Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
866/11.9TBOER.L1-2
Relator: TIBÉRIO SILVA
Descritores: COMPRA E VENDA
ERRO
DOLO
DUPLA CAUSALIDADE
ANULABILIDADE
CADUCIDADE
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
SANEADOR-SENTENÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/14/2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NULIDADE DA DECISÃO
Sumário: 1. O erro é qualificado quando seja provocado por dolo relevante e o requisito específico de relevância do dolo é a dupla causalidade, verificando-se essa dupla causalidade quando o dolo seja causa do erro e este, por seu turno, seja determinante do negócio.
2. Apesar de se tratar de acto ilícito, nem sempre o dolo conduz à anulabilidade do negócio.
3. A obrigação de indemnizar é um efeito do dolo, autónomo relativamente à anulabilidade do negócio, surgindo mesmo quando não se verifiquem todos os requisitos do direito de anular ou este já tenha caducado.
4. Sendo ajustado afirmar que a apreciação da caducidade, quando se alegue a anulabilidade, pressupõe a determinação do vício que afecta o contrato, certo é que tal, por vezes, só se poderá concluir após a produção da prova e com a consideração de todos os elementos que possam pesar na contagem do respectivo prazo (como o não cumprimento do negócio, nos termos do nº2 do art. 287º do C. Civil, ou a pendência de processo-crime no qual ainda seria tempestiva a dedução de pedido de indemnização civil, com base no mesmo facto ilícito).
5. A falta de pagamento do preço não influi na perfeição do contrato de compra e venda, mas, se aquela persiste, não se pode dizer que o contrato esteja plenamente cumprido.
6. O conhecimento, no despacho saneador, do pedido ou de uma excepção peremptória não deve ocorrer quando continuem em aberto várias soluções de direito plausíveis e, nessa perspectiva, haja factos ainda controvertidos.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I
“A” intentou contra “B”, “C” e “D” e mulher, “E”, todos com os sinais dos autos, acção declarativa, com processo ordinário, pedindo:
- que se reconheça e declare a anulação da compra e venda da viatura de marca Mercedes, com o nº de matrícula 00-GZ-00, celebrada pelo Autor nas circunstâncias descritas nos artigos 12º a 48º da petição inicial;
- seja declarada nula a venda subsequente daquela viatura, feita ao Réu “D” nas circunstâncias descritas nos arts. 49º a 77º da petição;
- consequentemente, sejam declarados insubsistentes e, por isso, canceladas no registo todas as inscrições subsequentes à declaração negocial do Autor cuja anulação se impetra por esta via;
- sejam condenados os Réus a verem reconhecidas a anulação e nulidade acima peticionadas e a conformarem-se com as mesmas;
- consequentemente, sejam os Réus condenados a reconhecer o Autor como o legítimo proprietário da viatura identificada nos arts. 1º a 3º da petição;
- seja o R. “D” a, de imediato, restituir ao Autor a viatura e a respectiva documentação;
- sejam os RR. condenados solidariamente no pagamento ao Autor da indemnização que vier a ser liquidada em ulterior momento processual ou em execução de sentença pelos danos alegados nos arts. 106º a 112º da petição, que não puderam ser quantificados na data da sua apresentação;
- sejam os réus condenados solidariamente no pagamento ao Autor da quantia de €3.000,00 (três mil euros) a título de danos não patrimoniais.

O A. alegou, em resumo, que:
Em 2009, colocou à venda um veículo de sua propriedade, de marca Mercedes Benz, através do ““F””, na internet.
Na sequência desse anúncio foi contactado pelo Rei “B” – que, então, disse chamar-se “G” – que se mostrou interessado na compra da viatura.
O A. foi informado pelo dito Réu de que o veículo automóvel seria entregue a um tal “H”, seu amigo, que o representaria no negócio e entregaria ao A. o correspondente meio de pagamento.
No dia 29 de Novembro de 2009, o A. encontrou-se com o R. “B”, que se apresentou com o nome de “H” e afirmou ir a mando de “G”, acordando na venda da viatura pelo preço de €48.000,00.
O A. entregou a viatura, nesse mesmo dia, ao R. “B”, que, por sua vez, fez, para pagamento do preço acordado, a entrega àquele de um cheque alegadamente sacado sobre a conta da firma ““I”-Sociedade Comercial…, Lda”, no referido valor de €48.000,00.
O R. “B” convenceu o A. de que o cheque continha o carimbo da dita sociedade e a assinatura do seu legal representante, como o convenceu de que tal cheque se encontrava visado pelo “BANCO 1”, estando, assim, assegurado o seu pagamento.
Tendo o A. depositado o cheque, haveria este de ser devolvido com a seguinte indicação, por parte da “BANCO 2”: «devolvido na compensação de Lisboa em 03.Dez.2009 por motivo de conta encerrada».
Por isso, foi, em 03-12-2009, debitada na conta do A. a quantia de €48.000,00, assim como a importância de €16,57, a título de encargos com devolução do cheque.
O A. dirigiu-se à “BANCO 2” e ao “BANCO 1”, onde foi informado de que a assinatura aposta no cheque não correspondia à assinatura do legal representante da firma alegadamente sacada e que a conta há muito se encontrava encerrada. Mais apurou que o número fiscal constante do carimbo aposto no cheque como da sociedade ““I”” não pertencia a esta e que o R. “B” ou os ditos “G” e “H” nunca foram sócios ou gerentes da mesma.
Foi ainda informado, num balcão do “BANCO 1”, de que o cheque não foi visado por essa instituição bancária e que eram falsos o carimbo e assinaturas apostas no verso do cheque como sendo o visto do banco e as assinaturas dos seus representantes.
Indiciando-se a prática de crime de burla qualificada, o A. apresentou participação criminal, sendo abertos dois inquéritos (que identifica).
No dia seguinte à celebração do negócio a viatura foi registada em nome do Réu “C”, pessoa que o A. desconhece e com quem não negociou.
O Réu “D” adquiriu ao R. “B” a viatura, pelo preço de €24.000,00, tratando-se de valor muito inferior ao real.
Apurou o R. “D”, junto da Conservatória, que o veículo se encontrava registado em nome do R. “C”, tendo o R. “B” explicado que tal se devia ao risco de penhora, mas que o veículo lhe pertencia. Além disso, este exigiu que o pagamento fosse efectuado em dinheiro, recusando o pagamento através de cheque, que o R. “D” lhe procurou fazer.
O R. “D” tinha obrigação de saber que o preço em causa era muito inferior ao real e que o negócio que lhe foi proposto não consubstanciava declarações sérias ou isentas de vícios, mas, mesmo assim, realizou esse negócio.
Considera o A. ser anulável, por erro, o negócio por si celebrado e nulo o negócio subsequente (entre o R. “B” e o R. “D”) e entende, para além da restituição da viatura, dever ser indemnizado pela desvalorização da mesma e por danos não patrimoniais.

