Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
23/10.1TBALM.L1-2
Relator: ONDINA CARMO ALVES
Descritores: DANO CAUSADO POR EDIFÍCIOS OU OUTRAS OBRAS
DEFEITO DE CONSERVAÇÃO
VÍCIO DE CONSTRUÇÃO
PRESUNÇÃO DE CULPA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/28/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O artigo 492º, nº 1 do Código Civil não estabelece uma responsabilidade objectiva, mas uma mera presunção de culpa, permitindo que a mesma seja elidida por prova em contrário.
2. A presunção apenas dispensa a prova do facto presumido - a culpa - mas já não a prova do facto base, i.e., o vício de construção ou defeito de conservação.
Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:


I.  RELATÓRIO:

DINA …………… E ALBERTO …………, residentes na Rua ………..em Almada, intentaram, em 31.12.2009, contra IMOBILIÁRIA …. LDA., com sede na Rua ……………., em Almada, acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, através da qual pedem a condenação da ré:
a)na reparação da fracção que adquiriram à ré, de modo a torná-la habitável, por estar em causa uma venda defeituosa;
b)no pagamento do recheio da fracção que ficou destruído com a derrocada do prédio, no valor de € 10.000,00;
c)no pagamento das rendas que os autores tiveram de suportar com o arrendamento de outra habitação, no valor de € 5.670,00 e bem assim nas que vierem a pagar até à reparação integral da fracção;
ou, caso se não considere estarmos perante venda de coisa defeituosa:
d)a condenação da ré a ressarcir os autores dos seus prejuízos com a reparação/reconstrução se for viável ou da perda total do bem no valor correspondente ao da sua aquisição - € 104.900,00, bem como no valor do recheio destruído - € 10.000,00 e no valor das rendas que já suportaram e das que vierem a suportar, ou inda
ainda, caso assim se não entenda;
e)deverá a ré ser responsabilizada nos termos da responsabilidade civil por facto ilícito e, consequentemente, condenada a pagar o valor da perda da habitação, do recheio destruído e o valor das rendas que já pagaram e das que vierem a ter que pagar.

Fundamentaram os autores, no essencial, esta sua pretensão nos termos seguintes:

1.Em 2005 a ré procedeu à alteração e total remodelação de uma fracção de que era proprietária à custa de espaço inacessível e não previsto como habitável, sem autorização e licenciamento camarário e eliminando paredes resistentes.
2.Após procedeu à venda, em Abril de 2006, dessa fracção aos autores que a não conheciam antes de ter sido remodelada, nem sabiam da sua configuração anterior.
3.Após a aquisição da fracção pelos autores começaram a surgir fendas que os mesmos comunicaram à ré.
4.Em 11.02.2008, a ré iniciou obras de remodelação na fracção contígua à dos autores, sem autorização e licenciamento camarário e sem autorização da assembleia de condóminos, usando marretas que provocaram o estremecimento do prédio e que determinaram a derrocada do prédio com o afundamento do piso da fracção pelas 16 horas, do dia 12.02.2008, e pelas 1.15 horas, do dia 13.02.2008, do piso da fracção dos Autores;
5.Tais factos tornaram inabitável o prédio e a fracção dos autores até actualmente, obrigando-os a arrendar uma casa, no que despendem a renda mensal de € 315,00;
6.Os autores não habitam a fracção que compraram à Ré apesar de continuarem a suportar as prestações do empréstimo que contraíram para a sua aquisição.

Citada, a ré apresentou contestação, em 08.02.2010, excepcionando a caducidade do direito de acção já que esta não foi intentada no prazo de um ano após a derrocada.

Alegou ainda, a ré, que as obras de remodelação e ampliação do imóvel foram do prévio conhecimento dos autores que só assim aceitaram adquirir a fracção, tendo acompanhado a sua execução, escolhendo os respectivos materiais, obras que foram alvo de licenciamento camarário e foram consentidas pelo condomínio.

Mais invocou que, quanto à derrocada, a mesma não se deveu às obras iniciadas pela ré na fracção contígua, mas sim a edificação do prédio ao lado do prédio onde se situa a fracção dos autores e disso deu imediato conhecimento aos Autores.

Concluiu, a ré, pela sua absolvição de todos os pedidos.

Notificados, os autores responderam, em 26.04.2010, à matéria exceptiva constante da contestação, propugnando pela improcedência da mesma e concluindo como na petição inicial.

Os autores suscitaram, em 08.11.2010, a convite do julgador de 1ª instância, o incidente de intervenção principal provocada de SOCIEDADE DE INVESTIMENTOS, LDA, a empresa que procedeu à realização das obras de construção do prédio ao lado daquele onde se situa a fracção pertencente aos autores e que, com as escavações, então realizadas, poderá ter determinado a derrocada do piso da fracção dos autores, requerendo a sua intervenção na qualidade de co-ré e para a sua responsabilização pelos prejuízos causados aos autores.
        
Por despacho de 12.01.2011, foi admitida a intervenção principal da chamada como associada da ré.

Contestou a interveniente principal, em 18.01.2012, alegando que a derrocada não teve como causa as obras e escavações por si levadas a cabo, pelo que pugnou pela sua absolvição.

Designada audiência preliminar, nela foi proferido, em 11.06.2012, despacho saneador, elaborada a condensação com a fixação dos Factos Assentes e a organização da Base Instrutória.

Realizada perícia, foi levada a efeito a audiência de discussão e julgamento, em 16.06.2014 e em 11.07.2014, após o que o Tribunal a quo proferiu decisão, em 01.09.2014, constando do Dispositivo da Sentença o seguinte:

Nestes termos e pelo exposto julgo a acção procedente e em consequência decido:
A) Absolver a interveniente principal Sociedade de Investimentos, Lda dos pedidos contra ela deduzidos;

B) Condenar a Ré, Imobiliária, Lda:
a.A proceder às obras de reparação na fracção dos Autores necessárias a repor a sua habitabilidade;
b. A pagar aos Autores a quantia de dez mil euros (€ 10.000,00); e
c. A pagar aos Autores os montantes por estes despendido com o arrendamento de uma habitação desde a data da derrocada até à data da efectiva conclusão das obras de reparação na sua fracção e habitabilidade das mesmas, sendo as rendas já pagas até Dezembro de 2009, no montante de cinco mil, seiscentos e setenta euros (€ 5.670,00).
(…)
Inconformada com o assim decidido, a interpôs recurso de apelação, relativamente à sentença prolatada.

São as seguintes as CONCLUSÕES da recorrente:

