Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
26412/16.0T8LSB.L2-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: ACÇÃO POPULAR
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/26/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A DECISÃO
Sumário: Sumário (art.º 663.º n.º 7 do CPC)
I. O objeto natural e próprio da ação popular e que pressupõe o alargamento da legitimidade próprio do autor popular é uma tutela coletiva que impõe a abstração de algumas particularidades respeitantes a cada um dos titulares lesados.
II. O autor popular não tem legitimidade para apresentar em juízo pedidos de providência jurisdicional próprios da clássica ação individual, norteada pela tutela do interesse individual de cada um dos consumidores concretamente lesados.
III. Assim, no caso dos presentes autos, a A., associação de defesa dos interesses dos consumidores, não tem legitimidade para peticionar, em alegada ação popular, que o tribunal condene as RR. a retomarem os veículos afetados pagando aos respetivos proprietários um valor que dependerá do valor inicial do veículo, do ano, da kilometragem mas que não poderá ser inferior a um montante entre os 12.500 USD e os 44.000 USD oferecido aos consumidores norte-americanos, ou a repará-los, se for essa a opção dos consumidores e se a reparação do veículo for possível; a assumirem os custos remanescentes dos contratos de aluguer ou leasing celebrados pelos consumidores para aquisição dos veículos afetados, no caso dos consumidores optarem por porem fim a tais contratos; a pagarem aos consumidores uma indemnização pelas informações falsas produzidas e pela depreciação do valor dos veículos afetados, não inferior a um montante entre os 5.100 USD e os 10.000 USD ou, em alternativa, se o tribunal assim o entender, a 15% do valor de compra do veículo.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

I. RELATÓRIO
1. Em 27.10.2016 Associação (…) instaurou ação popular contra V AG, S S.A., SV S.A. e S Lda.
A A. alegou, em síntese, que é uma associação privada de utilidade pública, interesse genérico e âmbito nacional cujo objeto é a defesa dos direitos e interesses dos consumidores em geral. A 1.ª R. (V AG) é uma sociedade comercial registada na Alemanha que se dedica ao fabrico e comercialização de veículos automóveis das marcas V, A, S, entre outros. A 2.ª R. (S S.A.) é uma sociedade comercial registada em Espanha que se dedica ao fabrico e comercialização de veículos automóveis da marca S, entre outros. A 3.ª R. (SV) é uma sociedade comercial que se dedica à importação e comercialização de veículos automóveis nomeadamente das marcas V, A e S. A 4.ª R. (S Lda) é uma sociedade comercial que se dedica à importação e comercialização de veículos automóveis nomeadamente da marca S. Sucede que a 1.ª e 2.ª RR. fabricaram e venderam veículos que as 3.ª e 4.ª RR. importaram e venderam aos consumidores em Portugal nos quais a 1.ª R. introduziu uma aplicação informática que manipula os testes que controlam as emissões de gases emitidas pelos veículos automóveis. De facto, a 1.ª R. concebeu e instalou um dispositivo manipulador nos veículos em questão, na forma de um algoritmo de software sofisticado, que deteta quando um veículo está a ser objeto de ensaio para efeitos de controlo das emissões poluentes. Através de comunicado de 22.09.2015 a 1.ª R. tornou público que segundo a investigação interna efetuada, foi apurado que o problema da manipulação das emissões poluentes abrangia o motor do modelo (…), envolvendo cerca de 11 milhões de veículos a nível mundial, adiantando estar a estudar medidas para a resolução do problema. Segundo a A. apurou junto das 3.ª e 4.ª RR., em Portugal o número de veículos abrangidos pela manipulação supra referida é de 102 140 dos comercializados pela 3.ª R e de 23 351 dos comercializados pela 4.ª R.. A manipulação supra descrita tem consequências práticas e diretas para os consumidores que adquiriram veículos automóveis às RR.. Os veículos em causa foram homologados como respeitando a Norma Euro 5 devido à manipulação supra descrita. Sem essa manipulação não respeitariam a Norma Euro 5 pelo que nem sequer poderiam ser comercializados já que, a partir de 2011, só podiam ser comercializados veículos que respeitassem aquele standard. Ou seja, as RR. venderam aos consumidores veículos que não podiam ser comercializados, que não podiam sequer circular. Acresce ainda que as RR. aderiram voluntariamente ao Código de Conduta da V no qual assumem especiais obrigações em matéria ambiental, de escrupuloso cumprimento da lei, regras da concorrência e convenções internacionais. Construíram, assim, a sua imagem pública, enquanto fabricante de automóveis, como uma marca defensora do meio ambiente apostada na inovação tecnológica e responsabilidade ecológica, com isso procurando ganhar a confiança e credibilidade dos consumidores quanto aos veículos que comercializam. Por outro lado, os consumidores adquiriram os seus veículos com base em várias características, entre elas, o desempenho e os consumos médios do veículo. Ora a manipulação suprarreferida afetou igualmente o rendimento, desempenho e consumo dos veículos afetados. Sendo os consumos e as emissões reais superiores aos publicitados e contratados. O que significa que ao efetuar a manipulação descrita as RR. levaram os consumidores a optar pelos veículos das marcas que representam em detrimento de veículos de outras marcas cujo rendimento, desempenho, consumos e preço, comparativamente, poderiam ser mais competitivos. Distorcendo assim a leal concorrência a que estão obrigados. Acresce ainda que o valor comercial de tais veículos no mercado de usados ficou definitivamente comprometido o que também configura um prejuízo sério para os consumidores afetados. Por outro lado, a atualização de software efetuada pelas RR. para resolver o problema não é eficaz, pois a emissão de gases NOx não cumpre a Norma Euro 5 nem, muito menos, a Norma Euro 6. E o consumo de combustível, segundo os testes realizados, é cerca de 40% superior ao declarado pelas RR.. A 1ª R. já se comprometeu a compensar os consumidores afetados nos Estados Unidos da América. Na verdade, como foi publicamente noticiado a 1.