Contestaram os RR. “D” e “E”.
Os RR. defenderam-se por excepção (caducidade), alegando que decorreu o prazo para a propositura da acção.
Também arguiram a incompetência territorial do Tribunal em que a acção foi proposta.
Em sede de impugnação, alegaram, em resumo, que:
Avaliaram as condições gerais do veículo e concluíram que seria um preço razoável, abaixo do valor indicado em “stands” autorizados, tendo o 1º R. informado que tentava vender rapidamente o veículo para acudir a um filho que se encontrava em processo de divórcio e precisava de apoio financeiro.
O veículo apresentava algumas mazelas que o desvalorizavam e, se adquirido num “stand”, quando muito não ultrapassaria o valor de €30.000,00, sobretudo por se tratar de um veículo de grande cilindrada e de consumos e manutenção muito dispendiosos.
Acreditaram na versão do R. “B” e agiram convencidos de que a referida viatura lhes tinha sido vendida pelo seu verdadeiro dono, tendo tomado todas as diligências que eram exigíveis.
Concluíram pela improcedência da acção.

Os restantes RR. foram citados editalmente, não tendo sido oferecida contestação pelo Ministério Público, cumprido que foi o art. 15º do CPC.
Replicou o A. – como se vê a fls. 236 e segs. – pugnando pela improcedência das excepções deduzidas e formulando ampliação do pedido, nos termos seguintes:
a) Que seja reconhecida e declarada a existência de justa causa de resolução do contrato de compra e venda da viatura da marca Mercedes, com o nº de matrícula 00-GZ-00, celebrado nas circunstâncias descritas nos artigos 12º a 48º da P.I., por falta do pagamento do preço;
b) Ser, consequentemente, declarada nula e de nenhum efeito a venda feita posteriormente ao co-Réu “D” nas circunstâncias descritas nos artigos 49º a 77º da P.I. e declaradas insubsistentes e, por isso, canceladas no registo todas as inscrições subsequentes à declaração negocial do Autor cuja resolução se pretende e requer seja reconhecida e decretada;
c) Serem os Réus condenados a verem reconhecida a resolução do contrato de compra e venda celebrado pelo Autor nas supra aludidas circunstâncias de tempo, lugar e modo, com as demais consequências legais, nomeadamente as elencadas nas alíneas e) e f), do pedido deduzido inicialmente a título principal.

Os RR. “D” e “E” opuseram-se à ampliação do pedido, conforme se retira de fls. 250-251.
Foi proferido despacho que julgou incompetente o Tribunal Judicial de Oeiras e determinou a remessa à Comarca da Grande Lisboa-Noroeste. Nesta, foi prolatado saneador-sentença, julgando-se a excepção de caducidade procedente por provada, em consequência do que se absolveram os Réus do pedido de declaração de anulação da compra e venda da viatura de marca Mercedes, com a matrícula 00-GZ-00, celebrada pelo ora Autor nas circunstâncias descritas nos artigos 12° a 48° da petição inicial, e se julgou, no mais, improcedente a acção, absolvendo os Réus do pedido.
Inconformado com esta decisão, dela recorreu o A., concluindo as suas alegações pela seguinte forma:
(…)

Os RR. “D” e “E” contra-alegaram, pugnando pela manutenção da decisão recorrida e formulando as seguintes conclusões:
(…)

Termina, dizendo que o recurso deve improceder.