i.A matéria de facto dada como provada e não provada, não é coincidente com a prova produzida nos autos;
ii. Devendo portanto ser alterada;
iii.É falso que o suprimento e substituição de paredes resistentes na fracção dos AA, tenha provocado ou causado o colapso da laje.
iv.O colapso na cave esquerda (fracção dos AA) deu-se devido ao colapso das paredes resistentes que dividiam as duas fracções ruíram com a ruina da cave direita;
v.Mas nunca por a Ré/Recorrente ter substituído paredes resistentes, que por acaso nada tiveram a ver com o local da ruina;
vi.Em face da prova produzida, pericial, documental e testemunhal, o Tribunal a quo, deve considerar que apesar de algumas paredes resistentes terem sido suprimidas na cave esquerda, foram devidamente compensadas pela introdução de vigas metálicas, e que este procedimento em nada influenciou a estrutura do prédio;
vii.As pessoas que se encontravam a trabalhar na cave direita, estavam a retirar móveis do interior da fracção em causa, e a fazer a preparação para que se iniciassem as obras;
viii.Ora se na manhã do acidente tinham lá colocado as ferramentas e o cimento, resulta claro que não tinham iniciado a obra nem tão pouco podiam estar a demolir paredes, como mal conclui o tribunal a quo;
ix.Em face da prova produzida o Tribunal a quo tinha de ter concluído que as obras na cave direita ainda não se tinham iniciado;
x.Dado que os trabalhadores se encontravam a levar a cabo trabalhos preparatórios necessários à preparação para o início da obra;
xi.Em suma, as obras de remodelação da cave direita ainda não tinham sido iniciadas à data do colapso;
xii.A Ré ao pretender remodelar e conservar a fracção corresponde à cave direita, cumpriu todos os requisitos legais, para a intervenção a realizar;
xiii.A Ré mantinha sempre, em qualquer obra, um projeto de arquitetura e o acompanhamento de um arquiteto;
xiv.Aliás, de acordo com o RGEU, actualmente, para obras semelhantes àquelas que a Ré levou a cabo na cave esquerda e que iria levar a cabo na cave direita, já não é requisito de legalidade a existência de licença prévia, basta um projeto de arquitetura e o acompanhamento de um arquiteto;
xv.Quer no dia da derrocada quer no dia anterior à derrocada a verdade é que a Ré não estava a demolir paredes e muito menos a usar material pesado e marretas para o efeito;
xvi.Nem os peritos do tribunal, nem o LNEC concluíram com confiança sobre qual a causa que esteve na origem da derrocada;
xvii.Sendo, obvio concluir que, mesmo que a Ré não tivesse intenções de vir a iniciar obras de conservação e remodelação da cave direita, certo é que aquele desfecho era inevitável!!!
xviii.O Tribunal a quo não pode considerar provado que a derrocada danificou os eletrodomésticos, quando a cozinha e outras partes da casa não fora afetadas.
xix.Tal como, de toda a prova produzida, refira-se que, documentalmente não existiu qualquer prova do valor dos eventuais móveis, tapetes e outros.
xx.Pelo que deve o Tribunal a quo abster-se de considerar provado um facto para o qual a prova foi completamente ausente, não logrando os AA fazer qualquer prova quanto a estes danos, muito menos no valor de 10.000.00€.
xxi. Resultou claro, quer da prova pericial e esclarecimentos dos senhores peritos, quer do relatório do LNEC, que de facto a dita megalómana construção influenciou a estabilidade do prédio;
xxii.Tanto assim é, que os AA foram aconselhados pela Ré, aquando das queixas sobre fendas na cave esquerda, mais precisamente na arrecadação situada no quintal da casa, e perto do megalómano prédio, a solicitar a CMA uma vistoria;
xxiii.Certamente que a construção de 4 caves profundas, foi causa que contribuiu para o assentamento de terrenos e o seu deslocamento;
xxiv. Sendo disso exemplo o episódio do muro que ruiu, e que fazia fronteira com o prédio dos autos;
xxv. Deixando o Alvo 6, ali instalado, de fazer leituras ou alertas para movimentos alarmantes dos solos;
xxvi.Várias podem ter sido as causas, mas que esta construção agudizou a fragilidade estrutural do edifício onde se deu a derrocada;
xxvii.Como bem esclareceram os peritos, a derrocada era eminente, era uma questão de tempo até ter acontecido, ninguém sabe ao certo quando poderia ocorrer, conforme se cita: “(…) a derrocada podia ter acontecido em qualquer altura, mesmo que as obras levadas a cabo na cave esquerda não fossem feitas, o acidente podia ter-se verificado na mesma. Iria acontecer, tínhamos o fator tempo para considerar mas de certeza que iria
acontecer com ou sem obras.(…) – sublinhado nosso;
xxviii.Já existiam indícios de que alguma coisa estava mal, anos antes do colapso, como tentaram esclarecer os peritos mencionando o tal Alvo 6 que a dada altura deixou de fornecer leituras porque o muro onde estava instalado ruiu, como atrás já ficou mencionado;
xxix.A presente sentença é também nula por falta de fundamentação suficiente e que a parca fundamentação está em total desacordo com a decisão tomada;
xxx.Analisando a fundamentação da sentença ora recorrida, podemos concluir com certeza que a mesma é incompatível com a factualidade provada, e bem assim a conclusão/decisão a que chega o Tribunal a quo é inesperada face à parca fundamentação apresentada;
xxxi. Para além de que, quanto às prováveis causas do colapso, o Tribunal a quo conheceu de questões para as quais não tem competência, nomeadamente, quanto à matéria apreciada pelos engenheiros do LNEC e pelos peritos na prova pericial, quando determina que a causa do colapso se deveu às obras da cave direita, conclusão à qual mais ninguém chegou;
xxxii.A Ré, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 492º do CC, não pode ser havida como dona de obra, na sua definição;
xxxiii.Para tal seria necessário existir uma obra;
xxxiv.De facto, estavam a ser realizadas diligências preparatórias para o início da obra e foi nesse preciso momento que se verificou a lesão e dano na fracção dos AA;
xxxv.Posto isto, é necessário descaracterizar a Ré/Recorrente como "dona de obra que ruiu", uma vez que ainda não tinha sido feita qualquer obra, o que permite claramente afastar a presunção prevista no art. 492.º do CC;
xxxvi.E, assim sendo, a dúvida quanto à verdadeira causa da lesão e do dano, passa a desaproveitar à demandante (art. 342.º do CC), porque está desprovida de uma presunção em seu abono;
xxxvii.As simples diligências preliminares de uma construção/obra de remodelação, implicando a colocação de materiais e equipamentos no local, não são quanto baste para qualificar a Ré/Recorrente como "dona de obra", já que a intervenção construtiva não tinha um mínimo de expressão real que permita essa qualificativa;
xxxviii. Afastando assim a presunção, o non liquet desabona os AA;
xxxix.A verdade é que tanto os AA como a Ré/Recorrente são proprietários de fracções no mesmo edifício que ruiu, não sendo a Ré/Recorrente dona de obra, só poderia ser responsabilizada como proprietária de prédio que ruiu;
xl.Mas esta responsabilidade, a do proprietário, cabe não a danos causados a contitulares do prédio, mas de terceiros, de pessoas afectadas pela ruina do edifício;
xli. O defeito de conservação do edifício e/ou da cave direita, a verificar-se, sempre se diga que o RGEU (RGEU e DL n.º 177/2001 – obrigatoriedade de obras de conservação, de 8 em 8 anos), define um período de oito anos para essas obras de conservação e prevê ainda que as Camaras Municipais obriguem a sua realização sempre que a segurança ou a salubridade estejam em causa;
xlii.Esta obrigação impende necessariamente sobre o condomínio e proprietários, que já há vários anos não levava a cabo qualquer obra de manutenção do edifício, apesar de a isso estar obrigado;
xliii. Mas a Ré/Recorrente ia levar a cabo obras de conservação na fracção que havia acabado de adquirir;
xliv. Sucede no entanto, que nem sequer chegou a tempo de tal intervenção, devido à ruína do imóvel de que é proprietária;
xlv.Os danos causados nas fracções visadas nestes autos, ocorreriam de forma independente de qualquer intervenção humana, e este facto ficou vertido nos esclarecimentos dos peritos, como atrás já foi citado;
xlvi.Tendo a Ré/Recorrente, sido bem-sucedida e demonstrado que tal facto era inevitável, e que não era dona de obra, não pode ser responsabilizada nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 492º CC;
xlvii.A culpa, quer por acção e/ou omissão, quer por vício de construção ou defeito de conservação, foram ilididas pela Ré/Recorrente, mediante prova testemunhal e documental constante dos autos;
xlviii.Não sendo possível imputar à Ré/Recorrente qualquer culpa (ainda que negligente) sobre o colapso;
xlix. Mais se provou que a actuação de um terceiro, in casu, da interveniente principal, concorreu para a produção de danos;
l. Não podendo o artigo 492º do CC ser usado no caso concreto, para imputar qualquer responsabilidade à Ré/Recorrente, pelos danos causados;
li.O Tribunal a quo, não pode ignorar que a descompactação do solo deve ter tido aqui uma palavra a dizer, que a fissuração das caves deve ter sido provocada pela descompactação;
lii.Tem a Ré/Recorrente de concluir portanto que o nexo de causalidade entre o facto e o dano (necessário à averiguação de responsabilidade), não ficaram provados, não se podendo concluir pela culpa da Ré, nem tão pouco pela sua responsabilidade;
liii. Assim, deve a presente sentença ser revogada, dando-se total provimento ao presente recurso.

Pede, por isso, a apelante, que o recurso seja julgado procedente e a sentença proferida julgada sem efeito.
              
Os autores apresentaram contra-alegações, defendendo a manutenção de decisão recorrida.

O Tribunal a quo pronunciou-se sobre a arguição de nulidades da sentença deduzida pela ré/apelante, pugnando pela sua inexistência, nos seguintes termos:
Vem a autora invocar a nulidade da sentença, no entanto das razões que invoca nenhuma delas se subsume ao conceito de
nulidade, tal como decorre do artº 615º do C.P.Civil. A Autora
pura e simplesmente discorda por um lado da valoração da prova por parte do Tribunal e bem assim da respectiva subsunção jurídica dos factos que firmou provados ao direito que julgou aplicável. Ora tal discordância apenas pode ser apreciada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, em sede de apreciação do recurso interposto pela Autora.

Pelo exposto não julgando verificada qualquer nulidade da sentença, nada a decidir.

Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.

II.ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO:

Importa ter em consideração que, de acordo com o disposto no artigo 635º, nº 4 do Novo Código de Processo Civil, é pelas conclusões da alegação da recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas
estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.

Assim, e face ao teor das conclusões formuladas a solução a alcançar pressupõe a análise das seguintes questões:

i) DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da   impugnação da matéria de facto;          
                          
ii) DA SUBSUNÇÃO JURÍDICA FACE À MATÉRIA APURADA E À PRETENSÃO FORMULADA PELOS AUTORES,

O que implica a análise:     

--- DA RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTO ILÍCITO E O ÂMBITO DE APLICAÇÃO DO ARTIGO 492º DO CÓDIGO CIVIL.

III . FUNDAMENTAÇÃO

A –
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Foi dado como provado na sentença recorrida, o seguinte:


