Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
747/12.9TVLSB.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: ENCARGO DA HERANÇA
HERANÇA INDIVISA
SENTENÇA
DIREITO DE REGRESSO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - “No caso de herança indivisa não podem os herdeiros ser condenados a pagar os encargos daquela, mas sim a reconhecer a existência dos correspondentes débitos e a vê-los satisfeitos pelas forças da herança.
II – O objeto do pedido e o objeto da decisão devem coincidir, não podendo a sentença determinar efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide.
III – Assim, pedida a condenação dos RR., ainda que enquanto herdeiros do de cujus, a pagar ao A., o montante de uma dívida da herança, acrescida de juros, não podem aqueles ser condenados a reconhecerem a existência da dívida e a vê-la satisfeita pelos bens da mesma herança, devendo a ação improceder.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 2ª Secção (cível) deste Tribunal da Relação

I – “A” intentou ação declarativa, com processo comum sob a forma sumária, contra “B” e “C”, pedindo a condenação dos RR. a pagar ao A. o montante de € 63.597,69, acrescidos de juros civis contados a partir da data da citação dos RR., até efetivo e integral pagamento.
Alegando, para tanto e em suma, que na qualidade de sócios da sociedade “D” – Comércio de Brindes e Decoração, o A. e o falecido “E” – de quem os RR. são os únicos herdeiros – avalizaram um contrato de abertura de crédito em conta corrente, até ao montante de € 100.000,00, celebrado entre o Banco “F” e aquela sociedade, tendo para o efeito preenchido uma livrança em branco com autorização de preenchimento em caso de incumprimento.
Ficando acordado entre os sócios que, se houvesse problemas como o pagamento do financiamento, o montante daquele seria suportado pelos sócios em partes iguais.
Sendo que a referida sociedade veio a ser declarada insolvente por sentença de 25-03-2009, com incumprimento do sobredito contrato de financiamento.
Na sequência do que em 25-06-2010 foi requerida execução contra o A. e o seu sócio, para pagamento da quantia de € 111.515,70, dando-se como título executivo a livrança, que a exequente preencheu, subscrita por aqueles.
Porque aquele sócio do A. faleceu na pendência da execução foram habilitados como herdeiros os ora RR.
Porém, porque na execução foi apenas penhorado um imóvel propriedade do A., este optou por efetuar o pagamento integral da dívida exequenda.
Assistindo-lhe assim o direito de regresso contra os herdeiros do falecido, na parte que a estes compete, ou seja, pela quantia de € 63.597,69 correspondente à metade da dívida paga pelo A.

Citados os RR. contestou o “C”, por impugnação, rematando com a total improcedência da ação.

Houve resposta (…) do A., concluindo como na petição inicial.

O processo seguiu seus termos, com saneamento e condensação.
Vindo, realizada que foi a audiência final, a ser proferida sentença que julgando a ação parcialmente procedente, condenou “conjuntamente os RR. “B” e “C”, enquanto herdeiros legítimos de “E”, a pagar ao A., “A”, a quantia de €42.398,46, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da data da citação dos RR., ocorrida a 11/5/2012 (…), até integral pagamento (…)”, absolvendo os RR. “do demais pedido”.