*
Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for e conhecimento oficioso, importará, in casu, saber se o saneador-sentença enferma de nulidade por omissão de pronúncia nos termos apontados; se, com os dados constantes do processo, não seria possível concluir, como se concluiu, pela caducidade do direito do A. à anulação do primeiro contrato de compra e venda, com as consequências daí resultantes quanto aos demais pedidos, e se se impõe que o processo prossiga os seus trâmites, tal como é reclamado pelo A..
Importa referir que, salvo melhor opinião, o Apelante não pôs em causa, no seu recurso, a segunda parte da decisão da 1ª Instância, ou seja, aquela em que se conheceu (por não ser tal matéria afectada pela caducidade) do pedido de resolução do contrato, julgado improcedente juntamente com os que dele dependiam. Entende-se, por isso, que a decisão nesta parte subsiste, razão por que não será objecto de apreciação neste acórdão.
*
II

II.1.
Em primeiro lugar, alega o Apelante que o Tribunal a quo, ao decidir que "os autos comportam desde já, todos os elementos necessários
para que possa proferir-se decisão sobre a excepção de caducidade e mérito da causa (…)
sem se debruçar sobre a análise da responsabilidade civil extracontratual emergente da conduta ilícita e criminosa do Réu “B”, olvidou o reconhecimento do direito do Autor a ver ressarcidos os danos por ele sofridos.
Considera, por isso, que ocorre nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia, nos termos do disposto no artigo 668º, nº 1, al. d) do Cód. Proc. Civil.
Na decisão em causa, concluiu-se pela caducidade relativamente ao pedido de anulação do primeiro contrato de compra e venda e considerou-se que a procedência dessa excepção inviabilizava, nos presentes autos, a aplicação aos negócios subsequentes à venda que se pretendia anular do regime jurídico da venda de bens alheios, com a consequente nulidade (cfr 892º do Código Civil) na justa medida em que a anulação era pressuposto da aplicabilidade desse regime.
Conheceu-se, depois, do pedido de resolução do contrato, concluindo-se pela sua improcedência, bem como «dos demais pedidos formulados, posto que dos pedidos de declaração de anulação ou de resolução, eram dependentes».

O art. 668º, nº1, d), do CPC (na versão anterior a 1 de Setembro de 2013) deve ser conjugado com o disposto no art. 660º, nº2 (com destaque nosso):

«O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras. Não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

Tendo em conta a lógica da decisão recorrida, não será de concluir que estejamos perante omissão de pronúncia, já que a falta de apreciação detalhada de determinados pedidos se ficou a dever, primeiro, à procedência da excepção de caducidade (quanto à questão da anulabilidade) e, depois, à improcedência do pedido de resolução, considerando-se que os demais pedidos eram daqueles dependentes.
Pode criticar-se a solução encontrada, mas isso leva-nos a outro domínio que não o da apontada nulidade. Na verdade, conforme ensinava José Alberto dos Reis, «uma coisa é o tribunal deixar de pronunciar-se sobre questão que devia apreciar, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção» (Código de Processo Civil anotado, vol. V, Coimbra Editora, Coimbra, 1952, pág. 143).
Entende-se, pelo exposto, que não se verifica a referida nulidade.

II.2.
Refere o Apelante que, aquando da celebração do negócio, a sua vontade estava viciada por ter sido enganado e induzido em erro pelo Réu “B”, que, lançando mão de sugestões e artifícios que consubstanciam ilícito criminal, o levou a celebrar o contrato e a entregar-lhe a viatura e os documentos, sendo que, de outro modo - isto é, conhecendo ele os verdadeiros métodos e intenções do Réu, particularmente no que tange à falsidade e inidoneidade do cheque que lhe foi entregue como meio de pagamento e à actuação fraudulenta e criminosa do outro contraente - não teria celebrado o contrato.
Continua o Apelante, dizendo que:
- nas situações em que o erro é provocado por artifício ou embuste, originando uma falsa representação da realidade, diz-se que o negócio está viciado por dolo, sendo anulável (cfr. artigo 253º e artigo 254º do Código Civil), consistindo o dolo no recurso a artifícios ilegítimos, com o intuito de prejudicar e com a finalidade de induzir o enganado a celebrar o negócio que sem dolo não celebraria, aproveitando-se da falsidade da representação que a sua conduta produz na vítima, in casu, o Autor, ora Recorrente.
- o dolo foi a causa do erro e este foi causa fundamental e determinante do
negócio em si mesmo e sem ele o Recorrente não o teria celebrado. - nos termos do disposto no artigo 252º nº 1 do Código Civil, se o erro sobre os
motivos determinantes da vontade incidir sobre as circunstâncias do negócio, só tem
relevância anulatória quando haja consenso entre as partes sobre a essencialidade dessas
circunstâncias. Quando na base da celebração do negócio esteja uma conduta dolosa, o
condicionalismo imposto nesse artigo não é exigível, pelo que o negócio é sempre anulável, independentemente da verificação ou não desse requisito, o que sucede porque o dolo tem como pressuposto a prática de um facto ilícito;
- o negócio celebrado entre o Recorrente e o Réu “B” deve,
pois, ser anulado, nos termos do disposto nos artigos 253º e 254º do Cód. Civil.