ª R. chegou a um acordo nos EUA que envolve o pagamento de cerca de 14.7 biliões de USD no qual se comprometeu com várias opções: A recomprar os veículos afetados num valor que varia entre os 12.500 USD e os 44.000 USD dependendo do valor do veículo, do ano, da quilometragem; a pagar ou perdoar os empréstimos que os consumidores tenham contratado para compra dos veículos afetados; os consumidores podem optar por ficar com os seus veículos desde que a 1.ª R. consiga repará-los de forma que eles cumpram com as normas obrigatórias em termos de emissões NOx; neste caso, a 1.ª R. comprometeu-se a repará-los e a compensar os consumidores pelos danos que tiveram com a publicidade enganosa e com a depreciação do valor do veículo num montante que pode variar entre os 5.100 USD e os 10.000 USD; os consumidores que já venderam os seus veículos afetados podem também receber uma compensação proporcional que será dividida com os compradores de tais veículos; adicionalmente a 1.ª R. acordou igualmente em pagar 2.7 biliões de USD no âmbito do Programa de Redução de Emissões como forma de compensar a sociedade pela poluição adicional que os veículos manipulados emitiram e emitem. As RR. violaram o direito à qualidade dos bens adquiridos e o direito à informação previstos nos artigos 3.º als. a) e d), 4.º e 8.º da Lei de Defesa do Consumidor. Violaram ainda o disposto no Dec.-Lei n.º 67/2003, de 08.4, já que não entregaram aos consumidores bens conformes com o contrato celebrado. Violaram igualmente o Regime das Práticas Comerciais Desleais, previsto no Dec.-Lei n.º 57/2008, de 26.3. Não sendo ainda conhecido o montante global da indemnização devida aos consumidores é lícita, nos termos do art.º 556.º n.º 1 al. b) do CPC, a formulação de pedido genérico, de condenação no montante que se vier a apurar e quantificar em incidente de liquidação a tal destinado.
A A. terminou formulando o seguinte petitório:
Nestes termos e nos demais de direito deve a presente acção ser julgada procedente por provada e em consequência serem as RR. solidariamente condenadas a:
a. Retomar os veículos afectados pagando aos respetivos proprietários um valor que dependerá do valor inicial do veículo, do ano, da kilometragem mas que não poderá ser inferior a um montante entre os 12.500 USD e os 44.000 USD oferecido aos consumidores norte-americanos;
b. Ou a repará-los, se for essa a opção dos consumidores e se a reparação do veículo for possível;
c. A assumirem os custos remanescentes dos contratos de aluguer ou leasing celebrados pelos consumidores para aquisição dos veículos afectados, no caso dos consumidores optarem por por fim a tais contratos;
d. A pagar aos consumidores uma indemnização pelas informações falsas produzidas e pela depreciação do valor dos veículos afectados, que não pode ser inferior a um montante entre os 5.100 USD e os 10.000 USD que a 1ª R. se comprometeu a pagar aos consumidores norte-americanos ou, em alternativa, se o tribunal assim o entender a 15% do valor de compra do veículo”.
2. Em 25.9.2018 foi ordenada a citação por éditos e anúncios de eventuais interessados prevista no art.º 15.º da Lei n.º 83/95, de 31.8.
3. Todas as RR. contestaram, arguindo diversas exceções e impugnando a matéria de facto, concluindo pela sua absolvição da instância ou, subsidiariamente, pela improcedência da ação por não provada e consequente absolvição dos pedidos.
4. Em 21.10.2020 realizou-se audiência prévia na qual foi proferida sentença que considerou que os tribunais portugueses não tinham competência para apreciar o litígio e consequentemente absolveu as RR. da instância.
5. A A. apelou dessa sentença e em 27.4.2021 a Relação de Lisboa revogou-a, declarando que os tribunais portugueses tinham competência para julgar o litígio.
6. O mencionado acórdão da Relação foi confirmado por acórdão proferido pelo STJ em 14.10.2021.
7. Realizou-se nova audiência prévia e em 16.12.2021 foi proferida sentença na qual se julgou que a A. carecia de legitimidade ativa e consequente se absolveu as RR. da instância.
8. A A. apelou da sentença, tendo apresentado alegações em que formulou as seguintes conclusões:
1. Errou o tribunal a quo ao considerar não estarem verificados os pressupostos de uma ação popular e consequentemente não ter a A. legitimidade ativa fazendo errada interpretação e aplicação dos art.ºs 52º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, 22º n.º 2 e 3 da Lei 83/95, de 31/8 (LAP), 3º al. f) da Lei de Defesa do Consumidor e 31º do Código de Processo Civil.
2. As ações populares, principalmente, as que respeitam aos interesses dos consumidores abrangem quer os interesses individuais homogéneos, quer os interesses coletivos quer os interesses difusos por foça do disposto no art.º 3º al. f) da LDC e no art.º 22º n.ºs 2 e 3 da LAP.
3. Na presente ação o que está em causa é o software introduzido pela 1ª R. nos veículos que respetivamente as RR. produziram, importaram e venderam e que manipula os testes que controlam as emissões de gases de tais veículos. O que está em causa igualmente é a falta de informação e a prestação de informação falsa na produção, importação e venda de veículos aos consumidores. O que está em causa são os danos que tais comportamentos provocaram nos consumidores que adquiriram tais veículos, nos locais em que o fizeram.
4. As lesões provocadas pelas infrações das RR. - que são as mesmas e são genéricas, independentes da situação individual de cada consumidor: 1ª R. introduziu tal manipulação e as 2ª a 4ª RR. importaram e venderam tais veículos aos consumidores - afetaram um elevadíssimo número de consumidores.