Inconformado recorreu o R. “C”, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
“A) Decidiu-se na sentença que “Nestes termos, julgamos a acção parcialmente procedente por provada, condenando conjuntamente os R.R., “B” e “C”, enquanto herdeiros legítimos de “E”, a pagar ao A., “A”, a quantia de € 42.398,46, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da data da citação dos R.R., ocorrida a 11/5/2012 até integral pagamento (…)” (sublinhado nosso).
B) Entende o Recorrente, salvo melhor opinião em sentido contrário, que a sentença não poderia condená-lo ao pagamento da quantia de € 42.398,46 ainda que na qualidade de herdeiro legítimo de seu Pai “E”.
C) Dispõe o art.º 2068.º do Código Civil, que “a herança responde…pelo pagamento das dívidas do falecido…”, sendo que, em conformidade com o disposto no art.º 2097.º “os bens da herança indivisa respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos”.
D) Dispõe, por seu turno, o art.º 2098.º que “efectuada a partilha, cada herdeiro só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança”, sem prejuízo de os herdeiros poderem deliberar que o pagamento seja feito à custa de dinheiro ou bens separados para o efeito, ou que fique a cargo de algum deles.
E) A herança ainda se encontra indivisa, sendo que nenhum dos herdeiros recebeu qualquer quantia.
F) No caso de herança indivisa e, por conseguinte, antes da partilha, estamos perante uma universalidade composta por património autónomo, em que os herdeiros não detêm direitos próprios sobre cada um dos bens hereditários e nem sequer são comproprietários desses bens, mas apenas titulares em comunhão de tal património.
G) Nessa situação, os bens da herança indivisa respondem colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos e, em conformidade com o disposto no art. 2091º, o credor da herança que pretenda exigir judicialmente o seu crédito apenas poderá fazê-lo contra todos os herdeiros.
H) Como refere o Sr. Juiz Conselheiro José Martins da Fonseca, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 46, Setembro/1986, págs. 582 a 586, os herdeiros não são devedores, relativamente a uma dívida da herança e, enquanto a herança não for partilhada, nunca são responsáveis pelo pagamento das dívidas do de cujus, pelo que, embora tenham legitimidade para ser demandados em acção judicial destinada a exigir o pagamento de dívida da herança, “os herdeiros serão demandados e condenados, mas não a pagar os créditos, tão somente a reconhecerem a sua existência ou a verem satisfeitos pelos bens da herança os créditos dos credores do de cuius”.
I) Ou seja, o pedido – tal como foi formulado – teria e tem que improceder.
J) Neste caso – de herança indivisa não partilhada – os herdeiros apenas podem ser condenados a reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança.
K) Ora, não foi este o pedido formulado pelo Autor, já que o que o Autor pediu foi a condenação dos próprios Réus (herdeiros) a pagar aquela quantia e este pedido não pode proceder, na medida em que a responsabilidade pelo pagamento dessa dívida não é dos Réus, mas sim da herança da qual são herdeiros.
L) Tudo tal como foi decidido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto tirado no processo n.º 81/09.1TBCHC.P1 de 28 de Janeiro de 2010, cujo sumário se apresenta:
“I – Enquanto não for efectuada a partilha – estando em causa uma herança indivisa – a acção destinada a exigir um crédito sobre a herança tem que ser instaurada contra todos os herdeiros.
II – Não obstante a sua legitimidade para serem demandados em acção judicial destinada a exigir um crédito sobre a herança indivisa, os herdeiros não têm qualquer responsabilidade directa pelo respectivo pagamento (nem mesmo até ao limite do que recebessem em herança), pelo que não podem (eles próprios) ser condenados a pagar a dívida da herança.
III – Neste caso – de herança indivisa não partilhada – os herdeiros apenas podem ser condenados a reconhecer a existência do crédito sobre a herança e a ver satisfeito esse crédito pelos bens da herança, devendo, por isso, improceder o pedido de condenação dos próprios herdeiros na satisfação desse crédito.”
M) Violou a sentença os art.ºs 2068.º, 2071.º e 2097.º do Código Civil e art.º 744.º do Código de Processo Civil.
N) Não se podendo, assim, manter antes devendo ser revogada e substituída por uma decisão que reconheça a existência do direito de crédito sobre a herança”.

Contra-alegou o A., pugnando pela manutenção do julgado.

Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele, é questão proposta à resolução deste Tribunal a de saber se os RR., enquanto únicos herdeiros de “E”, não podiam ser condenados na satisfação de direitos relativos à herança aberta por óbito daquele, aceite, mas indivisa.
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Julgou-se provado, na 1ª instância, sem impugnação a propósito e nada impondo diversamente, que:
“1) Consta da certidão permanente da conservatória de Registo Comercial de ..., emitida em 29/5/2008, que aí se mostrava matriculada a sociedade “D” – Comércio de Brindes e Decoração, Lda., com sede na Rua ..., n.º 3, freguesia de ..., concelho de ..., com o NIPC: ..., resultando da inscrição n.º 1, emergente da ap. Of/19840411, que essa sociedade tinha o capital social de Esc.: 2.000.000$00, dividido por duas quotas de Esc.: 1.000.000$00, cada, sendo uma da titularidade do A., “A”, e a outra da titularidade de “E”, obrigando-se essa sociedade com a assinatura de dois gerentes, conjuntamente, tendo sido registado ainda que a gerência estava atribuída ao A., “A”, e a “G” (cfr. doc. de fls 20 a 21) - (Al. A) dos factos dados por assentes);
2) Era o falecido sócio, Sr. “E”, quem exercia a gerência de facto da sociedade “D” – Comércio de Brindes e Decoração, Lda., contactava com os seus clientes e celebrava contratos - (Por referência ao ponto 1º da base instrutória);
3) Fruto das dificuldades da empresa, a mesma teve que recorrer a um financiamento bancário para fazer face à prossecução da sua atividade - (Por referência ao ponto 2º da base instrutória);
4) Em 13 de Maio de 2005, foi celebrado entre o Banco “F” e a “D” – Comércio de Brindes e Decoração, Lda., um acordo denominado de “Abertura de Crédito em Conta Corrente”, nos termos do qual o referido Banco abriu um crédito em conta corrente à segunda até ao montante de €100.000,00 (cfr. doc. de fls 22 a 28 cujo teor se dá por reproduzido), tendo o A. e o Sr. “E” avalizado tal operação bancária - (Por referência ao ponto 3º da base instrutória);
5) Para o efeito, os dois sócios subscreveram uma livrança em branco, com autorização de preenchimento no caso de incumprimento por parte daquela sociedade - (Por referência ao ponto 4º da base instrutória);
6) O dinheiro decorrente do financiamento bancário foi estritamente aplicado e utilizado na atividade da sociedade - (Por referência ao ponto 5º da base instrutória);
7) A sociedade começou a enfrentar dificuldades essencialmente a partir do ano de 2007 - (Por referência ao ponto 7º da base instrutória);
8) O valor da conta creditada pelo “F” foi totalmente utilizado pela “D”, Lda. no âmbito da sua atividade, e face à sua situação económica, o saldo não foi reposto - (Por referência ao ponto 8º da base instrutória);
9) Em 3 de Março de 2009, a Sociedade – Comércio de Brindes e Decoração, Lda., com o NIPC ..., apresentou-se à insolvência, tendo o respetivo processo corrido os seus termos no 3.º Juízo do Tribunal de Comércio de Lisboa, sob o número .../09.1TYLSB, onde foi declarada a sua insolvência por sentença proferida em 27/3/2009, que transitou em julgado a 14/5/2009 (cfr. doc. de fls 112 a 118) - (Al. B) dos factos dados por assentes);
10) Em 26 de Maio de 2009, na sequência da declaração de insolvência, o Banco informou, através de carta endereçada ao A., que o contrato celebrado com a “D”, Lda., tinha sido resolvido por motivo de não cumprimento e que, em consequência, procedia ao encerramento da conta bancária e ao preenchimento da livrança pelo montante de €100.637,88, que deveria ser pago até ao dia 25 de Junho de 2009 (cfr. doc. de fls 35) - (Por referência ao ponto 9º da base instrutória);
11) Nem o A., nem o seu sócio, efetuaram o pagamento da livrança - (Por referência ao ponto 10º da base instrutória);
12) Foi esse o motivo da instauração do processo executivo mencionado em 14), reportando-se a dívida exequenda ao saldo do contrato de abertura de crédito em conta corrente celebrado com a sociedade entretanto declarada insolvente e no qual o A. e o seu sócio intervieram como avalistas - (Por referência ao ponto 11º da base instrutória);
13) O bem penhorado nesse processo executivo pertencia apenas ao A., o que o forçou ao pagamento da dívida exequenda, por forma a obstar à venda do seu prédio - (Por referência ao ponto 12º da base instrutória);
14) Em 25 de Junho de 2010, a “F” instaurou uma ação executiva para pagamento de quantia certa, pedindo o pagamento da quantia de €111.515,70, a qual correu termos no 3º Juízo, 1ª Secção, dos Juízos de Execução de Lisboa, sob o número .../10.5YYLSB, sendo que aí foi requerida habilitação de herdeiros pelo exequente em 28 de Setembro de 2010, figurando aí como executados, o aqui A., “A”, e ainda “H”, tendo a execução sido declarada extinta por motivo do pagamento integral pelo executado “A” do valor de €127.195,39, sendo que havia aí sido nomeado à penhora um prédio urbano situado em ..., Avenida ..., 11 a 11-B, Cave com garagem, rés-do-chão, 1º andar de logradouro, descrito na CRP de Lisboa sob o n.º .../19980316 (cfr. doc.s de fls 120 e 122) - (Al. C) dos factos dados por assentes);
15) O sócio da sociedade “D” – Comércio de Brindes e Decoração, Lda., o Sr. “E”, faleceu no dia 28 de Julho de 2010, no estado de casado com a R., “B”, tendo deixado testamento que instituiu seu herdeiro da quota disponível, o seu filho, o aqui R., “C”, sendo seus únicos herdeiros os identificados R.R., sua viúva e seu filho (cfr. doc. de fls 56 a 58 do apenso “A”) - (Al. D) dos factos dados por assentes);
16) Os R.R., até à presente data, não efetuaram qualquer pagamento ao A. relativamente ao reembolso da quantia por este paga no processo de execução mencionado em 14) - (Por referência ao ponto 13º da base instrutória).”.
*
Vejamos:
1. Não sofre crise ser a responsabilidade do A. e do falecido “E”, enquanto coavalistas na livrança respetiva, solidária, cfr. art.ºs 77º, 30º a 32º, e 47º, da L.U.L.L.
Nem também assistir ao avalista pagador, no confronto dos coavalistas não pagadores, um direito de regresso emergente do disposto no art.º 524º do Código Civil…
…Para que aliás remete o art.º 650º, n.º 1, última parte, do mesmo Código Civil – diploma a que reportarão, de ora em diante, as normas citadas sem indicação de origem – assim também a considerar quando se não descarte a aplicabilidade ao aval dos princípios fundamentais reguladores da fiança que as disposições próprias da lei cambiária não afastem de modo expresso.[1]