Na decisão recorrida, ponderou-se, sobre esta matéria, além do mais, o seguinte:
«A apreciação da caducidade pressupõe a prévia determinação do vício que, de acordo com a alegação do Autor, afecta a validade do contrato.
O Autor fundamenta a sua pretensão na alegação da celebração de contrato de compra e venda relativo ao veículo 00-GZ-00 com o Réu “B”, em 29 de Novembro de 2009, contrato que entende ser anulável com fundamento nos artigos 253° e 254° do Código Civil, já que foi enganado e induzido em erro pelo referido Réu e pelo Réu “C”, que lançaram mão de sugestões e artifícios com o propósito conseguido de levarem o Autor a formalizar o contrato e a entregar-lhes a viatura e os documentos, através da entrega, para pagamento, de um cheque viciado, que não obteve boa cobrança.
Dispõe o primeiro desses artigos que:
"1. Entende-se por dolo qualquer sugestão ou artifício que alguém empregue com a intenção ou consciência de induzir ou manter em erro o autor da declaração, bem como a dissimulação, pelo declaratário ou terceiro, do erro do declarante.
2. Não constituem dolo ilícito as sugestões ou artifícios usuais, considerados legítimos segundo as concepções dominantes no comércio jurídico, nem a dissimulação do erro, quando nenhum dever de elucidar o declarante resulte da lei, de estipulação negocial ou daquelas concepções".
Por sua vez, o art. 254. o estabelece que:
"1. O declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo pode anular a declaração; a anulabilidade não é excluída pelo facto de o dolo ser bilateral.
2. Quando o dolo provier de terceiro, a declaração só é anulável se o destinatário tinha ou devia ter conhecimento dele; mas, se alguém tiver adquirido directamente algum direito por virtude da declaração, esta é anulável em relação ao beneficiário, se tiver sido ele o autor do dolo ou se o conhecia ou devia ter conhecido."
Conforme se referiu na douta decisão proferida no âmbito do procedimento cautelar que correu termos por dependência destes autos, e, com confirmação posterior pelo Venerando Tribunal da Relação sancionou o entendimento ali seguido, estes preceitos devem ser conjugados com os normativos que estabelecem quais as situações em que o erro é relevante, mormente os arts. 251. ° do mesmo Código. Estabelece tal preceito que o erro que atinja os motivos determinantes da vontade, quando se refira à pessoa do declaratário (no caso, o comprador) ou ao objecto do negócio (o veículo), torna este anulável nos termos do artigo 247°.
Por seu turno o artigo 252°, n. ° 1 do mesmo diploma estatui que o erro que recaia nos motivos determinantes da vontade, mas não se refira à pessoa do declaratário nem ao objecto do negócio, só é causa de anulação se as partes houverem reconhecido, por acordo, a essencialidade do motivo.
Estabelece o n. ° 2 do mesmo preceito que, se, porém, recair sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio, é aplicável ao erro do declarante, o disposto sobre a resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias vigentes no momento em que o negócio foi concluído.
Manifestamente, a alegação do Autor não traduz a situação legalmente prevista no artigo 251 ° do Código Civil - não refere que o vício do negócio seja relativo à pessoa do comprador, ou ao objecto transaccionado, antes resultando da alegação, que tivesse o cheque obtido boa cobrança, e nenhuma desconformidade assinalaria o Autor.
Afigura-se, como, de resto, se considerou na decisão que julgou o procedimento cautelar e no Acórdão da Relação que apreciou o recurso interposto pelo Autor, que não se está aqui perante nenhuma situação de erro sobre as circunstâncias que constituem a base do negócio. Porém, quanto a este, apenas importa salientar, que o vício correspondente não conduz à anulabilidade, permitindo antes a resolução ou modificação do contrato nos termos do disposto nos artigos 437° e ss do Código Civil, e que os efeitos de tal resolução, por força do disposto no artigo 435°, n. ° 1 e 2 do Código Civil, a resolução do contrato nunca seria oponível aos ora Réus “D” e “E”, porquanto os mesmos haviam já, à data da propositura da acção, registado a aquisição do veículo a seu favor».

No que tange, especificamente, à problemática da caducidade, o Apelante defende que por força do postulado no artigo 287º, nº 2 do Cód. Civil, enquanto o negócio
não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto
por via de acção como por via de excepção, sendo que, no caso sub judice, não tendo sido -
como não foi - pago o preço acordado entre o Recorrente e o Réu “B”, o
negócio não se encontra cumprido, uma vez que não se mostra preenchido um dos seus
requisitos essenciais, ou seja, o pagamento do preço. E acrescenta que:
- Dadas as circunstâncias concretas em que foi celebrado o negócio, seria essencial a entrega do preço ou de meio/título idóneo para o pagamento, o que não sucedeu no caso vertente, porque aquilo que o Autor supunha tratar-se de meio idóneo de pagamento, não passava afinal, de um cheque falsificado e sem qualquer valor enquanto título de crédito.
- Não ficando cumpridas todas as obrigações decorrentes do negócio jurídico, tal
como a entrega do preço, a acção proposta pelo Autor é tempestiva, nos termos do nº 2 do
artigo 287º do Cód. Civil, mesmo que já tivesse decorrido o prazo de um ano.
- O prazo da caducidade previsto no artigo 287º, nº 1 do Cód. Civil, não começaria a correr antes de meados de 2010, já que, até essa altura, o Recorrente não se encontrava em condições de exercer o direito, por desconhecer a verdadeira identidade do outro contraente (cfr. artigo 329º do Cód. Civil).
- Para preenchimento do disposto neste normativo, ou seja, para início da
contagem do prazo da caducidade, não basta o conhecimento por parte do Recorrente das
circunstâncias relativas à devolução do cheque entregue para pagamento, sendo essencial o conhecimento da verdadeira identidade do outro contraente e responsável pela devolução do cheque.

