Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4790/05.6TCLRS.L1-1
Relator: MARIA ADELAIDE DOMINGOS
Descritores: LETRA DE CÂMBIO
PRINCÍPIO NOMINALISTA
REGIME DE BENS
COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
BENS PRÓPRIOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/09/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. 1. As obrigações que têm por objeto uma simples quantia pecuniária, pagável em quaisquer das espécies admitidas pelo sistema monetário visado, são obrigações de quantidade ou de soma (dívidas de dinheiro, que correspondem a autênticas e próprias obrigações pecuniárias), sujeitas, salvo estipulação em contrário, ao princípio nominalista ou da não actualização.

I.2. Ao contrário as chamadas dívidas de valor, são aquelas em que o objeto não consiste diretamente numa importância em dinheiro, mas numa prestação diversa, intervindo o dinheiro apenas como meio de determinação do seu quantitativo ou respetiva liquidação.

I.3. As letras de câmbio tendo como objeto uma ordem de pagamento de uma determinada quantia pecuniária titulam obrigações pecuniárias, sujeitas, por conseguinte, ao princípio nominalista, previsto no artigo 550.º do Código Civil.

I.4. Razão pela qual, o valor a ter em conta no acervo hereditário é o valor nominal constante dos títulos de crédito à data da abertura da sucessão.

II.1. Tratando-se de um bem adquirido durante a constância do matrimónio do falecido adquirente e da ora apelante, atento o regime de bens vigente na pendência do casamento, ou seja, o regime de comunhão de adquiridos é, em princípio, um bem comum (cfr. artigos 1717.º e 1721.º e seguintes do Código Civil).

II.2. Neste regime, fazem parte da comunhão, o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei (artigo 1724º).

II.3. Embora a aquisição da quota no valor e 3.6000,00$00 se apresente como uma nova quota, considerando o teor da escritura de cessão de quotas e de aumento de capital, a sua aquisição surge na sequência do aumento de capital por parte dos dois (e únicos) sócios gerentes da sociedade em causa.

II.4. Assim, existe uma relação de conexão entre a quota anterior e a posição jurídica detida pelo falecido na sociedade e a aquisição desta nova quota social.

II.5. Esta estreita conexão permite subsumir a situação ao disposto no artigo 1728.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, a nova quota é considerada um bem próprio do adquirente da mesma, ainda que o ato tenha ocorrido durante a constância do casamento deste com a ré.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
CV e AM intentaram ação de simples apreciação, sob a forma de processo ordinário[1], contra Herança Indivisa de FM representada por Hermínia de JM, na qualidade de cabeça-de-casal e herdeira, pedindo que, com a procedência da mesma, fosse proferida decisão no sentido de reconhecer que:
1.“O direito de crédito, proveniente da venda da quota da sociedade «SAS, Lda.», art. 3º da pi, era um bem comum que fazia parte do acervo hereditário da mãe dos AA., sendo a herança desta quanto a este bem, correspondente a €10.474,76, a cujo valor, nas quotas-partes que se vierem a definir, estes teriam direito, devidamente actualizado, como se o tivessem aplicado, i.e., investido, correspondendo à data de Junho de 2005, a €69.586,90;”
2. “Também da parte que caberia ao pai dos AA. (€13.966,35), quer como meeiro (€10.474,76), quer como herdeiro (€3.491,59), cujo valor actualizado à data de Junho de 2005, corresponderia  a €139.173,89 no aludido direito de crédito, têm direito os AA. à respectiva quota-parte que lhes pertença em termos sucessórios (2/3, i.e., €92.782,59), e porque assumiu a natureza de bem próprio para a R., não pode esta mear, mas tão somente herdar;”
3.“À actualização deve proceder-se tendo em conta a tabela de reembolso para os certificados de aforro, série A, tendo em consideração a data de constituição do crédito (Maio de 1985) e a data em que vier a ser reconhecido e integrado na massa hereditária das heranças a partilhar por óbito dos pais dos AA.;”
4.“O direito a que venham integrar a massa hereditária a partilhar, os montantes constantes das contas existentes em nome de: - MHM e FM, pelo menos desde Maio de 1984, no Banco P, Banco C, ou qualquer outro Banco, devidamente actualizados, nos mesmos termos e que vierem a ser apurados;”
5.“Uma vez que os direitos supra referidos foram integrados totalmente no património do pai dos AA, pela sua satisfação deve responder a herança deste;”
6.“A quota de Esc. 3.600.000$00/€17.956,72, no capital da sociedade AB, Lda, subscrita pelo pai dos AA. em 19 de Novembro de 1992, é, também ela, um bem próprio do pai dos AA, não tendo esta direito a qualquer meação”.
Para fundamentarem a sua pretensão, alegaram, em síntese, a sua qualidade de filhos e herdeiros de FM, falecido em 16/09/2002, e da primeira esposa deste, MHM, falecida em 21/06/1985, com quem era casado em regime de comunhão geral de bens.
Mais alegam que seu pai voltou a casar em 09/01/1987, com a ré HM, no regime de comunhão de adquiridos.
Defendem que têm direito a ver declarado que o direito de crédito proveniente da venda das quotas da sociedade SAS, Ld.ª, de que seu pai era titular, realizada em 07/05/1985, consubstanciado em 28 letras de câmbio, integrou o património comum daquele e da sua então mulher, MHM, porquanto a entrega dos títulos de crédito ao seu falecido pai em pagamento das aludidas quotas ocorreu ainda em vida da mãe dos autores, e só após a morte desta teve lugar o seu endosso.
Mais sustentam os autores que o seu pai adquiriu, em agosto de 1985, já após a morte da mãe daqueles, mas antes de contrair matrimónio com a ré, uma quota na sociedade AB, Ld.ª, o que veio a permitir que o mesmo, mais tarde, viesse a participar no aumento de capital realizado, o que, no seu entender, se integra na previsão do disposto no artigo 1722.º, n.º1, alínea c), do Código Civil, devendo essa quota correspondente ao aumento de capital ser considerada bem próprio do de cujus.
Aduzem ainda que o pagamento da subscrição em causa fora realizado mediante entrega de um cheque sacado de conta bancária da exclusiva titularidade do falecido até 16/01/99, a qual era provisionada com as poupanças dos seus pais e quantias provindas da sociedade AB, Ld.ª, tendo, por este motivo, também a aquisição da quota origem em bens próprios daquele.
