Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
18787/11.3T2SNT.L1-7
Relator: ROSA RIBEIRO COELHO
Descritores: MENORES
REGULAMENTO CE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/03/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O regime instituído no Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003 - relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental - é, essencialmente, o seguinte:
- em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança são competentes os tribunais do Estado-membro onde ela resida habitualmente à data em que o processo é instaurado no tribunal – art. 8º, nº 1;
- havendo deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança tem residência habitual imediatamente antes daquelas deslocação ou retenção conservam a sua competência - art. 10º, corpo;
- cessa esta continuação de competência quando, passando a criança a ter residência habitual noutro Estado-Membro, tal se verifique durante, pelo menos, um ano após a data em que do seu paradeiro tenha ou deva ter tomado conhecimento a pessoa titular do direito de guarda, verificando-se ainda, cumulativamente, o seguinte: a) estar a criança integrada no seu novo ambiente; b) não ter sido apresentado pelo mesmo titular, no prazo de um ano a contar daquele conhecimento, qualquer pedido de regresso da criança às autoridades do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida – art. 10º, corpo e al. b), i).
II - Ignorando-se em absoluto as condições em que o menor vive em Inglaterra, não pode ter-se como verificada a sua integração no novo ambiente, condição indispensável, nos termos do citado art. 10º, para que cesse a extensão da competência internacional dos tribunais portugueses.
III - Sem prejuízo de uma eventual oposição da requerida vir a revelar o contrário, na fase liminar do processo é de afirmar a competência dos tribunais portugueses para julgarem a acção.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
7ª SECÇÃO CÍVEL


I – A... intentou contra B..., nos Juízos de Família e Menores da comarca da Grande Lisboa – Noroeste, a presente ação tutelar cível comum, pedindo que, sem prévia audição do menor e atribuindo ao processo natureza urgente, se decrete o regresso imediato do menor C… à residência do requerente em Portugal, suscitando-se a intervenção da autoridade central para esse efeito.
Alegou, em síntese, que:
- o referido menor nasceu em 29/1/2009 na …, Amadora, sendo filho do casamento do requerente com a requerida;
- a família residia em Fevereiro de 2010 no Cacém;
- nessa altura a requerida viajou com o menor para Inglaterra, segundo dizia a fim de promover a aproximação entre o menor e os seus avós maternos, mas nunca regressou, não permitindo desde então o contacto do requerente com o menor;
- a requerida acabou por fazer notificar o requerente em 24 de Janeiro de 2011 para uma ação de divórcio.
Sustenta a competência dos tribunais portugueses por ser neste país que o menor vivia habitualmente antes da sua retenção em Inglaterra pela requerida.
No seguimento de promoção do Mº Pº, foi proferido despacho que indeferiu liminarmente o requerimento inicial por entender haver incompetência absoluta dos tribunais portugueses.
Contra ele apelou o requerente, tendo apresentado alegações onde formula as seguintes conclusões:
1º O Exmo. Senhor Juiz a quo não ordenou a notificação do requerente, ora recorrente para exercer o seu direito de contraditório do despacho do Exmo. Senhor Curador de Menores,
2º pelo que mal ele andou ao ter emitido sentença sem ter ordenado a notificação do requerente, ora recorrente para que exercesse o seu direito ao contraditório de tal despacho.
3º A sentença proferida pelo Exmo. Senhor Juiz a quo é nula.
4º O Exmo. Senhor Juiz a quo violou o disposto no n.º 3, art.º 3º C.P.C.,
5º assim como a al. d), n.º 1, art.º 668º C.P.C..
6º Desde Fevereiro de 2010, que o menor se encontra ilicitamente retido pela requerida fora de Portugal.
7º O requerente, ora recorrente informou a requerida da sua expressa oposição a que o menor permanecesse fora de Portugal.
8º O requerente, ora recorrente desconhece as condições de vida, infraestruturas de que o menor pode beneficiar, quais cuidados, afetos que ele tem fora de Portugal,
9º assim como desconhece se o menor está integrado, se tem amigos, se se sente feliz, que valores lhes são transmitidos.
10º O requerente, ora recorrente conhece as condições de vida, infraestruturas de que o menor pode beneficiar em Portugal, quais os cuidados, afetos que ele aí pode ter,
11º assim como conhece que o menor está integrado na sociedade portuguesa, que tem amigos, se sente feliz, os valores que lhes são transmitidos.
12º Não constam nenhuns factos no processo de 1ª instância no sentido de considerar que o menor tem a sua vida organizada, com estabilidade e permanência em Inglaterra.
13º Constam no processo de 1ª instância factos no sentido de considerar que o menor tem a sua vida organizada, com estabilidade e permanência em Portugal.
14º O requerente, ora recorrente desde Julho de 2010 até à instauração dos autos de 1ª instância sempre tentou ver, falar, contactar com o menor,
15º assim como tentar resolver as questões com a requerida, de modo a evitar a instauração de procedimento judicial.
16º O requerente, ora recorrente fez todos esses esforços a pensar na defesa do melhor interesse do menor, de modo a não criar na sua vida outras situações de instabilidade.
17º Assim mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em ter considerado que o menor vive em Inglaterra.
18º Mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em ter considerado que tem a sua vida organizada e com carácter permanente em Inglaterra, por falta de elementos probatórios no processo de 1º instância.
19º Assim mal andou o Exmo. Senhor Juiz a quo em ter considerado que o menor tem residência habitual em Inglaterra, decretando a incompetência absoluta deste tribunal.
20º O Exmo. Senhor Juiz a quo violou o disposto no art.º 10º Regulamento (CE) n.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro.
Pelo que deverá ser julgado procedente o presente recurso e consequentemente ser anulada a sentença recorrida.
Em contra-alegações, o M. P. defende a improcedência do recurso.