Na douta sentença, escreveu-se, entre o mais, o seguinte:

«O prazo de caducidade previsto no artigo 287° do Código Civil, apenas se aplica, pois, à anulabilidade decorrente do vício previsto nas disposições conjugadas dos artigos 251°, 253° e 254° do Código Civil.
Dispõe o n. ° 1 do artigo 287° do Código Civil que a anulabilidade só pode ser arguida dentro do ano subsequente à cessação do vício (no caso, o erro) que lhe serve de fundamento. Descoberta a viciação do cheque, o vício (erro em que se encontrava o autor, por alegada acção dolosa dos Réus não contestantes) cessou. O ora Autor dispunha então, do prazo de um ano, para requerer a anulação do negócio, com fundamento em tal erro.
Ora, tendo o Autor tomado conhecimento das circunstâncias relativas à devolução do cheque entregue para pagamento em 03.12.2009, deveria ter proposto a acção até ao dia 03. 12.2010.
A presente acção, no entanto, foi proposta apenas em 1 de Fevereiro de 2011, decorrido pois, já então, o prazo referido de um ano.
Como se referiu no douto Acórdão da Relação de Lisboa proferido no âmbito do procedimento cautelar apenso, "tendo tomado conhecimento em 3-12-2009 que o cheque para pagamento da pretensa venda do veículo, não fora creditado na sua conta, a partir daí não esboçou qualquer reação. A intentar agora tal pretensão, sempre poderia vir (como veio) a ser invocada a caducidade do direito o que inviabilizaria aquele e inevitavelmente a presente providência".
Argumenta o Autor, que tal prazo não é aplicável ao caso, em face da circunstância de não estar cumprido o contrato e nos termos previstos no n.º 2 do artigo 287° do Código Civil.
Ressalvado o muito e devido respeito por entendimento diverso, não lhe assiste, porém, razão.
Na verdade, a transmissão da propriedade (que o Autor pretende ver anulada) consumou-se com a entrega do veículo, pois, nos termos das disposições conjuga das dos artigos 879°, a) e 886° do Código Civil, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito é um dos efeitos essenciais da compra e venda e opera automaticamente, por mero efeito do contrato (artigo 408°, n.º1 do Código Civil). Assim, como a celebração do contrato e a entrega do veículo consumou-se a transmissão da propriedade, nada mais sendo necessário para que tal transmissão se consolidasse.
Note-se que a falta de pagamento do preço, tendo ocorrido a entrega, não confere ao vendedor, sequer, o direito à resolução do contrato, pois, nos termos do disposto no artigo 886° do Código Civil, tal apenas ocorreria caso existisse convenção em contrário, o que equivaleria a ter sido estipulada reserva de propriedade, nos termos do disposto no artigo 409° do Código Civil, ou a venda sob condição, o que nos autos não foi alegado que tivesse ocorrido».

Vejamos:
O A. estribou a presente acção num comportamento, por parte do 1º e 2º RR., que considerou doloso, alegando que o negócio nunca se teria realizado se não fosse aquele comportamento cheio de artifícios e sugestões e imputando ao R. “D” a inobservância dos deveres de diligência e cuidado na aquisição do automóvel em causa.
Na verdade, em sede de direito, depois de ter articulado os factos que entendeu pertinentes, o A. defendeu que a declaração negocial consubstanciada no contrato de compra e venda (o primeiro) poderia ser anulada por existir vício de vontade, nos termos do art. 253º e 254º do C. Civil.
Tais artigos, que se referem ao dolo e efeitos do dolo, vêm, como se viu, reproduzidos na douta sentença.
No nº1 do art. 254º, preceitua-se que o declarante cuja vontade tenha sido determinada por dolo pode anular a declaração (...).
Ensina Carvalho Fernandes que «[o] erro é qualificado quando seja provocado por dolo relevante. Assim, se houver dolo mas este não for juridicamente atendível, continua a existir erro, mas apenas erro simples» (Teoria Geral do Direito Civil, II, 4ª ed., Universidade Católica Portuguesa Lisboa, 2007, págs. 219-220).
«O requisito específico de relevância do dolo é a dupla causalidade» verificando-se essa dupla causalidade «quando o dolo seja causa do erro e este, por seu turno, seja determinante do negócio. Assim, só há dolo relevante quando o declarante tenha caído em erro por efeito da conduta artificiosa de outrem. Mas, por seu lado, o motivo a que o erro se reporta há-de ser causal […]» (idem, pág. 223)
«A exigência da dupla causalidade [continua-se, in loc. cit.] tem consagração legal, deduzindo-se do nº1 do art. 254º do C. Civ., quando nele se exige, para o dolo ser anulatório, que a vontade do declarante “tenha sido determinada por dolo” » (idem).
Explica, ainda, Carvalho Fernandes (na pág. 224) que «quando o deceptor [o autor do dolo] é o declaratário, o negócio é anulável, desde que se verifique a situação de dupla causalidade, sem se tornar necessário que o declaratário conheça ou não deva ignorar a essencialidade do erro (nº1 do art. 254º e nº2, a contrario, do C. Civ.)», alcançando-se a razão de ser deste regime no facto de o dolo em si mesmo ser um acto ilícito da autoria, neste caso, do declaratário, não merecendo este a tutela que o dito requisito se destina a assegurar-lhe.
Depois de referir que o requisito geral de relevância do dolo não é a existência de prejuízo para o declarante, derivado do negócio, mas a intenção de enganar (animus decipiendi), debruça-se o ilustre Professor sobre os efeitos do dolo, dizendo (na pág. 226) que:
«[…] importa salientar que ele pode gerar responsabilidade civil para o deceptor. Como se de vê do art. 253º, nº2, do C. Civ., o dolo é um acto ilícito. E, embora não seja requisito da relevância anulatória do dolo a existência de prejuízo para o enganado, o mais certo é dele resultarem danos. Quando assim não aconteça, o autor do dolo fica constituído na obrigação de indemnizar, cabendo a situação, sem margem para grandes dúvidas, no âmbito dos arts. 483º e seguintes do C. Civil.
Note-se que a existência de responsabilidade civil é independente de o negócio ser anulável ou de vir ou não a ser anulado.
C. Mota Pinto configurava a situação como de responsabilidade pré-negocial, nos termos do art. 227.° do C.Civ. No mesmo sentido se pronunciavam Pires de Lima e Antunes Varela e Vaz Serra. Menezes Cordeiro admite a possibilidade de se recorrer, em simultâneo, às regras da culpa in contrahendo. A dúvida está em saber se cabe ainda falar em responsabilidade pré-negocial quando o negócio chegou a ser celebrado e se apenas deve haver lugar à indemnização do chamado interesse negativo.
No sentido de se aplicar o regime geral da responsabilidade civil se pronunciam Castro Mendes e, se bem entendemos o seu pensamento, Oliveira Ascensão; parece ser também esse o pensamento de Rui de Alarcão […].
Por outro lado, o dolo pode constituir o seu autor em responsabilidade penal, se a sua conduta preencher um tipo penal».