Também alegam que integra o acervo hereditário por morte de sua mãe o montante constante das contas existentes em nome daquela ou do seu falecido pai pelo menos desde Maio de 1984.
Contestou a ré por impugnação, alegando, em suma, que o valor do desconto das letras destinou-se ao pagamento de dívidas do casal constituído pelos progenitores dos autores e que, com a parte sobrante, o seu falecido marido adquiriu a quota da sociedade AB, Ld.ª, pelo valor de 400.000$00 (€1.995,19), aceitando que tal valor seja um bem próprio do falecido.
 Já o aumento de capital foi realizado na pendência do matrimónio com o falecido pai dos autores, pelo que é um bem comum do casal.
Quanto às contas bancárias, à data do seu casamento com o pai dos autores, a conta n.º 0520721 apresentava um saldo de 277.928$00 (€1.386,30).
No mais, impugna o alegado, pugnando pela improcedência da ação e absolvição do pedido.
Foi realizada audiência preliminar, conforme consta de fls. 216 e, posteriormente, proferida decisão parcial quanto ao mérito da causa, nos termos que constam de fls. 222-225 (datada de 09/03/2012), já transitada em julgado, com o seguinte teor:
“…julga-se improcedente o pedido formulado de que “venham a integrar a massa hereditária os montantes constantes das contas existentes em nome de FM e de MM e de HM, no Banco P., Banco C, ou qualquer outro Banco, devidamente actualizados, nos mesmos termos e que vierem a ser apurados.”[2]
Foi proferido despacho de saneamento e condensação da causa, com elaboração da matéria de facto assente e da base instrutória.
Realizado o julgamento, foi proferida, em 18/09/2013, a sentença junta a fls. 304-313, que decidiu do seguinte modo:
" …o Tribunal decide julgar a ação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência:
1 – Declara os títulos de crédito consubstanciados em 28 letras no valor de 150.000$00/€748,20, cada, entregues a FV como forma de pagamento do preço da transmissão da quota detida na sociedade «SAS, Lda», bem comum do casal constituído por este e por MHM tendo, nessa medida, integrado a herança deixada por esta à data da sua morte, ocorrida em 21 de junho de 1985.
2 – Declara constituir bem próprio de FM as quotas por este adquiridas em 28 de agosto de 1985, no valor nominal de cento e cinquenta mil escudos e no valor nominal de duzentos e cinquenta mil escudos, no mesmo ato unificada num única quota no valor nominal de quatrocentos mil escudos, da sociedade «AB, L.da», e, bem assim, a quota de três milhões e seiscentos mil escudos resultante da escritura pública de cessão de quotas e aumento de capital celebrada pelos sócios da empresa «AB, Lda», nos termos constantes do documento junto a fls. 53 e segs., mediante o reforço de nove milhões de escudos em numerário, em 19 de novembro de 1992, sem prejuízo da eventual compensação devida ao património comum, no que concerne ao valor correspondente ao aumento de capital.
3 – Julga improcedente o mais peticionado e não abrangido pela decisão proferida a fls. 222 e segs.”
Inconformados, apelaram os autores e a ré, apresentando as conclusões de recurso que abaixo se transcrevem.
A ré também apresentou contra-alegações.
Conclusões da apelação dos autores:
I- A sentença proferida não conheceu integralmente dos pedidos formulados pelos AA. na sua p.i., designadamente, o seguinte:
- Uma vez que os direitos supra referidos foram integrados totalmente no património do pai dos AA. , pela sua satisfação deve responder a herança deste.
II- A decisão errou ao não proceder à actualização do valor do direito de crédito reconhecido e na escolha das normas aplicáveis:
Dos factos:
- Desconsiderou a decisão que houve sonegação, apropriação e fruição de bens indevida pelo pai dos AA., ou seja deslocação patrimonial de um património comum, para um património pessoal e depois integração noutro património comum, constituído com a R., em prejuízo dos AA.;
- Que se não fora os AA . terem interposto a presente acção, prévia à instauração do inventário, não veriam reconhecidos os bens como pertencendo ao acervo hereditário;
- Que os bens deviam ter integrado património hereditário desde 21/06/85 e que pelos actos dolosos do pai dos AA., continuados pela R., tal não sucedeu, após o decesso daquele e que os AA. só vêem reconhecido o seu direito em 2013.
- Que o poder aquisitivo dos bens que faziam parte do acervo hereditário, correspondentes a 28 letras no valor de € 748,20, cada, no total de € 20.949,51, é um valor irrisório à data em que foi proferida a sentença, 18/09/2013, comparativamente só com a actualização de acordo com o índice de preços.
- Que a decisão de não actualizar e remeter os AA., novamente, para uma acção, constitui denegação de justiça, quando o tribunal dispõe de todos os elementos necessários à correcta e justa decisão;
Do direito:
-Não se trata de uma obrigação pecuniária, strictu sensu, nascida da celebração de um contrato, como contraprestação de bens ou serviços, esta sim sujeita ao princípio nominalista, ínsito no artº 550 do Código Civil.
- Atenta a não declaração dos bens, em sede de processo de imposto sucessório, a sua apropriação pelo pai dos recorrentes, permite aos AA. solicitar, em sede de inventário, que o Pai e depois do seu falecimento, por decorrência, a R., não viessem a beneficiar desses mesmos bens – artº 2096 do Código Civil;
- Tendo o direito de crédito se consubstanciado numa correspondente quantia de dinheiro, coisa fungível, o artº 1271 do Código Civil, prescreve que o possuidor de má fé está obrigado a entregar os frutos que a coisa produziu até ao termo da posse e responderia, pelo valor daqueles que um proprietário diligente poderia ter obtido, ao rentabilizá-lo – Restituir o poder aquisitivo que a mesma representa, aferido à data da restituição.