Também, de acordo com o disposto no art.º 515º, n.º 1, “Os herdeiros do devedor solidário respondem coletivamente pela totalidade da dívida; efectuada a partilha, cada co-herdeiro responde nos termos do artigo 2098º”…
…Ou seja, “só responde pelos encargos em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.”.

De qualquer modo ponto é que nos confrontamos aqui com uma herança aceite mas ainda não partilhada, importando pois a determinação do alcance da sobredita “responsabilidade coletiva pela totalidade da dívida” do de cujus.

2. Como é sabido, a herança é um património autónomo,[2] que sendo vários os herdeiros é também um património coletivo, e que responde pelas dívidas do falecido, cfr. art.º 2068º.
Quanto ao qual, e até à integral liquidação e partilha, vale a regra, estabelecida no art.º 2074º, de não confusão dos poderes e vinculações próprios do herdeiro com os próprios da herança.
Respondendo “Os bens da herança indivisa colectivamente pela satisfação dos respectivos encargos.”, vd. art.º 2097º.
Ou seja, “a herança, porque consiste num verdadeiro património autónomo, responde toda ela sem discriminação de bens pelo cumprimento dos respectivos encargos.”.[3]
Por isso e consonantemente, a regra é a de que “os direitos relativos à herança (indivisa) só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros.”, cfr. art.º 2091º.
Sendo que, como assinala Oliveira Ascensão, “esta forma de responsabilidade não é alterada no caso de o autor da sucessão ser solidariamente responsável”,[4] já que nem nessa hipótese o já citado art.º 515º, n.º 1, estabelece a responsabilidade solidária dos herdeiros do devedor solidário, mas apenas a sua responsabilidade coletiva até a efetivação da partilha.