1.Em 11 de Abril de 2006, os Autores e a Ré celebraram um contrato de compra e venda e mútuo com hipoteca, sendo os primeiros os adquirentes  e a   segunda  a   alienante,   da   fracção autónoma destinada à habitação designada pela letra B,
correspondente à cave esquerda do prédio urbano sito na Rua ……… em Almada, descrito na la Conservatória do Registo Predial de Almada, sob o n° 8768, do Livro B 24 e inscrito na matriz sob o art.° 191 °, tudo conforme cópia da escritura de fls. 43° a 48° e que aqui se dá por integralmente reproduzida — Alínea A) da matéria de facto assente;
2.Em 2005, a ré procedeu à alteração e remodelação da Cave Esquerda de que era proprietária, na Rua …………., n° 5, em Almada — Alínea B) da matéria de facto assente;
3.A Ré ampliou a fracção em mais 33% do espaço inicialmente habitável — Alínea C) da matéria de facto assente;
4.A ré deslocou a casa de banho e a cozinha da fracção em causa, das traseiras para um espaço "esconso", antes não habitável, na frente do prédio — Alínea D) da matéria de facto assente;
5.A ré procedeu à alteração da fachada posterior da fracção — Alínea E) da matéria de facto assente;
6.A escritura de compra e venda da fracção em causa, realizada entre autores e ré, foi efectuada mediante a apresentação da licença de utilização (n° 861 de 24/11/1954), correspondente a uma fracção de configuração diversa daquela que os autores efectivamente compraram — Alínea F) da matéria  de facto assente;
7.Pouco depois da compra da fracção em causa pelos autores começaram a aparecer fendas que os mesmos comunicaram à ré — Alínea G) da matéria de facto assente;
8.A Interveniente Principal foi a construtora do prédio sito nos n°s. 26° a 26° F da Rua ……, em Almada — Alínea G) da matéria de facto assente;
9.A ampliação levada a cabo pela Ré na fracção dos autos foi feita à custa de espaço inacessível — Artigo 1° da Base Instrutória;
10.E não previsto como habitável no projecto original de construção, mas previsto como habitável na sequência de dois projectos de alteração aprovados pela Câmara Municipal— Artigo 2° da Base Instrutória;
11.Antes das obras levadas a cabo pela ré o conjunto das divisões da fracção em causa somavam cerca de 36 m2 — Artigo 3° da Base Instrutória;
12.A ampliação levada a cabo pela ré acrescentou à fracção em causa 19,50 m2 de área habitável — Artigo 4° da Base Instrutória;
13.Foi nessa área não habitável que a ré construiu uma casa de banho, a cozinha e uma dispensa — Artigo 5° da base Instrutória;
14.A ré suprimiu da fracção em causa paredes resistentes — Artigo 6° da Base Instrutória;
15.A concreta obra levada a cabo pela ré na fracção em causa não foi previamente autorizada pela Câmara Municipal de Almada, tendo  sido submetida a aprovação o respectivo projecto de alteração posteriormente à sua conclusão – Artigo 9° da Base Instrutória;
16.Em Janeiro de 2007 foi denunciado pelos Autores junto da Ré, a existência de uma "enorme fissura na parede exterior da arrecadação" – Artigo 10° da Base Instrutória;
17.Em 11-02-2008, a ré deu início a obras de remodelação da fracção correspondente à cave direita do mesmo prédio onde se situa a fracção em causa nestes autos – Artigo 11° da Base Instrutória;
18.A ré levou a cabo as obras de remodelação referidas no quesito anterior sem projecto e licença camarária – artigo 12° da Base Instrutória;
19.Em 12-02-2008, os pedreiros efectuavam trabalhos de demolição de paredes na aludida fracção correspondente à cave direita – Artigo 14° da Base Instrutória;
20.Tendo ocorrido nessa altura a derrocada que teve o seu início na fracção onde decorriam as obras, na zona mais sensível do edifício devido à esbelteza dos muretes de apoio da laje e a desagregação dos blocos que se encontravam na sua base e que se deveu ao colapso do sistema de apoio da laje, resultante da conjugação de factores de diversa ordem relacionadas com as várias debilidades do edifício ao nível estrutural – artigo 16° da Base Instrutória;
21.Com afundamento do piso da fracção correspondente à cave direita – artigo 17° da Base Instrutória;
22.Cerca das 01:15 horas do dia 13-02-2008, deu-se o colapso do piso da sala da fracção aqui em causa, propriedade dos autores – Artigo 18° da Base Instrutória;
23.As fracções "colapsadas", bem como as restantes fracções do prédio foram interditas – Artigo 19° da Base Instrutória;
24.Em face do sucedido o prédio ficou inabitável – Artigo 20° da base Instrutória;
25.Os Autores não habitam a fracção em causa desde 13-02-2008 – Artigo 21° da Base Instrutória;
26.Tendo passado a viver numa casa arrendada pelo valor de 315,00 euros mensais – Artigo 22° da Base Instrutória;
27.A derrocada e colapso da fracção dos autores danificou os electrodomésticos, móveis, tapetes, candeeiros e loiças – Artigo 23° da Base Instrutória;
28.Tudo no valor de, pelo menos, 10.000,00 euros – Artigo 24° da Base Instrutória;
29.A construção de 4 (quatro) caves profundas, sobrepostas, no terreno adjacente foi levada a cabo pela interveniente principal – Artigo 26° da Base Instrutória;
30.Para levar cabo a referida construção a interveniente principal necessitou de efectuar escavações – Artigo 27° da Base Instrutória;
31.E de usar equipamento pesado – Artigo 28° da Base Instrutória;
32.Equipamento esse que produz vibrações no solo - Artigo 29° da Base Instrutória;
33.A fracção dos autos encontra-se num plano mais elevado que a obra levada a cabo pela interveniente principal – Artigo 31° da Base Instrutória;
34.A Interveniente principal edificou o prédio sito na Rua ………. em 2006 – Artigo 32° da Base Instrutória;

B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

i) DA NULIDADE DA SENTENÇA AO ABRIGO DO DISPOSTO NO ARTIGO 615.º DO CPC;

Qualquer acto jurisdicional, nomeadamente uma sentença ou mesmo um despacho, pode atentar contra as regras próprias da sua elaboração e estruturação ou contra o conteúdo e limites do poder à sombra do qual é decretado e, então, torna-se passível de nulidade, nos termos do artigo 615º, nº 1 do novo Código de Processo Civil.

A este respeito, estipula-se no apontado normativo, sob a epígrafe de “Causas de nulidade da sentença”, aplicável aos despachos ex vi do artigo 613º nº 3  do mesmo diploma que:
    “1 - É nula a sentença:
a) Quando não contenha a assinatura do juiz;
b) Quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.
d) Quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) Quando condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido.....”

A recorrente visa imputar à sentença as nulidades decorrente das alíneas b), c) e d) do citado normativo, a qual se reconduz a um vício de conteúdo, na enumeração de J. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, III,  1980, 302 a 306, ou seja, vício que enferma a própria decisão judicial em si, nos fundamentos, na decisão, ou nos raciocínios lógicos que os ligam.

Invoca a apelante, em suma, que a sentença é nula por falta de fundamentação suficiente e que a parca fundamentação está em total desacordo com a decisão tomada, tendo conhecido de questões para as quais não tem competência, nomeadamente quanto à matéria apreciada por engenheiros e peritos.

No artigo 615º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, prevê-se a sanção para o desrespeito ao disposto no artigo 659º, n.º 2 do mesmo diploma legal, que manda que o juiz especifique os fundamentos de facto e de direito da sentença, sendo, aliás, um imperativo constitucional quando, no artigo 205º, n.º 1 da C.R.P. se refere que « as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei ».
                   
E, como já referia J. ALBERTO DOS REIS, Cód. Proc. Civil Anot., Vol. V, reimpressão (1981), pág. 139, a necessidade de fundamentação da sentença assenta numa razão substancial e em razões práticas. Por um lado, porque a sentença deve representar a adaptação da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido ao juiz e, por outro lado, porque a parte vencida tem direito a saber a razão pela qual a sentença lhe foi desfavorável, para efeitos de recurso. E, em caso de recurso, a fundamentação de facto e de direito é também absolutamente necessária para que o tribunal superior aprecie as razões determinantes da decisão.
                   
Mas, seguindo o entendimento doutrinário e jurisprudencial, uma coisa é falta absoluta de fundamentação e outra é a fundamentação deficiente, medíocre ou errada. Só aquela é que a lei considera nulidade. Esta não constitui nulidade, e apenas afecta o valor doutrinal da sentença que apenas corre o risco, a padecer de tais vícios, de ser revogada ou alterada em via de recurso – cfr. designadamente J. A. REIS, ob. cit., 140 e, a título meramente exemplificativo, Acs. STJ de 03.05.2005 (Pº 5A1086) e de 14.12.2006 (Pº 6B4390), acessíveis na Internet, www.dgsi.pt.
                   
No que concerne ao vício enumerado na alínea c) do citado normativo, doutrina e jurisprudência têm entendido que essa nulidade ocorre quando os fundamentos invocados deveriam conduzir, num processo lógico, à solução oposta da que foi adoptada naquela.
           
Esta nulidade – oposição entre os fundamentos e a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível – só se verifica quando os fundamentos, quer de facto quer de direito, invocados pelo juiz devam, logicamente, conduzir ao resultado oposto ao que é expresso na sentença.

A contradição entre os fundamentos e a decisão a que se refere o citado normativo é uma contradição de ordem formal, que se refere aos fundamentos estabelecidos e utilizados na sentença, e não aos que resultam do processo.

E, tal nulidade traduzida na desconformidade entre a decisão e o direito aplicável - substantivo ou adjectivo – não se confunde com o erro de julgamento, ou seja, na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta.

É que, quando o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, poderemos, sim, estar perante um erro de julgamento. Nesse caso, o juiz fundamenta a decisão, mas decide mal. Resolve as questões colocadas num certo sentido porque interpretou e/ou aplicou mal o direito - LEBRE DE FREITAS, CPC Anotado, vol. 2.º, pág. 670.

Por seu turno, a nulidade  prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615º, nº 1 do nCPC terá de ser aferida tendo em consideração o disposto no artigo 608.º, n.º 2 do nCPC.
                       
Não pode, na verdade, o Tribunal conhecer senão das questões suscitadas pelas partes, excepto se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento de outras, pelo que a referida nulidade tem de resultar da violação do referido dever.

As questões a que alude a alínea em apreciação, como bem esclarece A. VARELA, RLJ, Ano 122.º, pág. 112, embora reportado ao anterior regime processual civil, mas que nesta parte se mantém inalterável são “(...) todas as pretensões processuais formuladas pelas partes que requerem decisão do juiz, bem como os pressupostos processuais de ordem geral e os pressupostos específicos de qualquer acto (processual) especial, quando realmente debatidos entre as partes …”.

Esclarece M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o novo Processo Civil”, Lex, 1997, 220 e 221, que está em causa “o corolário do princípio da disponibilidade objectiva (art. 264.º, n.º 1 e 664.º 2.ª parte)  o  que  significa que o tribunal deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões “.

Como escreve ALBERTO DOS REIS, CPC Anotado, Vol. V, 54, a propósito do que deverá entender-se por “questões suscitadas pelas partes”, que “para caracterizar e delimitar, com todo o rigor, as questões postas pelas partes, não são suficientes as conclusões que elas tenham formulado nos articulados; é necessário atender também aos fundamentos em que elas assentam.
Por outras palavras: além dos pedidos propriamente ditos, há que ter em conta a causa de pedir.

Salienta-se, por outro lado, no Ac. do STJ de 06.05.04 (Pº 04B1409), acessível na Internet, no sítio
www.dgsi.pt, a propósito da omissão de  pronúncia, que “(...) terá o julgador que identificar, caso a caso, quais as questões que lhe foram postas e
e que deverá decidir. (....) E se, eventualmente, o juiz, ao decidir das questões suscitadas, tem por assentes factos controvertidos ou
vice-versa, qualifica juridicamente mal uma determinada questão, aplica uma lei inapropriada ou interpreta mal a lei que devia aplicar, haverá erro de julgamento, mas não nulidade por omissão de pronúncia ”.        
                                         
Como resulta do que acima ficou dito, questão a decidir não é a argumentação utilizada pelas partes em defesa dos seus pontos de vista fáctico-jurídicos, mas sim as concretas controvérsias centrais a dirimir e não os factos que para elas concorrem.