- A não integração na massa hereditária de um direito de crédito (em substituição dos títulos de crédito), sem ser actualizado, implica o enriquecimento sem causa de quem se apropriou indevidamente de património, com o inerente empobrecimento dos AA., e como última beneficiária a R., alheia à relação jurídico-sucessória, tendo aqui plena aplicabilidade o disposto no regime legal do enriquecimento sem causa, artºs 473 e ss. do Código Civil;
- A dívida de enriquecimento sem causa é uma dívida de valor, não sujeita ao princípio do nominalismo, isto é, actualizável;
- No direito sucessório é permitida e desejada a actualização- um dos objectivos do legislador é do equilíbrio económico entre os herdeiros: o disposto quanto à colação, em sede de doações em vida, artº 2019 do Código Civil, assim como o disposto quanto à partilha em vida, nº 3 do artº 2029 do Código Civil, alienação a favor de terceiro (artº 2076 do Código Civil), sendo que esta última situação é bastante similar ao caso dos autos.
Termos em que deve ser decretada a nulidade parcial da sentença, por falta de pronúncia sobre questões que deveriam ser decididas, pelo que haverá o Tribunal que pronunciar-se sobre as mesmas, assim como deve ser proferida decisão a actualizar o valor do crédito, nos termos peticionados pelos AA., ou seja, designadamente, com recurso às tabelas de reembolso para os certificados de Aforro, série A, tendo em conta a data em que se constituiu o direito de crédito e a data em que foi reconhecido como pertencente à massa hereditária.
Conclusões da apelação da ré:
1.A Ré vem impugnar a decisão relativa à matéria de facto quanto ao facto do tribunal “a quo” ter presumido que a quota no valor nominal de 3.600.000$00, (três milhões e seiscentos mil escudos) subscrita por FM, já na constância do matrimónio ter sido considerada um bem próprio deste.
2.A Ré entende que não foi feita pelo Tribunal “a quo” uma correta interpretação da matéria de facto suscitada no presente processo, uma vez que não foi provada que o aumento do capital social tivesse sido realizado com recurso a bens próprios de FM, nem resultou dos depoimentos, prestados pelas testemunhas apresentadas pelos AA, que tenham sido reveladoras e claras pelo que deveram ser desconsideradas.
3.A Ré não se conforma assim com a decisão proferida pela Meritíssima Juíza na sentença “a quo” uma vez que não se observa nos presentes autos razão para qual o bem adquirido na constância da convivência marital, considerando que o regime matrimonial era da comunhão de adquiridos e que os AA, não logram êxito em comprovar que esta era um bem próprio de FM.
4.Porém o que há nos autos é insuficiente para tal prova uma vez que esta teria que ser robustamente comprovada o que não aconteceu.
5.Pelo que se deverá considerar que esta é um bem comum do casal.
Face ao exposto requerer-se que o recurso tenha provimento e que a sentença seja revogada.
II- FUNDAMENTAÇÃO
A- Objeto do Recurso
Considerando as conclusões das alegações, as quais delimitam o objeto do recurso sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões a decidir são:
- Apelação dos autores: se ocorreu omissão de pronúncia e se ocorreu erro de julgamento quanto à não atualização do valor do direito de crédito reconhecido.
- Apelação da ré: impugnação da decisão sobre a matéria de facto e, ainda, se a quota referida no ponto 6 do pedido é um bem próprio do falecido pai dos autores ou bem comum do casal constituído pelo mesmo e pela ré.
B- De Facto
A 1.ª instância deu como provada a seguinte matéria de facto:
1 - A mãe dos autores, MHM, falecida em 21 de Junho de 1985, foi casada com FV, falecido em 16-09-2002, no regime da comunhão geral de bens – Alínea A) dos Factos Assentes;
2 - Os autores e o seu falecido pai eram os únicos herdeiros da referida MHM – Alínea B) dos Factos Assentes;
3 - No dia 7 de Maio de 1985, o pai dos autores celebrou um contrato de cessão das quotas que detinha na sociedade “SAS, Lda.” pelo valor de Esc. 4.200.000$00 – Alínea C) dos Factos Assentes;
4 - O preço aludido seria a pagar em 28 prestações mensais, no valor de Esc. 150.000$00/€748,20 cada – Alínea D) dos Factos Assentes;
5 - O pai dos autores, FV, recebeu, imediatamente, para garantia do pagamento das prestações aludidas, letras bancárias que endossou – Alínea E) dos Factos Assentes;
6 - No processo de imposto sucessório aberto por óbito da morte da mãe dos autores não foram relacionados quaisquer títulos ou direitos de crédito que correspondessem ao valor do negócio aludido em C) – Alínea F) dos Factos Assentes;
7 - Não foram realizadas partilhas dos bens deixados pela mãe dos autores em herança – Alínea G) dos Factos Assentes;
8 - No dia 28 de Agosto de 1985, FM adquiriu uma quota no valor nominal de cento e cinquenta mil escudos e uma quota no valor nominal de duzentos e cinquenta mil escudos, no mesmo ato unificada num única quota no valor nominal de quatrocentos mil escudos, da sociedade «AB, Lda.», nos termos constantes do documento junto a fls. 44 e segs – Alínea H) dos Factos Assentes;
9 - Em 10 de Janeiro de 1987, o falecido pai dos autores contraiu casamento com a Ré, sob o regime da comunhão de adquiridos – Alínea J) dos Factos Assentes;
10 - Em 19 de Novembro de 1992 foi celebrada a escritura pública de cessão de quotas e aumento de capital pelos sócios da empresa «AB, Lda.», nos termos constantes do documento junto a fls. 53 e segs.. mediante o reforço de nove milhões de escudos em numerário, ficando a importância subscrita por FM a constituir uma nova quota de três milhões e seiscentos mil escudos – Alínea L) dos Factos Assentes;
11 - A quota a que correspondeu a subscrição de capital foi adquirida mediante entrega de cheque sacado sobre conta do Banco P titulada por FM desde 1973 – Alínea M) dos Factos Assentes;
12 - A conta nº 0520721 do Banco P foi aberta em …-03-1973 em nome de FM, passou a ter como 2º titular, em …-01-1999, HM e foi liquidada em 31-10-99 – Alínea N) dos Factos Assentes;
13 – O pai dos autores recebeu 28 letras como forma de pagamento do preço aludido em C), as quais viria a endossar em 28 de agosto de 1985 para pagamento da aquisição a que se reporta a Alínea H), tendo recebido o remanescente, nessa data, em dinheiro – Resposta ao quesito 1 da Base Instrutória.
