Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
320/08.6TBPTS-A.L1-8
Relator: FERREIRA DE ALMEIDA
Descritores: IMPUGNAÇÃO DE JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/05/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário: -  Constituindo objecto da acção a impugnação da escritura de justificação notarial, assim como da venda com base naquela efectuada, e consequente restituição de bem da herança, traduz aquela exercício de faculdade que a lei confere a qualquer herdeiro, ainda que desacompanhado dos demais.
- A circunstância de a sua procedência poder acarretar consequências, em termos de responsabilidade criminal, não implica tenham os réus, declarantes em escritura de justificação, interesse directo em contradizer na acção da respectiva impugnação, já que, em face de eventual acusação, será em sede penal que terão de deduzir a sua defesa.
-  Não se mostrando deduzido qualquer pedido contra tais réus, forçoso se torna concluir que nenhum prejuízo lhes advirá da procedência da acção e considerá-los parte ilegítima.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral:                Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa :


 
1.   M... e marido, M..., vieram propor, contra J..., M..., M... e A..., acção seguindo forma ordinária, distribuída ao Tribunal da comarca de Ponta do Sol, impugnando escritura de justificação notarial, na qual a 1ª R. declarou, e as demais RR. confirmaram, ser aquela dona e possuidora de prédio rústico, sito na freguesia e concelho da Calheta, assim como a venda com base naquela efectuada - e pedindo o reconhecimento do direito de propriedade da A. e consequente restituição do imóvel em causa.
      Contestaram as RR., arguindo, nomeadamente, a ilegitimidade dos AA., bem como das 2ª, 3ª e 4ª RR. - concluindo pela improcedência da acção.
    No despacho saneador, foi proferida decisão, considerando improcedentes as excepções invocadas.
   Inconformadas, daquela vieram as RR. interpor o presente recurso de apelação, cujas alegações terminaram com a formulação das seguintes conclusões :
-   Na escritura de justificação melhor identificada no art. 1º da p.i., a recorrente J... consta como justificante (tendo sido esta a adquirir o prédio em causa por usucapião, a registá-lo a seu favor e, posteriormente, a vendê-lo), enquanto as ora recorrentes M..., M... e A... constam como meras declarantes.
-   A lei não confunde os conceitos de justificante (que é o interessado que se afirma, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga - cfr. art. 89º do C.Notariado) e de declarantes (que têm um papel semelhante ao das testemunhas - cfr. arts. 83º, 84º e 96º do C.Notariado).
-  Ora, determina o art. 26º do C.P.Civil que "o réu é parte legitima quando tem interesse directo em contradizer", e o interesse em contradizer exprime-se "pelo prejuízo que dessa procedência advenha".
"Existe, pois, correspondência entre a legitimidade para intervir como justificante, para a justificação notarial e a legitimidade passiva para a acção de impugnação. Os que justificam são os que devem ser demandados (…).
  A legitimidade passiva advém do interesse directo em contradizer, o qual se exprime pelo prejuízo resultante da procedência da acção, sendo que na acção de impugnação de justificação notarial esse interesse radica no direito justificado, que pertence, seguramente, ao justificante e não aos declarantes.
  Aliás, só pode considerar-se que os declarantes (...) apenas são titulares de um interesse indirecto, reflexo ou derivado, que lhes retira legitimidade passiva para esta acção, tal como ela foi instaurada (...) como a não teriam para a justificação" -  cfr. ac. Rel. Porto, de 22/4/2010, Proc. 2391/06.0T.JVNF.P1.
-  As ora recorrentes M..., M... e A... não têm um interesse directo em contradizer a presente acção, pois da procedência desta acção não advirá para estas qualquer prejuízo, até porque contra estas não foi deduzido qualquer pedido concreto.
-  Nem sequer o facto de poderem advir consequências em termos de responsabilidade criminal para as ora recorrentes M..., M... e A... faz com que estas tenham um interesse directo em contradizer a presente acção, uma vez que é na acção penal que estas recorrentes terão um interesse directo em se opor às acusações que eventualmente lhes sejam deduzidas, face às consequências que nessa acção (e não nesta) poderão advir para as ditas recorrentes.
-  Acresce que a manutenção de M..., M... e A... na qualidade de demandadas nesta acção obsta a que estas prestem depoimento na qualidade de testemunhas de J..., face ao disposto no art. 617º do C.P.C.