Apreciar e rebater cada um dos argumentos de facto ou de direito que as partes invocam com vista a obter a procedência ou a improcedência da acção, bem como a circunstância de lhes fazer, ou não, referência, não determina a nulidade da sentença por excesso ou omissão de pronúncia.
 
Ora, na sentença recorrida, o tribunal
a quo, tendo em consideração os factos que entendeu terem sido alegados e que considerou provados, não deixou de fundamentar a sua decisão. Aplicou o direito que julgou adequado e pertinente ao caso em apreciação, discorrendo sobre o pedido e a causa de pedir formulados na petição inicial, não se vislumbrando contradição entre os fundamentos e a decisão, qualquer ambiguidade ou obscuridade ou que haja conhecido de questões que não poderia conhecer, nomeadamente pronunciando-se, fundadamente sobre matéria sujeita a peritagem.

Situação diversa é a de saber se houve erro de julgamento, pois como se refere no Ac. do STJ de 21.05.2009 (Pº 692-A/2001.S1), acessível no supra citado sítio da Internet Se a questão é abordada mas existe uma divergência entre o afirmado e a verdade jurídica ou fáctica, há erro de julgamento, não “errore in procedendo”.

Face ao que acima ficou dito, os alegados vícios de conteúdo a que se refere o artigo 615º, nº 1, alíneas b), c) e d) do Código do Processo Civil, não se verificam na sentença recorrida, pelo que improcede o que a este respeito consta da alegação de recurso (CONCLUSÕES  29ª a 31ª).  

Importa, no entanto, apurar se há erro de julgamento, o que implica a análise das restantes questões controvertidas a resolver e que se reconduzem, ao cabo e ao resto, aos fundamentos de mérito do recurso.

**

ii. DA REAPRECIAÇÃO DA PROVA GRAVADA em resultado da   impugnação da matéria de facto .        
                          

O Novo Código de Processo Civil, no seu artigo 662º, veio reforçar os poderes do Tribunal da Relação relativamente à modificabilidade da decisão de facto, os quais se mostram ampliados no seu nº 2.

                    Estatui agora o citado normativo que:
1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2. A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a)Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam  a  alteração  da  decisão  proferida  sobre  a  matéria de facto, repute deficiente, osbcura ou c
repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d)Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados.

No que concerne ao ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estabelece o artigo 640º, do Novo Código Processo Civil (preceito corresponde ao artigo 685º-B do anterior Código Processo Civil, com a inovação da alínea c) do nº. 1) que:
1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b)Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar  com  exatidão  as  passagens  da gravação  em  que se funda e
proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º.”

Considerando que, no caso vertente, a prova produzida em audiência foi gravada, e a recorrente deu cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º do nCPC pode este Tribunal da Relação proceder à sua reapreciação, uma vez que dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os factos em causa.

A recorrente está em desacordo com a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo, identificando com os Nºs 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46 a factualidade que, no entender da apelante, deveria ter sido dada como não provada, defendendo, por outro lado, que os factos nºs 2, 3, 4 da matéria dada como não provada, deveriam ter sido dados como provados.

A numeração indicada pela recorrente não corresponde à constante da sentença recorrida lavrada no processo e que, certamente será a mesma com base na qual a ré veio impugnar a decisão de facto. É que, a factualidade provada está contida entre os números 1 a 34 e a matéria não provada está subordinada aos números 1 a 8, não havendo correspondência entre a numeração constante da sentença recorrida com a numeração identificada no recurso.

Mas, pese embora tal absoluta desadequação, com algum esforço de interpretação e compatibilização, considera-se que, visa a apelante impugnar os factos provados nºs 14, 17, 18, 19, 20, 27, 28, 29, 30, 31, 32, 33 e os factos não provados nºs 6, 7 e 8.

Há, assim, que aferir da pertinência da alegação da apelante, ponderando  se, in casu, se verifica  a  ausência  da  razoabilidade da respectiva decisão em face de todas as provas produzidas,
conduzindo necessariamente à modificabilidade da decisão de facto.

Foi auditado o suporte áudio e, concomitantemente, ponderada a convicção criada no espírito da Exma. Juíza do Tribunal a quo, designadamente no que concerne aos depoimentos prestados, e que levou ao convencimento quanto à veracidade ou probabilidade dos factos sobre que recaíram as provas.

Há, pois, que atentar na prova gravada, concomitantemente com a prova documental e pericial produzida, por forma a concluir se a decisão de facto enunciada na 1ª instância é, ou não, merecedora de reparos.

Vejamos:

Consta do nº 14 dos Factos dados como Provados:
A ré suprimiu da fracção em causa paredes resistentes (Artigo 6° da Base Instrutória);

Consta do nº 17 dos Factos dados como Provados:
Em 11.02.2008, a ré deu início a obras de remodelação da fracção correspondente à cave direita do mesmo prédio onde se situa a fracção em causa nestes autos (Artigo 11° da Base Instrutória);

Consta do nº 18 dos Factos dados como Provados:
A ré levou a cabo as obras de remodelação referidas no quesito anterior sem projecto e licença camarária (artigo 12° da Base Instrutória);

Consta do nº 19 dos Factos dados como Provados:
Em 12.02.2008, os pedreiros efectuavam trabalhos de demolição de paredes na aludida fracção correspondente à cave direita (Artigo 14° da Base Instrutória);

Consta do nº 20 dos Factos dados como Provados:
Tendo ocorrido nessa altura a derrocada que teve o seu início na fracção onde decorriam as obras, na zona mais sensível do edificio devido à esbelteza dos muretes de apoio da laje e a desagregação dos blocos que se encontravam na sua base e que se deveu ao colapso do sistema de apoio da laje, resultante da conjugação de factores de diversa ordem relacionadas com as várias debilidades do edifício ao nível estrutural (Artigo 16° da Base Instrutória);

Consta do nº 27 dos Factos dados como Provados:
A derrocada e colapso da fracção dos autores danificou os electrodomésticos, móveis, tapetes, candeeiros e loiças (Artigo 23° da Base Instrutória);

Consta do nº 28 dos Factos dados como Provados:
Tudo no valor de, pelo menos, 10.000,00 euros (Artigo 24° da Base Instrutória);

Consta do nº 33 dos Factos dados como Provados:
A fracção dos autos encontra-se num plano mais elevado que a obra levada a cabo pela interveniente principal (Artigo 31° da Base Instrutória);

Defende a apelante que tais factos (Nºs 14, 17 a 20, 38 e 33 da B.I.) deveriam ter sido dados como NÃO PROVADOS.

*

Consta do nº 6 do elenco dos Factos dados como Não Provados:
A derrocada ocorreu devido à construção de 4 (quatro) caves profundas, sobrepostas, no terreno adjacente (Artigo 25° da Base Instrutória);

Consta do nº 7 do elenco dos Factos dados como Não Provados:
O equipamento usado pela interveniente principal na construção das caves no prédio adjacente provocou a compactação ou a descompressão do terreno (Artigo 29° da Base Instrutória);

Consta do nº 8 do elenco dos Factos dados como Não Provados:
E com isso desestabilizou o prédio onde se situa a fracção dos autos (Artigo 30° da Base Instrutória);

Defende a apelante que tais factos (Nºs 6, 7 e 8) deveriam ter sido dados como PROVADOS.

Fundamentou a Exma. Juíza do Tribunal a quo, da seguinte forma as respostas negativas dadas aos artigos incluídos na Base Instrutória:
A convicção do Tribunal no que tange à factualidade respeitantes aos artigos 1° a 6° fundou-se no relatório pericial cujo teor nesta parte foi corroborado pelos esclarecimentos dos peritos em audiência de julgamento, não existindo nesta parte controvérsia, sendo que relativamente ao artigo 6° da Base Instrutória, atendeu o Tribunal também ao relatório elaborado pelo LNEC junto com o relatório pericial.
No que tange aos artigos 7° e 8° da Base Instrutória, quer das declarações de parte da legal representante da Ré, quer sobretudo do depoimento de parte do Autores, e em particular do Autor, resultou que os Autores tiveram acesso à fracção antes de as obras de remodelação da mesma estarem totalmente concluídas, pelo que não ficou o Tribunal convicto e por isso firmou estes factos por não provados, que os Autores desconheciam a configuração e a área da fracção que adquiriram antes da sua remodelação e bem assim como esta era antes da sua remodelação.
Quanto ao artigo 9° da Base Instrutória, quer do relatório pericial, quer dos processo de camarário junto aos autos, quer também das declarações de parte da legal representante da Ré,
resultou sem qualquer dúvida para o Tribunal que à data em que as obras foram realizadas e concluídas não existia projecto de alteração e de execução destas obras aprovado pela Câmara Municipal, nem sequer o mesmo havia dado entrada, o que veio a ocorrer já após a conclusão das obras.

Já quanto à ausência de autorização do condomínio para as obras – artigo 13° da Base Instrutória, a prova não foi segura de que essa autorização não tenha existido, e pese embora o depoimento da testemunha José ….. que era administrador do condomínio e que declarou que o condomínio não teve conhecimento prévio da execução das obras, ante o teor do doc. de fls. 83/84 do qual consta essa autorização, embora datada de Fevereiro de 2006, sabendo-se que as obras ocorreram em 2005. No entanto perante este documento ficaram dúvidas ao Tribunal que previamente essa
autorização ainda que não formalizada não tivesse ocorrido, razão pela qual firmou por não provado o artigo 13° da Base Instrutória.

Do depoimento da testemunha Oliveira …… o empreiteiro que por conta da Ré executava as obras na cave direita, resultou que as obras se iniciaram no dia anterior ao da derrocada o que em face da prova documental junta aos autos, não oferece dúvidas ter ocorrido no dia 12.2.2008 inicialmente com o abatimento do pavimento da cave direita e já na madrugada do dia 13.2.2008 com a abatimento do piso da cave esquerda (artigo 11° da Base Instrutória), mais resultando das declarações de parte da legal representante da Ré que estas obras também não tinham projecto e licença camarária (art° 12° da Base Instrutória).