III- DO CONHECIMENTO DO RECURSO
1. Apelação dos autores:
1.1. Omissão de pronúncia /nulidade parcial da sentença:
Arguem os apelantes a nulidade parcial da sentença, nos termos do artigo 615.º, n.º1, alínea d), do CPC vigente, porquanto a sentença não se pronunciou sobre a atualização do direito de crédito proveniente da venda da quota da sociedade SAS, Ld.ª, a que afirmaram na petição inicial ter direito por integrar o património de seu pai, respondendo pela sua satisfação a herança deste.
As nulidades das decisões (em sentido lato, abrangendo a sentença/acórdão e os despachos) encontram-se atualmente previstas taxativamente no artigo 615.º do CPC vigente (que corresponde, com alterações, ao anterior artigo 668.º).
Estas nulidades são vícios que afetam a validade formal da sentença em si mesma e que, por essa razão, projetam um desvalor sobre a decisão, do qual resulta a inutilização do julgado na parte afetada, reportando-se a alínea d) do preceito aos limites da sentença.
Para o efeito, dispõe o n.º1, alínea d) do artigo 615.º do CPC, que a sentença é nula quando o juiz deixe de conhecer de que questões que devesse apreciar, encontrando-se tal preceito carecido de conjugação com o que dispõe o artigo 608.º, n.º 2 do CPC, ou seja, o juiz deve resolver todas as questões que as partes hajam submetido à sua apreciação, excetuando aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não podendo ocupar-se senão daquelas suscitadas pelas partes, salvo quando a lei lhe permite o conhecimento oficioso de outras.
Sendo assim, ocorre omissão de pronúncia quando o tribunal deixou de conhecer questões, que não argumentos invocados pelas partes para fundar as suas posições, ou seja, os concretos problemas jurídicos que sejam relevantes para solucionar o litígio em face da causa de pedir e do pedido, das exceções e contra exceções invocadas.[3]
Donde decorre que as deficiências de apreciação, mormente por erro de julgamento, não se enquadram na previsão da norma, aplicável apenas quando haja o silenciar absoluto de qualquer questão de cognição obrigatória, não se preenchendo aquela previsão quando a decisão seja sintética e/ou escassamente fundamentada, nomeadamente, quando não haja pronúncia sobre todos os argumentos e razões aduzidas pelas partes.[4]
No caso em apreço, resulta da leitura da sentença recorrida que se pronunciou sobre a questão da atualização, negando-a (cfr. ponto 3 do segmento decisório da sentença), quando se escreveu na mesma:
“No que respeita à atualização do valor, nos termos pretendidos pelos autores, não lhes reconhece o tribunal razão.
Com efeito, a sucessão abre-se no momento da morte do seu autor – cfr. art. 2031º do Código Civil – sendo chamados à titularidade das relações jurídicas do falecido os seus sucessores – cfr. art. 2032º do Código Civil. É, este, pois, o momento relevante para a definição do acervo hereditário, o qual passa a ser administrado até à liquidação e partilha pelo cabeça de casal – cfr. arts. 2079º e 2087º do Código Civil – prevendo a lei que este preste contas da administração - cfr. art. 2093º do Código Civil e distribua o resultado positivo desta”
Assim sendo, independentemente de haver ou não acerto no decidido no que concerne à atualização (o que de seguida se analisará por se tratar de matéria que, nessa perspectiva, também integra o objeto do recurso), a sentença ponderou e decidiu a questão da atualização dos valores em causa, pelo que a sentença não é nula.
1.2. Atualização dos direitos de crédito provenientes da cessão da quota da sociedade SAS, Ld.ª:
Defendem os apelantes que a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento quando não procedeu à atualização do valor do crédito consubstanciado em 28 letras de câmbio, no valor de 150.000.$00/€748,20, cada, que foram entregues ao pai dos autores como forma de pagamento da cessão de quota que detinha na sociedade SAS, Ld.ª.
A fundamentação da decisão, que negou a atualização pedida, consta do trecho acima extratado.
Vejamos, então, a argumentação dos apelantes.
Entendem que a sentença errou, essencialmente porque defendem que o direito de crédito titulado pelas letras de câmbio é atualizável, invocando, para o efeito, para além do mais, que não está em causa uma obrigação pecuniária, stricto sensu, essa sim sujeita ao princípio nominalista inserto no artigo 550.º do Código Civil.
Não têm, contudo, os apelantes qualquer razão, pelas razões que passamos a concretizar.
Conforme consta da sentença, e que reiteramos sem necessidade de maiores considerações, até porque essa questão não se encontra em apreciação no recurso, à data da morte da mãe dos apelantes faziam parte do património do casal, as 28 letras de câmbio referidas, integrando a meação e o acervo hereditário por morte daquela, sendo os autores e o seu falecido pai, os únicos herdeiros da falecida (cfr. artigos 1732.º,1733.º, 2024.º, 2030.º, 2031.º e 2032.º, todos do Código Civil).
As letras de câmbio são títulos de crédito pelo qual o emitente (sacador) dá uma ordem de pagamento a outrem (sacado) para pagar a um terceiro beneficiário (tomador), ou à ordem deste, uma determinada quantia em dinheiro.[5]
Sendo a letra uma ordem de pagamento à ordem, transmissível por endosso, o tomador ou beneficiário da letra pode cobrar a letra na data do seu vencimento ou, em vez disso, endossar a letra a um terceiro (situação que terá sucedido nos autos, conforme decorre do facto provado n.º 13) - cfr. artigos 1.º, n.º 2 e 11.º da LULL.
Pode estar na base dessa relação cartular uma pluralidade de obrigações subjacentes. Porém, e no que diz respeito aos requisitos formais da letra de câmbio (menções obrigatórias), a letra deve enunciar um ordem de pagamento (incondicionada e incondicionável) tendo por objeto uma quantia pecuniária (artigo 1.º, n.º 2 e 2.º da LULL).
A quantia pecuniária deve ser determinada, ou seja, deve consistir num montante exato expresso em moeda com curso legal no país ou no estrangeiro (artigo 41.º da LULL).
A obrigação pecuniária titulada pela letra de câmbio não está sujeita a atualização. Tal decorre do disposto no artigo 550.º do Código Civil que prevê o princípio nominalista das obrigações pecuniárias, quando estipula: “O cumprimento das obrigações pecuniárias faz-se em moeda que tenha curso legal no País à data em for efectuado e pelo valor nominal que a moeda nesse momento tiver, salvo estipulação em contrário.”
