que as exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico não sejam compatíveis com a ressocialização do arguido em liberdade, apesar da sua idade avançada e do facto de não ter antecedentes criminais.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa.


I.RELATÓRIO:


1.No processo comum com intervenção de Tribunal Colectivo procedente do Tribunal da Comarca da Madeira –Instância Central- Secção Criminal –Juiz 3, com o número supra identificado, o arguido A..., com os sinais dos autos, por acórdão proferido em 16/11/2016, foi condenado, criminal e civilmente, nos termos seguintes:
-Pela prática, em autoria material, de um crime de Homicídio Simples, na forma tentada,  previsto e punido pelos artigos 22º, 131º e 132º, nº 1 e 2, al. e), todos do Código Penal,  na pena de 5 (cinco) anos de prisão.
-A pagar á assistente/demandante S..., a título de indemnização civil pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos, a quantia de 182.609,72 (cento e oitenta e dois mil, seiscentos e nove euros e setenta e dois cêntimos), acrescida de juros de mora, contados desde a data de notificação deste pedido até integral pagamento;
-A pagar ao Serviço Regional de Saúde da Região Autónoma da Madeira, SESARAM a quantia de 6.825,43 (seis mil, oitocentos e vinte e cinco euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora contados desde a data da notificação deste pedido em relação à quantia 5.630,66 euros (cinco mil, seiscentos e trinta euros e sessenta e seis cêntimos, e desde a data da notificação da ampliação do pedido em relação à quantia de 1.194,77 euros (mil cento e noventa e quatro euros e setenta e sete cêntimos, até integral pagamento.

2.Não se conformando com esta decisão o arguido e o Ministério Público vieram interpor recurso.

2.1.O arguido, em sede de motivação de recurso, alega, em síntese, o seguinte:
 “- O Tribunal a quo julgou incorrectamente como provado o ponto 12º dos factos provados: “Ao praticar a supra descrita conduta, o arguido actuou com vontade livremente determinada e com a consciência de que esta não lhe era permitida”, e ainda os pontos 11 e 17 dos factos provados.
- Da prova produzida resulta que o Dr. RA..., perito da 1ª perícia de fls. 869 a 872, que examinou o arguido em 6.12.2016 (os factos ocorreram em 2.12.2012) diagnosticou ao arguido uma reacção psicótica breve (que é o mesmo que surto psicótico agudo), fez medicação anti-psicótica, e que a toma da medicação foi ao longo do tempo sendo reduzida e que no ano de 2016 e à data do julgamento o arguido encontra-se curado.
- Em sede de audiência o Dr. RA... prestou os esclarecimentos que se mostram gravados através do sistema integrada de gravação digital, para onde se remete, designadamente, que a reacção psicótica breve do arguido teve a duração mínima de duas semanas a um mês, ou seja, ao detectar no dia 6.12.216 ao arguido o surto psicótico agudo a referida doença psíquica grave já se verificava há pelo menos duas a quatro semanas antes do dia 6.12.2012, ou seja, a mencionada doença psíquica grave do arguido já se verificava à data de 2.02.2012 da prática dos factos.
- O Dr. RA..., na qualidade de perito, esclareceu em audiência que mantém o diagnóstico que realizou ao arguido em 6.12.2012, e que mantém que o arguido à data da prática dos factos é inimputável.
- Esclareceu ainda que á data do julgamento o arguido está curado da referida doença psíquica grave, uma vez tratado e respondendo à medicação fica curado; no presente não tem sintomas dessa condição,
- E que, apesar de ter esta anomalia psíquica grave não cria no presente por força dela uma situação de perigo para bens jurídico de relevante valor próprios ou alheios de natureza pessoal ou patrimonial.
- Também o psiquiatra Dr. JT... depôs em audiência esclarecendo que tratou o arguido durante o internamento na casa de Saúde ...., estando na altura alienado da realidade devido a um surto psicótico agudo; que dispensou ao arguido cuidados e tratamentos médicos desde finais de 2012, altura em que foi internado até à respectiva alta e depois até Outubro de 2015 tratou o arguido no seu consultório.
- A testemunha ocular JS... que depôs em julgamento referiu que a discussão entre o arguido e a ofendida dentro do carro durou sensivelmente um minuto, que lutaram entre si utilizando os braços, e que a ofendida tentava sair do carro, e quando saiu estatelou-se no chão no espaço entre o carro e a parede.
- Referiu que o arguido estava num estado “não normal” e claramente perturbado.
- Os pareceres científicos de dois médicos psiquiatras que avaliaram, examinaram e prestaram cuidados médicos ao arguido ao tempo que estava afectado de doença psíquica grave deverão considerar-se mais fidedignos.
- Do que o parecer do relatório pericial da 2ª perícia realizado a partir de 23 de Junho de 2016 e concluído em 23.09.2016, consequentemente elaborado em data posterior à data da cura ocorrida em Outubro de 2015 da doença psíquica grave do arguido, sendo que o exame complementar de psicologia foi realizado ao arguido em data posterior à cura ocorrida em Outubro de 2015.
- O tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento ao não ter considerado na apreciação da prova e na decisão esta regra da experiência comum de que os juízos científicos médicos que examinaram e que cuidaram do paciente aquando da existência da doença sabem mais do paciente à época em que esteve doente e sabem mais da doença do arguido do que os médicos que o examinaram com base numa entrevista realizada em 2016 em duas sessões.
- O tribunal não se pronunciou porque não considerou na apreciação da prova esta regra da experiência, tendo decidido sufragar as conclusões da 2ª perícia.
- O Tribunal para tanto consignou, além do mais que “...pendemos para a imputabilidade do arguido, optando, assim, pela segunda perícia e respectivo relatório, porque nos dá maiores garantias de segurança nesse juízo científico, quer porque realizado por três peritos, mas também porque instruído e tem como um dos seus fundamentos uma avaliação psicológica, que consiste numa  avaliação especializada em termos de comportamentos e processos mentais, o que lhe transmite uma maior consistência científica”.
- O Tribunal a quo ao dar primazia à 2ª perícia em detrimento da 1ª perícia com desconsideração dos referidos dois juízos científicos que corroboraram em audiência a inimputabilidade do arguido, cometeu erro de julgamento.
- A interpretação feita pelo tribunal do artº 163º do CPP é inconstitucional por violação dos artigos 20º, 204º e 205º, da CRP.
- Não se verifica, pois, o preenchimento do elemento subjectivo do crime de homicídio, nem com dolo nem com negligência.
-Em consequência também o tribunal julgou erradamente o facto dado como provado no ponto 17. dos factos provados.
-Conclui-se assim pela inimputabilidade do arguido.
-De qualquer modo, considera que o tribunal na pena aplicada não atendeu à idade do arguido que contava 78 anos à data da decisão, e sempre a pena deveria ter sido declarada suspensa na sua execução por estarem reunidos os respectivos pressupostos.
- Invoca, por fim, a existência de contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, porquanto, o tribunal deu como provado nos pontos 46 a 53 que a demandante teve os danos patrimoniais aí discriminados, num total de 1.768,72€, e em plena contradição insanável, entendeu fixar os danos não patrimoniais em 17.249,72 (cfr. p. 25 do douto acórdão).

Nestes termos, deve o recurso ser julgado procedente com:
1.- O reconhecimento e declaração judicial dos erros de julgamento e das inconstitucionalidades supra discriminadas e consequente revogação do acórdão, e sua substituição por outro acórdão que venha a absolver o arguido e demandado civil;
2.- Subsidiariamente, reconhecendo e declarando a concreta pena de prisão aplicada ao arguido, deverá a mesma ser declarada suspensa na sua execução e ser reduzida a condenação da demandada civil no pagamento da indemnização.

2.2. O Ministério Público termina a motivação de recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
“1.- O arguido A... foi condenado como autor material de um crime de homicídio simples, na forma tentada, p. p. pelos artigos 22º, 23º, 73º e 131º, todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.
2.- A pena de 5 (cinco) anos de prisão deveria ter sido suspensa na sua execução uma vez que há elementos de facto e de direito bastantes que nos levam a concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, no caso em apreço, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
3.- A prevenção geral terá também que ser equacionada só se justificando a suspensão, quando face à personalidade do condenado, às suas condições de vida, à natureza do crime, for possível concluir que se trata de um facto isolado e que a simples ameaça da pena é suficiente para o afastar da prática de novos crimes.
4.- Neste caso era possível suspender a pena pelo facto de o arguido A... ser primário, dar mostras de estar arrependido, por estar socialmente integrado, ter mais de 75 anos, já ter neste momento decorrido mais de 4 anos contados desde a data da prática dos factos e de ter uma ligeira diminuição da imputabilidade no momento dos factos.
5.- Em contraposição com as finalidades da prevenção especial, o tribunal a quo valorizou excessivamente a vertente da prevenção geral, e só por isso, aplicou ao arguido uma pena de prisão efectiva.
6.- O tribunal a quo violou o disposto nos artigos 50º, 51º, 71º e 72º, todos do Código Penal”.
 
3. Os recursos foram admitidos com subida imediata, nos próprios autos e efeito suspensivo.

4. O Ministério Público respondeu à motivação do recurso apresentado pelo arguido, dando por reproduzido todo o circunstancialismo de facto e de direito plasmado nas suas motivações e conclusões de recurso apresentado por discordar da decisão recorrida.

5. A assistente S... veio igualmente responder às motivações de recurso apresentadas pelo arguido e Ministério Público, concluindo:
“a.- A assistente concorda com a decisão proferida pelo tribunal a quo.
b.- Que condenou o arguido numa pena efectiva de 5 anos de prisão.
c.- Por ter o arguido cometido um crime de homicídio simples, na forma tentada.
d.- Da sentença proferida resultam as lesões graves causadas na assistente pelo arguido, que só não lhe causou a morte devido a pronta intervenção de terceiros e bombeiros.
e.- Da sentença resulta a situação actual de incapacidade definitiva da assistente devido as lesões causadas, pelo arguido.
f.- O trauma para o resto da sua vida, devido a gravidade e brutalidade como foi agredida pelo arguido.
g.- Foram realizados todos os relatórios médicos requeridos possíveis e imaginários sobre a situação psíquica e psicológica do arguido.
h.- Atendendo à informação dos ditos relatórios médicos, considera a assistente que o cumprimento da dita pena pelo arguido em liberdade, põem em risco a vida da assistente, uma vez que durante todo o processo e durante os dias que correm, o arguido persegue a assistente, nas ruas.
i.- Que devido a gravidade e brutalidade da actuação do arguido o mesmo deverá cumprir cadeia efectiva.
j.- Fala-se tanto na comunicação social, sobre as mortes causadas pelos crimes de violência doméstica, que exemplo daria este tipo de crime aos outros indivíduos que matam por ciúme?
k.- Assim sendo considera-se que atendendo a finalidades da prevenção especial, o tribunal a quo valorou de forma correcta a vertente da prevenção geral.
Mas como sempre V. Excelências farão a costumada Justiça”.