5. Tais infrações lesaram coletivamente o bem jurídico do consumo e individualmente, e de forma homogénea, a esfera jurídica dos consumidores. Os pedidos visam, essencialmente que, com a condenação da ação das RR, esta permita a cada um dos consumidores lesados exercer o seu direito à reparação de danos.
6. O dano dos consumidores é também o mesmo: adquiriram veículos convencidos que tinham determinadas características, nomeadamente, de emissão de gases e de desempenho e tal não correspondeu à verdade estando lesados no seu património. Logo, existe não só um interesse coletivo de todos os consumidores afetados em Portugal como um interesse individual homogéneo de cada um deles a serem ressarcidos pelo dano que sofreram.
7. A apreciação jurídica da situação que deu origem aos danos sofridos pelos consumidores é, também, necessária e inequivocamente a mesma. A apreciação a ser feita pelo tribunal nesta ação é se a introdução de um dispositivo é uma ação ilícita, culposa e se é causa adequada ou não dos danos aos consumidores. A apreciação é única e indiferenciada. A quantificação e determinação da amplitude do dano é que decorre de uma ação individual. E por exigir-se esta determinação individual é que os interesses dos consumidores lesados deixam de ser apenas interesses coletivos e passam a ser interesses individuais homogéneos.
8. Significa isto que, para além de acontecer senão em todas na grande maioria das ações populares, o facto da situação concreta de cada consumidor no que diz respeito à quantificação dos danos que sofreu com a prática ilegal das RR. ser diferente em nada interfere com os interesses para cuja defesa a ação popular foi criada. O direito de cada um destes consumidores lesados a ser compensado pelos danos sofridos consubstancia um seu interesse individual, sendo que a lesão praticada por cada uma das RR. é igual na substância e na forma, afetando a pluralidade dos seus clientes de forma homogénea, pelo que, coletivamente, estamos perante a necessidade de tutela do mesmo interesse coletivo como se deixou demonstrado.
9. A melhor demonstração de que assim é, que as próprias RR. ora Recorridas assim entendem tais direitos e que o mesmo entendimento é perfilhado pelos tribunais que têm apreciado as mesmas questões internacionalmente, são os sucessivos acordos celebrados pela 1ª R. nos Estados Unidos da América, na Alemanha, na Austrália e no Canadá, no âmbito de ações coletivas (class actions) para compensar os consumidores dos respetivos países exatamente pelos mesmos problemas que os consumidores portugueses enfrentam e o facto das várias ações coletivas já elencadas terem sido consideradas admissíveis e naquelas em que houve condenações os tribunais terem-nas proferido independentemente da situação individual de cada consumidor ou da sua específica situação contratual.
10. Não faz qualquer sentido, não só em termos de economia processual como também de certeza e consistência jurídica, que sendo as infrações as mesmas, os direitos coletivos lesados os mesmos e sendo as questões jurídicas a decidir as mesmas, se obrigue cada um dos milhares de consumidores afetados a interpor uma ação judicial individual em cada um dos tribunais que forem territorialmente competentes.
11. Na verdade, para a apreciação da situação em crise é irrelevante se os consumidores pretendem manter os seus veículos e que estes sejam devidamente reparados ou se pretendem que estes sejam retomados assim como se celebraram um contrato de compra e venda, de leasing ou de aluguer. Nenhum destas diferentes situações interfere com o direito dos consumidores a serem ressarcidos pelos danos já referidos – direito coletivo de todos e individual homogéneo de cada um!
12. Errou igualmente a douta sentença recorrida ao deixar-se enredar nos argumentos falsos e falaciosos das RR. que apenas pretendem denegar a justiça aos consumidores como se pode verificar com particular clareza ao analisar a atuação das mesmas não só na presente ação como também nas outras ações internacionais anteriormente elencadas: queriam que todos os litígios fossem concentrados nos Tribunais Alemães por princípios de gestão eficiente do litígio ou de evitar decisões contraditórias, mas quando a R. V S.A. quando teve oportunidade de resolver esta questão para todos os consumidores europeus que aderiram à ação alemã interposta pela associação de consumidores VZBV, impôs a exclusão dos consumidores não residentes na Alemanha do acordo alcançado com a VZBV!
13. Ao mesmo tempo, as RR negam a natureza coletiva dos direitos dos consumidores e pretendem dividir a presente ação em tantas ações quantos os consumidores abrangidos pelas suas práticas enganadoras o que significa que a gestão eficiente do litígio e evitar-se decisões contraditórias já não são prioridades, mas quando vêm vantagem nisso, as mesmas RR., não hesitam em celebrar acordos coletivos em vários países envolvendo muitos milhares, senão milhões de consumidores!
14. Errou igualmente o tribunal a quo ao não ter em consideração na douta decisão proferida que o que está em causa na presente ação é também a responsabilidade de cada uma das recorridas mesmo quando entre elas e o consumidor não foi celebrado, diretamente, um contrato dado que: a responsabilidade pela prestação de informação cabe a qualquer interveniente na cadeia de produção consumo (art.º 8º n.ºs 1 e 2 da LDC), sendo solidária a responsabilidade dos vários intervenientes na cadeia desde a produção à distribuição (n.º 5 do art.º 8º da LDC); a responsabilidade pela qualidade dos bens e serviços (art.º 4º da LDC) cabe igualmente quer ao vendedor, quer ao importador, quer ao produtor já que releva para efeitos da conformidade dos bens com o contrato (art.ºs 2º n.º 1 e 6º da Lei 67/2003); a responsabilidade pelas práticas comerciais desleais é também de todas as recorridas já que todas elas contribuíram embora de formas diferentes para a sua conceção, divulgação e disponibilização ao consumidor (art.º 3º al. b) e artº 15º do DL 57/2008 e art.º 8º n.º 5 da LDC).