-  Quando o depoimento destas é determinante para que a ora recorrente J... consiga provar os factos constantes da escritura de justificação em causa, assim como os factos constantes da sua contestação e, por esse facto, é pretensão da recorrente J... que M..., M... e A... prestem depoimento como suas testemunhas.
-  Assim sendo, o despacho saneador sob recurso coloca a recorrente Júlia em clara desvantagem relativamente aos AA. no que diz respeito ao exercício do seu direito de defesa, consubstanciando, assim, igualmente, uma violação do disposto no art. 3º-A  do C.P.C.
-  Por tudo quanto se disse, é de concluir que as recorrentes M..., M... e A... são partes ilegítimas na presente acção.
-   Por outro lado, M... e J... deixaram vários herdeiros, para além dos AA.
-  No entanto, não obstante os próprios recorridos admitirem que são diversos os herdeiros de M... e de J... e, bem assim, peticionarem ao Tribunal a quo que declare "que o prédio rústico acima identificado faz parte da Herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de M... e mulher J...” e que condene "os Réus a reconhecerem à Autora aquele direito de proprietária e a restituírem à herança o prédio com todos os frutos que produzia ou que existiam antes das ditas escrituras", a recorrida limita-se a interpor a acção apenas com o seu marido.
-  Ora, determina o art. 2091º do C.Civil que “os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros".
-  O caso sob análise não se enquadra no disposto nos arts. 2078º, 2088º a 2090º do C.Civil.
-  Com efeito, na presente acção não foi deduzido qualquer pedido de reconhecimento judicial da qualidade sucessória do herdeiro, pelo que, tendo em consideração os pedidos deduzidos pelos ora recorridos, o caso sob análise não se enquadra no disposto no art. 2078º do C.Civil, uma vez que estamos perante acção de reivindicação e não perante uma acção de petição da herança.
-  Do mesmo modo que a presente acção não se enquadra no disposto nos arts. 2088º a 2090º do C.Civil, quer porque nada tem que ver com "administrar os bens da herança, usar acções possessórias contra herdeiros ou terceiros, cobrar dívidas da herança, vender certo tipo de bens da herança e satisfazer alguns encargos", quer porque nenhum dos AA. é, nem invocou ser, cabeça-de-casal da herança deixada por óbito de M... e mulher J...
-  Também o disposto no art. 101º do C.Notariado não é suficiente para fundamentar a legitimidade activa dos recorridos, uma vez que estes não se limitam a impugnar a escritura de justificação em causa, ao peticionarem ao Tribunal recorrido que declare “que o prédio rústico acima identificado faz parte da herança ilíquida e indivisa deixada por óbito de M... e mulher J...” e que condene "os Réus a reconhecerem à Autora aquele direito de proprietária e a restituírem à herança o prédio com todos os frutos que produzia ou que existiam antes das ditas escrituras".
-  Assim, no presente caso, pretendendo os recorridos exercer direitos relativos a herança, os recorridos deveriam ter identificado todos os herdeiros de M... e de J... e, bem assim, todos esses herdeiros teriam de interpor em conjunto com os recorridos a presente acção, por se estar perante uma situação de litisconsórcio necessário legal, a que se referem o art. 2091º do C.Civil e o art. 28º do C.P.Civil.
-  Não o tendo feito, a falta dos demais herdeiros de M... e de J... é motivo de ilegitimidade dos ora recorridos nos presentes autos.
-  Quanto à questão da legitimidade activa dos recorridos, ocorreu, assim, no despacho saneador sob recurso um erro na determinação das normas aplicáveis, porquanto, ao invés de se aplicar o art. 100º do C. Notariado, os arts. 2075º a 2078º e os arts. 2087º a 2090º do C.Civil, deveriam ter sido aplicados pelo Tribunal recorrido o art. 2091º do C.Civil e o art. 28º do C.P.Civil.
-  Pelo que carece de fundamento o despacho saneador sob recurso que julgou improcedente a excepção de ilegitimidade das demandadas M..., M... e A... e julgou improcedente a excepção de ilegitimidade dos AA. em intervirem nos autos desacompanhados dos demais herdeiros de M... e de J...
-  Decidindo como decidiu, o despacho saneador sob recurso violou o disposto nos arts. 3º-A, 26°, 28°, todos do C.P.Civil e o art. 2091º do C.Civil.
-  Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em conformidade, ser revogado o despacho saneador ora recorrido, substituindo-se por outro que:
a) Julgue procedente a excepção de ilegitimidade dos recorridos por intervirem nos autos desacompanhados dos demais herdeiros de M... e de J... e, em consequência, absolva os demandados da instância.
b) Julgue procedente a excepção de ilegitimidade das ora recorrentes M..., M... e A... e, em consequência, absolva estas recorrentes da instância.
      Não foram apresentadas contra-alegações.
      Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