Conforme refere Almeida Costa, as obrigações que têm por objeto uma simples quantia pecuniária, pagável em quaisquer das espécies admitidas pelo sistema monetário visado, são obrigações de quantidade ou de soma (dívidas de dinheiro, que correspondem a autênticas e próprias obrigações pecuniárias), sujeitas, salvo estipulação em contrário, ao princípio nominalista ou da não atualização, ao contrário das chamadas dívidas de valor, que são aquelas em que o objeto não consiste diretamente numa impotência em dinheiro, mas numa prestação diversa, intervindo o dinheiro apenas como meio de determinação do seu quantitativo ou respetiva liquidação (apontando-se como exemplos típicos, a obrigação de restituição baseada no enriquecimento sem causa (artigo 479.º do Código Civil), a obrigação de indemnização por equivalente (artigo 566.º do Código Civil), a obrigação de alimentos (artigo 2003.º e seguintes do Código Civil), e, ainda, algumas situações expressamente previstas na lei – cfr, por exemplo, artigos 2012.º e 2029.º, n.º 3, do Código Civil).[6]
As letras de câmbio tendo como objeto uma ordem de pagamento de uma determinada quantia pecuniária titulam obrigações pecuniárias, sujeitas, por conseguinte, ao princípio nominalista, previsto no artigo 550.º do Código Civil.
Razão pela qual, o valor a ter em conta no acervo hereditário é o valor nominal constante dos títulos de crédito à data da abertura da sucessão, ou seja, à data do falecimento da mãe dos apelantes (artigo 2031.º do Código Civil).
Defendem, contudo, os apelantes que à semelhança da previsão de outras normas vigentes no direito sucessório, nomeadamente o regime da partilha em vida por via da doação em vida (artigo 2029.º do Código Civil) e da alienação a favor de terceiro por parte do detentor de bens da herança (artigo 2076.º do Código Civil), se impunha a atualização da quantia pecuniária titulada pelas referidas letras de câmbio.
Como já se deixou assinalado, as dívidas pecuniárias só são atualizáveis, salvo estipulação em contrário, e nos casos expressamente previstos na lei, não se enquadrando a situação descrita nos autos em nenhuma dessas situações.
As normas invocadas pelos apelantes ao permitirem a atualização da tornas devidas pelos donatários aos herdeiros legitimários (n.º 3 do artigo 2029.º) e a responsabilidade do alienante de boa-fé segundo as regras do enriquecimento sem causa (artigo 2076.º, n.º 2) enquadram-se na ressalva na parte final do artigo 550.º do Código Civil, ou seja, são situações em que há disposição legal em sentido contrário, afastando-se o princípio nominalista em prol do princípio da atualização.
Tratam-se, por conseguinte, de normas que fogem ao regime regra, apresentando-se como excecionais.
A sua interpretação não comporta aplicação analógica, embora possam ser interpretadas extensivamente (artigo 11.º do Código Civil).
Porém, a interpretação extensiva depende da existência de uma norma cuja previsão é necessário alargar, por o legislador ter dito menos do que queria, reconstituindo o intérprete parte do texto da lei segundo os critérios estabelecidos no artigo 9.º do Código Civil.
Contudo, a interpretação extensiva não se confunde com interpretação extensiva analógica (ou seja, extensão da lei por analogia, ou dito de outro modo, a analogia juris[7], não permitida pelo artigo 11.º do Código civil), que, no fundo, é o pretendido pelos apelantes quando remetem pura e simplesmente para outras normas que regulam aspetos específicos da sucessão, aludindo genericamente a uma intenção legislativa que visa o “equilíbrio económico entre os herdeiros”, sem cuidarem de concretizar em que medida a situação descrita nos autos tem semelhança com as referidas que justifiquem igual tratamento.
Não se vislumbra, pois, da alegação dos apelantes que a situação descrita nos autos seja similar à prevista nos artigos mencionados pelos apelantes.
De qualquer modo, sempre se dirá que o mencionado equilíbrio económico dos herdeiros invocado pelos apelantes não se encontra em crise na situação em apreço uma vez que os valores nominais que vão ser considerados na partilha, no momento em que a mesma se irá realizar, afeta todos os interessados do mesmo modo.
Por outro lado, a utilização das quantias por parte do falecido pai dos apelantes é matéria que não cabe na apreciação da presente ação, relembrando-se que a mesma é tão só uma ação de simples apreciação (cfr. artigo 4.º do anterior CPC, com correspondência no atual artigo 10.º do CPC), não cabendo no seu objeto a apreciação dos atos de administração da herança a cargo do cabeça-de-casal (artigos 2079.º, 2087.º e 2093.º do Código Civil).
Em suma, todas as considerações vertidas nas conclusões recursórias que partem do pressuposto que a quantia pecuniária em causa está sujeita a atualização não têm qualquer fundamento legal, mormente quando se invoca a verificação dos pressupostos do enriquecimento sem causa previstos no artigo 473.º do Código Civil, ou a perda do poder aquisitivo que a mesma quantia poderia proporcionar se tivesse sido rentabilizada.
Do mesmo modo, as considerações baseados no não arrolamento dos títulos de créditos aquando do processo de imposto sucessório (cfr. facto provado n.º 6) em nada interferem com os pressupostos legais da aplicação do mencionado princípio nominalista, daí não se podendo retirar as conclusões que os apelantes retiram no sentido da sonegação e apropriação ilícita de bens por parte do seu progenitor e da necessidade de serem compensados por não terem usufruído desse bem.
Acresce, ainda, e em conformidade com os elementos juntos aos autos, que os apelantes, apesar de lhes assistir tal direito (artigo 2101.º, n.º 1, do Código Civil), não pugnaram pela partilha dos bens deixados por morte da sua mãe, não obstante terem decorrido mais de 28 anos entre o falecimento da mesma e o falecimento do pai, não se compreendendo, agora, que venham imputar à ré qualquer responsabilidade pela fruição indevida de bens pertença do acervo hereditário da mãe dos apelantes, quando nem sequer está demonstrado que o valor pecuniário titulado pelas letras de câmbio, ou o remanescente recebido após a compra da quota referida no facto provado n.º 8 (cfr. facto provado n.º 13), continuasse a existir à data do casamento do falecido pai dos autores com a ré.