De igual modo do depoimento de Oliveira ……, resultou que estavam a proceder à demolição de paredes quando ocorreu a primeira derrocada (artigos 14° e 17° da Base Instrutória). No entanto, negou Oliveira …. que estivesse a fazer uso de marretas e nenhuma outra testemunha relatou o uso de tal equipamento, sendo que a única testemunha que aludiu a este instrumento foi a testemunha José …….., mas que o fez apenas referindo ter "ouvido o barulhos de marreta", nada tendo visto, o que nestes termos se mostrou insuficiente para firmar a convicção do Tribunal quanto ao efectivo uso de marretas e nestes termos se firmou por não provado o seu uso (artigo 14° da Base Instrutória).

Já que no respeita ao artigo 15° da Base Instrutória, ante os depoimentos quer de Oliveira ……, quer de José ……., ficaram dúvidas ao Tribunal se o uso do equipamento usado para a demolição das paredes, por si provocou o estremecimento do prédio, como o referido por José ……, ou se o estremecer do prédio sentido quer por José …….., quer por Oliveira …., foi o estremecer que imediatamente antecedeu a derrocada do pavimento da cave direita, o que foi referido por Oliveira ….. que referiu que começou a ouvir uns ruídos e uma vibração do solo, só tendo tempo para sair do local com o pessoal pelas janelas da fracção.

Quanto às causas da derrocada, facto a que se reportam os artigos 16°, 25°, 29° e 30° da Base Instrutória: Pois a este respeito a prova não foi suficientemente segura para além do que se firmou provado na resposta dada ao artigo 16° da Base Instrutória, firmando-se a este respeito a convicção do Tribunal na perícia, v.g., na resposta dada ao quesito 16°, completada com os esclarecimentos dos peritos em audiência de julgamento.

Com efeito, se é bem verdade que resultou provado que a Ré na execução das obras na cave esquerda (a fracção dos autores), eliminou paredes resistentes da fracção, nem os peritos, nem mesmo o LNEC atribuíram tal facto como causa directa da derrocada, admitindo-a tão só como possível, mas à semelhança do que atribuíram a outras possíveis causas, ou como referiram os peritos do Tribunal e dos Autores, em audiência, como uma das causas que conjuntamente com outras poderá ter contribuído para a derrocada, sendo que neste aspecto no seu relatório, subscrito por todos os peritos e sobre este concreto quesito a resposta dos peritos foi e passamos a citar: " A derrocada de acordo com todos os Autos Camarários e Relatórios do LNEC, teve o seu início na fracção direita onde decorriam as obras, numa zona descrita como a mais sensível do edifício, devido à esbelteza dos muretes de apoio da laje e a desagregação dos blocos que se encontravam na sua base (sublinhado nosso) (...).

É também referido que o colapso do pavimento se ficou a dever ao colapso do sistema  de  apoio  da  laje,  tendo  iniciado  na zona mais sensível da estrutura situada na fracção direita. (...) Diz
Diz ainda o mesmo relatório que os factores que contribuíram para a ocorrência poderão ser de diversa ordem e que estarão relacionados com as várias debilidades do edifício ao nível estrutural, desde a sua origem (sublinhado nosso). Diz ainda o relatório que as sobrecargas observadas na fracção do piso superior e as obras de alteração dos compartimentos da cave direita, apesar de terem alterado o equilíbrio da estrutura, não são por si só indutoras do mecanismo do colapso (sublinhado nosso).". Os peritos no seu relatório remetem em larga medida para o relatório do LNEC (junto com o relatório pericial a fls. 331 a 343), elaborado na sequencia da perícia pedida pela Câmara Municipal de Almada, não sindicando, nem colocando em causa os considerandos e conclusões ali referidas, e mesmo perante os esclarecimentos prestados em audiência de julgamento, em momento algum foram capazes de forma segura e assertiva atribuir às obras levadas a cabo pela Ré, a causa da derrocada.

O prédio em causa antes do início destas obras de Fevereiro de 2008, já indiciava problemas de estabilidade estrutural, facto que o Tribunal ficou absolutamente convicto, quer porque a tal fizeram referência os peritos no seu relatório, nomeadamente, na resposta dada ao quesito 16°, quer pelo depoimento da testemunha Oliveira ….., que foi claro em referir que a cave direita apresentava fissuras enormes que pela sua configuração alertavam para problemas estruturais o que o levou a equacionar não executar a obra, depoimento que foi assim de encontro ao já mencionado na perícia, fissuras essas que se mostram documentadas nas fotos de fls. 328 e 328 v°. No entanto, por apurar ficaram se as efectivas causas desta fragilidade estrutural do prédio se prendem com a eliminação das paredes, porquanto pese embora os peritos não afastem que a supressão das paredes resistentes na cave esquerda (a fracção dos autores) possa ter contribuído para essa fragilidade, não a apontam para a causa directa ou principal, à semelhança da conclusão alcançada pelos peritos do LNEC que referem que os dados não apontam para que esta tenha sido a causa. Já quanto às obras que se haviam iniciado na cave direita, também quanto a elas a opinião dos peritos não foi no sentido de ter sido esta a causa principal responsável pelo colapso, apesar de admitirem que  para  tal  possa  ter  contribuído,  admitindo  os  peritos  do  LNEC  que a
colocação de uma palete de sacos de cimento, sobre o pavimento que veio a colapsar, possa ter contribuído como mecanismo de colapso.

Quanto às obras levadas a cabo pela interveniente principal e que a perita da Ré, em audiência de julgamento, considerou ser uma causa da derrocada, entendimento que não deixou exarado no relatório, facto que o Tribunal manifestamente não pode deixar de relevar, pois não resultou prova pericial e testemunhal de que tais obras tenham contribuído para a instabilidade estrutural do prédio e que motivou a derrocada. Com efeito, se não ficaram duvidas ao Tribunal ante o relatório pericial quanto à execução das caves e quanto ao tipo de equipamento usado na sua execução, relatório que foi também sustentado pelo depoimento da testemunha André …….— engenheiro da interveniente que fez o projecto das escavações, relatório pericial e depoimento testemunhal que firmou a convicção do Tribunal quanto aos artigos 26°, 27°, 29°, 31° e 32° da Base Instrutória, já não resultou da prova e não obstante os esclarecimentos da senhora perita indicada pela Ré, que tais obras de escavação tenham provocado a compactação ou a descompressão do terreno e por via dela a destabilização do prédio onde ocorreu a derrocada (artigos 29° e 30° da Base Instrutória), nem que tal construção tenha sido a causa da derrocada (artigo 25° da Base Instrutória). Com efeito se no relatório do LNEC é apontada a necessidade de melhor averiguar em que medida tal construção poderá ter sido a causa e daí ter concluído pela necessidade de um estudo geotécnico, elaborado esse estudo (cfr. fls. 339 a 343) e que foi valorado pelos senhores peritos, os mesmos acabaram por concluir nos seguintes termos e passamos a citar parte da resposta dada ao quesito 25°: " Em suma, vários factores terão contribuído para o colapso das fundações, não sendo possível atribuir uma responsabilidade directa ou exclusiva à construção das 4 caves no terreno adjacente".

Foram indicadas para responder à matéria aqui em apreciação, todas as testemunhas arroladas quer pelos autores, quer pela ré  ( José …...,  Maria …….., Raul……, Manuel ……, Oliveira ……, Veiga ……, Paulo …….., Miguel ………, André ……, Joaquim ……. e Augusto …....

Prestaram esclarecimentos, os peritos, Arqº Miguel …… (Perito indicado pelos Autores), Engª Lúcia ….. (Perita nomeada pelo Tribunal), e Engª Marta ….. (Perita indicada pela ré).

Prestaram depoimentos de parte os autores, Alda …… e Alberto ……. e a representante legal da ré, Elizabete……, foi ouvida em declarações de parte.

Defende, em suma, a apelante, que o Tribunal a quo fez uma errada apreciação da prova, no que concerne aos esclarecimentos prestados em audiência pelos peritos, nomeadamente pela perita Marta ……., aos depoimentos das testemunhas, Oliveira …… (Nºs 14, 17, 18, 19), Maria …… (Nº 17), Manuel ……(Nºs 27, 28), bem como dos Relatórios, quer dos peritos, quer do LNEC, (Nº 14, 17, 20, 27), posto que os aludidos Factos dados como Provados deveriam ser considerados não provados e os Factos Não provados 6, 7 e 8, deveriam ser considerados provados.

Importa, então, analisar os depoimentos prestados em audiência, indicados pelo recorrente como relevantes, a propósito dos artigos da Base Instrutória aqui em causa, em confronto com a restante prova produzida, designadamente pericial e documental, para verificar se tais quesitos deveriam merecer resposta em consonância com o preconizado pela apelante, ou se, ao invés, as respostas dadas aos mesmos não merecem censura, atenta a fundamentação aduzida pela Exma. Juíza do Tribunal a quo.

De todo o modo, é relevante relembrar, desde já, que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da prova livre, segundo o qual, o tribunal aprecia livremente as provas e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção que tenha firmado acerca de cada facto controvertido, salvo se a Lei exigir, para a existência ou prova do facto jurídico, qualquer formalidade especial.

De harmonia com este princípio, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, apenas cedendo este princípio perante situações de prova legal, nomeadamente nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, documentos particulares e por presunções legais.

Nos termos do disposto, especificamente, no artigo 396.º do C.C. e do princípio geral enunciado no artigo 607º, nº 5 do NCPC (artigo 655.º do anterior CPC) o depoimento testemunhal é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência – v. sobre o conteúdo e limites deste princípio, MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, A livre apreciação da prova em processo Civil, Scientia Iuridica, tomo XXXIII (1984), 115 e seg.

A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada – cfr. a este propósito ANTUNES VARELA, MIGUEL BEZERRA E SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 435-436.
                             
É certo que, com a prova de um facto, não se pode obter a absoluta certeza da verificação desse facto, atenta a precariedade dos meios de conhecimento da realidade. Mas, para convencer o julgador, em face das circunstâncias concretas, e das regras de experiência, basta um elevado grau da sua veracidade ou, ao menos, que essa realidade seja mais provável que a ausência dela.
 
Ademais, há que considerar que a reapreciação da matéria de facto visa apreciar pontos concretos da matéria de facto, por regra, com base em determinados depoimentos que são indicados pelo recorrente.