5. Neste Tribunal, nos termos do disposto no artº 416º do CPP, o processo foi com vista ao Ministério Público.

6. Colhidos os Vistos legais, realizou-se a Audiência requerida pelo arguido.

Cumpre apreciar e decidir.
*
IIFundamentação.

1. Conforme é aceite pacificamente pela doutrina e jurisprudência dos tribunais superiores, o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões e neste caso o recorrente veio colocar as seguintes questões:
-Impugnação da matéria de facto por erro de julgamento em face da valoração feita acerca da prova pericial.
-Da medida da pena e da sua substituição (recurso do Ministério Público e do arguido).

2. Decisão:
2.1. Importa antes de mais analisar a factualidade apurada, tendo resultado provados os seguintes factos:
“1.- À data dos factos, a S... era, há cerca de sete anos, amiga do arguido A... e, por vezes, efectuava trabalhos de mulher-a-dias na residência deste, situada na zona de ...., sendo que, durante esse período de tempo, o arguido, por várias vezes, ajudou-a com dinheiro e bens.
2.- Durante esses sete anos, por diversas vezes, o arguido A... tentou iniciar um relacionamento amoroso com S..., mas esta não aceitou.
3.- Em data não concretamente apurada do final do ano de 2012, a S... emprestou ao arguido o veículo da sua filha, de matrícula ..., marca “Opel”, modelo “Corsa”, de cor cinzenta.
4.- No dia 02.12.2012, cerca das 13 horas, o arguido circulava com a dita viatura na companhia da S..., ele no lugar do condutor e ela no lugar do passageiro, e dirigiram-se para a paragem de autocarro junto do Parque de São Tiago, onde a ofendida deveria apanhar o autocarro.
5.- A dada altura, na Rua ..., o arguido parou a viatura alguns metros depois do portão da sociedade “....”, junto ao muro do lado direito, no sentido ascendente.
6.- Quando S... se preparava para sair da viatura, após abrir a porta, o arguido puxou-a para dentro, impedindo-a que saísse, e, munido com uma faca de cozinha que transportava consigo, desferiu-lhe vários golpes na zona do coração, costas e membros inferiores.
7.- A S..., ao mesmo tempo que colocava as mãos à frente do corpo para se proteger, vindo por isso a ser atingida nas mãos, procurava escapar da viatura.
8.- Enquanto isso, o arguido tentava impedi-la de sair e, simultaneamente, desferia-lhe golpes com a faca, até que aquela conseguiu sair da viatura, ficando, no entanto, prostrada no solo, onde veio a ser socorrida por transeuntes.

9.- Como consequência directa e necessária da referida conduta do arguido, a ofendida S... sofreu:
i.- quatro feridas incisas na face posterior do hemitórax esquerdo;
ii.- uma ferida na mama esquerda hemotórax à esquerda;
iii.- uma ferida no hemitórax esquerdo com hemorragia activa;
iv.- uma ferida subclavicular e infraclavicular sangrante;
v.- múltiplas feridas incisas dorsais não sangrentas, compatíveis com instrumento de natureza corto-perfurante;
vi.- parestesias no membro inferior esquerdo;
vii.-lesão traumática dos músculos da goteira vertebral esquerda em L2 e L3;
que foram causa directa e necessária de um período de doença fixável em 706 (setecentos e seis) dias, sendo 60 (sessenta) dias com afectação da capacidade para o trabalho geral e 706 (setecentos e seis) dias com afectação da capacidade para o trabalho profissional.
10. Para além disso, da referida conduta do arguido resultou como consequência para a ofendida a pendência permanente do pé esquerdo, com incapacidade para a dorsiflexão na tibiotársica esquerda, com dificuldade na marcha com “steppage” à esquerda, e parestesias no respectivo pé, carecendo de usar prótese nesse pé, e ainda perturbação de stresse pós-traumático com repercussão na autonomia pessoal, social e profissional.
11. Ao munir-se com uma faca antes do encontro com S..., o arguido já havia formado o intento de a atingir com essa faca e ao desferir os citados golpes nas referidas áreas do corpo daquela sabia que tal conduta era apta, atento o meio utilizado, o número de golpes e a área agredida, a causar a morte daquela, resultado que quis, só não vindo a lograr tal objectivo por motivos alheios à sua vontade.
12. Ao praticar a supra descrita conduta, o arguido actuou com a vontade livremente determinada e com a consciência de que esta não lhe era permitida.
*

13. O arguido A... desenvolveu-se num contexto sociocultural e económico razoável, sendo o mais velho de uma fratria de sete elementos. É retratada uma dinâmica familiar estável, com transmissão de regras e valores como o trabalho.
14. O arguido frequentou a escola até ao 4º ano, reunindo capacidades de leitura e de escrita.
15. Iniciou trabalho na adolescência, referindo experiências laborais diversificadas, algumas na restauração e hotelaria, tendo reunido hábitos de trabalho.
16. Parte da sua vida decorreu em Inglaterra, onde esteve emigrado pelo período de cerca de 30 anos. Nesse país estabeleceu uma relação conjugal, da qual nasceram três descendentes, todos com idade superior a 50 anos. Voltou à ilha da Madeira depois de reformado juntamente com o cônjuge.
17. Não foram apuradas problemáticas aditivas no seu percurso de vida. Regista um internamento na Casa de Saúde .... em 2012, encaminhado pelo serviço de urgência hospitalar, na sequência dos factos que originaram o presente processo.
18. A.... reside sozinho, na sequência do falecimento do seu cônjuge, já na pendência deste processo. Os filhos vivem em Inglaterra e, por vezes, visitam-no nesta Região. Na ilha da Madeira conta com o apoio estreito de uma irmã, com quem mantém uma relação de grande afetividade e proximidade. Esta irmã desloca-se cerca de duas vezes por semana à sua casa a fim de organizar e limpar a moradia. Esta moradia revela boas condições de habitabilidade e conforto.
19. O arguido é beneficiário de uma pensão de velhice no valor aproximado de 200,00 euros e de uma pensão proveniente do estrangeiro no valor de 400,00 euros.
20. Actualmente, o seu quotidiano é passado maioritariamente na zona de residência, deslocando-se ao centro da cidade do Funchal, onde convive com alguns conhecidos, ainda que a sua teia de relações sociais não se mostre muito extensa.
21. O relacionamento do arguido com a ofendida terá cessado ainda que refira depositar na conta bancária desta a quantia mensal de 20,00 euros, alegando que ela tem dificuldades económicas.
22. Em termos pessoais, o arguido mostra-se uma pessoa autónoma e, por exemplo, conduz uma viatura, tendo recentemente renovado a carta de condução.
23. O confronto com o presente processo é vivido com nervosismo pelo receio de consequências gravosas e pelo impacto nos filhos. Num contexto de negação de responsabilidade, não consegue identificar uma entidade vítima e não antevê condenação ou eventualmente alguma forma de ressarcimento.
24. O arguido tem vindo a contribuir mensalmente com 20,00 euros para as despesas da assistente/demandante civil.
25. O arguido não tem antecedentes criminais.
*

26. Em consequência dos factos descritos nos pontos 4. a 12., a ofendida foi e tem sido assistida nos serviços do SESARAM, onde lhe foi e é prestada assistência médica e medicamentosa, tendo tal assistência ascendido, até ao momento, à quantia de 6.825,43 euros.
*