15. Por fim a legitimidade ativa da Associação decorre diretamente da lei. Nos termos dos art.ºs 14º e 2º n.º 1 in fine da Lei de Ação Popular (LAP) a Associação representa por iniciativa própria e sem necessidade de mandato ou autorização expressa, todos os titulares dos direitos ou dos interesses em causa, neste caso, todos os clientes das recorridas que sejam consumidores portugueses ou residentes em Portugal e que tenham sido afetados pelas práticas das recorridas. E representa-os, realce-se, independentemente de ter ou não interesse direto na demanda, o que constitui uma exceção ao disposto no art.º 30º do CPC em que se faz depender a legitimidade do A. do interesse direto em demandar. Ora a douta decisão recorrida baseia a sua argumentação para considerar a A. parte ilegítima no citado art.º 30º do CPC sem ter em conta, uma vez que seja, o disposto no art.º 31º do CPC (anterior art.º 26º-A) que remete para o n.º 1 do art.º 2º da LAP (in fine) que é a verdadeira norma habilitante.
16. Pelo exposto se pode concluir que se verificam os pressupostos da ação popular e que a Associação tem legitimidade para a propositura da ação ao contrário do que, erradamente, considerou o tribunal a quo.
A apelante terminou pedindo que a decisão recorrida fosse revogada e substituída por outra que declarasse verificados os pressupostos da ação popular e a legitimidade da Associação para interpor a presente ação e representar os consumidores residentes em Portugal afetados pelas práticas ilegais das ora recorridas.
9. As RR. (agora reduzidas a três, uma vez que a 4.ª R. foi integrada, por fusão, na 3.ª R. – cfr. fls 3584 e seguintes, requerimento de 09.12.2021) contra-alegaram, tendo rematado com as seguintes conclusões:
a. O facto de a matéria dos autos estar relacionada com o direito do consumo e de a aqui Recorrente, pelos seus âmbito de atividade e estatuto, ser uma associação de defesa dos direitos dos consumidores não basta para fundamentar a legitimidade popular da Autora Recorrente: era ainda necessário que a Autora Recorrente demonstrasse que atua no exercício e prossecução de um direito difuso lato sensu, que encerrasse, em si mesmo, uma dimensão trans-individual e insuscetível de colocar em crise a possibilidade de invocação, pelos demandados, de meios de defesa individualizados e próprios de cada um dos demandados - o que a Autora Recorrente não fez, como bem decidiu o Tribunal a quo (capítulo 5, artigo 45).
b. Os pedidos formulados nos presentes autos não visam tutelar qualquer interesse difuso, nem interesses individuais homogéneos, porquanto os interesses subjacentes aos pedidos deduzidos pela Autora Recorrente não traduzem uma dimensão supraindividual, nem recaem sobre bens gozados de forma concorrente pela comunidade (capítulo 5.1., artigo 48).
c. Ao invés, o caso dos autos tem por objeto bens de gozo privado e exclusivo (cada uma das viaturas tituladas por cada um dos proprietários potencialmente objeto da presente ação popular), correspetivos de direitos subjetivos próprios e específicos de cada um dos seus proprietários (capítulo 5.1., artigos 49 a 53).
d. Os interesses que a Autora Recorrente alegadamente visa prosseguir pressupõem uma multiplicidade indeterminada e muito variada de factos, o que, por sua vez, convoca diversas subsunções jurídicas, como acima se detalhou (capítulo 5.1., artigos 55 a 59).
e. As especificidades associadas a cada consumidor não se refletem apenas ao nível da definição do quantum da lesão individual, mas também e desde logo ao nível dos factos que têm de ser demonstrados para aferir da existência de facto ilícito e da verificação de danos (capítulo 5.1., artigos 60 a 64).
f. Tais especificidades não correspondem a aspetos acessórios ou de somenos importância; são outrossim factos e questões centrais que contendem, nomeadamente, (i) com a qualificação dos titulares dos interesses em causa como consumidores ou não, (ii) com a própria existência de facto ilícito, (iii) com a própria existência de dano, (iv) com a definição do quantum desse dano e (v) com a concreta pretensão peticionada (capítulo 5.1., artigo 65).
g. Aliás, a própria existência de um defeito é uma premissa individual e heterogénea, na medida em que o conceito de defeito é também um conceito subjetivo, que depende das expectativas e finalidades de cada consumidor no momento da pré-compra e da compra do veículo (capítulo 5.1., artigo 66).
h. Neste sentido conclui o Parecer supra junto que “A análise do objeto do processo conduz à conclusão de que os pedidos formulados, fundados numa diversidade/pluralidade das situações substanciais, extravasam o âmbito da ação popular tipificado no ordenamento jurídico (…).” (capítulo 5.1., artigo 69).
i. Ademais: as associações como a Autora Recorrente podem lançar mão da ação popular para defender os interesses incluídos no seu objeto através de uma tutela inibitória ou de uma tutela indemnizatória. Destarte, os pedidos formulados pela Autora Recorrente nas alíneas a), b) e c) da Petição Inicial, não tendo natureza inibitória ou indemnizatória, não se subsumem ao âmbito material da ação / legitimidade popular e, como tal, não são admissíveis (capítulo 5.2., artigos 77 a 84).
j. Neste mesmo sentido, conclui o Parecer supra junto que “Tanto por via da espécie de pedidos formulados, como pela preponderância das peculiaridades, inerentes a cada situação contratual de aquisição/aluguer/leasing de veículos, é evidente a falta de legitimidade popular da DECO.” (capítulo 5.2., artigo 85).
k. E veja-se que mesmo o pedido ínsito na alínea d) da Petição Inicial, apesar de visar uma tutela indemnizatória, também não é admissível à luz da Lei de Ação Popular, pois que, como salienta o Parecer supra junto, não se traduz num pedido de indemnização global, tal como previsto no artigo 22.º, n.º 2, da Lei de Ação Popular, mas, sim, num pedido correspetivo de cada um dos direitos (heterogéneos) de cada um dos consumidores que se viessem a mostrar direta e especificamente lesados (capítulo 5.2., artigo 86).