Porém, a convicção probatória, sendo um processo intuitivo que assenta na totalidade da prova, implica a valoração de todo o acervo probatório a que o tribunal recorrido teve acesso – v. neste sentido, Ac. STJ de 24.01.2012 (Pº 1156/2002.L1.S1).
                   
No caso vertente, e face ao teor dos depoimentos das testemunhas ouvidas, globalmente analisado e ponderado, e tendo em conta as considerações antes aduzidas, há que ponderar se há que alterar a matéria de facto dada como provada pela 1ª instância, no que concerne aos Nºs 14, 17, 18, 19 e 20 e a factualidade considerado como não provada (Nºs. 6, 7 e 8) tendo igualmente presente a prova pericial, os esclarecimentos dos peritos prestados em audiência e, designadamente, os depoimentos das testemunhas José ……, Oliveira ……., André ….., sendo certo que o depoimento da testemunha Maria ….. nenhum relevo teve para a matéria aqui em apreciação.

*

Com efeito, a testemunha José …….., empreiteiro que deu início às obras de remodelação da cave esquerda, antes de os autores terem ido para lá morar, sem no entanto as ter acompanhado  até  ao seu  final, confirmou que tais obras consistiram em demolir paredes e construir outras, por forma a aproveitar um esconso que estava desaproveitado e tornar a casa mais ampla. Igualmente foi mudada a disposição da casa, tendo sido alterado o local onde se situavam, quer a casa de banho, quer a cozinha. Admitiu que para proceder a essas obras seria necessária licença camarária, desconhecendo se havia autorização para a efectivação das obras. No que concerne à diminuição da resistência do prédio, por virtude das obras realizadas, apenas referiu que as mesmas eram acompanhadas por um engenheiro da ré e que este mandou colocar travamento em ferro em várias partes da casa.

*

A testemunha, Oliveira ……, empreiteiro da construção civil que deu início aos trabalhos de remodelação da cave direita e que ali se encontrava com outros operários da construção civil no momento em que se deu a primeira derrocada, tendo saído pela janela.

Esta testemunha admitiu que iria efectuar naquela cave obras de remodelação, para proceder a ampliação do espaço, o que implicaria a demolição de paredes e mudança do local onde se encontrava a cozinha. Referiu inicialmente que antes da derrocada, apenas haviam retirado azulejos e pavimento da sala, se preparavam para começar a demolir a parede da sala e que apenas utilizaram marreta e escopo.              

Muito embora esta testemunha haja efectuado um depoimento muito contido e excessivamente cauteloso, por forma a fazer crer que ainda não havia iniciado qualquer demolição - no que não foi convincente - acabou por admitiu, em momento posterior, que devido às fissuras diagonais já existentes nas paredes, e visualizadas nas fotografias de fls. 328, com as quais foi confrontado, concedendo que a situação ali existente era preocupante, afirmou que teve reservas em executar a obra, e que contactara o arquitecto que lhe recomendou a utilização de extensores  para a  colocação de vigas de ferro, para escoramento do tecto ao chão (a visualização de extensores no buraco existente
em consequência do colapso foi admitido pelo testemunha Miguel ……, engenheiro civil da Câmara Municipal o qual compareceu no local, após as derrocadas, para aferir da segurança do edifício).

Mais referiu a testemunha Oliveira …… que, na altura temeu que o andar de cima pudesse desabar, mas não a cave onde estava a trabalhar, salientando igualmente que foi colocado no chão da sala o material necessário para efectuar o trabalho de remodelação, incluindo os sacos de cimento, perto de uma palete, esclarecendo depois que cada palete continha 25 sacos e cada saco 40 Kg. Referiu ainda que verificou depois que o chão não era “firme”, existindo um vão e que assim procedeu por ser uma cave, pois se estivesse a trabalhar no 1º andar, por exemplo, já não colocaria todo aquele cimento dentro de casa.

Salientou também que esteve no local até à chegada dos técnicos da Câmara Municipal e soube que, no dia seguinte, havia ocorrido a derrocada na cave ao lado.

*

Os peritos ….., nos esclarecimentos prestados em audiência, confirmando no essencial o referido no relatório pericial apresentado, discorreram sobre o somatório de circunstâncias que poderão ter dado origem à derrocada.

Admitiram, todavia, os peritos, que a estrutura do edifício era muito antiga, com debilidades. As paredes eram suportadas por muretes antigos e que as obras realizadas nas caves, designadamente na esquerda, introduziram debilidades, fragilizando o prédio e que as obras na cave direita acabaram por contribuir para a derrocada.
                   
Admitiram também que à data da construção dos edifícios como o que está em causa nos autos, as paredes internas tinham uma função estrutural, ao contrário da construção mais recente em que existem vigas que não existiam naquelas construções e as paredes praticamente só servem de divisórias, pelo que retirando paredes internas o prédio fica descompensado. A circunstância de o edifício ser constituído por paredes resistentes e ter havido supressão de paredes resistentes na cave esquerda foi evidenciada no relatório do LNEC, a fls. 333vº e 335vº.

Esclareceram ainda os peritos que o prédio teria sido construído em 1953 e que, provavelmente, nos anos setenta terão sido construídas duas caves, alterando-se o prédio em profundidade e que, aquando da remodelação da cave esquerda, foi aproveitado um esconso que deveria servir de caixa de ar e que passou a fazer parte da habitação. Com a própria abertura de esgotos, com canos mais rígidos e efectuado de forma transversal a passar pelos muretes tão pouco foi feliz, tendo concluído, um dos peritos, que aquele espaço nunca se deveria destinar a apartamentos.

Salientaram ainda que não foi efectuado um estudo prévio do solo antes de se proceder à remodelação das caves e que, no parecer efectuado pelo LNEC, não foi observado o plano de instrumentação, documento que mostra a evolução do terreno e a forma como ele se comporta no decurso de uma obra, não obstante a perita indicada pela ré haja defendido a contribuição da construção levada a efeito pela interveniente principal para o colapso das caves, posição que, no entanto, não resulta do relatório pericial por todos subscrito.

*

A testemunha André ……., engenheiro civil que elaborou   o   projecto de escavação  e contenção periférica do edifício construído pela interveniente principal e que acompanhou a obra durante a escavação e contenção periférica até à construção das fundações, prestou um depoimento relevante e esclarecedor.

Referiu que inicialmente são feitas sondagens para saber a estrutura do solo. Os instrumentos são colocados antes da obra começar e os mesmos vão dizer como o solo se vai comportando, admitindo que há sempre descompressão quando se faz uma escavação, o desejável é que seja pequena.

Esclareceu o modo de funcionamento do plano de instrumentação e observação que fazia parte do projecto e referiu que mesmo quando a escavação estava na cota mais baixa os resultados da movimentação das terras sempre estiveram dentro dos valores habituais (na ordem de 10 a 15 mm), compatíveis com o bom comportamento e com as estruturas e infra-estruturas vizinhas.

Confrontado com o documento de fls. 345 a 356, explicitou pormenorizadamente, e de uma forma compreensível e convincente, o que dele consta e o que foi observado no decorrer das obras de escavação e explicou as razões da irrelevância do alvo 6 ter deixado de proceder à leitura, pois o alvo 5 estava numa zona mais exposta, e tinha, por isso, formações muito superiores ao do alvo 6.

Mais esclareceu que o muro de contenção foi quase diariamente sindicado e que a obra sempre esteve controlada, nunca excedendo os limites definidos no projecto. Tudo decorreu como previsto e nunca houve necessidade de fazer qualquer reforço ou alteração da obra.

Esclareceu ainda que a queda de um muro que terá ocorrido posteriormente, não teve qualquer ligação com o facto de o alvo 6 ter deixado  de  fazer  leituras,  posto que o muro se encontrava no alçado do lado direito, numa zona da obra distinta. Tal queda
nada teve a ver com a construção do edifício em que teve participação, pois se assim fosse o problema teria ocorrido no momento em que a escavação foi mais profunda e os quocientes de segurança são mais baixos, o que não sucedeu.

Salientou, finalmente, que no projecto do edifício foi tida em consideração o que estava à volta e o impacto que o prédio que foi construído teria em relação aos prédios que estavam à volta e que a escavação de 4 caves no edifício não tinha impacto nas construções existentes em volta que remontavam a 1953, porque o projecto foi bem concebido e a obra bem executada, alertando para o facto de muito meses depois das obras de escavação do prédio, que acompanhou, cerca de 17 ou 18 meses depois, é que se terá dado o colapso das caves em causa nos autos.

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Assim, há que concluir que:

Ø Os Factos Provados nºs 14, 17, 18, 19 e 20, resultaram indubitavelmente das respostas dadas pelos peritos no seu relatório de peritagem, e dos esclarecimentos prestados em audiência. Foram igualmente relevantes os depoimentos das testemunhas José …… e Oliveira ……  (este apreciado criticamente), os quais, no essencial, acabaram por complementar o apuramento efectuado pelos peritos com apoio no relatório do LNEC, pese embora neste se levantem várias hipóteses que poderão ter confluído para a derrocada, não deixando de ter particular relevância as debilidades do edifício ao nível estrutural e as obras de alteração nos compartimentos da cave.

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Ø Os Factos Provados nºs 27 e 28 resultaram da ponderação, não só do depoimento da testemunha Manuel ….., referido pela apelante que, na verdade, foi vago quanto ao bens danificados e respectivo valor, mas também do credível e relevante depoimento da testemunha Paulo ….. que referiu alguns bens existentes no fracção dos autores, salientando ainda, a marca da televisão que os autores tinham no apartamento e que ficou danificada, conhecida pelo seu elevado custo e as peças de colecção, algumas da “Vista Alegre” ali existentes. Mais tendo salientado que a estimativa de € 10.000,00 para a globalidade dos bens danificados, em consequência da derrocada, estaria sobrevalorizado. Foi igualmente tido em consideração o relatório dos peritos que verificaram no local que, entre os escombros, existiam vários equipamentos danificados. É verdade que nenhuma das testemunhas aludiu expressamente a electrodomésticos danificados, pelo que quanto a estes se procederá à sua eliminação.