27. A assistente lembra-se todos os dias dos factos como se de um filme se tratasse, devido às cicatrizes e sequelas com que ficou.
28. À data dos factos, a assistente tinha 40 anos de idade, gozava de boa saúde e não tinha qualquer problema físico.
29. A assistente sentia uma grande alegria de viver e constante boa disposição, sendo mãe de três filhos, dois deles menores à data dos factos.
30. A assistente trabalhava há vinte e um anos como empregada auxiliar de serviço na Casa de Saúde ..., em ...., auferindo o vencimento base de 530,43€ (quinhentos e trinta euros e quarenta e três cêntimos), acrescido das diuturnidades, prémio de trabalho e subsídio de alimentação, pelo que o vencimento mensal rondava os 774,85€ (setecentos e seiscentos e sessenta e oito euros e catorze cêntimos).
31. Fora do seu horário de trabalho na Casa de Saúde ...., a assistente trabalhava como empregada a dias, sendo que, à data dos factos, tinha quatro serviços semanais, onde recebia 40,00€ (quarenta euros) em cada um dos serviços, auferindo mensalmente o valor de 640€ (seiscentos e quarenta euros) mensais, valores que deixou de auferir no período compreendido entre 02.12.2012 e 02.12.2014.
32. A assistente ficou de baixa médica devido as lesões que sofreu desde a data dos factos até 27.11.2015.
33. A assistente ficou com dificuldade de locomoção e equilíbrio e coxeia devido às lesões que lhe provocou o arguido, tendo ficado com o pé esquerdo pendente (dificuldade na dorsiflexão e parestesias no respectivo pé).
34. Devido às lesões sofridas na perna esquerda, a assistente tem de usar uma ortótese, anti-equino para o pé esquerdo, e frequenta, desde a data dos factos, sessões de reabilitação, sendo que nos primeiros seis meses estas tiveram lugar no Hospital Central do Funchal e actualmente ocorrem no Centro de Saúde de Santo António.
35. A assistente sofreu e sofre actualmente de dores nos membros inferiores, pelo qual teve de levar injecções para atenuá-las, e, durante o tempo de internamento, teve de usar muletas.
36. Durante o tempo que esteve internada no Hospital Central do Funchal, devido as lesões sofridas, a assistente não se conseguia mexer, não se levantou durante os primeiros oito dias, não conseguia comer pelas suas próprias mãos e dependia da ajuda de terceiros, só consegui tomar banho no último dia de internamento com ajuda de terceiro, e tinha um dreno do lado esquerdo do tórax que lhe provocava dores constantes.
37. Devido às ditas lesões nas mãos, a assistente ficou com mobilidade reduzida, principalmente na mão direita, pelo que não consegue lavar a loiça ou fazer os trabalhos domésticos tal e qual como fazia, pelo que é a sua mãe quem toma conta dos ditos afazeres em casa.
38. O simples virar na cama torna-se um sofrimento para a assistente, que não consegue fazê-lo sozinha, nem consegue cortar as unhas, pelo que a sua vida passou a depender de terceiros, causando-lhe grande consternação.
39. A assistente ficou afectada psicologicamente pelas sequelas das agressões sofridas e pelas marcas visíveis das agressões, nomeadamente cicatriz na mama esquerda, com mais ou menos 5 cm., e cicatriz na mão direita.
40. A assistente sofre de perturbação stresse pós-traumático, com repercussão na autonomia pessoal, social e profissional.
41. A assistente não consegue dormir devido aos pesadelos e chora constantemente ao se recordar da situação vivida, referindo que todos os dias se lembra dos factos como se tivessem acontecido no presente, o que lhe causa ansiedade.
42. Nunca mais pegou numa faca, seja de que tamanho for, devido ao trauma com que ficou da data dos factos e do modo como aconteceram.
43. Nunca mais conseguiu passar na rua onde aconteceram os factos, desviando-se por caminhos alternativos.
44. Circula na rua sempre com medo de que o arguido a esteja a segui-la, olhando pelos vidros das montras, com vista a ver se a segue.
45. Desde a ocorrência dos factos, a assistente tem sido acompanhada por um psicólogo e mensalmente por um médico.
46. Tendo gasto, até à presente data, o valor de 1.045,00€ (mil e quarenta e cinco euros) nas consultas realizadas (mil e quarenta e cinco euros), que ascendem a 19 com o custo unitário de 55,00€.
48. O filho da assistente, F..., à data dos factos, tinha 10 anos de idade e, devido aos acontecimentos, desde a referida data, pergunta constantemente se a casa está fechada, ao se deitar para dormir à noite não apaga a luz, e todos os dias verifica as divisões da casa, para se assegurar de que o arguido não está dentro de casa.
49. O referido F... sente medo do arguido desde a data dos factos, pelo que está a ser acompanhado por uma psicóloga do Centro de Saúde de ....
50. A assistente teve de realizar e pagar os exames médicos de raio x, ao tórax, pulmões e coração, a 26.07.2013 e a 01.09.2014, tendo pago o valor total de 140,00€ (cento e quarenta euros).
51. Efectuou uma ecografia de partes moles, a 26.07.2013, tendo pago o valor de 65,00€ (sessenta e cinco euros).
52. Gastou até a presente data em despesas medicamentosas, para colmatar as dores e as lesões provocadas pelo arguido, o valor total de 352,06€ (trezentos e cinquenta e dois euros e seis cêntimos).
53. Adquiriu a prótese ortótese anti-equino no valor de 74,53€ (setenta e quatro euros e cinquenta e três) e já teve de efectuar conserto da mesma no valor de 10,00€ (dez euros).
54. Devido à utilização dita prótese, a assistente apenas pode utilizar sapatinhas, pelo que teve de adquirir dois pares, cujo valor global foi de 92,13€ (noventa e dois euros e treze cêntimos).
55. O Tribunal requereu os extractos da conta da assistente, pelo que a mesma teve de pagar 120,00€ (cento e vinte euros).
56. Desde a data dos factos, a assistente deixou de se socializar por vergonha as lesões físicas visíveis.
57. Actualmente, e em consequência directa e necessária das lesões sofridas, a ofendida encontra-se de baixa médica, pelo que não pode desempenhar a sua vida profissional, atendendo as fortes dores que sente e pela impossibilidade de mobilização normal, no lado esquerdo e devidos as lesões e traumas com que ficou desde a data dos factos.
58. A ofendida sente-se revoltada e angustiada com o estado de dependência de terceiros após a agressão.

Factos não provados.

Não se provou que:
1.- A S... iniciou um relacionamento amoroso com um outro homem, com o qual convivia à data dos factos subsequentemente descritos, facto que não foi bem aceite pelo arguido.
2.- O arguido actuou por causa dos ciúmes e raiva que tinha do relacionamento da ofendida com um outro homem.
3.- Devido a sua situação económica difícil em que a assistente enfrentou após os acontecimentos e por ser mãe de três filhos, teve de pedir um empréstimo ao banco no valor de 3.000,00€ (três mil euros), para ajuda nas despesas diária com os quatro membros da família.
4.- Teve ainda a assistente de pedir ajuda a pessoas amigas as quais emprestaram os valores de 3.850,00€ (três mil, oitocentos e cinquenta euros) e 1.000,00€ (mil euros), que se encontram em dívida.
5.- Entregou a Dra. E.... (primeira advogada interveniente nos autos), o valor de 500,00€ como adiantamento de honorários, acrescido do valor de 150,00€ (cento e cinquenta euros) de 3 consultas (cada uma de 50,00€).
6.- Devido ao trauma dos factos ocorridos dentro do veículo automóvel da sua filha L...., acima identificado, a assistente deu-o à oficina onde se encontrava, por considerar nunca mais ser capaz de lá entrar, sendo que esse veículo tinha o valor de 500,00€.
7.- Ao longo destes dois anos, a assistente tem tido gastos nas deslocações aos médicos, hospital, clínica e tribunal, o que ronda o valor aproximado de 550,00€ (quinhentos e cinquenta euros).
8.- No período compreendido entre 02.12.2012 e 02.12.2014, a assistente deixou de ganhar 774.85€ x 24 = 18.596,40€ e subsídio de férias e subsídio de natal equivalente a 2.520,76€.

2.2. Da fundamentação sobre a decisão de facto, o Tribunal consignou o seguinte:

“O tribunal formou a sua convicção na análise e ponderação da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, valorada de acordo com o critério da livre apreciação da prova (consagrado no artigo 127º do Cód. de Proc. Penal), sendo de salientar as declarações da ofendida e o depoimento das testemunhas abaixo identificadas.

Desde logo, na apreciação feita pelo tribunal foram tidas em conta as declarações prestadas pelo arguido em sede de audiência de julgamento, produzidas após a produção da prova apresentada pela acusação e pela demandante civil, nas quais assumiu ter estado, nas circunstâncias de tempo e lugar referidas na acusação, no interior do veículo onde os factos ocorreram.

Contudo, referiu que foi a assistente/demandante civil quem lhe retirou do bolso a faca que trazia consigo (para cortar canas para fazer estacas para flores em casa), desagradada pelo facto de ele não lhe emprestar dinheiro (1.000,00 euros) que acabara de lhe pedir. É no seguimento desta acção da assistente/demandante civil, que, segundo o arguido, procurou tirar-lhe a faca das mãos, momento em que foi agredido no peito por esta, tendo de seguida, já fora de si pelo facto de ter sido agredido, ripostado, agredindo também aquela com a faca.

Estas declarações, para além de terem sido prestadas após a produção de toda a prova inicialmente proposta pela acusação e pela assistente/demandante civil, o que permitiu ao arguido estruturar a sua argumentação e indicar justificações para a sua conduta, mostraram-se genéricas, inconsistentes e evasivas, especialmente quando se procurou detalhar certas situações ou sequências factuais, sendo visível todo um trabalho por parte da defesa, legítimo diga-se, para tentar inculcar no tribunal a ideia de uma situação momentânea de incapacidade mental daquele, que culminou com a sua sujeição a dois exames psiquiátricos, aos quais voltaremos mais tarde, porque pertinentes para as decisões tomadas.

A versão dos factos apresentada pelo arguido, fragilizada pelo que se acabou de referir, também não se mostra consentânea com a prova que iremos indicar e que, no nosso entender, retrata a realidade dos factos que ocorreram.

Assim, importa antes de mais chamar à colação as declarações prestadas pela assistente/demandante civil.

Apesar de negar um relacionamento amoroso com o arguido (relacionamento que é por este defendido), situação que dada as posições verbalizadas por estes intervenientes não foi possível apurar, embora indiciada pelos contactos diários entre ambos e o auxílio material e monetário que lhe era prestado pelo arguido que pensamos não eram puramente desprendidos, ainda assim as declarações da arguida quanto ao relato do que se passou no dia em causa mostraram-se objectivas, seguras e lógicas em termos de encadeamento e, por isso, fidedignas, para além de serem corroboradas por outros meios de prova que referiremos posteriormente.

A assistente/demandante civil referiu que, como era usual, na sua hora de almoço, foi tomar café com o arguido e depois este levou-a de carro até à paragem do autocarro para que regressasse ao trabalho. Quando se preparava para sair do veículo, abrindo a porta para o efeito, o arguido, sem que nada o fizesse prever, puxou-a pelo cabelo para dentro e golpeou-a com uma faca, que desconhecia que aquele trazia consigo, primeiro na zona do peito e depois nas costas. Mesmo assim, tentou resistir à agressão, colocando as mãos à frente, daí os cortes que aí sofreu, acabando por conseguir sair, ficando prostrada no chão junto ao veículo, sem que antes tivesse sido também golpeada nas costas, como dissemos, quando procurou sair do veículo.

Estas declarações são, no nosso entender, corroboradas pelos seguintes meios de prova:
i)- desde logo, o depoimento da testemunha JS..., pessoa sem relações com qualquer dos intervenientes e que presenciou parte da agressão, que depôs de forma isenta, coerente e desprendida, mas com enorme objectividade e sentido de dever, consciente dos seus deveres de testemunha, o que tem de ser enaltecido. Esta testemunha referiu que, dirigindo-se a casa dos seus pais para almoçar, deparou-se com um veículo parado no lado direito da estrada por onde seguia, próximo da parede. Ao se aproximar do veículo ouviu gritos de “terror” de uma só pessoa e vindos do interior do veículo, como se alguém estivesse a passar um “mau bocado”, havendo movimentos de braços que lhe indicavam que estavam a lutar. Saiu do seu veículo e ao se aproximar do outro veículo viu que a pessoa que estava ao lado do condutor, no chamado “lugar do pendura”, tentava sair do carro, até que a porta desse lado bateu com violência na parede, mas não o conseguia pois era puxada novamente para dentro pela outra pessoa que estava no lugar do condutor (o arguido), acabando por sair a muito custo, cambaleando entre o veículo de onde saiu e a parede e com grande quantidade de sangue na zona do peito, ficando, no entanto, caída, inanimada, entre esse veículo e a parede.
ii)- em segundo lugar, as lesões sofridas pela ofendida, essencialmente do lado esquerdo do seu corpo, coadunam-se com o relato feito pela testemunha JS... e com a versão dos factos avançada pela assistente/demandante civil. Com efeito, as informações médicas referentes à entrada da assistente/demandante civil no Hospital do Funchal, a fls. 94 a 96 dos autos, revelam que esta apresentava lesões na mama esquerda, ferida subclavicular, quatro feridas na face posterior do hemitorax esquerdo, uma ferida no hemitorax esquerdo com hemarrogia ativa e múltiplas feridas incisas dorsais não sangrentas. Nesta data, foi já detectada uma provável lesão traumática ao nível dos músculos da goteira vertebral esquerda em L2 e L3, sendo que a lesada referia parestesias no membro inferior esquerdo e incapacidade para a dorsiflexão do pé esquerdo.
iii)- os vestígios de sangue encontram-se quase em exclusivo no lado direito do veículo, na zona onde a ofendida seguia, o que nos leva a concluir que foi nessa zona que as agressões tiveram lugar, sendo que no lado do condutor existe unicamente um vestígio de sangue no dispositivo para abrir a porta desse lado (cfr. relatório da polícia judiciaria a fls. 187 a 199 e 208 e 209 dos autos), o que é natural, pois o arguido abriu-a para sair e tinha as mãos com sangue.