Colhidos os vistos, cumpre decidir, sendo questões sujeitas à nossa apreciação as enunciadas pelo recorrente nas suas conclusões, visto serem estas, como é sabido, que delimitam o objeto do recurso.

II – Analisemos, então, as questões suscitadas.
Sobre as invocadas nulidades:
Atribui o recorrente à sentença a nulidade de excesso de pronúncia, tal como se acha caracterizada na alínea d) do nº 1 do art. 668º do CPC, por haver conhecido da exceção dilatória que levou ao indeferimento liminar da petição inicial.
Não tem razão.
Ao ter como verificada a competência internacional do tribunal português, o tribunal abordou e decidiu questão expressamente referida pelo apelante no requerimento inicial que, nessa medida, submeteu à apreciação daquele.
A circunstância de o tribunal ter seguido, a esse respeito, uma posição diversa da defendida pelo apelante não faz dela uma outra questão.

A invocada omissão do dever de facultar ao requerente, ora apelante, ocasião para se pronunciar sobre a promoção do Mº Pº, a ser irregular, teria gerado uma nulidade processual prevista no art. 201º do CPC - contra a qual se poderia reagir através da respetiva arguição que, no caso, não teve lugar -, mas nunca daria lugar a nulidade da decisão proferida.
Não obstante, sempre se dirá que a decisão proferida abordou, como se disse já, uma questão suscitada pelo próprio requerimento inicial – a da competência internacional –, pelo que não houve pronúncia sobre uma questão de direito nova que devesse fazer funcionar este último comando legal.