Castro Mendes defende, na verdade, que o dolo pode constituir o agente em responsabilidade civil, pois «o dolo é um acto ilícito (cfr. art. 253, nº2 “a contrario”) que pode causar prejuízos. Se os causar, o agente ou autor do dolo é civilmente responsável, nos termos gerais dos arts. 483º e seguintes (e isto, note-se, quer o negócio em que o dolo incidiu seja anulado, quer o não seja)» (Direito Civil/Teoria Geral, vol. III, A.A. Fac. Dir. Lisboa, 1979, pág. 242).
Na Teoria Geral do Direito Civil, de Mota Pinto, 4ª edição, por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2005, págs. 524-525, distingue-se entre o dolo essencial ou determinante e o dolo incidental, sendo que, no primeiro, «o enganado (deceptus) foi induzido pelo dolo a concluir o negócio em si mesmo e não apenas nos termos em que foi concluído; sem dolo não se teria concluído qualquer negócio. No dolo incidental o deceptus apenas foi influenciado quanto aos termos do negócio, pois sempre contrataria, embora noutras condições. A importância da distinção estará em que o dolo incidental não conduz, desde logo, necessariamente, à anulação».
No que concerne às condições de relevância do dolo como motivo de anulação, refere-se, além do mais, o seguinte:
«O principal efeito do dolo é a anulabilidade do negócio (art. 254.°, n.º 1); mas acresce a responsabilidade pré-negocial do autor do dolo (deceptor), por ter dado origem à invalidade, com o seu comportamento contrário às regras da boa fé, durante os preliminares e a formação do negócio (art. 227.°). Ao contrário do que é possível acontecer nos casos de erro, quando este for culposo, não há, no dolo, responsabilidade do declarante (deceptus), pois este é vítima e não autor de um comportamento contrário às regras da boa fé.
A responsabilidade do autor do dolo é uma responsabilidade pelo dano da confiança ou interesse contratual negativo. Em suma: o deceptus tem o direito de repristinação da situação anterior ao negócio e a cobertura dos danos que sofreu por ter confiado no negócio e que não teria sofrido sem essa confiança. Ao invés, não pode pretender ser colocado na situação em que estaria se fossem verdadeiros os factos
fingidos perante ele».
Em nota de rodapé (nota nº 722, na pág. 525), escreve-se:
«A obrigação de indemnizar é um efeito do dolo, autónomo relativamente à anulabilidade, surgindo mesmo quando não se verifiquem todos os requisitos do exercício do direito de anular ou este tenha já caducado. O fundamento legal da obrigação, de indemnização radica, além do artigo 227.°, n.º1, no artigo 253.°, n.º 2, do qual resulta a contrario ser o dolo um acto ilícito».

No sumário do Ac. do STJ, de 30-04-2006 (Rel. Azevedo Ramos), publicado em www.dgsi.pt, exarou-se, numa espécie de síntese desta problemática, o seguinte:
«I - O dolo é um erro qualificado, determinado por certo comportamento do declarante, nos termos do art. 253 do C.C..
II - O erro vício só gera anulabilidade do negócio se for essencial ou causal.
III - Requisito específico da relevância do dolo é a dupla causalidade, que se verifica quando o dolo seja causa do erro e este, por sua vez, seja causa determinante do negócio.
IV- O dolo, como acto ilícito que é, pode gerar responsabilidade civil para o decepto.
V - A obrigação de indemnizar é um efeito do dolo, autónomo relativamente à anulabilidade do negócio, surgindo mesmo quando não se verifiquem todos os requisitos do direito de anular ou este já tenha caducado.
VI - Tal situação configura-se como de responsabilidade pré-negocial, nos termos do art. 227 do C.C., pois quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares, como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos causados à outra parte».