Aliás, em relação à versão dos factos apresentada pelo arguido, no sentido da sua desconsideração, importa referir o seguinte.

O arguido, quando foi abordado pela testemunha JS..., depois de a ofendida ter saído do veículo, e segundo o depoimento dessa testemunha, não tinha qualquer ferimento no peito, situação que se mantinha quando saiu do lugar do condutor para se sentar no banco de trás, pelo que as feridas que apresentava do lado esquerdo do seu corpo só podem ter sido auto infligidas.

Para além disso, a testemunha JS... referiu que quando abordou o arguido disse-lhe “já viu aquilo que fez”, o que pode ter sido interpretado pelo arguido como o anúncio da morte da ofendida, levando-o a tentar o suicídio, tanto mais que anteriormente o arguido já teria tentado a morte de ambos. Na verdade, a ofendida relatou que, na semana anterior aos factos objecto deste processo terem ocorrido, o arguido tentou atirar o veículo em que seguiam por um precipício, o que só não ocorreu porque o veículo ficou retido entre as pedras que formavam o muro que delimita a estrada nesse local (cfr. fotos a fls. 133 a 136 dos autos).

Por outro lado, não faz sentido que o arguido levasse uma faca de cozinha consigo para ir buscar canas, ainda para mais dentro do próprio casaco, muito menos que a tivesse mostrado à ofendida, pois esses factos não seriam tema de um encontro supostamente amoroso, pois natural seria aquele objecto seguir na bagageira do veículo, onde também seriam colocadas as referidas canas.

No que concerne às lesões sofridas pela assistente/demandada civil, suas consequências e a sua situação clínica actual, o tribunal teve em conta:
as informações médicas referentes à entrada da assistente/demandante civil no Hospital do Funchal, a fls. 94 a 96 dos autos. Destas informações consta que aquela apresentava, além do mais, uma ferida no hemitorax esquerdo com hemorragia activa e ferida intraclavicular sangrante, tendo-lhe sido colocado um dreno torácico na cavidade pleural esquerda que drenou espontaneamente 500 cc de líquido hemático.
o relatório intercalar de perícia de avaliação do dano corporal, a fls. 231 e 232 dos autos, onde são descritas as sequelas das leões sofridas pela ofendida, os tratamentos a que estava sujeita e a evolução da sua situação clínica.
o relatório intercalar de perícia de avaliação do dano corporal, a fls. 271 e 272 dos autos, onde são descritas as sequelas das leões sofridas pela ofendida, os tratamentos a que estava sujeita e a evolução da sua situação clínica.
o relatório neuropsicológico, a fls. 383 e 384 dos autos, onde se relatam as lesões da ofendida a nível neuropsicológico, revelando a existência de lentificação da atividade congnitiva/operativa, com alterações na atenção/concentração; prejuízo em tarefas de memória e aprendizagem; presença de dano à integridade psicológica de perturbação pós-stress traumático crónico; e sofrimento clinicamente significativo com acentuada modificação dos padrões de actividade diária e prejuízo no funcionamento social e ocupacional.
o relatório final de perícia de avaliação do dano corporal, a fls. 410 e 411 dos autos. Neste relatório refere-se, com interesse, que as lesões sofridas pela ofendida terão resultado de traumatismo corto perfurante, o que é compatível com a faca utilizada, tendo resultado para esta consequências permanentes descritas (pé esquerdo pendente, com dificuldade na dorsiflexão e parestesias). Refere igualmente que do evento, leia-se agressão objeto deste processo, não resultou, em concreto, perigo para a vida da ofendida, mas que esta está em situação de perigo, pela decadência psíquica progressiva que a afecta, aconselhando a adopção de medidas psicossociais tendentes a assegurar a sua protecção, devendo continuar a ser seguida em consultas periódicas de neurologia, psicologia, psiquiatria e medicina física e de reabilitação.
as próprias declarações da ofendida que descreveu a sua situação actual, em que, fruto das lesões que sofreu e das sequelas permanentes de que padece, está numa situação de incapacidade total quer para a sua profissão, quer para a sua vida diária, beneficiando do auxílio da mãe e, na ausência desta, de uma amiga, incapacidade que é compatível com os elementos médicos acima referidos. Salientou também as consequências desta situação a nível psíquico, traçando um quadro de grande debilidade mental, fruto não só da agressão de que foi alvo, mas também da sua situação motora, extensível à sua preocupação permanente pela segurança dos seus filhos, principalmente pelo mais novo, que também apresenta um quadro de sofrimento psicológico.
o depoimento dos médicos (MF..., FA..., CM..., JR... e SF...), enfermeira (MF...) e psicólogos (JB... e GH...) que assistiram e assistem ainda a assistente/demandante civil, que depuseram sobre a intervenção de cada um junto desta, bem como as lesões que sofreu e a sua situação clínica actual, sendo unânimes em referir a sua incapacidade motora, a continuidade na assistência a consultas da medicina da dor e o seu estado psíquico, com um quadro depressivo grave e dificuldades de controlo.

Uma das questões cruciais que se põe neste processo é a de saber a intenção que presidiu à actuação do arguido quando agrediu a ofendida.

Na procura dessa resposta importa referir que a intenção do agente constitui matéria de facto, em princípio imodificável, a apurar pelo tribunal em função da prova ao seu alcance, e esta, salvo quando a lei dispõe diversamente, é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador; não é por ser um facto psicológico que a intenção deixa de ser um facto, e a conclusão de ter ocorrido intenção de matar deduz-se de factos externos que a revelem.[1] A intenção do agente pertence, assim, à esfera da autodeterminação da pessoa, não estando especialmente vocacionada para ser provada através da prova testemunhal. Essa intenção pode deduzir-se de certas atitudes do agente, do seu comportamento anterior, contemporâneo ou posterior ao crime, enfim de uma certa materialidade que pode ser objectivamente observada. Também pode ser objecto de confissão por parte do arguido directamente ou a outra pessoa que depois testemunhe o facto em juízo. Geralmente a intenção deduz-se dos elementos materiais, conjugados ou não com as regras da experiência comum. É o que acontece na prova da intenção de matar, onde a presunção natural tem especial relevância.[2]

Ou seja, temos de partir de uma valoração da prova produzida nos respectivos autos, já que a apreciação do dolo é essencial a consideração do contexto em que os factos se passaram. O dolo – ou o nível de representação ou reconhecimento que a sua afirmação sob o ponto de vista fáctico – pertence, por natureza, ao mundo interior do agente, por isso, ou é revelado pelo próprio, sob a forma de confissão, ou tem de ser extraído dos factos objectivos, isto é, inferido dos factos objectivos ou da consideração de determinado circunstancialismo objectivo, com idoneidade suficiente para revelá-lo.

No caso concreto, as circunstâncias em que os factos ocorreram e a dinâmica em que surgem levam-nos a concluir que o arguido quis efectivamente tirar a vida à ofendida, quer pelo instrumento utilizado na agressão, quer pelo local onde desferiu as facadas, na zona do tórax, onde estão alojados órgãos vitais, não sendo displicente focar o número de golpes desferidos, mesmo com oposição da vítima, que foi mantida contra a sua vontade no interior do veículo para o efeito, demonstrativo do propósito vincado que presidiu a essa conduta.

Coloca-se ainda neste processo a questão da imputabilidade do arguido, suscitada pela sua defesa em sede de audiência de julgamento e que foi objeto de duas perícias.

Na primeira destas perícias, realizada por um único perito, concluiu-se, conforme consta do respetivo relatório pericial a fls. 869 a 872 dos autos, que o arguido, à altura dos factos, teve uma reacção psicótica breve, atualmente compensada. Ainda nesse relatório refere-se que tal contexto psicopatológico justifica, do ponto de vista psiquiátrico-forense, que se invoque a figura da inimputabilidade em razão da anomalia psíquica, que impedia o arguido de avaliar a licitude ou ilicitude da conduta objeto deste processo. Conclui, ainda, que o doente, apesar de portador de anomalia psíquica grave, não cria, no presente, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos de valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial. Ainda assim, recomenda, de modo a assegurar um adequado prognóstico, a manutenção dos apoios médico-psiquiátricos e sócio-familiares de que beneficia actualmente.

Por sua vez, a segunda perícia, realizada em estrutura colegial, e cujo relatório consta de fls. 934 a 942 dos autos, concluiu que o arguido, à data dos factos, estava genérica e minimamente capaz de avaliar e de se determinar de acordo com a sua avaliação, integrando pois pressupostos médico-legais previstos para a imputabilidade. Ainda assim, e face à patologia que sofria, este relatório admite a existência de uma diminuição em grau ligeiro dessa imputabilidade pela dificuldade de determinação no momento. Com efeito, à data dos factos, o arguido apresentava um quadro reactivo com funcionamento ansioso significativo (reacção de ajustamento com perturbação mista de emoções e conduta), vivenciada com sentimento de angústia, perda e abandono que condicionavam o seu dia-a-dia. Ainda no relatório desta segunda perícia, que foi complementada com uma avaliação psicológica, o arguido é descrito como um indivíduo imaturo, queixoso, pessimista, teimoso e manipulador, com dificuldades ao nível do controlo emocional e de tolerância ao stresse e com vulnerabilidade crónica para a impulsividade ideacional e afectiva, funcionando de forma positiva por períodos extensos quando na presença de ambientes estruturados e rotineiros nos quais possa ter alguma sensação de controlo e de forma negativa em situações novas.