Quanto à questão de fundo:
A sua solução tem de ser encontrada no Regulamento (CE) nº 2201/2003, de 27 de Novembro de 2003, relativo à competência, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria matrimonial e em matéria de responsabilidade parental e que revoga o Regulamento (CE) n.º 1347/2000 – cuja aplicabilidade vem sendo unanimemente reconhecida no processo até agora.
O regime nele instituído é, essencialmente, o seguinte:
- em matéria de responsabilidade parental relativa a uma criança são competentes os tribunais do Estado-membro onde ela resida habitualmente à data em que o processo é instaurado no tribunal – art. 8º, nº 1;
- havendo deslocação ou retenção ilícitas de uma criança, os tribunais do Estado-Membro onde a criança tem residência habitual imediatamente antes daquelas deslocação ou retenção conservam a sua competência - art. 10º, corpo;
- cessa esta continuação de competência quando, passando a criança a ter residência habitual noutro Estado-Membro, tal se verifique durante, pelo menos, um ano após a data em que do seu paradeiro tenha ou deva ter tomado conhecimento a pessoa titular do direito de guarda, verificando-se ainda, cumulativamente, o seguinte: a) estar a criança integrada no seu novo ambiente; b) não ter sido apresentado pelo mesmo titular, no prazo de um ano a contar daquele conhecimento, qualquer pedido de regresso da criança às autoridades do Estado-Membro para onde a criança foi deslocada ou se encontra retida – art. 10º, corpo e al. b), i).
Os argumentos usados na decisão recorrida podem, nas suas linhas essenciais, ser resumidos do seguinte modo:
– Residência habitual de um menor é aquela onde se encontra organizada a sua vida em termos de maior estabilidade e permanência;
- Quando a ação foi instaurada, o menor estava com a mãe na Inglaterra há cerca de 18 meses consecutivos;
– Tendo ido para Inglaterra em 8/2/2010, a requerida tem a intenção de ali passar a residir a título permanente com o filho;
– Esta alteração de residência dura há, pelo menos, um ano desde que o requerente dela soube e sem que este tenha pedido à autoridade competente o regresso da criança;
– Por isso a ação devia ter sido instaurada nos tribunais ingleses.
Criticando esta decisão, o apelante sustenta, nas conclusões 8ª, 9ª. 12ª e 18ª, não saber nem haver no processo elementos quanto às condições em que o menor se encontra em Inglaterra, nomeadamente condições de vida, infraestruturas de que beneficia, cuidados e afetos que lhe são proporcionados.
Em face dos elementos constantes do processo, tem de reconhecer-se-lhe razão.
Na verdade, sabe-se, por o apelante o ter alegado, que o menor foi para Inglaterra com a mãe quando tinha cerca de um ano, que aí tem permanecido e que a mãe aí tinha os seus ascendentes.
Sabe-se que o presente processo foi instaurado quando o menor tinha cerca de dois anos e meio.
Sabe-se, por o apelante o ter dito no requerimento inicial, que é conhecida a morada da mãe do menor em Inglaterra.
Pode considerar-se apurado, ao nível perfunctório e sumário próprio da fase em que o processo se encontra, que há mais de um ano antes da instauração do processo o apelante conhecia o paradeiro do menor em Inglaterra.
Mas ignoram-se, em absoluto, as condições em que o menor vive – se a mãe tem trabalho, se tem condições, por meios próprios ou através de apoio de que beneficie, para prover ao seu sustento e ao do menor, se tem casa, e se todas estas condições se mostram preenchidas em nível satisfatório.
O menor, pela sua tenra idade, é obviamente dependente em absoluto do que lhe possa ser proporcionado pela pessoa a cargo de quem se encontra, pelo que a sua integração no novo ambiente – que só pode ser dada como verificada se estiver num nível satisfatório – depende também da existência de condições satisfatórias da vida dessoutra pessoa.
E tudo isto é desconhecido.
Esta condição em falta é necessária, nos termos do citado art. 10º, para que cesse a extensão da competência internacional dos tribunais portugueses.
Sem a sua verificação, tal competência mantém-se; é evidente que não cabe ao apelante o ónus de demonstrar que não há integração – sobre ele recai o ónus de demonstrar a existência dos fatores positivos que sustentam a competência dos tribunais portugueses, mas não se exige que demonstre a inexistência dos elementos que podem, eventualmente, excluí-la.
Assim, na presente fase do processo – e sem prejuízo de uma eventual oposição da requerida vir a revelar o contrário –, estão preenchidos os requisitos para que os tribunais portugueses julguem a presente ação.
Impõe-se, deste modo, a procedência do recurso.

III – Pelo exposto, julga-se a apelação procedente e revoga-se o despacho apelado, para que no Tribunal de 1ª o processo prossiga a tramitação que se mostre adequada.
Sem custas.

Lisboa, 3.07.2012

Rosa Maria M. C. Ribeiro Coelho
Maria Amélia Ribeiro
Graça Amaral