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Ø No que concerne aos factos não provados nºs 6, 7 e 8, os mesmos não podem deixar de merecer a resposta negativa que lhes foi dada pela 1ª instância, como decorre da análise do relatório dos peritos no qual se concluiu, tendo em consideração o próprio relatório do LNEC que, em resultado da recolha de amostras, o terreno não se revela susceptível a vibrações e que os resultados registados pela instrumentação revelavam descompressão dos terrenos limítrofes dentro dos parâmetros estabelecidos no projecto. Acresce que para se considerar não provada tal factualidade foi ainda muito relevante o depoimento, rigoroso e objectivo, prestado pela testemunha André ……, e que mereceu inteira credibilidade.

De resto, fazendo apelo ao disposto no artigo 346º do Código Civil e, sobretudo, ao que decorre do artigo 414º do NCPC (tal como já sucedia com o artigo 516º do revogado CPC) a dúvida sobre a realidade dum facto resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita, pelo que sempre se teria de concluir, que não poderia ser dada como provada tal matéria propugnada pela ré/apelante, na sua alegação de recurso.

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Ø Já no que concerne ao Facto Provado nº 33 tem, efectivamente, razão a apelante, visto que nenhuma prova testemunhal sobre ele foi produzida, nem resulta do relatório pericial qualquer elemento sobre o qual se possa concluir por uma resposta positiva ao quesito 31º da Base Instrutória. E, muito embora na motivação da decisão de facto, se mencione que tal decorreu do depoimento da testemunha André ……, o mesmo nada referiu a respeito da concreta situação geográfica entre o edifício, cujo projecto de escavação elaborou e o prédio vizinho onde ocorreram as derrocadas, podendo apenas concluir-se que um se situa nas traseiras do outro.

Será, portanto, eliminado do elenco dos Factos Provados, o Nº 33 que correspondia à matéria constante do artigo 31º da Base Instrutória.

Entende-se, em consequência, que nada permite afastar a convicção criada no espírito do julgador do tribunal recorrido, convicção essa que tão somente é merecedora de reparo, quanto à matéria ínsita no Nº 33 dos Factos Provados, a cuja eliminação se procedeu, bem como à eliminação da expressão “electrodomésticos” no Nº 27 dos Factos Provados, sendo no mais perfeitamente adequada à prova produzida, quer no que concerne aos demais factos dados como provados, quer perante a ausência de prova inequívoca para incluir nos Factos Provados, a matéria propugnada pela réu/apelante na sua alegação de recurso.

Será, portanto, de manter a matéria de facto provada tal mo foi decidida na 1ª instância, salvo no que concerne ao Facto Provado Nº 33 que será eliminado, passando o Facto Nº 27 a ter a seguinte redacção: A derrocada e colapso da fracção dos autores danificou vários bens, nomeadamente, móveis, tapetes, candeeiros e loiças”.

Improcede, por conseguinte, tudo o que, em adverso, consta da alegação de recurso da ré/apelante (CONCLUSÕES 1ª a 28ª ).

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iii. DA SUBSUNÇÃO JURÍDICA FACE À MATÉRIA APURADA E À PTETENSÃO FORMULADA PROPRETENSÃO FORMULADA PELOS AUTORES

Insurge-se a ré, quanto à sentença recorrida, que aplicou ao caso em apreciação o disposto no artigo 492º do Código Civil, por entender, em suma, não ser o mesmo aplicável ao caso em apreço, não podendo ser responsabilizada, nos termos e para os efeito do aludido normativo, porquanto não pode a ré ser qualificada como “dona de obra”, como também não é possível imputar-lhe qualquer culpa sobre o colapso da fracção pertencente aos autores/recorridos.

A responsabilidade civil por facto ilícito, invocada subsidiariamente pelos autores na sua petição inicial, depende da verificação simultânea de vários pressupostos. É, assim, necessário que exista um facto voluntário ilícito imputável ao lesante. Exige-se ainda que dessa violação sobrevenha dano e, que entre o facto praticado pelo lesante e o dano sofrido se verifique nexo de causalidade, de modo a poder afirmar-se que o dano resulta da violação.

A ilicitude, enquanto pressuposto da responsabilidade civil por facto ilícito, consiste na infracção de um dever jurídico. Indicam-se, no nº 1 do artigo 483º do Código Civil, duas formas essenciais de ilicitude. Na primeira vertente, a violação de um direito subjectivo de outrem; na segunda vertente, a violação de lei tendente à protecção de interesses alheios.


Para que o facto ilícito seja gerador de responsabilidade civil é necessário que o agente tenha assumido uma conduta culposa, que seja merecedora de reprovação ou censura em face do direito constituído.

Agir com culpa, como esclarece ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. I, 3ª ed.,  Almedina, 463 e ss., significa actuar em termos de a conduta do agente merecer a reprovação ou censura do direito, sendo que a conduta do lesante é reprovável, quando, pela sua capacidade e em face das circunstâncias concretas da situação, se concluir que ele podia e devia ter agido de outro modo.

Actua com culpa, por acto praticado por acção ou omissão, quem omite o dever de diligência ou do cuidado que lhe era exigível, envolvendo, as vertentes consciente e inconsciente. No primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua não verificação; na segunda vertente, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não previu a realização do facto ilícito como possível, podendo prevê-la se, como se refere no Ac. STJ de 08.03.2007 (Pº 07B566), acessível no sítio
www.dgsi.pt, nisso concentrasse a sua inteligência e vontade.

Para que o facto ilícito e culposo seja gerador de responsabilidade civil é ainda necessário que exista um nexo causal entre o facto praticado pelo agente e o dano.

Acolheu o Código Civil nesta matéria, no artigo 563º, a doutrina da causalidade adequada, segundo a qual a causa juridicamente relevante de um dano será aquela que, em abstracto, se mostre adequada à produção desse dano, segundo as regras da experiência comum ou conhecidas do agente.


É consabido que na responsabilidade extracontratual incumbe ao lesado provar a culpa do autor da lesão, nos termos dos artigos 487º, nº 1 e 342º, nº 1, ambos do Código Civil, salvo existindo presunção especial de culpa, já que a obrigação de indemnizar, independentemente de culpa, só existe nos casos especificados na lei - v. nº 2 do artigo 483º do Código Civil.


Tais situações são precisamente as que resultam do disposto nos artigos 492º e 493º, ambos do Código Civil, tendo a sentença recorrida considerado aplicável ao caso vertente o primeiro dos apontados normativos.

Estatui-se no aludido artigo 492º do Código Civil que:
1. O proprietário ou possuidor de edifício ou de outra obra que ruir, no todo ou em parte, por vício de construção ou defeito de conservação, responde pelos danos causados, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que, mesmo com a diligência devida, se não teriam evitado os danos.
2. A pessoa obrigada, por lei ou negócio jurídico, a conservar o edifício ou obra responde, em lugar do proprietário ou possuidor, quando os danos forem devidos exclusivamente a defeito de conservação.

Preceitua, por outro lado, o artigo 493º do mesmo diploma que:
1. Quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar, e bem assim quem tiver assumido o encargo da vigilância de quaisquer animais, responde pelos danos que a coisa ou os animais causarem, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua.
2. Quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir.

Ambos os preceitos - artigos 492º e 493º do Código Civil - contemplam presunções de culpa, e não responsabilidade objectiva, quer de quem tendo a seu cargo algum edifício ou obra ela vier a originar danos, causados por defeito de construção ou de conservação, quer de quem exerce actividade perigosa.

Porém o seu âmbito de aplicação nem sempre se mostra bem delimitado na doutrina e na jurisprudência.

É que, no artigo 493.º, n.º 1, do CC, não se responsabiliza o proprietário, mas sim “quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel, com o dever de a vigiar”.

Como esclarece ANTUNES VARELA, CC Anotado, I.º Vol., 3.ª ed., 468-469, Pode tratar-se do proprietário da coisa ou animal; mas não tem necessariamente de ser o proprietário. É a pessoa que tem as coisas ou animais à sua guarda quem deve tomar as providências indispensáveis para evitar a lesão. Pode tratar-se de um comodatário, do depositário, do credor pignoratício, etc. (…).

O estatuído no artigo 493º do CC está relacionado com as actividades perigosas, como refere ANTUNES VARELA, ob. cit. loc. cit. Visa este preceito e respectiva presunção, tanto o n.º 2, que fala nas actividades perigosas por natureza, como o n.º 1, que abrange as actividades perigosas em geral.
                   
Salienta JACINTO RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código Civil, vol. II, 292, a propósito do artigo 493º do C.C. "O nº 2 contempla um caso de inversão do ónus de prova. E, a exclusão da responsabilidade não resulta aqui da demonstração da normal diligência do bonus pater familias; é necessário que se alegue e prove terem sido adoptadas as precauções particulares que a técnica respectiva indicar como idóneas a prevenir os resultados danosos de actividade intrinsecamente perigosa, ou a perigosidade dos meios, principal ou acessoriamente, utilizados".

A perigosidade a que alude o artigo 493º, nº2, do Código Civil é, pois, uma perigosidade intrínseca da actividade exercida, quer pela sua natureza, quer pelos meios utilizados, perigosidade que deve ser aferida a priori e  não  em  função  dos  resultados  danosos,  em  caso  de  acidente, muito embora a magnitude destes possa evidenciar o grau de perigosidade da actividade ou risco dessa actividade – v. Ac. STJ de  29.04.2008 (Pº 08A867), acessível na Internet, no sítio www.dgsi.pt.

E, muito embora a lei não diga o que se deve entender por uma actividade perigosa, apenas admitindo, genericamente, como acima ficou dito, que a perigosidade deriva da própria natureza da actividade ou da natureza dos meios utilizados, é manifesto que tal preceito, ainda que por recurso ao seu nº 2, não se poderá aplicar
in casu, já que, como é entendimento jurisprudencial, as actividades ligadas à construção civil não são, em si mesmo, perigosas – v. título meramente exemplificativo, Ac. STJ de 13.11.2012 (Pº 777/05.7TBTVD.L1.S1), acessível no citado sítio da Internet.