Ora, sabendo-se que o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, nos termos do artigo 163º, n.º1, do Cód. de Proc. Penal, a verdade é que, no caso concreto, o afastamento de uma das perícias será feito com base noutro juízo científico ou técnico, não havendo, por isso, qualquer afastamento daquele normativo com base em razões não científicas ou técnicas, ou seja, a opção a tomar não será feita pela nossa convicção alicerçada em elementos fácticos, mas do confronto das perícias/relatórios em causa.

No caso concreto, pendemos para a imputabilidade do arguido, optando, assim, pela segunda perícia e respetivo relatório, porque nos dá maiores garantias de segurança nesse juízo científico, quer porque realizado por três peritos, o que necessariamente lhe confere uma maior abrangência de pontos de vista, mas também porque foi instruído e tem como um dos seus fundamentos uma avaliação psicológica, que consiste numa avaliação especializada em termos de comportamentos e processos mentais, o que lhe transmite uma maior consistência científica.

Por fim, importa referir que esta solução - da imputabilidade do arguido no momento da prática dos factos – é a única que se coaduna com a situação que se verificava antes do episódio criminoso, pois até aí o arguido, segundo a ofendida e este, esteve calmo e com um comportamento normal, na tendo ocorrido qualquer facto que despoletasse aquela reacção violenta, pelo que a alteração ao nível psíquico que se verificou, e que determinou o seu internamento após os factos, só podem estar relacionados com a consciencialização por parte do arguido das consequências dos seus actos, quer para si quer para a ofendida.

Quanto aos danos morais e patrimoniais, para além das declarações da ofendida, dos depoimentos dos médicos e psicólogos que assistiram e assistem aquela, bem como os elementos médicos acima referidos, temos de salientar também:
as certidões de nascimento da assistente e dos seus filhos, a fls. 813, 816, 819 e 822 dos autos, onde constam, além da filiação, as respetivas datas de nascimento.
as declarações do arguido, onde assumiu que a assistente, para além do trabalho na casa de saúde, também trabalhava diariamente para outras pessoas, tendo inclusivamente trabalhado para si e para a testemunha SB..., este por sua indicação.
o depoimento da testemunha SB..., que confirmou que a assistente trabalhava para si há cerca de 2/3 anos, o que fazia após o seu horário na casa de saúde.
os recibos de ordenado da assistente, a fls. 538 a 547 dos autos, que atestam o valor do seu ordenado e das diuturnidades.
os recibos correspondentes aos exames realizados pela assistente, a saber, a fls. 567 dos autos, RX, pulmões e coração, a fls. 568 dos autos TAC ao tórax, a fls. 569 dos autos ecografia à partes moles.
os recibos referentes aos medicamentes adquiridos pela assistente, a fls. 570 a 575 dos autos.
as fotos de fls. 554 e 555 dos autos, referentes às cicatrizes da assistente/demandante civil, na mama e na mão direita, também referidas no relatório final de avaliação do dano.
a declaração do Instituto de Segurança Social da Madeira, a fls. 796 dos autos, datado de 27.11.2015, que, nesta data, declarou a assistente definitivamente incapaz para o trabalho.
 a declaração do Instituto de Segurança Social da Madeira, a fls. 804 dos autos, que atesta que a assistente/demandante civil recebeu, a título de subsídio de doença, no período compreendido entre 02.12.2012 e 01.12.2015, a quantia de 19.197,96 euros, correspondente a salários e subsídio de férias e de natal.
Refira-se, nesta sede, que não foi feita prova de quaisquer empréstimos solicitados pela assistente quer à banca, quer a terceiros, inexistindo igualmente qualquer fundamento para, nesta sede, ser indemnizada pelo valor do veículo que quis dar por não conseguir utilizá-lo, nem pelos eventuais danos sofridos pelo seu filho.

No que concerne ao pedido de indemnização civil deduzido pelo SESARAM, foi tido em conta, para além das declarações da assistente/demandante e dos depoimentos das testemunhas profissionais de saúde acima referidas, que confirmaram os tratamentos e assistência médicas prestadas àquela, as certidões de dívida emitidas pelos serviços de contabilidade do SESARAM, constantes de fls. 486 a 488 e 754 a 756 dos autos, cujo teor não foi posto em causa pelo arguido.

A fixação dos factos não provados resultou da ausência de prova nesse sentido ou da sua contradição com o que foi acima referido.
No que concerne à situação pessoal do arguido, relevo para o relatório pericial a fls. 696 a 698 dos autos.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido, a informação junto aos autos a fls. 750”.

3. Apreciando.

Do recurso do arguido
3.1. Da impugnação da matéria de facto.
As Relações conhecem de facto e de direito (artigo 428º, nº 1 do CPP), em concretização da garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
No caso de impugnabilidade alargada, como é o caso, o recorrente está sujeito ao estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos números 3 e 4 do artº 412º do CPP: a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e das concretas provas que na sua perspectiva impõem decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam.
Para tanto, o recorrente tem de indicar o conteúdo específico do meio de prova, individualizando as passagens da gravação em que baseia a impugnação que, no seu entendimento, imponham decisão diversa.
A imposição destas especificações assenta no facto de a reapreciação da matéria de facto não se traduzir num novo, ou num outro integral, julgamento da matéria de facto, agora com base na audição da gravação da prova, cingindo-se o recurso apenas ao exame de erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido especificadamente apontados no recurso, com a indicação concreta das provas que demonstrem esses erros, reportados aos factos concretamente impugnados.
Assim delimitado o objecto do processo, o tribunal superior tem pela frente a tarefa de, à luz do princípio da livre apreciação da prova, saber se os factos impugnados têm efectivamente suporte razoável na prova documentada, avaliando especificadamente os meios indicados na decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que ele considera imporem decisão diversa, sem prejuízo do seu poder inquisitório sobre toda a prova produzida que se afigure relevante para tal reapreciação (cfr. neste sentido, entre outros, o ac. do STJ de 20.01.2010, relator Cons. Henriques Gaspar, consultável em www. dgsi.pt).

Feita esta breve explicitação, atentemos na impugnação que vem feita pelo recorrente.
O recorrente vem indicar como incorrectamente julgados os factos dados como provados e elencados nos pontos 11º e 12º da matéria de facto.

Ou seja, o recorrente não se conforma com a resposta de provado aos factos seguintes:
Ao munir-se com uma faca antes do encontro com S..., o arguido já havia formado o intento de a atingir com essa faca e ao desferir os citados golpes nas referidas áreas do corpo daquela sabia que tal conduta era apta, atento o meio utilizado, o número de golpes e a área agredida, a causar a morte daquela, resultado que quis, só não vindo a lograr tal objectivo por motivos alheios à sua vontade (ponto 11).
Ao praticar a supra descrita conduta, o arguido actuou com a vontade livremente determinada e com a consciência de que esta não lhe era permitida (ponto 12).

Indica as seguintes provas que na sua perspectiva impõem decisão diversa da recorrida:
i)- A primeira perícia requisitada pelo tribunal cujo relatório foi elaborado em 5.04.2016, pelo perito médico psiquiatra, Drº RA..., concluindo pela inimputabilidade em razão de anomalia psíquica.
ii)- O depoimento prestado em audiência pelo perito Drº RA... que em audiência esclareceu ter diagnosticado ao arguido uma reacção psicótica breve (que é o mesmo que surto psicótico agudo), que teve a duração mínima de duas semanas a um mês, pelo que a mencionada doença psíquica grave do arguido já se verificava à data de 2.02.2012 da prática dos factos, mantendo o diagnóstico de que o arguido à data da prática dos factos é inimputável, e que apesar de ter esta anomalia psíquica o arguido não cria no presente uma situação de perigo.
iii)- O depoimento prestado em audiência pelo médico psiquiatra, Dr. JT... que, na qualidade de testemunha, declarou que “tratou o arguido durante o internamento na casa de Saúde ..., após alta do Hospital do Funchal, estando na altura alienado da realidade devido a um surto psicótico agudo, que se materializava num transtorno mental grave e desorganização do “EU”, fazendo medicação anti-psicótica,  que dispensou ao arguido cuidados e tratamentos médicos até à respectiva alta, e depois tratou o arguido no seu consultório até Outubro de 2015. (depoimento gravado através do sistema integrado de gravação digital).
iii)- O depoimento da testemunha ocular JS... que declarou que “o arguido estava num estado “não normal” e claramente perturbado”, e
iv)- A segunda perícia requisitada pelo tribunal, cujo relatório foi elaborado em 23.09.2016, vindo a concluir que “...no momento da prática dos factos e para estes, estaria genericamente e minimamente capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua avaliação, integrando, pois, pressupostos médico-legais previstos para a imputabilidade (cfr. fls.940 vº).

Entende o recorrente que o tribunal ao sufragar a segunda perícia errou na apreciação da prova, porquanto:
Os pareceres científicos de dois médicos psiquiatras devem ser considerados mais fidedignos, porque avaliaram, examinaram e prestaram cuidados médicos ao arguido ao tempo que estava afectado de doença psíquica grave.
A data da cura do arguido ocorreu em Outubro de 2015, sendo que o relatório pericial da segunda perícia foi realizado a partir de 23 de Junho de 2016 e concluído em 23.09.2016, ou seja, em data posterior à cura, assim como é posterior à data da cura a elaboração do exame complementar de psicologia.
O tribunal não considerou a regra de experiência comum -de que os juízos científicos médicos que examinaram e que cuidaram do paciente aquando da existência da doença sabem mais do paciente à época em que esteve doente e sabem mais da doença do arguido do que os médicos que o examinaram posteriormente com base numa entrevista em duas sessões- assim incorrendo em erro de julgamento.
O recorrente conclui, assim, que o Tribunal a quo ao dar primazia à segunda perícia em detrimento da primeira, desconsiderou os referidos dois juízos científicos que corroboraram em audiência a inimputabilidade do arguido, incorreu em erro de julgamento, que deverá ser declarado e, em consequência, absolvido o arguido, por não se verificar preenchido o elemento subjectivo do crime.

Vejamos:

Começamos por referir que foi no decurso da audiência de discussão e julgamento, após a audição do médico psiquiatra, Drº JT..., que acompanhou o arguido após os factos, que o tribunal a quo decidiu requisitar uma perícia Psiquiátrica Médico-Legal por necessidade de dissipar dúvidas relativas à imputabilidade do arguido (cfr. fls. 825).
Esta primeira perícia foi elaborada pelo perito médico psiquiatra, Drº RA..., em 5.04.2016, no Hospital Central do Funchal - Serviço de Psiquiatria, onde o arguido foi avaliado sob o ponto de vista psiquiátrico.