2.  Nos termos dos arts. 635º, nº4, e 639º, nº1, do C.P.Civil, o objecto do recurso acha-se delimitado pelas conclusões do recorrente. 
A questão a decidir centra-se, assim, na apreciação das invocadas excepções.
    Sustentam as RR., ora apelantes, a ilegitimidade dos AA. na acção, alegando que, por estarem em causa direitos relativos a herança indivisa, teria aquela, por força do disposto no art. 2091º do C.Civil, de ser proposta conjunta- mente por todos os herdeiros.
   Conforme, todavia, resulta do preceito invocado, aí se ressalva o procedimento previsto no art. 2078° do mesmo diploma - em cujos termos, sendo vários os herdeiros, qualquer deles tem legitimidade para pedir separadamente a totalidade dos bens em poder do demandado, sem que este possa opor-lhe que tais bens lhe não pertencem por inteiro.
Constituindo objecto da presente acção a impugnação da escritura de justificação notarial, assim como da venda com base naquela efectuada e consequente restituição de bem da aludida herança, não pode deixar de se entender traduzir a mesma exercício de faculdade que a lei confere a qualquer herdeiro, ainda que desacompanhado dos demais.
Como decidido, se terá, pois, de reconhecer aos AA., ora apelados, legitimidade para a propositura da acção - improcedendo, nesta parte, as alegações das apelantes.
Conclusão diversa se deverá retirar relativamente à arguida ilegitimidade das 2ª, 3ª e 4ª RR.
A invocada circunstância de a respectiva procedência poder acarretar consequências, em termos de responsabilidade criminal, não implica, com efeito, tenham aquelas, na presente acção, interesse directo em contradizer - já que,  em face de eventual acusação, será em sede penal que terão de deduzir a sua defesa.
Não se mostrando contra tais RR. aqui deduzido qualquer pedido, forçoso se torna, pois, concluir que nenhum prejuízo lhes advirá da procedência desta acção.
  Assim sendo, e em conformidade com o disposto no art. 30° (correspondente ao primitivo art. 26°) do C.P.Civil, se impõe, ao invés do decidido, considerar as mesmas parte ilegítima.

3.Pelo acima exposto, se acorda em, concedendo parcial provimento ao recurso, alterar a decisão recorrida e, julgando quanto a elas procedente a invocada excepção, absolver da instância as 2ª, 3ª e 4ª RR. - mantendo-se, na parte restante, o decidido.
       Custas por AA, e 1ª R., na proporção de 1/2 por cada qual.

5.3.2015


(Ferreira de Almeida - relator)

(Catarina Manso - 1ª adjunta)

(Alexandrina Branquinho - 2ª adjunta)