Em face de todo o exposto, a sentença não incorreu nos erros de julgamento que os apelantes lhe imputam, não se encontrando violadas as normas legais invocadas, ou outras, que justifiquem os reparos feitos à sentença.
Improcede, pois, a apelação dos autores.
2. Apelação da ré:
Começa a apelante por enunciar na primeira conclusão que pretende impugnar a decisão relativa à matéria de facto quanto ao facto do tribunal recorrido ter dado como provado que a quota nominal de 3.600.000$00 subscrita por FM, já na constância do matrimónio com a ré/apelante, ter sido considerada um bem próprio deste.
Nas conclusões seguintes, invoca que o tribunal errou na interpretação da matéria de facto e na valoração dos depoimentos das testemunhas apresentadas pelos autores, já que não se provou que o aumento de capital social tivesse sido realizado com bens próprios do falecido FM.
Remata, finalmente, defendendo que a quota em causa deve ser considerada um bem comum do casal.
Vejamos.
 Embora a apelante coloque a questão em termos de impugnação da decisão de facto, invocando a sua discordância relativamente à valoração da prova, é perfeitamente percetível que a questão que coloca não se reconduz à impugnação da decisão de facto, mas sim à aplicação do direito aos factos provados, ou seja, a questão é de direito e não de facto.
Na verdade, aferir da natureza dos bens – próprios ou comuns – afetos à aquisição da quota, e por conseguinte, da natureza do bem assim adquirido, é essencialmente uma questão de direito.
Já saber quais os bens que concretamente foram afetos à aquisição e qual a proveniência dos mesmos, situa-se no campo do facto.
Porém, conforme decorre da leitura dos três pontos da base instrutória[8], o que ali está em discussão é o apuramento de valores que compunham o património do falecido FM à data do falecimento da primeira mulher, MHM, em 21/06/1985, e não propriamente se a quota referida foi adquirida com bens próprios do adquirente ou se também o foi com bens comuns do casal constituído pelo mesmo e pela ré.
Por conseguinte, ainda que a apelante manifeste a vontade de impugnar a decisão de facto, não está e causa uma questão de facto, mas de direito, sendo que a putativa impugnação da decisão de facto sempre teria de ser rejeitada, porquanto a apelante não menciona nas conclusões de recurso qual a concreta matéria de facto cuja resposta pretende ver alterada, quais os concretos meios probatórios que implicavam decisão diversa por referência aos concretos factos impugnados e, finalmente, qual a decisão fática que deveria ter sido proferida, por referência ao cumprimento dos ónus previstos no artigo 640.º, n.º1, alíneas a) a d), e n.º 2, do CPC 2013 (aplicável ao regime recursório deste processo, considerando a data da sentença e o disposto no artigo 7.º, n.º 1 da Lei n.º 41/2013, de 26/06, que aprovou o CPC atualmente em vigor).
Nestes termos, e em relação à decisão de facto, por oficiosamente também não se evidenciar razão para proceder à alteração da mesma (cfr. artigo 662.º do CPC), a matéria de facto a considerar na sindicabilidade da decisão de direito, é a que consta do quadro factual dado como provado na 1.ª instância.
Vejamos, então, a questão de direito, que se reconduz a saber se a quota referenciada é um bem próprio ou comum do casal constituído que foi pelo falecido FM e pela ré/apelante HM.
Do segmento decisório da sentença, contra o qual a apelante reage, consta o seguinte:
Declara constituir bem próprio de FM (…) a quota de três milhões e seiscentos mil escudos resultante da escritura pública de cessão de quotas e aumento de capital celebrada pelos sócios da empresa «AB, Lda», nos termos constantes do documento junto a fls. 53 e segs.. mediante o reforço de nove milhões de escudos em numerário, em 19 de novembro de 1992, sem prejuízo da eventual compensação devida ao património comum, no que concerne ao valor correspondente ao aumento de capital.”
Na fundamentação do decidido, escreveu-se na sentença o seguinte:
“Resta apreciar a matéria atinente à quota adquirida pelo falecido pai dos autores na sociedade «AB, Lda» em agosto de 1985, o que lhe permitiu participar no aumento de capital realizado já na constância do casamento celebrado com a ré sob o regime da comunhão de adquiridos, em 10 de janeiro de 1987.
Estabelece o art. 1722º, nº1, al. c) do Código Civil que são considerados próprios dos cônjuges os bens adquiridos por estes na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.
Não há qualquer dúvida que, tratando-se de bens da titularidade do falecido FM à data da celebração do seu casamento sob o regime de comunhão de adquiridos com a ré, constituem as quotas da sociedade bens próprios deste – cfr. art. 1722º, nº1, al. a) do Código Civil.
Não resulta dos autos que haja sido feito constar do título que serviu de base ao aumento de capital que este tivesse sido realizado com recurso a bens próprios de FM, conforme previsto no art. 1723º, al. c) do Código Civil, nem resultou da prova produzida que assim sucedesse.
Não obstante, citando um acórdão do nosso STJ proferido sobre a matéria em 24-9-96, o qual é chamado à colação no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa 20-10-2011 (proferido no Proc. 372/09.1TCFUN.L1-2, disponível in www.dgsi.pt), diremos que a ratio das normas constantes dos arts. 1722º, nº1, al. c) e 1723º do Código Civil «se torna clara: aquilo que era próprio do casamento, deve continuar a sê-lo e para que tal desiderato não seja uma simples “boa intenção” subvertida pelas realidades da vida, o que já era próprio deve transmitir essa qualidade ao que aparecer em seu lugar. Este é um resultado da verdade substancial, em desfavor das simples sombras ou aparências. E é assim que o art. 1723º CC tem que ser aplicado em sintonia, tanto quanto possível, com os princípios básicos deste instituto. Daí resulta que, harmónica e razoavelmente, a sub-rogação real directa ou indirecta, relativamente a bens que eram próprios, deve ter como resultado que os bens substitutos dos próprios, próprios devem ser. Ou então, a lógica, de lógica só tem o nome». E prosseguindo na citação, com as devidas adaptações, desta feita do próprio texto do acórdão do Tribunal da Relação referido, «a quota em causa nos autos, ainda que aumentada sucessivamente após o casamento do A. com a R. realizado em comunhão de adquiridos, não deixa de ser um bem próprio do A., porque a adquiriu em solteiro – cfr. art. 1722º/2, al. c) CC. O que a R. ora apelante tem direito é a “comungar” no âmbito patrimonial dessa quota, na medida em que os aumentos da mesma, realizados já na vigência do casamento, tenham advindo de proventos comuns» o que se reconduzirá ao disposto no art. 1728º, nº1 do Código Civil.