Foram colocados os seguintes quesitos:
“1. Se à data dos factos o arguido padecia de alguma doença ou perturbação do foro psíquico que desencadeasse a sua inimputabilidade ou imputabilidade diminuída?
2. Se o quadro psicótico agudo que foi diagnosticado ao arguido após os factos já se manifestava aquando da prática dos factos? E se este quadro tinha como consequência a sua inimputabilidade ou imputabilidade diminuída?
3. Se o arguido padece actualmente de alguma doença do foro psiquiátrico que lhe acarrete inimputabilidade ou imputabilidade diminuída e, caso se verifique, se acarreta perigo para as pessoas ou bens?

Do relatório consta:

História Clínica Sumária:
Ao presente apesar de pesquisadas não foram detectadas alterações da senso-percepção. Humor Eutímio.
Antes de esta situação nunca tinha feito fez ou teve algum acompanhamento psiquiátrico.
“Questionado sobre o episódio de agressão, diz não se recordar, pois estaria fora de mim, ouvia vozes sic.
Na sequência de um episódio de agressividade dirigida a S... após alta médica do Hospital Central do Funchal foi internado na instituição Casa de Saúde ..... Lá foi seguido pelo Drº TJ..., médico psiquiatra. Onde teve alta, medicado e com diagnóstico de reacção psicótica breve.
Após o internamento foi seguido regularmente em ambulatório pelo Drº TJ..., fazendo medicação psicótica.
Ultimamente encontra-se estabilizado.

Avaliação Clínica e Parecer Psiquiátrico-Forense:
De acordo com a Avaliação Clínica-psiquiátrica efectuada (numa perspectiva Psiquiátrico-Forense) e reunidos os elementos disponíveis à apreciação do presente caso, quer em termos de História Pregressa, quer os apurados pelo Exame Mental propiamente dito, assim como da análise dos elementos processuais a que tivemos acesso, nomeadamente do relatório do psiquiatra assistente na instituição onde se encontra internado, podemos afirmar que o examinado manifestou na altura dos factos um quadro compatível com o diagnóstico de Reacção Psicótica Breve.
Um tal contexto psicopatológico, impedia-o de avaliar da licitude ou ilicitude da conduta objecto do processo que lhe foi instaurado e/ou de se determinar de acordo com a avaliação feita. De realçar que á altura dos factos não se encontrava a fazer medicação ou com acompanhamento psiquiátrico.

Conclusões:
1) O examinado padecia à altura dos factos: Reacção Psicótica Breve, actualmente compensada;
2) Um tal contexto psicopatológico, justifica, do ponto de vista psiquiátrico-forense e para os factos que vem indiciado, que se invoque a figura de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica pois esta condição impede-o de avaliar da licitude ou ilicitude da conduta objecto do processo que lhe foi instaurado e/ou de se determinar de acordo com essa avaliação” (cfr. fls. 869 a 872).
3) Conclui-se, assim, que o doente, apesar de portador de anomalia psíquica grave, não cria, ao presente, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, não recusando o tratamento entretanto instituído”.

Em face do resultado desta perícia, a assistente veio requerer a realização de uma segunda perícia, invocando no essencial que “em nenhum momento foi feito um exame completo sobre o diagnóstico de psicose de que os médicos vêm agora falar (...), e o arguido nunca antes falou em ter ouvido vozes e só agora veio falar disso”.

O tribunal, nos termos consentidos no disposto no artº 158º, nº 1, al. b) do CPP, considerando revelar interesse para a descoberta da verdade e boa decisão da causa, deferiu a realização de uma nova perícia ao IML, com o mesmo objecto mas visando esclarecer as dúvidas colocadas, agora com a intervenção de três peritos e com a possibilidade de realização de avaliação psicológica dependente de tal ser requisitada pelos peritos. (cfr. fls. 880 e 881).

Esta segunda perícia, cujo relatório foi elaborado em 23.09.2016, procedeu a uma avaliação clínica-psiquiátrica e teve como exame complementar de diagnóstico uma avaliação psicológica.

As conclusões:
“O examinado apresentava um quadro clínico de natureza reactiva com alteração das emoções e conduta (CID10:F43.25), situação prevista e definida nos principais sistemas da Classificação Psiquiátrica como o Manuel de Diagnóstico e Estatística das Doenças Mentais da Associação Psiquiátrica Americana (DSM-V) e a Classificação Internacional das Doenças da Organização Mundial de Saúde (I.C.D-10).
Acresce relevo para características de personalidade e eventuais factores de risco de violência, independentes de processo psicopatológico, melhor descrito no relatório complementar de psicologia realizado nesta instituição.
Sem prejuízo do atrás afirmado, no momento da prática dos factos e para estes, estaria genericamente e minimamente capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua avaliação, integrando, pois, pressupostos médico-legais previstos para a imputabilidade. Ainda assim, e face à patologia que sofria, admite-se a existência de uma diminuição em grau ligeiro dessa mesma imputabilidade pela dificuldade de determinação no momento, mantendo-se a capacidade de avaliação para a prática dos factos concretos.
Admitida que foi a imputabilidade, a avaliação da perigosidade nos termos do artº 91º ultrapassa a competência pericial, sendo a decidir pelo Tribunal. Todavia, e no sentido de ajudar a Decisão, remetemos ainda para o relatório psicológico, onde são analisados factores de risco de violência e a personalidade independente do processo psicopatológico; que clinicamente não passa nesta data por internamento”.

Respostas aos quesitos:
“1. Se à data dos factos o arguido padecia de alguma doença ou perturbação do foro psíquico que desencadeasse a sua inimputabilidade ou imputabilidade diminuída?
“R: Sim. Á data dos factos o examinado apresentava um quadro reativo com funcionamento ansioso significativo (reação de ajustamento com perturbação mista de emoções e conduta (CIDI-10:F43.25), vivenciada com sentimento de angústia, perda e abandono que condicionavam o seu dia-a-dia; que contribuíram para uma diminuição da imputabilidade em grau ligeiro.
Para melhor compreensão leia-se a avaliação psicológica, nomeadamente “perfil de personalidade” revelado indivíduo imaturo, queixoso, pessimista, teimoso e manipulador com dificuldade a nível do controlo emocional e de tolerância ao stress...vulnerabilidade crónica para  a impulsividade ideacional e afectiva, funcionando de forma positiva, por períodos extensos, apenas na presença de ambientes estruturados e rotineiros, nos quais possa ter alguma sensação de controlo, e de forma negativa em situações novas” (fls.7 e 8 ).
2. Se o quadro psicótico agudo que foi diagnosticado ao arguido após os factos já se manifestava aquando da prática dos factos? E se este quadro tinha como consequência a sua inimputabilidade ou imputabilidade diminuída?
“R: Não existe sintomatologia psicótica ou abnorme aquando da prática dos factos.
3. Se o arguido padece actualmente de alguma doença do foro psiquiátrico que lhe acarrete inimputabilidade ou imputabilidade diminuída e, caso se verifique, se acarreta perigo para as pessoas ou bens?
R: Não. Contudo estão descritos traços de personalidade, leia-se de Ser e Estar, que em ambiente de tensão ou percebidos como desfavoráveis pode condicionar comportamentos desviantes (cfr. fls.939 a 941).
Os três peritos votaram por unanimidade, sem opinião vencida.

Na avaliação psicológica complementar feita ao arguido, na descrição do “perfil de personalidade” consignou-se o seguinte: “Registam-se vários problemas ao nível das operações e organização psicológica, podendo este factor indiciar uma organização da personalidade mais imatura do que o esperado, ou, por outro lado, alguma deterioração psicológica causada por um estado crónico de exigência do ambiente.

Ao nível do controlo e tolerância ao stress...manifestou maior vulnerabilidade para perder o controlo e desorganizar-se em situações de stress, pois tem à sua disposição menos meios dos requeridos, para fazer frente aos seus disparadores internos de tensão. Indivíduos com este resultado apresentam vulnerabilidade crónica para a impulsividade ideacional e afectiva, funcionando de forma positiva, por períodos extensos, apenas na presença de ambientes estruturados e rotineiros, nos quais possa ter alguma sensação de controlo, e de forma negativa em situações novas”.

Apreciando:
 
A questão central do presente recurso prende-se com a reclamada inimputabilidade do arguido.

Importa, por isso, atentar na prova pericial junta aos autos.

Na segunda perícia, conforme nos informa o próprio relatório pericial, a patologia de que padece o arguido - apresentava um quadro clínico de natureza reactiva com alteração das emoções e conduta – “é uma situação definida nos principais sistemas da Classificação Psiquiátrica (DSM-V e I.C.D-10)”.

O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 5ª edição, da American Psychiatric Association (DSM-5), versão actual (editado pela primeira vez em 1952), define como é feito o diagnóstico de transtornos mentais e conceptualiza as perturbações da personalidade segundo um critério classificatório assente na sua expressão sintomatológica e não na sua etiologia, recorrendo os peritos, como neste caso, a este manual para classificação das perturbações de personalidade.

Perceber se e em que medida as perturbações da personalidade são susceptíveis de afectar a capacidade de entender ou quererdo sujeito agente de crime constitui, deste ponto de vista, um dos mais relevantes desafios do direito penal contemporâneo”[3].

Contudo, longe vão os tempos das teorias desenvolvidas pelo psiquiatra Kurt Shneider em que fora da inimputabilidade deveriam permanecer as reações vivenciais anormais como as perturbações dos impulsos e da personalidade, devendo apenas relevar para efeitos do estabelecimento da inimputabilidade, os casos de doença mental efectiva, ou seja, todas aquelas com origem física, o que gerou grande controvérsia.

Esta ideia mostra-se hoje ultrapassada, e neste movimento, o nosso Código Penal, pela mão de Eduardo Correia no Anteprojecto de 1963, e à semelhança de outros sistemas europeus, optou por uma configuração da inimputabilidade sem deixar de fora qualquer uma das teses em confronto, e assim, optou-se pela consagração no artº 20º, do Código Penal, de um conceito aberto de anomalia psíquica abrangendo na inimputabilidade quer as doenças mentais de origem física, quer as restantes anomalias psíquicas como as perturbações da personalidade. Contudo, existe consenso que no presente estado do conhecimento científico não se pode afirmar irrefutavelmente que as perturbações da personalidade são ou não doenças psiquiátricas[4], mas assume-se que também às perturbações de personalidade deve ser reconhecido o estatuto de causa susceptível de incidir sobre a capacidade e querer do agente portador de tal perturbação.