l. Acresce que o julgamento de cada um dos pedidos deduzidos pela Autora Recorrente depende da apreciação de factos específicos atinentes a cada uma das viaturas e seus proprietários (e respetivos enquadramentos jurídicos), razão pela qual tais pedidos não se subsumem (por não assentarem em interesses difusos ou homogéneos) no âmbito material da ação / legitimidade popular (capítulo 5.2., artigo 87).
m. Tais particularidades são relevantes não apenas para a justa composição do litígio e para o exercício do direito de defesa e contraditório das Rés Recorridas, mas também fundamentais para a tutela e preservação da posição de cada um dos consumidores potencialmente em causa: a Autora Recorrente não pode, ao abrigo da legitimidade popular que a Lei de Ação Popular lhe confere, substituir-se a tais consumidores no seu direito de exercício jurídico-processual com a extensão que pretende (capítulo 5.2., artigos 88 e 89).
n. A legitimidade popular que é reconhecida à Autora Recorrente não admite, em particular, que a Autora Recorrente, em ficção de um quadro fático-normativo uno que ignora todas as relevantes particularidades de cada um de tais consumidores, se substitua a cada um destes, designadamente (i) na tomada de decisão quanto à execução / manutenção de cada um dos seus contratos de compra e venda / de utilização de veículos, (ii) na tomada de decisão quanto ao exercício do suposto direito à alegada reparação do veículo e/ou (iii) na tomada de decisão quanto à alegada resolução do contrato e retoma do veículo (capítulo 5.2., artigos 90 e 91).
o. Neste sentido, salienta o Parecer supra junto que todos os pedidos formulados pela Autora Recorrente projetam-se nas relações contratuais estabelecidas entre cada consumidor e o vendedor da respetiva viatura e dependem da decisão que cada um desses consumidores pretenda tomar quanto ao destino do contrato de que é titular (capítulo 5.2., artigos 93 a 97).
p. Nem se diga que seria admissível a prolação de uma decisão que deixasse em aberto a concretização, em função da vontade individual de cada consumidor, das variadas alternativas que, na prática, cada um dos pedidos formulados suscita. A figura da condenação genérica não abarca esta hipótese e não existe qualquer outra via processual que a admita. Por outro lado, o exercício, por cada consumidor, das opções que cada pedido compreende não pode ser concebido em sede extrajudicial (a lei não o admite e o direito de defesa e contraditório das aqui Recorridas não o tolera) (capítulo 5.2., artigo 98 a 100).
q. Acresce que os interesses sub judice convocam a invocação, pelas Rés Recorridas, de meios e fundamentos de defesa específicos para cada titular dos interesses individuais em causa e as possibilidades de defesa que assistem às Rés Recorridas são variadas e individualizadas, como se explanou supra, o que impede o exercício cabal do direito de defesa das Rés Recorridas, condicionando-o fatalmente (capítulo 5.3., artigos 101 a 105).
r. Veja-se, por exemplo, as exceções perentórias de caducidade e de prescrição de direitos e também a exceção dilatória de falta de interesse processual da Autora Recorrente e dos consumidores por esta supostamente representado, cujos respetivos fundamentos, apenas no caso concreto de cada veículo / consumidor, poderão ser sindicados (capítulo 5.3., artigos 106 e 107).
s. Veja-se também, a título exemplificativo, a exceção dilatória de falta de interesse processual da Autora Recorrente e dos consumidores por esta supostamente representados face à atualização de software que consubstancia a medida técnica a que a maior parte dos veículos potencialmente abrangidos pelos presentes autos foi submetida (capítulo 5.3., artigo 108).
t. Em sentido próximo ao supra exposto veja-se também a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 06.07.2017, proferido numa ação popular instaurada também com respeito ao tema do dieselgate (capítulo 5.4., artigos 111 a 116).
u. Em suma: a posição da Autora consubstancia uma interpretação dos artigos 1.º e 2.º da Lei de Ação Popular em sentido desconforme com o disposto nos artigos 2.º, 13.º, 20.º, n.º 4 e 52.º, n.º 3, da CRP. Sob pena de violação dos princípios e direitos constitucionais supra referidos, deve o Tribunal interpretar os artigos 1.º e 2.º da Lei de Ação Popular num sentido conforme à CRP, ou seja, no sentido de que a lei constitucional não permite a instauração de uma ação popular por reporte a interesses (heterógenos) como os que estão em causa nos autos, nem a formulação de pedidos que têm subjacente tais interesses (heterógenos), que não têm um conteúdo puramente indemnizatório e que desconsideram as particularidades (individuais e heterogéneas, relativas a cada um dos consumidores especificamente considerados) que a apreciação e decisão dos mesmos necessariamente compreende (capítulo 5.4., artigos 118 a 121).
v. Assim, deve o Tribunal desaplicar a norma que se extrai dos artigos 1.º e 2.º da Lei de Ação Popular caso interpretada (como propõe a Autora Recorrente) no sentido contrário ao supra exposto, por inconstitucionalidade dessa interpretação normativa, o que desde já se requer e suscita para todos os efeitos, devendo, pelo contrário, ser adotada uma interpretação conforme à CRP, nos termos melhor explicitados supra (capítulo 5.4., artigos 122 e 123).
w. Em face do disposto, é forçoso concluir que decidiu bem a Sentença recorrida e que a revogação desta decisão violaria o disposto nos artigos 13.º, 20.º, n.º 4 e 52.º, n.º 3, da CRP, na Lei de Ação Popular, mormente nos seus artigos 1.º e 2.º, e nos artigos 3.º, 4.º e 278.º, n.º 1, alíneas d) e/ou e), do CPC (capítulo 5.4., artigo 124).