Procede, pois, nesta medida, o pedido deduzido pelos Autores”
Vejamos, então, se assim será.
Resulta da leitura da escritura pública de cessão de quotas e aumento de capital realizada no dia 19/11/1992, junta a fls. 52 a 57 dos autos (mencionada no ponto 10 dos factos provados), que por força da mesma, e no que diz respeito ao ali terceiro outorgante, FM, ficou detentor de “uma quota do valor nominal de quatrocentos mil escudos, com a natureza de bem próprio (…)” e que, por força do aumento de capital social realizado também naquele ato, o mesmo outorgante ficou detentor (para além da quota de 400.000$00, já referida), com uma “outra de três milhões e seiscentos mil escudos…”.
Consta, ainda, da escritura, e no que concerne ao aumento do capital social, que, por força da cessão de quotas realizada, os dois únicos sócios daquela sociedade (MMA e FM) deliberavam aumentar o capital social, subscrevendo o sócio FM a quantia de 3.6000.00$00, e que “a importância subscrita pelo FM, fica a constituir uma nova quota de três milhões e seiscentos mil escudos.”
A questão em discussão reconduz-se apenas a esta nova quota no valor de 3.6000.00$00 saída do aumento do capital social e não interfere com o decidido na sentença quanto à quota no valor de 400.000$00, que foi decidido tratar-se de um bem próprio do falecido sócio, sem que as partes venham questionar no recurso esse segmento da decisão.
Sendo assim, importa, agora, considerar o disposto nos artigos 1721.º e seguintes, do Código Civil, a fim de se determinar se a quota em causa é um bem comum do casal ou um bem próprio do falecido FM.
Tratando-se de um bem adquirido durante a constância do matrimónio do falecido adquirente e da ora apelante, atento o regime de bens vigente na pendência do casamento, ou seja, o regime de comunhão de adquiridos é, em princípio, um bem comum (cfr. artigos 1717.º e 1721.º e seguintes do Código Civil).
Neste regime, fazem parte da comunhão, o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei (artigo 1724º).
Porém, são considerados bens próprios de cada cônjuge, como resulta do disposto no artigo 1722.º, alínea c), os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior, bem como os bens adquiridos por virtude da titularidade de bens próprios, que não possam considerar-se frutos destes, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum (artigo 1728.º, n.º 1, do Código Civil).
Os dois preceitos estabelecem no n.º 2 de cada um deles, exemplificativamente, algumas situações em que se verifica a previsão respetiva.
Também conservam a qualidade de bens próprios os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, desde que a proveniência do dinheiro ou valores seja devidamente mencionada no documento de aquisição ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges (artigo 1723.º, alínea c) do Código Civil).
Referem Pires de Lima e Antunes Varela, interpretando o artigo 1722.º, n.º 1, alínea c) e artigo 1728.º, n.º 1, que “[O] artigo 1728.º refere-se a mais uma categoria de bens próprios – a daquelas que o são, por virtude da sua ligação material ou jurídica com outros bens próprios do cônjuge.”
Acrescentando que “[N]ão se confundem os bens próprios por virtude da titularidade de bens próprios com os bens adquiridos por virtude de direito próprio anterior, de que tratam a alínea c) do n.º 1 e o n.º 2 do artigo 1722.º.
No último caso, a aquisição assenta na concretização, conversão ou exercício de um direito ou expectativa (de um poder) anterior à celebração do casamento; no primeiro, a aquisição não nasce de um direito anterior, mas de um direito posteriormente atribuído ao cônjuge, com base na relação de conexão existente entre os novos bens e os bens de que o cônjuge já era titular.
Mera realização de um poder anterior, num dos casos; relação objectiva entre bens, servindo de base à concessão ex post de um novo direito no outro.
Em todo o caso, a relação de conexão existente entre os bens próprios originários e os bens adquiridos ex vi legis tem como resultado que a integração destes no património próprio do cônjuge pode, sob certo aspecto, ser considerada como uma expansão do direito de propriedade exclusiva desse sujeito.
À semelhança, no entanto, do que sucede noutros casos paralelos (cfr. arts. 1722.º, n.º 2, 1726.º, n.º 2, e 1727.º), prevê-se também no artigo 1728.º a necessidade de compensar o património comum, sempre que a nova aquisição tenha envolvido despesas custadas com dinheiro ou outros valores comuns.”
No caso em apreciação, não se afigura que se verifique a previsão do artigo 1722.º, alínea c) do Código Civil, porquanto a aquisição, ainda que seja de uma nova quota, no valor de 3.600.000$00, adquirida na constância do matrimónio do falecido FM com a ré, não decorre da concretização, conversão ou exercício ou expetativa anterior à celebração do casamento, na medida em que a aquisição está diretamente relacionada ao aumento de capital social e esse ato ocorreu na vigência do casamento do falecido com a ora ré.
Também não se verifica a previsão do artigo 1723.º, alínea c) do Código Civil, porquanto na escritura de cessão de quotas e aumento de capital não consta que a proveniência do dinheiro com que o falecido FM adquiriu a quota, nem sequer a ora ré HM teve intervenção no ato, requisitos estes essenciais à verificação da previsão normativa.
Tal como se refere no recente acórdão do STJ[9], citando Pires de Lima e Antunes Varela[10], “a falta de menção da proveniência do dinheiro ou valores com que a aquisição seja feita constituiu presunção iuris et iuris de que estes meios são comuns não só para efeito de qualificação dos bens adquiridos mas também para o acerto das relações entre o património comum (…) e o património próprio de cada cônjuge”, acrescentando ainda, citando o segundo autor[11], que “os bens adquiridos com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges só se consideram como bens próprios quando a proveniência do dinheiro ou valores seja referida no próprio documento da aquisição ou em documento equivalente, com intervenção de ambos os cônjuges. Só nesses termos a aquisição com bens próprios oferece prova bastante, aos olhos das leis (art. 1723.º, c).”[12]
Sendo que, na situação em apreciação, estando em causa na lide não apenas as relações entre os cônjuges, mas também a proteção de terceiros, herdeiros do falecido, ora autores, não colhe defender a interpretação, que alguns fazem do preceito, no sentido de ser admitido qualquer meio de prova quanto à demonstração da previsão da alínea c) do citado artigo 1723.º[13].