Dizer ainda que o sistema de classificação seguido no DSM, apesar da incerteza científica que coloca, é aceite na comunidade científica como representando uma técnica de abordagem susceptível de fornecer uma medida de valorar as perturbações da personalidade, havendo estas naturalmente, atento o princípio da culpa, que se revelar consistentes e graves de modo a apresentarem-se susceptíveis de incidir sobre a capacidade e querer do agente É inquestionável que nem toda a anomalia psíquica produzirá efeitos ao nível da avaliação ou de determinação do agente.

Estabelece então o citado artº 20º, no seu nº 1, como pressupostos da inimputabilidade: i) a existência de uma anomalia psíquica (pressuposto biológico) que tem vindo a ser substituído por elemento psicopatológico (patologia da psique); ii) a incapacidade do agente para, no momento da prática do facto, avaliar a ilicitude deste ou para se determinar de acordo com essa avaliação (pressuposto psicológico); e iii) a relação de causalidade entre aquela anomalia psíquica e esta incapacidade.

Ao perito compete então avaliar o estado mental do agente, aferindo da existência ou não de uma qualquer “anomalia psíquica”, e a forma como a mesma, eventualmente, condicionou ou determinou o comportamento do agente no momento da prática do crime.

Resulta assim que toda a anomalia psíquica poderá conduzir a inimputabilidade no caso de retirar ao agente a possibilidade de perceber a ilicitude do facto e/ou de se comportar de acordo com essa percepção, sendo a capacidade para “avaliar a ilicitude do facto ou de se determinar de acordo com essa avaliação” uma fórmula normativa, sob incidência do princípio da culpa. Se o agente praticar o facto incapaz de avaliar a sua ilicitude pode ser considerado incapaz de culpa e, por essa razão, não ser punido. O princípio da culpa pode ser então entendido, como já alguém disse, como a proibição de arbitrariedade.

Feita esta breve explicitação, e analisadas as perícias realizadas nos autos nenhuma padece de qualquer vício, divergindo apenas do juízo científico formulado.

Relembrando, a primeira perícia psiquiátrica concluiu que “o examinado padecia à altura dos factos de Reacção Psicótica Breve, actualmente compensada; um tal contexto psicopatológico, justifica, do ponto de vista psiquiátrico-forense e para os factos que vem indiciado, que se invoque a figura de inimputabilidade em razão de anomalia psíquica”.

A segunda perícia psiquiátrica, complementada por avaliação psicológica, afastou a situação de psicose, e concluiu por uma perturbação da personalidade do arguido que “sofria de um quadro clínico de natureza reactiva com alterações das emoções e conduta”, e considerou que no momento da prática dos factos e para estes, “...estaria genericamente e minimamente capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com a sua avaliação, integrando, pois, pressupostos médico-legais previstos para a imputabilidade”.

Considerou-se ainda, em face desta patologia que “o arguido sofria de uma diminuição em grau ligeiro dessa mesma imputabilidade pela dificuldade de determinação no momento, mantendo-se a capacidade de avaliação para a prática dos factos concretos”.

Em sede de recuso, o recorrente vem colocar em causa a prova pericial, considerando que o tribunal ao sufragar a segunda perícia errou na apreciação da prova.

Fundamenta o erro na apreciação da prova no entendimento de que o tribunal só poderia ter aderido ao juízo científico da primeira perícia por ser o mais fidedigno.

Invoca para tanto que os pareceres científicos de dois médicos psiquiatras devem ser considerados mais fidedignos, porque avaliaram, examinaram e prestaram cuidados médicos ao arguido ao tempo em que ele estava afectado de doença psíquica grave, e os relatórios da segunda perícia assim como o relatório da avaliação psicológica foram realizados em data posterior à data da cura do arguido.

Uma primeira observação para dizer que nada impede que estando o agente no presente curado não se possa, do ponto de vista científico, apurar a situação patológica ocorrida no passado, não podendo ser posta em causa a valia do parecer só porque o perito não observou o agente ao tempo dos factos.

Importa também clarificar que não foram dois os pareceres científicos que corroboraram em audiência a inimputabilidade do arguido. Em rigor, em audiência só depôs na qualidade de perito o médico psiquiatra, Drº RA..., que elaborou a primeira perícia, e o Drº JT..., médico psiquiatra, que depôs em audiência na qualidade de testemunha, tendo declarado que “acompanhou o arguido durante o internamento na casa de Saúde ...., após alta do Hospital do Funchal, e posteriormente na consulta privada, estando na altura alienado da realidade devido a um surto psicótico breve.

O Drº RA..., perito que elaborou o relatório da primeira peritagem e que concluiu pela inimputabilidade, também não contactou, examinou ou acompanhou o arguido à data ou próximo da ocorrência dos factos (2.02.2012), e não seria por essa razão que a fidedignidade da perícia poderia ser posta em causa.

Acontece que as duas perícias psiquiátricas foram requisitadas já no decurso da audiência de discussão e julgamento, tendo sido elaborado o relatório da 1ª perícia em 5.04.2016 e o da segunda perícia em 23.09.2016. Os peritos para chegarem àqueles juízos científicos tiveram toda a informação clínica disponível ao tempo da ocorrência dos factos, como bem espelham os respectivos relatórios, assim como tiveram conhecimento dos factos pelos quais o arguido era acusado, tendo ouvido o arguido acerca dos mesmos e da sua vida pessoal e social, pelo que a formulação de um juízo retrospectivo do estado mental do arguido não é menos fidedigno por isso.

Somos assim a concluir em face do que se deixa dito que a segunda perícia realizada não é menos fidedigna que a anterior, padecendo de razão o recorrente.

O recorrente veio ainda invocar que o tribunal não considerou a regra de experiência comum -de que os juízos científicos médicos que examinaram e que cuidaram do paciente aquando da existência da doença sabem mais do paciente à época em que esteve doente e sabem mais da doença do arguido do que os médicos que o examinaram posteriormente com base numa entrevista em duas sessões- assim incorrendo em erro de julgamento.

Também nesta alegação padece de razão o recorrente.

As regras da experiência são “definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico, independentes do caso concreto sub judice, assentes na experiência comum e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam, mas para além dos quais têm validade” (Cfr. Cavaleiro de Ferreira, “Curso de Processo Penal, Vol II, pág. 300).

Neste caso, estando em causa doença do foro psiquiátrico o que vem afirmado não resulta da experiência comum, não tendo validade para a generalidade dos casos, podendo até os médicos que examinaram posteriormente o doente saber mais daquela doença em concreto, por serem mais especializados ou mais experientes.

O tribunal recorrido ao aderir ao juízo científico da segunda perícia, contrariamente ao afirmado pelo recorrente, não errou na apreciação da prova, bastando para tanto atender ao valor da prova pericial.

Como sabemos o valor da prova pericial vem fixado no artº 163º do CPP, estabelecendo o nº 1 do CPP que “o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador”, acrescentando o nº 2 que “sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência”.

Deste modo, o juízo do perito não é livremente valorável pelo julgador e, divergindo terá de fundamentar a divergência em relação à conclusão do perito e a argumentação deverá assentar em razões de ordem técnica, cientifica ou artística, podendo, contudo, discordar livremente dos factos em que se apoia o juízo.

No caso dos autos, como vimos, as duas perícias psiquiátricas chegaram a resultados contraditórios, e o tribunal recorrido divergiu do juízo do perito que elaborou a primeira perícia, aderindo ao juízo colegial dos três peritos da segunda perícia.

Podemos desde logo concluir que o tribunal fundamentou suficientemente a sua divergência ao aderir à 2ª perícia com resultados contraditórios da 1ª perícia. No fundo, o tribunal fundamentou a divergência aderindo aos fundamentos do outro juízo científico. Conforme refere, e bem, o tribunal recorrido “...o afastamento de uma das perícias será feito com base noutro juízo científico, não havendo, por isso, qualquer afastamento (do disposto no artº 163º) com base em razões não científicas ou técnicas, ou seja, a opção a tomar não será feita pela nossa convicção alicerçada em elementos fácticos, mas do confronto da perícia/relatório”, e concretizou ainda as razões da sua adesão à segunda perícia “... porque nos dá maiores garantias de segurança nesse juízo científico, quer porque realizado por três peritos, mas também porque instruído e tem como um dos seus fundamentos uma avaliação psicológica, que consiste numa avaliação especializada em termos de comportamentos e processos mentais, o que lhe transmite uma maior consistência científica”.

Temos assim que a adesão do tribunal à segunda perícia psiquiátrica, complementada com a avaliação psicológica, mostra-se plenamente fundamentada, designadamente em vista das considerações apontadas pelo tribunal recorrido para a conclusão de maiores garantias de segurança no juízo científico.

Desde logo porque esta segunda perícia foi elaborada por três peritos e complementada por uma perícia psicológica, conferindo maior abrangência de pontos de vista e proporcionando maior consistência científica.

E se atentarmos nos preceitos do Código de Processo Penal, em causas complexas - e não temos dúvidas que o são estas de apreciação de perturbações da personalidade - apela-se à colegialidade das perícias e à sua interdisciplinaridade (cfr. arts. 152º, nº 2, 157º, nº 5, 158º, nº 1, al. b) e 160º, nº 2, todos do CPP).

Nestes casos, para a apreciação no âmbito do estabelecimento dos pressupostos da inimputabilidade revela-se necessária uma abordagem interdisciplinar, mais abrangente, o que tem sido entendido pela jurisprudência, citando-se neste sentido o acórdão do STJ de 4.12.2002 que considerou que a imputabilidade “requer, no processo penal, a consagração da perícia colegial e da perícia interdisciplinar, porque o auxílio ao juiz não se bastará em regra com o saber isolado da psicologia, da psicanálise, da psiquiatria ou da sociologia” (in www.dgsi.pt).