Sendo ajustado afirmar, como se retira da sentença recorrida, que a apreciação da caducidade pressupõe a determinação do vício que afecta o contrato, crê-se que, salvo o devido respeito, devia ter-se alargado a análise, desde logo por, além do mais, ter sido pedida nos autos uma indemnização que tem na sua base um alegado acto ilícito. Ora, conforme emana dos ensinamentos mencionados, ainda que o negócio não seja inválido, pode ocorrer, provando-se a existência de ilicitude, a obrigação de indemnizar, quer se opte pelo regime geral da responsabilidade civil, quer pela responsabilidade pré-contratual.
Na verdade, o dolo, mesmo tratando-se de acto ilícito, nem sempre conduz à anulabilidade (discordando-se do Apelante quanto a esta matéria), mas a obrigação de indemnizar é um efeito do dolo, autónomo relativamente à anulabilidade do negócio, surgindo mesmo quando não se verifiquem todos os requisitos do direito de anular ou este já tenha caducado.
Ora, in casu, o A., para além de pedir a anulação do primeiro contrato de compra e venda e a declaração de nulidade do segundo, pede também indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais.
Considera-se que para se concluir, com segurança, se ocorreram (ou não) vícios – e quais em concreto – que inquinem o primeiro contrato e possam conduzir à nulidade do segundo, e, em consequência para se aferir da existência de caducidade e em que medida esta, a verificar-se, poderá afectar todos os pedidos, maxime os indemnizatórios, se imporia não dispensar a produção de prova sobre a panóplia de factos alegados, não olvidando que, no momento da prolação do despacho saneador, há que ter em conta, quando se avalia do prosseguimento (ou não) da acção, as várias soluções plausíveis da questão de direito (arts. 510º, nº1, b) e 511º, nº1, do CPC), tal como se ponderou no Ac. da Rel. de Lisboa de 29-11-2011 (Rel. Tomé Gomes), publicado em www.dgsi.pt:

«6. No tocante à oportunidade do julgamento antecipado da lide, o critério básico é no sentido de que esse julgamento não deve ser pronunciado quando existam várias soluções de direito plausíveis e, nessa perspectiva aberta, se encontrem factos ainda controvertidos.
7. Tal critério deflui do disposto nos artigos 510.º, n.º 1, alínea b), e 511.º, n.º 1, do CPC, numa leitura sintonizado com o princípio da economia processual, significando isto que o tribunal não deve proferir um julgamento antecipado quando as soluções jurídicas sejam discutíveis ou problemáticas e haja ainda necessidade de produzir prova sobre factos controvertidas pertinentes para qualquer delas».

Parece-nos ser esse o caso dos presentes autos, tanto mais que houve dois RR. citados por éditos, importando, por isso, ter em atenção, quanto à factualidade que nesta fase se pode dar por provada, o que se dispõe no art. 485º, al. b) do CPC.
O Tribunal terá de estribar-se, no momento de operar a subsunção, na matéria de facto que apurar, naturalmente tendo como base o que foi alegado pelas partes e sem prejuízo do que possa ser adquirido (oficiosamente ou não) para o processo, não estando sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (arts. 264º e 664º do CPC, na versão anterior, e art. 5º do novo CPC).
Veja-se que, no que concerne ao aspecto da integração jurídica, o A. veio, no recurso, invocar a existência de reserva mental (240º do C. Civil) e de negócio contrário à lei e à ordem pública (art. 280º), entendendo que o primeiro contrato está ferido de nulidade, invocável a todo o tempo (art. 286º), ou seja, trazendo perspectivas, em termos de direito, que não invocara nos articulados.
A completa exegese que o caso exija deve fazer-se após o estabelecimento da matéria provada e não provada. E esse será, como já disse, tendo em conta os contornos fornecidos pelo processo, o momento azado para aferir também da caducidade, importando, no entanto, e desde já, dizer que, com todo o respeito, não se concorda com a tese defendida na douta decisão recorrida, quanto ao (não) cumprimento do contrato de compra e venda, por referência ao que se prevê no art. 287º, nº2, do C. Civil (enquanto, porém, o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de acção como por via de excepção).
No Código Civil Anotado, de Pires de Lima e A. Varela, vol. I, 2ª ed., Coimbra Editor, 1979, pág. 244, explica-se que cessa o limite do prazo «se o negócio ainda não foi cumprido, como se, por ex., não foi ainda entregue a coisa vendida, ou entregue o preço, num contrato de compra e venda anulável».
No Ac. da Rel. de Lisboa (e desta Secção), datado de 11-11-2004 (Rel. Farinha Alves e no qual interveio o presente relator como adjunto), entendeu-se que «[p]ara efeitos do art.º 287.º n.º 2 do C. Civil, negócio não cumprido é aquele em que ainda não foram cumpridas todas as obrigações dele emergentes ou em que, pelo menos, subsistem por cumprir obrigações relevantes».
A questão do incumprimento não se confunde com a da completude ou perfeição do contrato, como se pondera no Ac. do STJ de 18-12-2003 (Rel. Lucas Coelho), publicado em www.dgsi.pt. neste se fazendo menção a outro Acórdão, datado de 18-09-2003, do mesmo Relator, publicado também em www.dgsi.pt, cujo sumário é do seguinte teor:
«I - Resulta do tipo legal da compra e venda configurado nos artigos 874º e 879º do Código Civil que a propriedade da coisa vendida se transmite para o adquirente pelo contrato, constituindo a transmissão do domínio um dos efeitos essenciais do negócio jurídico, ao lado das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço respectivo;
II - Trata-se, pois, de um contrato consensual quoad constitutionem, em que o aperfeiçoamento do vínculo se atinge mediante o acordo de vontades expresso na forma legal;
III - Flui igualmente da tipicidade legal da compra e venda a sua natureza de contrato real quoad effectum, na medida em que determina a produção imediata do efeito real de transmissão do direito de propriedade [cfr., aliás, os artigos 1317º, alínea a), e 408º, nº. 1, do mesmo Código] e, ainda, de contrato obrigacional, segundo o mesmo critério, na perspectiva dos efeitos obrigacionais da entrega da coisa e do pagamento do preço que dele derivam;
IV - A eficácia real do contrato de compra e venda pode, todavia, ser diferida ou meramente eventual se as partes estipularem, por exemplo, um pactum reservati dominii (artigo 409º) ou outra condição suspensiva;
V - O contrato aperfeiçoa-se em todo o caso, independentemente da produção dos efeitos aludidos, mercê do mútuo consenso dos contraentes, de modo que a obrigação de pagar o preço, nomeadamente, em nada influi na sua perfeição, e tão-pouco condiciona a eficácia translativa na falta de semelhantes estipulações».