Frisando, por seu lado, Rabindranath Capelo de Sousa,[5] no confronto do disposto nos art.ºs 2068º e 2069º, que “Pelos encargos da herança é directamente responsável (…) a massa patrimonial que constitui a herança” (o itálico, aqui, é nosso).
Sendo “Esta tónica objectivista na determinação da responsabilidade pelos encargos da herança (…) um reflexo da autonomia patrimonial da herança e do seu carácter de universalidade de direito.[6] O que é sobretudo patente no caso de herança indivisa, em que se está perante um património autónomo directamente responsável (…) e em que os herdeiros apenas têm que intervir como co-titulares desse património.”.
E, nessa mesma hipótese, que é a dos autos, de herança indivisa “os herdeiros não detêm direitos próprios sobre cada um dos bens hereditários e nem sequer são comproprietários desses bens mas apenas titulares em comunhão de tal património.”.
Pretendendo-se com “a nova formulação legislativa do art.º 2097º do Código Civil actual[7] (…) exactamente clarificar que são os bens da herança, como partes integrantes do património autónomo que é a herança indivisa, quem responde em conjunto. Mesmo quando o de cujus fosse um co-devedor solidário, cada um dos herdeiros só responde, dentro do respectivo grupo solidário, em proporção da parte que lhe coube na herança.” (sublinhado nosso).
“Os co-herdeiros (de herança indivisa) têm que ser demandados apenas porque aquela massa de bens não tem personalidade judiciária, mas não têm sequer um direito a uma «quota ideal» sobre a herança. Agem de certo modo como «representantes» da herança. Estamos perante um caso de legitimidade imposta por lei, apesar de não existir um interesse directo em contradizer, nem tão-pouco são titulares de um direito a uma «quota ideal» e muito menos a uma fracção da herança. A regra é de que as partes são legítimas quando têm interesse directo em demandar ou contradizer. Mas tal regra sofre excepções, porque há hipóteses em que existe legitimidade sem haver interesse. Isso acontece sempre que a lei o impõe.”.[8]
Considerando José Martins da Fonseca,[9] em comentário a uma decisão do Tribunal da Relação de Coimbra, que “Os herdeiros são sempre parte legítima como «representantes» da herança indivisa, na acção em que se pede a satisfação de encargos desta. Se se pretender, porém, responsabilizá-los directamente pela dívida, o problema já não será de legitimidade, mas sim de mérito, pelo que deviam os herdeiros ser absolvidos do pedido e não da instância.”
E “No caso, o artigo 2091º impõe aos «herdeiros» a representação e a legitimidade para contradizerem. Ora os herdeiros são parte legítima na acção contra eles intentada, para os credores da herança verem os seus créditos pagos pelos bens da mesma. No entanto, não podem ser condenados a pagar as dívidas pelas razões já várias vezes referidas. Acentua-se, de novo: «não são devedores», mas tem de se ter em consideração que a herança não pode ser demandada nem condenada porque não tem personalidade. Os herdeiros serão demandados e condenados, mas não a pagar os créditos, tão somente a reconhecerem a sua existência, ou a verem satisfeitos pelos bens da herança os créditos dos credores do de cujus.”.