No caso vertente, ficou provado que, em 2005, a ré procedeu à alteração e remodelação da cave esquerda de que era proprietária, na Rua ……… e que, em 11.04.2006, vendeu tal fracção aos autores – v. Nºs 1 e 2 da Fundamentação de Facto.

Tais obras consistiram na ampliação da fracção em mais 33% do espaço inicialmente habitável, deslocando para um esconso aí existente e até então inacessível e não habitável no projecto inicial de construção, a casa de banho e a cozinha da fracção, tendo procedido ainda à alteração da fachada posterior da fracção, não tendo tal obra sido previamente autorizada pela Câmara Municipal de Almada – v. Nºs 3 a 5, 9, 11 a 13 da Fundamentação de Facto.
           
Os projectos atinentes às obras realizadas em 2005 apenas foram submetidos a aprovação camarária em momento posterior à sua conclusão, ou seja, em 2007 – v. Nºs 10 e 15 da Fundamentação de Facto e Doc. fls. 81.

Com a realização das obras levadas a cabo em 2005, a ré suprimiu da fracção em causa paredes resistentes – v. Nº 14 da Fundamentação de Facto.

Sucede que pouco tempo depois da compra da fracção em causa, pelos autores, começaram a aparecer fendas que os mesmos comunicaram à ré e, em Janeiro de 2007, foi denunciado pelos Autores junto da Ré, a existência de uma "enorme fissura na parede exterior da arrecadação"  – v. Nºs 7 e 16 da Fundamentação de Facto.

E, em 11.02.2008, a ré, igualmente sem projecto e licença camarária, deu início a obras de remodelação da fracção correspondente à cave direita do mesmo prédio onde se situa a fracção em causa nestes autos e, no dia 12.02.2008, quando estavam a inicial os trabalhos de demolição de paredes ocorreu uma derrocada que teve o seu início na fracção onde decorriam as obras, devido à esbelteza dos muretes de apoio da laje e a desagregação dos blocos que se encontravam na sua base e que se deveu ao colapso do sistema de apoio da laje, resultante da conjugação de factores de diversa ordem relacionadas com as várias debilidades do edifício ao nível estrutural, com afundamento do piso da fracção correspondente à cave direita, colapsando horas depois, ma madrugado do dia seguinte, o piso da sala da fracção pertencente aos autores, o que motivou a interdição de todas as fracções do prédio, tornando-o inabitável – v. Nºs 17 a 24 da Fundamentação de Facto.

Ora, para funcionar a presunção de culpa do artigo 492.º do Código Civil é necessário provar-se que a “ruína”, total ou parcial, decorre de vício de construção ou de defeito de conservação.

A presunção apenas dispensa a prova do facto presumido (a culpa), mas já não a do facto base que, no caso do artigo 492.º CC, é o vício de construção ou defeito de conservação. O lesado apenas está dispensado de provar a culpa, mas não de provar o vício de construção ou de conservação.

A questão do ónus de prova da ilicitude na situação caracterizada no artigo 492º do Código Civil – consubstanciada no vício de construção ou defeito de conservação - não tem sido inteiramente pacífica na doutrina e na jurisprudência.

Para a maioria da jurisprudência do STJ, impõe-se ao lesado/autor a prova do vício de construção ou do defeito de conservação – v. a título meramente exemplificativo, Acs do S.T.J. de 06.02.1996, C.J./STJ, Ano IV, Tomo I, 77, de 22.02.2005 (Pº 1789/05), de 09.06.2005 (Pº 688/05), de 10-1-2006 (Pº 3241/05), e de 11/11/2010 (Pº 7848/05.8TBCSC.L1.S1), todos acessível no supra mencionado sítio da Internet.

Todavia, e de acordo com os defensores desta tese, o vício de construção ou o defeito de conservação podem provar-se por todos os meios, com particular destaque para as presunções judiciais (artigo 351.º do Código Civil), já que conhecida a causa do dano, se concluirá se houve defeito de conservação – v. a propósito VAZ SERRA, Responsabilidade pelos Danos  Causados por Edifícios ou Outras Obras, BMJ n.º 88, 14 e 36 e ainda Ac. R.L de 29.11.2007 (Pº 8211/2007-8), acessível em www.dgsi.pt.

Defende, ao invés, outra tese, apoiada particularmente por
LUÍS MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, vol. I, 6.ª ed.,. 325, que salienta: «A posição de alguma doutrina seguida unanimemente pela jurisprudência é a de que a aplicação desta presunção de culpa depende da prova de que existia um vício de construção ou um defeito de conservação no edifício ou obra que ruiu, prova essa que, de acordo com as regras gerais, deveria ser realizada pelo lesado.

Discordamos, no entanto, salvo o devido respeito, dessa orientação, uma vez que fazer recair esta prova sobre o lesado equivale a retirar grande parte do alcance à presunção de culpa.
Salvo no caso de fenómenos extraordinários, como os terramotos, a ruína de um edifício ou obra é um facto que indicia só por si o incumprimento de deveres relativos à construção ou  conservação dos edifícios, não se justificando por isso que recaia sobre o
o lesado o ónus suplementar de demonstrar a forma como ocorreu esse incumprimento.

É antes o responsável pela construção ou conservação que deve genericamente demonstrar que não foi por sua culpa que ocorreu a ruína do edifício ou obra — nomeadamente pela prova da ausência de vícios de construção ou defeitos de conservação ou que os danos continuariam a verificar-se, ainda que não houvesse culpa sua.

Também para o Ac. STJ de 29.04.2008  (Pº 08A867), ao lesado apenas é exigível a prova do evento –
no caso em apreço seria o colapso das caves direita e esquerda – havendo que concluir pela culpa presumida, reportada a vício de construção (obras de remodelação nelas efectuadas), caso não se demonstre a existência de caso fortuito de força maior ou a culpa do lesado; e desde que, evidentemente, o responsável não tenha feito a prova de que não houve culpa sua.

Diz-se no aludido aresto que (…) Ruindo a obra, sem que se demonstre a existência de caso fortuito ou de força maior, ou culpa do lesado, não tendo o responsável feito a prova de que não houve culpa sua, ou que mesmo que tivesse adoptado a diligência devida o evento danoso teria ocorrido, há que concluir pela sua culpa presumida, reportada ou a vício de construção ou a defeito de conservação – v. também neste mesmo sentido Ac. R.C. de 09.11.2005 (Pº 2456/05), acessível em www.dgsi.pt.

As coisas, sobretudo imóveis e outras obras a que alude o artigo 492.º CC estão sujeitas a manutenção e são passíveis de causar dano, carecendo de vigilância com a inerente prevenção, através da sua atenta manutenção e conservação, a cargo do seu proprietário ou possuidor ou àquele que assumir por lei ou negócio jurídico tal obrigação, realizar as reparações que se imponham em cada momento para manter a coisa em condições de segurança, evitando que cause danos a terceiros.


No caso vertente, estando demonstrado que nas obras de remodelação levadas a cabo, em 2005, a ré suprimiu da cave esquerda, posteriormente vendida aos autores, paredes resistentes e que iria iniciar trabalhos semelhantes na cave direita, existindo já fissuras significativas nas fracções, forçoso é concluir pela existência de um vício de construção referente às obras realizadas nas caves, perante as debilidades do edifício ao nível estrutural, sendo certo que a ré não providenciou por indagar e prevenir tais problemas estruturais que o prédio apresentava e para os quais havia contribuído, agravando-os, face à forma como foram realizadas as obras efectuadas na fracção dos autores, com vista à sua remodelação.

Não provou a ré ter diligenciado pela correcta e adequada obra implementada na cave esquerda aqui em causa, tendo iniciado obras idênticas na cave direita sem que antes haja levado a cabo os pertinentes estudos que lhe permitissem apurar das reais debilidades que o prédio apresentava, ocorrendo, assim, vício de construção, o que corresponde ao preenchimento da base da presunção consagrada no artigo 492.º, n.º 1, CC, presumindo-se a sua culpa.

Mas, estando em causa uma presunção ilidível, como decorre do  nº 2  do  artigo 350.º do Código Civil, a mesma poderia ser afastada se tivesse provado que o colapso da cave direita e,

poucas horas depois, da cave esquerda adquirida pelos autores, à ré, não se deveu a culpa desta ou que, mesmo com a diligência devida – caso não tivessem sido removidas as paredes resistentes da fracção dos autores e não tivesse dado início a idênticas obras na cave direita - se não teriam evitado os colapsos ocorridos em ambas as caves.

Cabia, pois, à ré/apelante demonstrar que agiu com a diligência devida — e não o fez — apenas se exonerando de responsabilidade,  ao  abrigo  do  segmento final do artigo 492.º, n.º 1, CC, se demonstrasse que, ainda que tivesse actuado diligentemente, os danos teriam ocorrido da mesma forma.

Acresce que não logrou a ré fazer prova inequívoca, como o demonstra a factualidade dada como não provada, de que as derrocadas ocorridas no prédio aqui em causa foram ocasionadas pelas obras de escavação que terão tido lugar vários meses antes, aquando da construção de um prédio nas proximidades.
 
Com efeito, muito embora se haja provado que num terreno adjacente foi levada a cabo, pela interveniente principal, uma construção, na qual foram efectuadas escavações, com utilização de equipamento pesado que produz vibrações – v. Nºs 8, 29 a 32 da Fundamentação de Facto – a verdade é que não se provou a relevância dessas escavações na desestabilização do prédio onde se situa a fracção aqui em causa – v. Nºs 6 a 8 dos Factos Não Provados.

Não tendo a ré logrado afastar a presunção de culpa que sobre si impendia, responde pelos danos provocados com a derrocada ocorrida na fracção dos autores.

E, assim sendo, a apelação não poderá deixar de improceder, confirmando-se a sentença recorrida.

A apelante será responsável pelas custas respectivas nos termos do artigo 527º, nºs 1 e 2 do Novo Código de Processo.

***

IV. DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes desta ...ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Condena-se a apelante no pagamento das custas respectivas.


Lisboa, 28 de Maio de 2015

                                              
Ondina Carmo Alves - Relatora
Eduardo José Oliveira Azevedo    
Olindo dos Santos Geraldes