x. Em consequência: Não estando em causa nenhuma das categorias de interesses para os quais a lei prevê a ação popular e não se subsumindo os pedidos formulados pela Autora Recorrente no âmbito da lei / legitimidade popular, falece o pressuposto básico para que os mesmos possam ser objeto de uma ação popular e possam ser acionados por uma entidade que não o seu titular. Tal vale por dizer que a Autora Recorrente não tem legitimidade ativa para instaurar a presente ação (capítulo 6.1., artigos 129 a 135).
y. Assim, não sendo aplicável ao presente caso o disposto no artigo 2.º, n.º 1, da Lei de Ação Popular, a Autora Recorrente carece de legitimidade para agir em representação dos consumidores que são titulares dos interesses individuais suscitados nos autos, o que tem por consequência a absolvição das Rés Recorridas da instância, nos termos previstos no artigo 278.º, n.º 1, alíneas d) ou e), do CPC, como bem decidiu a Sentença recorrida (capítulo 6.1., artigos 137 e 138).
z. Nesse sentido conclui o Parecer supra junto93 (capítulo 6.1., artigo 139).
aa. Caso o Tribunal ad quem entenda que não estamos perante a exceção de ilegitimidade popular da Autora Recorrente, sempre deverá absolver as Rés Recorridas da instância, nos termos previstos no artigo 278.º, n.º 1, alínea e), do CPC), por falta de fundamento jurídico-processual para a instauração da presente ação sob a forma de ação popular, o que configura uma exceção dilatória inominada, nos termos do artigo 576.º, n.º 2, do CPC (capítulo 6.2., artigos 141 a 150).
As apeladas terminaram pedindo que o recurso interposto pela A. fosse julgado improcedente.
Com a contra-alegação foi junto um parecer de dois ilustres jurisconsultos (Professor (…) e Professora (…)).
10. Foram colhidos os vistos legais.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. O presente recurso tem por objeto a apreciação da legitimidade processual da A. para propor a presente ação popular.
2. O factualismo a levar em consideração é o que consta do Relatório supra (I) e ainda o seguinte:
O artigo 3.º dos Estatutos da Associação consagra que:
1 - A Associação tem por objeto a defesa dos direitos e dos legítimos interesses dos consumidores, podendo para o efeito desenvolver todas as atividades adequadas a tal fim, nomeadamente:
a) Fomentar o agrupamento dos consumidores para a defesa dos interesses que lhes são próprios;
b) Realizar análises comparativas da qualidade e preços dos produtos e serviços existentes no mercado;
c) Coligir elementos e elaborar estudos sobre a evolução dos preços e dos consumos;
d) Criar serviços de consulta dos consumidores;
e) Divulgar os resultados dos estudos e análises, bem como todas as informações suscetíveis de desenvolver a capacidade de análise crítica dos consumidores;
f) Informar os associados e o público em geral acerca das suas atividades, podendo promover a edição de publicações, diretamente ou por intermédio de organizações ou empresas em que participe;
g) Promover reuniões para debate de problemas relacionados com o seu objeto;
h) Apoiar ou comparticipar em ações úteis à melhoria das condições de vida da população e à defesa do meio ambiente;
i) Colaborar em geral com entidades nacionais ou estrangeiras que prossigam fins análogos ou que, pela sua natureza, possam apoiar as ações desenvolvidas pela Associação;
j) Promover a realização de ações de formação e de outras iniciativas de informação de consumidores e de profissionais, destinadas à educação e ao desenvolvimento de uma sã cultura para o consumo, podendo, para esse efeito, candidatar-se a projetos e a fundos de financiamento nacionais e internacionais;
l) Desenvolver formação profissional na área do consumo e áreas transversais;
m) Estabelecer protocolos e realizar parcerias conjuntas com outras entidades, públicas ou privadas;
n) Integrar organizações internacionais sem fins lucrativos que prossigam fins similares, em particular a promoção e defesa dos direitos dos consumidores;
o) Integrar grupos de trabalho, conselhos consultivos ou outros comités de entidades públicas ou privadas, no âmbito das suas atribuições;
p) Promover a formação e cultura jurídica no domínio do direito do consumo;
q) Defender, promover e representar, por todos os meios legais e judiciais ao seu alcance, os interesses coletivos e individuais dos consumidores;
r) Representar individualmente os consumidores em mecanismos alternativos de resolução de conflitos de consumo;
s) Promover a constituição de serviços de apoio, informação e de resolução extrajudicial de conflitos de consumo;
t) Promover a constituição de mecanismos de apoio, informação e de negociação de situações de sobreendividamento;
u) Exercer quaisquer outras atribuições permitidas por lei.
2 - A Associação não tem fins lucrativos e não prossegue fins políticos ou religiosos”.
2. O Direito
O art.º 20.º n.º 1 da CRP garante o direito fundamental à jurisdição, definido como o direito de cada um aceder aos tribunais para a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos.
Em regra a legitimidade do exercício desse direito fundamental afere-se pela titularidade do direito subjetivo, situação jurídica ou interesse cuja prossecução se pretende em juízo, conforme descrita pelo demandante (art.º 30.º do CPC).
Este paradigma individualista da tutela jurisdicional é ultrapassado pela garantia da ação popular, que constitui um alargamento da legitimidade processual ativa a todos os cidadãos, independentemente do seu interesse individual ou da sua relação específica com os bens ou interesses em causa, para a proteção de bens supra-individuais ou bens coletivos tidos como fundamentais (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, 2007, p. 697).
Nos termos do n.º 3 do art.º 52.º da CRP (com a redação introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/2004, de 24.7), “É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais”.
O direito de ação popular está regulamentado na Lei n.º 83/95, de 31. 8. (com as alterações publicitadas).
No n.º 2 do art.º 1.º da Lei n.º 83/95 exara-se que “são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público”.
No n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 83/95 prevê-se que “São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda”.