Nesta linha, em que nos incluímos, havendo o Supremo Tribunal de Justiça decidido, em Acórdão de 19-03-1992,[10] relatado pelo antecedentemente citado Juiz Conselheiro, que “I - Os herdeiros deverão ser demandados e condenados, não a pagar as dívidas de herança indivisa, mas simplesmente a reconhecerem a existência delas ou a vê-las satisfeitas pelos bens da mesma herança.”.
E, convergentemente, em Acórdão de 29-01-2003,[11] julgado que “"ex-vi" do estatuído nesses citados artºs 2097º e 2098º, nº 1, antes da partilha não existe propriamente responsabilidade do herdeiro pelo cumprimento dos encargos do «de cujus»”.
Tendo aquele Tribunal, mais recentemente, reiterado tal entendimento, no seu Acórdão de 09-02-2012,[12] em cujos considerandos ler-se pode: “No caso de herança indivisa cabe apenas aos seus herdeiros intervir em nome próprio para fazer valer os seus direitos e que só por todos eles podem ser exercidos; e, quando determinados os seus herdeiros, não devem eles ser condenados a pagar os encargos da herança, mas sim reconhecer a existência dos débitos que devam ser satisfeitos pelas forças da herança.”.

3. A sentença recorrida, e como visto, julgando a ação parcialmente procedente, condenou “conjuntamente os RR. “B” e “C”, enquanto herdeiros legítimos de “E”, a pagar ao A., “A”, a quantia de €42.398,46, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, a contar da data da citação dos RR., ocorrida a 11/5/2012 (…), até integral pagamento (…)”, absolvendo os RR. “do demais pedido”.

Quando e na conformidade do exposto, apenas poderia ter condenado os RR. a, reconhecendo a existência do crédito do A. sobre a herança aberta por óbito de “E”, verem aquele satisfeito pelos bens de tal herança.
Mas isso, desde que um tal efeito jurídico fosse ainda recondutível ao pedido formulado pelo A.

Com efeito, o pedido – efeito jurídico que se pretende obter, cfr. art.º498º, n.º 3, do Código de Processo Civil de 1961 e 581º, n.º 3, do novo Código de Processo Civil – é o ponto de partida de toda a tramitação processual, posta ao serviço das pessoas para a resolução do conflito de interesses que trazem a juízo.    
Ele “determina o conteúdo da decisão. Ele é o objeto do processo.” e, por isso, “o objeto do pedido e o objeto da decisão coincidem, como resulta da articulação dos art.ºs.552-1-e, 607-2, 609-1 e 651-1-e: o juiz deve apreciar a pretensão e só em função dela pode condenar o Réu. A ideia de que o objeto do processo, definido pelo pedido, e o objeto da sentença divergem, por o segundo incluir também a qualificação jurídica ou fundamentação de direito que não entre na composição do primeiro, é de rejeitar.”. [13]
Não podendo assim a sentença determinar efeitos jurídicos que as partes não abordaram no desenvolvimento da lide, como se reflete na cominação da nulidade da sentença que condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, cfr. art.º 615º, n.º 1, alínea e), do novo Código de Processo Civil. 
 
Ora, sendo o efetivo objeto da decisão recorrida conforme ao objeto do pedido, já o objeto “possível” dessa sentença, na conformidade do que se vem de expor, não seria assimilável ao objeto do pedido.
Uma coisa é a condenação dos RR., ainda que enquanto herdeiros do falecido “E”, a pagar ao A., a quantia de €42.398,46, acrescida de juros.
Outra a condenação dos mesmos RR. a reconhecerem a existência da dívida e vê-la satisfeita pelos bens da mesma herança.