Neste prisma, a quota em causa teria de se considerar bem comum.
Não obstante, importa também considerar o disposto no artigo 1728.º, n.º 1, do Código Civil, decisivo, a nosso ver, para a solução a dar ao caso.
Embora a aquisição da quota no valor e 3.6000,00$00 se apresente como uma nova quota, considerando o teor da escritura de cessão de quotas e de aumento de capital, a sua aquisição surge na sequência do aumento de capital por parte dos dois (e únicos) sócios gerentes da sociedade em causa.
Assim, existe uma relação de conexão entre a quota anterior e a posição jurídica detida pelo falecido FV na sociedade AB, Ld.ª e a aquisição desta nova quota social.
Esta estreita conexão permite subsumir a situação ao disposto no artigo 1728.º, n.º 1, do Código Civil, ou seja, a nova quota é um bem próprio do adquirente da mesma, ainda que o ato tenha ocorrido durante a constância do casamento deste com a ré, porquanto a sua aquisição, nos termos e circunstâncias em que o foi, decorre da ligação material e jurídica que o mesmo mantinha com aquela sociedade por virtude da quota de que já era detentor em momento anterior ao casamento e do sequencial aumento de capital por parte dos dois sócios gerentes da sociedade que determinou, para o falecido FM, não apenas um aumento do valor da quota existente, mas a formação de uma outra quota social, porventura considerando que a quota já existente foi tida como um bem próprio daquele sócio (conforme consta expressamente da escritura pública aludida) e o aumento de capital ocorreu quando o mesmo já era casado.
Por conseguinte, a referida quota de 3.6000,00$00 tem a natureza de bem próprio do falecido FM, sem prejuízo da necessidade de compensação do património comum na exata medida em que este possa ter contribuído para a aquisição, o que não decorre probatoriamente dos factos provados de forma cabal e inequívoca. Repare-se que dos pontos 11 e 12 dos factos provados não decorre se à data da aquisição, em 1992, e em plena vigência do casamento do adquirente e da ré, o valor afeto ao aumento de capital da sociedade e aquisição da quota mencionada era um bem próprio do falecido FM ou se um bem comum do casal, porquanto não perdem a qualidade de bens comuns o facto dos bens que integram a comunhão nos termos do artigo 1724.º do Código Civil apenas constituírem objeto de uma conta bancária titulada apenas por um dos cônjuges no momento da aquisição do bem.
Em face do exposto, improcede a apelação da ré.
Dado o decaimento, as custas das apelações ficam a cargo de cada um dos respetivos apelantes (artigo 527.º do CPC), sendo a taxa de justiça do recurso fixada pela tabela referida no n.º 2 do artigo 6.º do RCP.
IV- DECISÃO
Nos termos e pelas razões expostas, acordam em julgar improcedentes as duas apelações, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas nos termos sobreditos.
Lisboa, 09 de dezembro de 2014
 (Maria Adelaide Domingos - Relatora)
(Eurico José Marques dos Reis - 1.º Adjunto)
 (Ana Grácio - 2.ª Adjunta)
[1] Leva-se em atenção a petição inicial após aperfeiçoamento que se encontra a fls. 111 a 122.
[2] Correspondente ao segmento do pedido que se numerou sob o n.º 4, ainda que o tribunal tenha levado em conta a redação dada na petição inicial sem posterior aperfeiçoamento.
[3] Cfr. ANTUNES VARELA et al.,“Manual de Processo Civil”, 2.ª ed., 1985, Coimbra Editora, p. 688 e LEBRE DE FREITAS et al., “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 670.
[4] Neste sentido, exemplificativamente, cfr. Ac. STJ, de 27.10.2009, proc. 93/1999.L1.S2, em www. dgsi.pt.
[5] Trata-se de uma noção consensualizada na doutrina, conforme faz notar JOSÉ ENGRÁCIA ANTUNES, “Os Títulos de Crédito, Uma Introdução”, Coimbra Editora, 2009, p. 51.
[6] ALEMIDA COSTA, “Direito das Obrigações”, Almedina, 7.ª ed., p. 649-655.
[7] Segundo BAPTISTA MACHADO, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, 1983, 327, o artigo 11.º do Código Civil permite a “analogia legis”, mas não a “analogia juris”, já que o que é proibido é transformar a exceção em regra, i.e., partir dos casos taxativamente enunciados pela lei para induzir deles um princípio geral que, através da analogia “juris” permitiria depois regular outros casos não previstos, por concretização dessa cláusula ou princípio geral. Mas é permitido estender analogicamente a hipótese normativa que prever um tipo particular de casos a outros casos particulares do mesmo tipo e perfeitamente paralelos ou análogos aos casos previstos na sua própria particularidade.
[8] A base instrutória foi organizada do seguinte modo: “1- O pai dos autores recebeu o valor do endosso das letras aludidas em E) em data posterior a 21 de Junho de 1985?”; “2- A conta n.º 0520721 do BPI da titularidade exclusiva do falecido era aprovisionada exclusivamente com poupanças dos pais dos autores e quantias provindas da sociedade?”; “3- E apresentava em 21-06-1985, um saldo credor?”. O ponto 1 recebeu a resposta que consta do ponto 13 dos factos provados e os pontos 2 e 3 receberam a resposta: “Não provado”.
[9] Ac. STJ, de 29.05.2014, CJ/STJ, 2014, t. II, p. 119-121, maxime, p. 121.
[10] “Código Civil Anotado”, Vol, IV, 2.ª ed. p. 427.
[11] “Direito da Família”, 2.ª ed, p. 458.
[12] Cfr. , neste sentido, e também citada no acórdão supra, Rita Lobo Xavier, “Limites à Autonomia Privada na Disciplina das Relações Patrimoniais entre os Cônjuges”, Coimbra, 2000, p. 350.
[13] Cfr., por todos, Ac. STJ, de 13.07.2010. proc. 1047/06-9TVPTR.P1.S1, em www.dgsi.pt