No art.º 3.º explicita-se que constituem requisitos da legitimidade ativa das associações e fundações para a instauração de ações populares os seguintes:
a) A personalidade jurídica;
b) O incluírem expressamente nas suas atribuições ou nos seus objectivos estatutários a defesa dos interesses em causa no tipo de acção de que se trate;
c) Não exercerem qualquer tipo de actividade profissional concorrente com empresas ou profissionais liberais.
No que concerne ao veículo processual de exercício da ação popular, o n.º 2 do art.º 12.º da Lei 83/95 estabelece que “A acção popular civil pode revestir qualquer das formas previstas no Código de Processo Civil”.
Por tudo isto o atual CPC consagra, em sede de legitimidade processual, um artigo 31.º que, sob a epígrafe “Ações para a tutela de interesses difusos”, dispõe o seguinte:
Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei”.
Desenvolvendo o conceito de “interesse difusos” que o art.º 31.º utiliza para qualificar o objeto da particular legitimação processual nele prevista, vejam-se os artigos 3.º al. f) e 13.º al. c) da Lei de defesa do consumidor (Lei n.º 24/96, de 31.7, com as alterações publicitadas - LDC):
Nos termos do art.º 3.º al. f) o consumidor tem direito “[à] prevenção e à reparação dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou direitos individuais homogéneos, colectivos ou difusos”.
E o art.º 13.º da LDC estipula que “Têm legitimidade para intentar as ações previstas nos artigos anteriores:
a) Os consumidores diretamente lesados;
b) Os consumidores e as associações de consumidores ainda que não diretamente lesados, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto;
c) O Ministério Público e a Direção-Geral do Consumidor quando estejam em causa interesses individuais homogéneos, coletivos ou difusos”.
O caráter difuso dos interesses aqui considerados radica na sua supra-individualidade, interessando a toda uma comunidade, grupo ou classe, sem que os respetivos membros deles se possam apropriar, apesar de todos deles beneficiarem. Refere-se a bens como o meio ambiente, o património cultural, o consumo, a qualidade de vida. Os interesses difusos em sentido estrito são subjetivamente indiferenciados, porque se referem a bens públicos (na aceção económica da expressão), ou seja, a bens que só podem ser gozados numa dimensão coletiva: o interesse na qualidade do ar ou de qualquer consumidor na qualidade dos bens ou serviços prestados. Estes interesses pertencem a uma pluralidade indiferenciada e indeterminada de sujeitos. Já os interesses coletivos constituem uma modalidade dos interesses difusos lato sensu: correspondem a interesses acidentalmente coletivos, ou seja, são interesses que incidem sobre bens privados de uma pluralidade de sujeitos que, por qualquer circunstância, podem ser defendidos conjuntamente: é o que sucede quando os proprietários de apartamentos e de outras habitações num aldeamento turístico pretendem acionar o vendedor e construtor por motivos relacionados com a má qualidade da construção.
Segundo uma certa perspetiva, os interesses individuais homogéneos são a refração dos interesses difusos stricto sensu e dos interesses coletivos na esfera de cada um dos seus titulares, ou seja, são a concretização dos interesses difusos stricto sensu e dos interesses coletivos na esfera dos indivíduos. Os interesses individuais homogéneos são os interesses que cabem a cada um dos titulares de um interesse difuso stricto sensu ou de um interesse coletivo. Assim, o interesse na qualidade do ar é um interesse difuso stricto sensu, mas o interesse de cada um dos habitantes de uma região naquela qualidade é um interesse individual homogéneo. Já os lesados pelo consumo de um produto nocivo à saúde são titulares de um interesse coletivo e o interesse de cada um desses prejudicados é igualmente um interesse individual homogéneo (neste sentido, cfr. Miguel Teixeira de Sousa, v.g. em “A tutela jurisdicional dos interesse difusos no direito português”, consultável em (99+) TEIXEIRA DE SOUSA, M., A tutela jurisdicional dos interesses difusos no direito português (v. 20.3.2014) | Miguel Teixeira de Sousa - Academia.edu, e José Lebre de Freitas, Introdução ao processo civil, 4.ª edição, Gestlegal, 2017, páginas 105 e 106).
Noutra perspetiva, os interesses individuais homogéneos são interesses individuais que são tratados coletivamente pela sua origem comum, podendo a pretensão individual de cada um ser acolhida ou rechaçada por circunstâncias pessoais do lesado (cfr. Ada Pelligrini Grinover, “O processo coletivo do consumidor”, CEJ, Textos, Ambiente e Consumo, I Volume, 1996, pp. 224 e 225).
A homogeneidade do interesse individual será qualitativa, não carecendo de igual identidade no ponto de vista quantitativo (cfr. Paula da Costa Silva, Private Enforcement e tutela colectiva, Almedina, 2022, pp. 12 e 13, 17).
Na jurisprudência portuguesa, os interesses individuais homogéneos, enquanto objeto admissível de ação popular, são encarados como “todos aqueles casos em que os membros da classe são titulares de direitos diversos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico” (cfr. acórdão do STJ, de 23.9.1997, processo 97B503, reiterado no acórdão do STJ de 20.10.2005, processo 05B2578, consultáveis, tal como os adiante citados, em www.dgsi.pt).
Nos termos do art.º 14.º da Lei n.º 83/95 nos processos de ação popular “o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão previsto no artigo seguinte, com as consequências constantes da presente lei”.
No art.º 15.º determina-se que serão citados para a ação, por éditos e anúncios, os titulares dos interesses em causa na ação de que se trate, e não intervenientes nela, para passarem a intervir no processo a título principal, querendo, aceitando-o na fase em que se encontrar, e para declararem nos autos se aceitam ou não ser representados pelo autor ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de lhes não serem aplicáveis as decisões proferidas, sob pena de a sua passividade valer como aceitação, sem prejuízo de puderem declarar expressamente a sua exclusão da representação até ao termo da produção de prova ou fase equivalente, por declaração expressa nos autos.
Complementarmente, no n.º 1 do art.º 19.º estipula-se que “[s]alvo quando julgadas improcedentes por insuficiência de provas ou quando o julgador deva decidir por forma diversa fundado em motivações próprias do caso concreto, os efeitos das sentenças transitadas em julgado proferidas no âmbito de processo que tenham por objeto a defesa de interesses individuais homogéneos abrangem os titulares dos direitos ou interesses que não tiverem exercido o direito de se autoexcluírem da representação, nos termos do artigo 16.º”.
No que diz respeito ao escopo da sentença a proferir na ação popular, o legislador concentra-se, no ponto de vista da ação cível, na determinação da responsabilização civil subjetiva e objetiva do agente.
No art.º 22.º determina-se que “[a] responsabilidade por violação dolosa ou culposa dos interesses previstos no artigo 1.º constitui o agente causador no dever de indemnizar o lesado ou lesados pelos danos causados” (n.º 1). No n.º 2 do mesmo artigo explicita-se que “[a] indemnização pela violação de interesses de titulares não individualmente identificados é fixada globalmente” e no n.º 3 acrescenta-se que “[o]s titulares de interesses identificados têm direito à correspondente indemnização nos termos gerais da responsabilidade civil”.
Por sua vez o art.º 23.º consagra a responsabilidade objetiva do agente:
Responsabilidade civil objectiva
Existe ainda a obrigação de indemnização por danos independentemente de culpa sempre que de acções ou omissões do agente tenha resultado ofensa de direitos ou interesses protegidos nos termos da presente lei e no âmbito ou na sequência de actividade objectivamente perigosa”.
O objeto natural e próprio da ação popular e que pressupõe o alargamento da legitimidade próprio do autor popular é uma tutela coletiva que impõe a abstração de algumas particularidades respeitantes a cada um dos titulares dos interesses lesados.
Como se pondera no acórdão do STJ de 08.9.2016, processo 7617/15.7T8PRT.S1, a ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar contra algum ou alguns dos representados uma defesa pessoal, isto é, quando possa utilizar fundamentos de defesa específicos contra alguns desses representados. Assim, a possibilidade de o demandado numa ação popular invocar diferentes defesas contra vários representados pode ser utilizada como um critério prático para verificar se eles são titulares de um mesmo interesse individual homogéneo.
O carater comum e homogéneo dos interesses tutelados na ação popular refletir-se-á na providência jurisdicional fixada.
Conforme expende Lebre de Freitas (“A ação popular do direito português”, in sub judice, 24, janeiro/março de 2003, p. 24), “[e]nquanto o consumidor a quem é fornecida a coisa com defeito tem direito, conforme os casos e em conformidade com a lei geral, à sua reparação, à sua substituição, à redução do preço, à resolução do contrato e/ou à indemnização (por dano material ou moral), o autor da acção popular mais não poderá que pedir uma indemnização globalmente fixada, em termos porventura equitativos”.
Revertamos ao caso dos autos.
A A. instaurou ação popular em representação dos consumidores que adquiriram em Portugal veículos automóveis produzidos e/ou comercializados pelas RR., os quais alegadamente tinham inserido um software que mascarava a emissão de gases poluentes em níveis superiores aos permitidos por lei.
A A., como resulta dos seus estatutos, acima transcritos na parte relevante, está legitimada para instaurar ação popular em defesa dos interesses difusos (em sentido estrito e em sentido lato) dos consumidores, assim como dos correspondentes interesses individuais homogéneos.
Porém, a A. não tem legitimidade para apresentar em juízo pedidos de providência jurisdicional próprios da clássica ação individual, norteada pela tutela do interesse individual de cada um dos consumidores concretamente lesados.
Ora, é nisso que desemboca a ação proposta, conforme decorre do petitório formulado.
Com efeito, a A. pretende que o tribunal condene as RR. a retomarem os veículos afetados pagando aos respetivos proprietários um valor que dependerá do valor inicial do veículo, do ano, da kilometragem mas que não poderá ser inferior a um montante entre os 12.500 USD e os 44.000 USD oferecido aos consumidores norte-americanos, ou a repará-los, se for essa a opção dos consumidores e se a reparação do veículo for possível; a assumirem os custos remanescentes dos contratos de aluguer ou leasing celebrados pelos consumidores para aquisição dos veículos afetados, no caso dos consumidores optarem por porem fim a tais contratos; a pagarem aos consumidores uma indemnização pelas informações falsas produzidas e pela depreciação do valor dos veículos afetados, não inferior a um montante entre os 5.100 USD e os 10.000 USD ou, em alternativa, se o tribunal assim o entender, a 15% do valor de compra do veículo. Por sua vez nas suas contestações as RR. aduziram argumentos suscetíveis de questionarem cada uma das diversas pretensões imputáveis a cada consumidor em concreto, se identificado, seja em termos de formação da vontade de contratar, de dano concretamente sofrido, de reparação já efetuada, de caducidade do direito a ser exercido.
Assim, a ação popular alegadamente instaurada pela A. resvala dos terrenos da tutela coletiva, onde deveria conter-se, para os terrenos da ação individual, onde cabe a cada consumidor lesado alegar os factos concretos que fundam o seu direito e identificar a providência jurisdicional que reputa adequada à respetiva tutela do seu interesse individual.
Para tal, a A. carece de legitimidade.
Pelo que se entende que a decisão recorrida deve manter-se, improcedendo a apelação.

III. DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e, consequentemente, mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação, na vertente das custas de parte, são a cargo da apelante, que nela decaiu, reduzidas a 1/5, como também se decidiu ao nível da 1.ª instância (artigos 527.º n.ºs 1 e 2 e 533.º do CPC, 20.º n.º 3 da Lei n.º 83/95).

Lisboa, 26.5.2022
Jorge Leal
Nelson Borges Carneiro
Paulo Fernandes da Silva