Nem sendo exato, o que apenas marginalmente se assinala, que a sentença recorrida haja estabelecido “os limites da condenação dos Réus ora recorrentes às forças da herança”.
O que naquela peça se consignou a propósito foi, e por um lado, que “Nos termos do art.º 515º, n.º 1 do C.C. são os herdeiros de devedor quem, coletivamente respondem pela dívida, sendo que, após a partilha, cada co-herdeiro responde apenas nos termos do art.º 2098º.”, ou seja, e como visto já “em proporção da quota que lhe tenha cabido na herança.”.
Mas também, e por outro, que:
“São os bens da herança indivisa que respondem coletivamente pelos seus encargos, ou seja pelas suas dívidas (…). Mas a herança indivisa, aceita pelos respetivos herdeiros conhecidos não tem personalidade jurídica e, portanto, também não tem personalidade judiciária (…). Em consequência, o exercício de direitos relativos à herança deve ser feito necessariamente contra todos os herdeiros (…)
Foi isso mesmo que o A. fez ao demandar os R.R. na qualidade de únicos herdeiros legítimos do falecido “E”, como consta do artigo 4º da petição inicial, sendo também só nessa qualidade que pode obter a sua condenação no pedido.”.
E ainda: “No caso concreto, como já vimos, os R.R., enquanto herdeiros do devedor, só respondem perante o A., em via de direito de regresso, na mesma medida em que a herança está obrigada a reembolsar aquele. O que, como já vimos, corresponde apenas à obrigação de pagamento do valor de €42.398,46.”.

Diga-se também que a sentença condenatória proferida, e tal como o foi, constituindo título executivo contra os RR. “enquanto herdeiros legítimos de “E””, confrontar-se-ia, até que partilhada fosse a herança, com a impossibilidade processual de fazer penhorar quaisquer bens…por isso que apenas podem ser penhorados, “Na execução movida contra o herdeiro (…) os bens que ele tenha recebido do autor da herança.”, cfr. art.º 744º, n.º 1, do novo Código de Processo Civil.
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Sempre teria pois o pedido formulado na ação, e que assim acolhido se mostra na decisão proferida, que improceder.

Com sucesso das conclusões dos Recorrentes.

III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação procedente, e revogam a sentença recorrida, julgando a ação improcedente e absolvendo os RR. do pedido.

Custas, em ambas as instâncias, pelo A., que assim nelas decaiu totalmente.
*
Em observância do disposto no n.º 7 do art.º 663º, do novo Código de Processo Civil, passa a elaborar-se sumário, da responsabilidade do relator, como segue:
(…)
*
Lisboa, 2014-02-20

Ezagüy Martins
Maria José Mouro
Maria Teresa Albuquerque
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[1] Cfr. Abel Pereira Delgado, in “L.U.L.L, Anotada”, 4ª ed., 1980, Livraria Petrony, págs. 158 e 166.
[2] Apud Oliveira Ascensão, in “Direito Civil-Sucessões”, Coimbra Editora, Ld.ª, págs. 470-473 e 480.
[3] Idem, págs. 480-481.
[4] Idem, págs. 481-482.
[5] In “Lições de direito das sucessões”, II, Coimbra Editora, Ld.ª, 1980/82, págs. 109-111, 113-114, e nota 742.
[6] Oliveira Ascensão, sem tomar posição definitiva a propósito, considera que a consideração da herança como património autónomo, é noção que permitirá por si só explicar o regime jurídico daquela, vd. op. cit., págs.474, 475.
[7] Nova relativamente à do art.º 2115º do Código Civil de Seabra.
[8]  Cfr. Adelino Palma Carlos, In “Código de Processo Civil, Anotado”, Vol. I, Procural, Lisboa, 1940 pág.132.
[9] In R.O.A., Ano 46, Vol. II – Setembro de 1986, págs. 581-582, e aliás também citado pelos Recorrentes.
[10] Proc. 081315, in www.dgsi.pt/jstj.nsf. Com texto integral publicado in BMJ 415º, págs. 658-665.
[11] Proc. 02B4447 Relator: FERREIRA DE ALMEIDA, no mesmo sítio da internet.
[12] Proc. 8553/06.3TBMTS.P1.S1, Relator: SILVA GONÇALVES, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.  
[13] Assim, Lebre de Freitas, in “Introdução ao processo civil”, 3ª ed., Coimbra Editora, 2013, pág. 56 e nota 3.