Assim se conclui que o tribunal recorrido fez uma correcta análise da prova, de onde resulta sem margem para dúvidas, como se afirma na fundamentação da matéria de facto “que esta solução- da imputabilidade do arguido no momento da prática dos factos- é a única que se coaduna com a situação que se verificava antes do episódio criminoso, pois até aí o arguido, segundo a ofendida esteve calmo e com um comportamento normal, não tendo ocorrido qualquer facto que despoletasse aquela reacção violenta, pelo que a alteração ao nível psíquico que se verificou, e que determinou o seu internamento após os factos, só podem estar relacionados com a consciencialização por parte do arguido das consequências dos seus actos, quer para si quer para a ofendida”.
Termos em que nenhuma censura nos merece a adesão do tribunal à segunda perícia, por se mostrar suficientemente fundamentada, sem que ocorra qualquer erro de julgamento na apreciação da prova, assim improcedendo o recurso nesta parte.
*

3.2. Da medida da pena e da sua substituição (recurso do Ministério Público e do arguido).
O Arguido considera que o tribunal na pena aplicada não atendeu à idade do arguido que contava 78 anos à data da decisão, e sempre a pena deveria ter sido declarada suspensa na sua execução por estarem reunidos os respectivos pressupostos.

Por sua vez o Ministério Público reconduz o recurso à possibilidade de substituição da pena da prisão, entendendo que a pena de prisão de 5 (cinco) anos deveria ter sido suspensa na sua execução considerando haver elementos de facto e de direito bastantes que nos levam a concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão, no caso em apreço, realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Invoca para tanto a circunstância de o arguido ser primário, ter dado mostras de estar arrependido, por estar socialmente integrado, ter mais de 75 anos, já ter neste momento decorrido mais de 4 anos contados desde a data da prática dos factos e de ter uma ligeira diminuição da imputabilidade no momento dos factos.

E conclui que o tribunal, em contraposição com as finalidades da prevenção especial, valorizou excessivamente a vertente da prevenção geral, e só por isso, aplicou ao arguido uma pena de prisão efectiva.

Vejamos o que diz a decisão recorrida:
 
O acórdão recorrido, em sede de medida concreta da pena considerou de mais relevante, o seguinte:
“Em face do exposto, termos de ter em conta que:
i)- o arguido agiu com dolo directo, ou seja, na sua forma mais intensa.
ii)- as exigências de prevenção geral, que serão tanto mais prementes quanto maior foi a gravidade da violação jurídica cometida, são extremamente prementes no caso concreto, expressas na perturbação comunitária que provoca este tipo de infracção em que está em causa um valor nuclear da convivência social.
É imperioso que a comunidade esteja certa de que as violações dos laços mais básicos de relação social são penalizados com adequada punição e, por tal forma, se tenha a noção de que a Vida é um valor intocável.
iii)- a ilicitude do facto é grave, não só em face das lesões sofridas pela ofendida e as suas consequências dessas lesões, algumas prementes, mas também pela forma como a agressão foi executada, com recurso a uma faca de cozinha, de forma súbita e inesperada.
iv)- a personalidade imatura do arguido, embora responsável pelos seus actos, e a dificuldade deste ao nível do controlo emocional e de tolerância ao stress, potenciada pela situação vivida de sentimentos de angústia, perda e abandono que condicionavam o seu dia-a-adia.
v)- O arguido é primário e mostra-se arrependido.
Assim, atento estes factores, entendemos ser de aplicar ao arguido a pena de 5 (cinco) anos de prisão pela prática do crime de homicídio simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 73º e 131, todos do Código Penal.”

Quanto á possibilidade de substituição da pena de prisão, consignou o seguinte:
“(...).
No caso concreto, as exigências de prevenção geral positiva, de reafirmação das normas violadas, determinam que a pena aplicada não seja suspensa na sua execução, já que a comunidade não compreenderia que, face à prática de crimes com tão elevado grau de ilicitude e censurabilidade ético-jurídica, as exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico fossem compatíveis com a ressocialização do arguido em liberdade, apesar da sua idade avançada e do facto de não ter antecedentes criminais.

Este entendimento tem prevalecido na jurisprudência e assenta na ideia de que a aplicação de uma pena de substituição não satisfaz aquele mínio de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico.

Aliás, a pena de prisão efectiva deve ser a regra para os crimes que se posicionam no segmento da criminalidade mais gravosa, especialmente os crimes contra as pessoas e que mais alarme social provocam, designadamente a criminalidade violenta e ou organizada, bem como a acentuada inclinação para a prática de crimes revelada por certos agentes.

Para além disso, parece-nos que o perfil do arguido, referido na fundamentação da matéria de facto, alicerçado no segundo relatório pericial, não nos permite concluir, com certeza, por um diagnóstico positivo no sentido de o arguido, em situação adversa, não tomar um comportamento semelhante, pelo que também em termos de prevenção especial o cumprimento da pena mostra-se necessário no sentido da interiorização do desvalor da sua conduta, concluindo-se, pois, pela insuficiência da simples censura do facto e da ameaça da pena para a realização adequada e suficiente das finalidades da punição.

Assim, a pena de prisão aplicada não deve ser suspensa, impondo-se o seu cumprimento”.

Decidindo.

Como sabemos, pode a pena ser suspensa, nos termos do artº 50º, do Cód. Penal, atendendo á personalidade do agente, às condições da sua vida, á sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, se se concluir que a simples censura do facto e a ameaça da pena de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Na questão da substituição ou não da pena de prisão importa fazer um juízo sobre a necessidade da execução da pena de prisão, estando em causa o critério da realização das finalidades da punição indicado pelo artº 70º do Código Penal.

O que está efectivamente em causa são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção especial. Conforme refere o Prof. Figueiredo Dias,[5] “a prevenção geral surge aqui sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável á defesa das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas á luz de exigências de socialização, a pena alternativa ou a pena de substituição só não serão aplicadas “se a execução da pena de prisão, se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”.

Atentas as necessidades de prevenção geral, importa que a comunidade não encare, no caso, a suspensão como sinal de impunidade.

Por sua vez, o instituto da suspensão da pena como é sabido pressupõe um juízo de prognose social favorável ao arguido, mas é necessário em primeiro lugar que a suspensão da pena não coloque irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos, ou seja, o sentimento de reprovação social do crime, e depois é necessário que o tribunal se convença que aquele facto se não adequa à personalidade do arguido, daí que a suspensão, funcionando como uma ameaça e censura do facto, consiga vencer a vontade de delinquir.

No caso em apreço estamos perante a prática de um crime que atentou contra vida humana, o bem maior, perpetrado com elevado grau de ilicitude e de censurabilidade ético-jurídica, com consequências muito graves para a vítima, sendo assim prementes as exigências de prevenção geral na punição da conduta em referência.

Em sede de prevenção especial, o arguido não confessou os factos prestando declarações em audiência no sentido de que foi a assistente que lhe retirou do bolso a faca que trazia consigo (para cortar canas) e foi na tentativa de lhe retirar a faca da mão que foi atingido no peito e já fora de si, ripostou, atingindo a assistente. Por outro lado, o arguido é primário, circunstância relevante atenta a sua idade, importando, contudo, ter em conta a avaliação psicológica que descreve traços de personalidade do arguido que “...em ambiente de tensão ou percebidos como desfavoráveis pode condicionar comportamentos desviantes”, (...) “Ao nível do controlo e tolerância ao stress...manifestou maior vulnerabilidade para perder o controlo e desorganizar-se em situações de stress.

Este quadro não permite que se faça um juízo de prognose social favorável ao arguido, ou seja, que com probabilidade de segurança, a ameaça da pena seja bastante para que actos desta natureza se não repitam.

Somos assim a entender em face das apuradas circunstâncias que a suspensão da execução da pena haveria de colocar irremediavelmente em causa a tutela dos bens jurídicos em causa, ou seja, o sentimento de reprovação do crime, pelo que, em termos de prevenção geral, a reacção penal aos factos em apreço só se mostrará suficiente pela condenação do arguido em pena de prisão efetiva.

Termos em que nenhuma censura nos merece a decisão recorrida, mantendo-se a pena de prisão efectiva em que o arguido foi condenado.
 
Improcedem, assim, os recursos.
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                                                                                                               3.3. Pedido Cível                                                                                                                                           
O recorrente vem invocar a existência de contradição insanável da fundamentação e entre esta e a decisão, porquanto, o tribunal deu como provado nos pontos 46 a 53 que a demandante teve os danos patrimoniais aí discriminados, num total de 1.768,72€, e em plena contradição insanável, entendeu fixar os danos não patrimoniais em 17.249,72 (cfr. p. 25 do douto acórdão).
 
Verifica-se, efectivamente, a fls. 24 do acórdão (p.989) um manifesto lapso de escrita, sem relevância, visto que ao proceder-se à soma das parcelas elencadas nos pontos 45 a 53 dos factos provados, que perfazem um total de €1.768,72€ e não 17.249,72 como, por lapso, ficou a constar de fls. 24, ponto (i), e que importa corrigir em conformidade.
*

O recorrente é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e encargos a que a sua actividade deu lugar (cfr. arts. 513º e 514º do CPP)                                                                         
*
 
IIIDecisão.

Termos em que as Juízas da 3ª Secção deste Tribunal da Relação de Lisboa acordam em negar provimento aos recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo arguido, mantendo-se na íntegra a decisão proferida.
Custas a cargo do arguido, fixando em 4Uc a taxa de justiça
Notifique.

                                                                                       

Lisboa, 22/11/2017.


Elaborado, revisto e assinado pela relatora Conceição Gonçalves e assinado pela Desembargadora Adjunta Maria Elisa Marques e Exmª Presidente da Secção, Desembargadora Teresa Féria Almeida.

                                                                           
[1]Acs. do STJ, de 25.05.2006, proc. n.º1183/06-5ª, de 13.09.2006, proc. n.º1934/06-3ª, de 02.11.2006, proc. n.º3841/06-5ª, de 17.10.2007, proc. n.º3395/07-3ª, de 03.04.2008, proc. n.º132/08-5ª, de 18.07.2008, proc. n.º102/08-5ª, de 16.10.2008, proc. n.º2851/08-5ª, de 22.10.2008, proc. n.º3274/08-3ª, e de 12.03.2009, proc. n.º07P1769.
[2]Ac. da Rel. do Porto, de 20.03.2002, proc. n.º0141382.
[3]Cfr. Juíza Joana Costa, “A relevância Jurídico-Penal das Perturbações da Personalidade no Contexto da Inimputabilidade”, Revista Julgar, nº 15 -2011, p. 65.
[4]De realçar que na quinta edição (actual) do Manuel de Diagnóstico das Perturbações Mentais (DSM-V), apresentando mudanças significativas na secção relativa às perturbações da personalidade passou a inclui-las na mesma categoria em que se insere as outras doenças psiquiátricas.
[5]In “Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do
Crime”, Parte Geral, pág.333.