Diferentes são, pois, a completude do contrato e o seu cumprimento (designadamente no que concerne ao pagamento do preço, cuja falta se alega nos presentes autos) e isso mesmo se reflecte na douta decisão recorrida, pois nela se refere, a terminar, que as circunstâncias enunciadas não conferem ao A. o direito à resolução do contrato, mas apenas o de exigir, em acção creditória, o pagamento do que lhe é devido, com base num contrato válido e eficaz.
Por outro lado, há uma circunstância que não chegou a ser analisada, que é a da existência de queixa-crime, por parte do A., relativamente às alegadas condutas ilícitas atinentes ao primeiro contrato, e os seus efeitos quanto à caducidade.
Na verdade, o A. alegou, na petição inicial, que haviam sido instaurados dois inquéritos e, com as alegações de recurso, juntou cópia da notificação que lhe foi efectuada (através de carta datada de 10-01-2013, ou seja, posterior à prolação da decisão recorrida) relativa ao arquivamento parcial e dedução de acusação pelo Ministério Público, sendo ainda o A. notificado para, querendo, deduzir pedido de indemnização civil, em 20 dias, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 77º, nº2, do CPP.
Como decorre do expediente junto pelo A., em relação ao aqui R. “C”, ali interrogado como arguido, foi determinado o arquivamento dos autos. Já quanto ao aqui R. “B” foi deduzida acusação, além de outros, pelos factos relatados na petição inicial deste processo, referindo-se, no que tange a medidas de coacção, estar esse arguido em prisão preventiva, cuja manutenção se promoveu.
No art. 71º do C. Processo Penal Processo Penal, consagra-se o princípio da adesão, segundo o qual o pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, perante o tribunal civil, nos casos previstos na lei.
De acordo com art. 72º do mesmo Código, o pedido de indemnização civil pode ser deduzido em separado, perante o tribunal civil, em determinados casos, designadamente, quando o processo penal não tiver conduzido à acusação dentro de oito meses a contar da notícia do crime, ou estiver sem andamento durante esse lapso de tempo (al. a)).
O pedido de indemnização civil pode, nos termos do art. 73º, ainda do CPP, ser deduzido contra pessoas com responsabilidade meramente civil e estas podem intervir voluntariamente no processo penal.
Tratando-se de uma faculdade do lesado a dedução do pedido de indemnização civil em separado, parece que não poderá deixar de ter-se em consideração o prazo que lhe assistiria no processo-crime para essa dedução, sob pena de, no processo civil, se declarar a caducidade de um direito que ainda poderia ser formulado no âmbito criminal. É isso que, afinal de contas, se verifica in casu, pois, já após ter sido proferida a decisão recorrida que concluiu pela caducidade do direito do A., foi este notificado para deduzir, querendo, o pedido de indemnização civil no processo-crime.
No Ac. da Rel. de Coimbra de 02-02-1999 (Rel. Gil Roque), CJ, 1999, I, pág. 22, aponta-se, se bem se o interpreta, para uma tal solução, ao considerar-se que:
«II - Na situação da al. a) do nº1 do art. 72º do CPP não se afasta a possibilidade de a acusação poder ser deduzida depois do decurso dos oito meses ali referidos e o R. vir a ser condenado pelo crime de que foi acusado e na respectiva indemnização.
III - Mas o queixoso, se não quiser esperar mais tempo, tem a faculdade de abandonar o "princípio da adesão" e de deduzir o pedido cível em separado, mas também pode preferir que o MºPº continue as diligências de instrução para deduzir a acusação e o R. vir a ser condenado pelo crime e na indemnização cível.
IV - No caso de arquivamento de inquérito, o recurso à acção cível torna-se em absoluto imperativo a partir do momento em que aquele foi ordenado e, a partir dessa altura, começa a correr o prazo para a caducidade de um ano, nos termos do preceituado no art. 287º do CC.».

Crê-se, assim, que a existência de inquérito, alegada na petição inicial, atinente ao facto ilícito que está na raiz da presente acção, teria de ser tomada em consideração – eventualmente, após a recolha de informação ou certificação da respectiva pendência – relativamente à problemática da caducidade.

Considera-se, pelo exposto, que, no despacho saneador, face aos elementos que os autos fornecem e sem apuramento, após a necessária actividade probatória, dos factos alegados, não seria de conhecer da caducidade com as consequências daí advindas, violando-se, por isso, o disposto no art. 510º, nº1, al. b), do CPC, o que acarreta a nulidade nessa parte, por prematuridade, da decisão recorrida (vide citado Ac. da Rel. de Lisboa de 29-11-2011), devendo, em consequência, ordenar-se o prosseguimento dos autos, com conhecimento, a final, após a produção da prova, da excepção em apreço e do mais que, depois desse conhecimento, se for caso disso, haja que decidir.

Termos em que se declara nulo o saneador-sentença, na parte em que julgou procedente a excepção de caducidade e respectivas consequências.

- Custas a cargo da parte vencida a final.

*
(…)
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Lisboa, 14-11-2013

Tibério Silva
Ezagüy Martins
Maria José Mouro
Decisão Texto Integral: