Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20344/21.7T8LSB.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (EU) 1215/2012
MATÉRIA CONTRATUAL
CRITÉRIO DE CONEXÃO
LUGAR DE CUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/14/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. Os regulamentos europeus e os instrumentos internacionais prevalecem sobre as normas processuais portuguesas.
2. Não resultando do termos do contrato que as partes tenham celebrado convenção sobre o foro competente, a ação tanto pode ser intentada no lugar do domicílio do demandado domiciliado no território de um Estado-Membro (art.º 4º do Regulamento UE nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012), como no do lugar do cumprimento da obrigação (no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, e no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados).
3. O Regulamento UE nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012, afastou-se do regime definido pela Convenção de Bruxelas de 1968, relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, tomando como referência, quanto aos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, já não a obrigação controvertida na ação, mas antes a obrigação característica do contrato, impondo uma definição autónoma do “lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual”.
4. Se a prestação de serviço tiver lugar em diversos Estados-Membros o tribunal competente para conhecer de todos os pedidos baseados no contrato é o da jurisdição onde se encontra o lugar da principal prestação de serviço.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
Em 6.9.2021, A [… – Arquitetos, Lda. ] , com sede na a Rua de Campolide, Lisboa, Portugal, intentou, nos Juízos Centrais Cíveis de Lisboa, ação declarativa de condenação, sob a forma comum, contra B [… Lanzarote, SL ] , com sede em C/ León Y Castillo, Las Palmas, Espanha, pedindo que a R. seja condenada a pagar-lhe o montante indemnizatório que cifra em €461.691,75, acrescido de juros vencidos e vincendos, até integral pagamento.
A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese, que:
A é um dos mais reconhecidos gabinetes de arquitetura, em Portugal e no mundo.
No ano de 2017, a R. convidou a A. a elaborar um conjunto de 5 projetos de arquitetura a desenvolver na ilha de Lanzarote (Ilhas Canárias).
Em junho de 2017, a R. solicitou à A. para elaborar o projeto de arquitetura do Hotel PB, um Hotel de 5 estrelas localizado em frente ao mar, na zona de Playa Blanca; em fevereiro de 2019, a elaboração do projeto de arquitetura do Edifício A, que consistia na remodelação do edifício “M”, sito em Arrecife - Lanzarote, e na transformação do conjunto em áreas afetas à hotelaria, zonas de restauração, bares, supermercado e zona de venda de produtos da região; e, também em fevereiro de 2019, a elaboração do projeto de arquitetura de uma Quinta, sita em La Geria, que envolvia a remodelação e adaptação de uma casa e espaços de apoio em casa particular/turismo de habitação ou rural, incluindo áreas de arranjos exteriores.
Os estudos prévios destes 3 projetos – “Hotel PB”, “Edifício A” e “Quinta LG” – foram, numa fase inicial, entregues pela A. à R., que os analisou e aceitou, solicitando, consequentemente, a continuação dos referidos trabalhos.
Na sequência do desenvolvimento dos 3 projetos identificados, foi realizada uma exposição dos mesmos no atelier da A., em Lisboa, em novembro de 2019, tendo sido apresentados diversos desenhos e maquetes a diversas escalas, relativos a cada um dos 3 projetos.
Em paralelo com o desenvolvimento dos referidos projetos, a R., em maio/junho de 2020, solicitou à A. a elaboração de mais 2 projetos de arquitetura: a “Casa dos Cs” e a “Casa en frente a la Ig”.
Uma vez concluídos os trabalhos solicitados, a A., em 30 de julho de 2020, enviou à R., por via postal e por correio eletrónico, os Anteprojetos dos 5 projetos acompanhados das respetivas faturas pró-forma, num total de €88.937,06, correspondente a 10% do valor total dos projetos.
Na fase inicial do trabalho, a A. deu a conhecer à R. as estimativas de custos de cada uma das obras a realizar, as quais foram por esta aceites.
A R. apenas pagou um valor inicial de €6.000,00 correspondente ao pagamento do "estudo conceptual" do projeto do “Hotel PB”, nada mais tendo pago, apesar de interpelada para o fazer.
Perante o comportamento da R., e convicto da natureza e grau de desenvolvimento dos trabalhos realizados no âmbito dos 5 projetos em causa, a A., em abril de 2021, solicitou ao Colégio Oficial de Arquitetos das Ilhas Canárias, a emissão de parecer relativo ao estado/natureza dos trabalhos realizados pelo Autor relativos aos 5 projetos de Lanzarote, o qual, em 3 de junho de 2021, atestou que os trabalhos entregues correspondem, na prática a verdadeiros Anteprojetos e, pelas regras aplicáveis, o valor faturado deveria ter sido, não 10% do valor da obra a realizar, mas sim 21,75%, nuns casos e 25% noutros.
A A., na execução da prestação principal do compromisso firmado, prestou à R. os serviços de arquitetura por esta solicitados ao ter elaborado e entregue os Anteprojetos dos 5 projetos desenvolvidos na ilha de Lanzarote, devendo a R. ser condenada a efetuar o pagamento do valor devido, e formalmente reconhecido pelo Colégio Oficial de Arquitetos das Ilhas Canárias, pelos serviços de arquitetura cabalmente prestados, na quantia total de €461.691,75.
Citada, a R. contestou, para além do mais, por exceção, invocando a incompetência absoluta dos tribunais portugueses para conhecerem da ação, com a sua consequente absolvição da instância.
Convidado a pronunciar-se sobre a exceção deduzida, a A. nada disse.
Em 24.11.2022, foi proferido despacho que julgou procedente a exceção invocada, declarou a incompetência do tribunal em razão da matéria, e determinou a absolvição da R. da instância.
Não se conformando com o teor deste despacho, recorreu a A., formulando, no final das suas alegações, as seguintes conclusões, que se reproduzem:
a) Através da sentença recorrida, veio o Tribunal a quo declarar-se incompetente em razão da nacionalidade, por entender que, à luz dos Regulamentos (CE) 44/2001 e (UE) 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, bem como da legislação nacional (em concreto, o artigo 71º/1 do CPC), o Tribunal competente para conhecer da presente ação é o tribunal do lugar do domicílio do Réu, ou seja, Espanha.
b) Estando perante um contrato plurilocalizado, é ponto assente – como tal claramente reconhecido na sentença recorrida – que, para efeitos de aferição da competência internacional do tribunal nacional, teremos de atender, em primeira linha, ao que resultar de convenções internacionais ou dos regulamentos europeus sobre a matéria (v.g. Regulamento (UE) nº 1215/2012, de 12 de dezembro) e, só depois, ao que dispuser a própria lei processual civil.
c) De acordo com o artigo 4º do referido Regulamento, a regra é o domicílio do réu ou demandado.
d) Regra esta que, naturalmente, comporta exceções, importando para o caso a que se encontra consagrada no artigo 7º/1/a) do Regulamento, que permite que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro possam ser demandadas noutro Estado-Membro em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão.
e) O artigo 7º/1, alíneas b) e c), do Regulamento dispõem que, para efeitos daquela disposição, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será, no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.
f) Ora, mal andou o Tribunal a quo ao concluir que a situação sub judice não se enquadra em nenhuma das situações especiais descritas supra, em virtude de os imóveis objeto dos serviços de arquitetura prestados se situarem em Espanha.
g) Não podemos aceitar, porque equívoca, a peregrina tese militada na sentença recorrida quanto ao lugar do cumprimento das obrigações, no caso dos contratos de prestação de serviços e, por consequência, o entendimento assumido quanto à falta de competência dos tribunais portugueses para conhecer da presente ação.
h) Neste entendimento, o Tribunal recorrido opera como que uma adulteração da natureza e âmbito do contrato outorgado com as partes, e que consubstancia o objeto dos presentes autos.
i) Pois que, contrariamente ao arrogado na sentença recorrida, o contrato de prestação de serviços de arquitetura não inclui, entre as suas prestações principais ou acessórias, a “implementação”, “construção”, “edificação” dos imóveis projetados. Ela tem, sim, por obrigação característica a elaboração dos projetos de arquitetura, apenas: o que integra e define a sua natureza é o trabalho de preparação e projeção dos edifícios/imóveis, em papel, maquete física ou digital. Não é, importa notar, a execução dos edifícios ou imóveis projetados, porque essa será, sim, a prestação principal dos contratos de empreitada que se lhe seguirão, tipicamente.
j) Daí que, o local da prestação dos serviços de arquitetura, pela aqui Recorrente, não possa ser outro que não o local onde se situa o atelier de arquitetura da mesma, tendo sido este o local onde foram, efetivamente, elaborados e preparados todos os estudos e projetos de arquitetura solicitados pela Ré. Donde, o local do cumprimento da obrigação principal do contrato de arquitetura foi, não Espanha, mas sim Portugal.
k) Em razão do exposto, não restam dúvidas de que mal andou o Tribunal a quo ao julgar incompetentes os Tribunais portugueses para decidir a presente ação, sendo manifesto o erro de julgamento perpetrado na sentença recorrida relativamente à interpretação e aplicação do critério de determinação do lugar de cumprimento da obrigação previsto no artigo 7º/1, alínea b), do Regulamento.
l) Em termos que ditam a necessária revogação da sentença recorrida, com as legais consequências.
Termina pedindo a revogação da sentença recorrida, com as legais consequências.
A R. contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação, e manutenção da decisão recorrida, formulando as seguintes conclusões:
a. Vem o presente recurso interposto pela Autora, ora Recorrente, do despacho Saneador-Sentença proferido pelo Tribunal a quo em 24 de novembro de 2022, pelo qual julgou totalmente procedente a exceção de incompetência absoluta do Tribunal a quo em razão da nacionalidade, assim absolvendo a Ré, aqui Recorrida, da instância processual.
b. No entendimento da Recorrente o Tribunal a quo é internacionalmente competente para julgar os presentes autos, atento o disposto no n.º 1, alíneas a) e b) (segunda parte), do artigo 7.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012 (doravante “Regulamento UE 1215”).
c. Para o efeito, veio a Recorrente alegar, precisamente, e em suma, que: i) estamos perante um “contrato de prestação de serviços de arquitetura”; e ii) “o local da prestação dos serviços de arquitetura (…) foi o atelier de arquitetura da mesma” [Lisboa].
d. Acontece que no âmbito e para efeito da aplicação do n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento UE 1215, a classificação de uma relação contratual como de «prestação de serviços» ou de «compra e venda» – e consequente determinação do lugar do cumprimento –, não deve ser feita a partir das disposições e/ou da aplicação do nosso direito interno, mas, antes, a partir aferição da caraterística-nuclear e relevante da obrigação tal como prevista e contratada pelas partes.
e. Este tem sido o entendimento unânime na Jurisprudência nacional e comunitária na matéria – a título de exemplos veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14/12/2017 (proc. 143378/15.0YIPRT.G1.S1), (disponível em www.dgsi.pt.), e a jurisprudência internacional nele citada –, ao determinarem que lugar de cumprimento, para efeitos de aplicação do Regulamento UE 1215, representa um conceito autónomo, cujo conteúdo e sentido é apenas alcançável pelo exame da obrigação característica do contrato tal como a mesma é acordada pelas partes.
f. Pois bem, no caso aqui em apreço, as partes, nos “termos do contrato” a que refere o n.º 1 do artigo 7.º do Regulamento UE 1215, determinaram expressamente a entrega efetiva e material dos projetos como um elemento integrante e fundamental da prestação da Autora, aqui Recorrente – realidade que a Recorrente, aliás, reconhece e confessa na sua petição inicial (cfr. artigo 48.º da petição inicial).
g. E a ser assim, como é, então, para efeitos de concretização do lugar de cumprimento no âmbito do Regulamento UE 1215, a situação ora em apreço – porque assim o determinaram as partes –, ao prever como elemento fundamental a entrega, tem mais afinidade com um contrato de compra e venda (cuja obrigação-característica essencial é, justamente, a entrega) do que com um contrato de prestação de serviços (cuja obrigação-característica essencial resume-se, na sua essência, à realização da prestação).
h. A circunstância de, em simultâneo, se combinarem, como é aqui o caso, elementos próprios do contrato de “compra e venda” e do contrato de “prestação de serviços”, em nada invalida o supra exposto, pois que, e como uma vez mais resulta dos “termos do contrato”, a componente entrega é absolutamente preponderante na economia do contrato celebrado entre as partes e prevalecente em caso de ponderação de critérios.
i. A opção pelo critério vertido no artigo 7.º, n.º 1, al. b) (primeira parte) do Regulamento UE 1215 – “o local onde os bens foram ou devam ser entregues” –, sustenta-se, ainda, na especificidade de ser este o único critério que, se aplicado, e com um elevado grau de certeza jurídica, permite, no caso em concreto, estabelecer uma conexão forte o suficiente para justificar a competência internacional de um Tribunal ao abrigo do Regulamento UE 1215.
j. Isto é assim uma vez que: i) a Recorrida tem a sua sede em Espanha; ii) os imóveis objeto dos projetos de arquitetura situam-se em Espanha; iii) as partes reuniram-se para analisar e discutir os ditos projetos em Espanha; iv) a Recorrente deslocou-se várias vezes a Espanha para realizar a prestação a que se obrigou; v) os projetos foram enviados para Espanha; vi) é em castelhano que as partes comunicam; vii) e, da única vez que as partes efetivamente formalizaram um contrato do tipo alegado pela Recorrente – este, como visto, tem por base apenas a troca de emails – as mesmas expressamente determinaram que em caso de litígio seriam exclusivamente competentes os tribunais espanhóis (cfr. documento n.º 2 junto com a Contestação).
k. Ou seja, a ordem jurídica espanhola representa, além da única conexão verdadeiramente revelante ao caso, a única jurisdição que oferece à Recorrida um grau de certeza e de segurança jurídica compatível com os princípios de Justiça e de Direito da União Europeia, além da única jurisdição que a Recorrida, se tivesse antecipado o litígio, teria previsto como possível (além de ser a jurisdição que as partes, em relação anterior, expressamente já haviam previsto como aplicável).
l. Neste sentido, e por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2020 (proc. n.º 1608/19.6T8GMR.G1.S1).
m. E ainda, o vertido nos Considerandos n.ºs 15 e 16 do Regulamento UE 1215, em especial este último: “(16) O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. Este elemento é especialmente importante nos litígios relativos a obrigações extracontratuais decorrentes de violações da privacidade e de direitos de personalidade, incluindo a difamação.”.
n. A ligação dos vários elementos do caso aqui em apreço mostra-se, assim, e de forma inequívoca, em estreita ligação, apenas, com a ordem jurídica espanhola, a única capaz de assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade da Recorrida ser demandada no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para si.
o. Face ao exposto, resta concluir pela manutenção da decisão proferida em sede de despacho Saneador-Sentença, nos exatos termos em que foi proferida, com a procedência da exceção de incompetência absoluta do Tribunal a quo invocada pelo Recorrida.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões da recorrente (art.ºs 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), a única questão a decidir é se o tribunal português (o Juízo Cível de Lisboa) é ou não competente, internacionalmente, para conhecer da presente ação.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade relevante é a constante do relatório supra.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
O tribunal recorrido concluiu ser o tribunal português internacionalmente incompetente para conhecer do litígio com os seguintes fundamentos: “… Cumpre, então, decidir se um tribunal Português é competente internacionalmente para a tramitação e apreciação da prova nestes autos, designadamente, à luz dos Regulamentos (CE) 44/2001 e (UE) 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, uma vez que estamos perante uma situação ocorrida num Estado Membro da União Europeia e ambas as partes têm domicílio em Estados Membros. … Ora, dispõe este último Regulamento (conhecido como “Bruxelas I”), no seu artigo 4º, que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro, sendo que as pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas, nesse Estado-Membro, às regras de competência aplicáveis aos nacionais. Por outro lado, os artigos 7º e 8º estabelecem uma exceção àquela regra, consagrando casos especiais em que as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro, estabelecendo, assim, uma competência meramente alternativa. Percorrendo a enunciação desses casos e compulsando a factualidade que constitui a causa de pedir na presente ação, verifica-se que a situação sub judice não se enquadra em nenhum daqueles casos. Na verdade, o n.º 1 do artigo 7º do Regulamento, versando sobre essa matéria, estabelece que «as pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou onde deva ser cumprida a obrigação em questão». Por sua vez, a alínea b) do mesmo normativo concretiza que, salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação será «…no caso da prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados.» Aliás, nos próprios considerandos deste Regulamento é possível compreender a razão de ser deste regime: veja-se, designadamente, o considerando 15, no qual se lê, além do mais, que «as regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido (…) exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério diferente.» Na situação dos autos, é manifesto que a causa de pedir se reporta ao cumprimento de um contrato de prestação de serviços no âmbito de um conjunto de projetos de arquitetura a implementar em Lanzarote, Espanha, aí se situando os imóveis objeto de tal intervenção; pelo que não restam quaisquer dúvidas (nem a Autora alegou em sentido contrário) de que o lugar de cumprimento das obrigações – quer da prestação dos serviços, quer do pagamento do preço, para efeitos do Regulamento – é em Espanha. Afastada a competência dos tribunais portugueses ao abrigo dos Regulamentos 44/2001 e 1215/2012, resta apreciar tal competência à luz da legislação nacional, conforme prevê o já referido artigo 4º do último Regulamento. Rege, em matéria de responsabilidade civil extracontratual, o artigo 71º, n.º 1 do Código de Processo Civil, dispondo que a ação destinada a exigir o cumprimento de obrigações, a indemnização pelo não cumprimento ou pelo cumprimento defeituoso e a resolução do contrato por falta de cumprimento é proposta no tribunal do domicílio do réu (não relevando, para o caso, a segunda parte da norma) – pelo que, também de acordo com a ordem jurídica portuguesa, o tribunal competente não seria o Português. Torna-se clara, portanto, a conclusão de que não existe qualquer elemento de conexão relevante para que um tribunal Português seja competente para conhecer da presente ação, sendo o domicílio da Autora, portanto, fator insuficiente para tal competência se reconhecer. Note-se que a jurisdição dos tribunais portugueses é delimitada pela jurisdição dos tribunais dos outros países. Não se encarregam de julgar qualquer litígio que surja no mundo, mas apenas aqueles que apresentem um elemento de conexão suficientemente relevante com a organização judiciária portuguesa que serve de fator de atribuição de competência para o julgamento do litígio, designadamente, aqueles previstos no artigo 65º do C.P.C.; sendo que, na situação dos autos, tão pouco haverá que ponderar qualquer destes elementos de conexão, pois que a legislação comunitária supra enunciada, prevalecendo sobre a legislação nacional, já determina, prima facie, que, fora dos casos de competência especial previstos nos artigos 7º e 8º do Regulamento 1215/2012, a competência do Tribunal é fixada segundo a lei do país onde foi proposta a ação.”.
Insurge-se a apelante contra o decidido, sustentando que:
- A jurisprudência nacional e europeia já se pronunciou sobre o presente tema, esclarecendo, de modo inequívoco, que, em caso de pluralidade de lugares de prestação de serviços em Estados-Membros diferentes, há que, em princípio, entender por lugar de cumprimento o lugar que assegura a conexão mais estreita entre o contrato e o órgão jurisdicional competente, situando-se essa conexão, regra geral, no lugar da prestação principal;
- Os trabalhos de arquitetura, da autoria do atelier Aires Mateus foram, integralmente, realizados em Lisboa, como, aliás, se extrai da documentação junta aos autos com os articulados, sendo esta a prestação principal do referido contrato;
- No caso é aplicável o art.º 7º, nº 1, als. a) e b), segundo travessão, do Regulamento (UE) 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho;
- O contrato sub judice é um verdadeiro contrato de prestação de serviços;
- O lugar do cumprimento da obrigação “preço” não é, em caso algum, tido como relevante na determinação da jurisdição competente;
- Sendo Lisboa o local do cumprimento, pela A., da obrigação principal do contrato de prestação de serviços outorgado com a R. – elaboração dos estudos e projetos de arquitetura por esta solicitados -, não restam dúvidas de que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para julgar a ação proposta nos presentes autos.
Apreciemos.
Para aquilatar da competência do tribunal para conhecer da presente ação, cumpre atentar na causa de pedir [1] e na pretensão formulada pela A., ponderados os elementos trazidos aos autos pelas partes.
Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, 1979, págs. 90/91, escrevia sobre os “elementos determinativos da competência dos tribunais” que “São vários esses elementos também chamados índices de competência (Calamandrei). Constam de várias normas que provêm a tal respeito. Para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a ação – seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos (identidade das partes). A competência do tribunal – ensina Redenti – “afere-se pelo quid disputatum (quid decidendum, em antítese com aquilo que será mais tarde o quid decisum)”; é o que tradicionalmente se costuma exprimir dizendo que a competência se determina pelo pedido do Autor. E o que está certo para os elementos objetivos da ação está certo ainda para a pessoa dos litigantes. A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão. Mesmo quando a lei, não se atendo pura e simplesmente aos termos em que a ação está deduzida, requer a indagação duma circunstância extrínseca (valor ou situação dos bens pleiteados, domicílio do Réu, lugar do contrato ou do facto ilícito, etc.), é através desses termos que há de saber-se qual o ponto a indagar”.
A. e R. são sociedades comerciais que estabeleceram negócio(s) entre si, estando aquela sedeada em Portugal e esta em Espanha, pelo que está em causa aquilatar da competência internacional do tribunal português, onde a ação foi proposta, para conhecer da mesma.
Dispõe o nº 2 do art.º 37º da L. nº 62/2013, de 26.08 (LOSJ), que “A lei de processo fixa os fatores de que depende a competência internacional dos tribunais judiciais”, estatuindo o nº 1 do art.º 38º que “A competência fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, a não ser nos casos especialmente previstos na lei”.
Sobre a matéria dispõe o art.º 59º do CPC que “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º”.
Os regulamentos europeus e os instrumentos internacionais prevalecem sobre as normas processuais portuguesas.
Estando as partes sediadas em Estados-Membros da UE, haverá que aquilatar da aplicação do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (reformulação) [2], por força do disposto no art.º 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (art.º 8º, nº 4, da CRP).
A presente ação, dada a sua natureza civil baseada em responsabilidade contratual, enquadra-se no âmbito de aplicação material do Regulamento (art.º 1º do Regulamento), tal como se enquadra no seu âmbito temporal, porque intentada em 2021 (art.ºs 66º e 81º do Regulamento), territorial, porque implica Estados-Membros (art.º 68º do Regulamento), e subjetivo ou espacial, porque a R. tem o seu domicílio num Estado-Membro (art.º 3º, nº 1 e 63º, do Regulamento).
O Regulamento estabelece, como regra, para determinar a competência internacional do tribunal, a do domicílio, dispondo o art.º 4º, nº 1, do Regulamento que “Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro devem ser demandas, independentemente da sua nacionalidade, perante os tribunais desse Estado”.
Por força desta regra geral, tendo a R. a sua sede em Espanha [3], era perante o tribunal espanhol que a ação deveria ter sido intentada.
Contudo, aquela regra não é absoluta, prevendo o Regulamento critérios especiais de determinação da competência, que podem afastar a regra geral do domicílio, como resulta do seu art.º 5º, nº 1, onde se prescreve que “As pessoas domiciliadas no território de um Estado-Membro só podem ser demandadas perante os tribunais de outro Estado-Membro por força das regras enunciadas nas secções 2 a 7 do presente capítulo”.
Dispõe o art.º 7º (Secção 2) do Regulamento que “As pessoas domiciliadas num Estado-Membro podem ser demandadas noutro Estado-Membro: 1. a) Em matéria contratual, perante o tribunal do lugar onde foi ou deva ser cumprida a obrigação em questão; b) Para efeitos da presente disposição e salvo convenção em contrário, o lugar de cumprimento da obrigação em questão será: - no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues; - no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados; c) Se não se aplicar a alínea b), será aplicável a alínea a)”.
Não resultando do termos do contrato que as partes tenham celebrado convenção sobre o foro competente, a ação tanto pode ser intentada no lugar do domicílio do demandado domiciliado no território de um Estado-Membro (art.º 4º do Regulamento), como no do lugar do cumprimento da obrigação (no caso da venda de bens, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os bens foram ou devam ser entregues, e no caso de prestação de serviços, o lugar num Estado-Membro onde, nos termos do contrato, os serviços foram ou devam ser prestados) [4].
Ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido, entende a apelante (e, também, a apelada) que, no caso, se aplica, precisamente, um desses critérios especiais, o previsto no art.º 7º, nº 1, al. b) (Secção 2), defendendo que, por força de aplicação do mencionado artigo, a ação podia ser intentada, como foi, no tribunal português (defendendo a R. o contrário, com base em diferente interpretação do mencionado preceito e do contrato).
Na interpretação e integração jurídica dos preceitos referidos deverão ter-se em conta os seguintes Considerandos do Regulamento:
(13) Deverá haver uma ligação entre os processos a que o presente regulamento se aplica e o território dos Estados-Membros. Devem, portanto, aplicar-se, em princípio, as regras comuns em matéria de competência sempre que o requerido esteja domiciliado num Estado-Membro.
(15) As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.
(16) O foro do domicílio do requerido deve ser completado pelos foros alternativos permitidos em razão do vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio ou com vista a facilitar uma boa administração da justiça. A existência de vínculo estreito deverá assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele. …” (sublinhado nosso).
Do teor do art.º 7º do Regulamento, confirmado pelos Considerandos reproduzidos, nomeadamente o último, resulta que aquele artigo apenas estabelece um critério alternativo ao do domicílio [5], e que apenas poderá ser aceite se existir um vínculo estreito entre a jurisdição e o litígio (devendo esse vínculo assegurar a certeza jurídica e evitar a possibilidade de o requerido ser demandado no tribunal de um Estado-Membro que não seria razoavelmente previsível para ele), ou se tiver em vista facilitar uma boa administração da justiça.
Como se referia no Ac. do STJ de 3.03.05, P. 05B316 (Salvador da Costa), em www. dgsi.pt, embora por referência ao artigo 5º, nº 1, al. b), Regulamento CE nº 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000 [6], mas com plena pertinência relativamente ao artigo 7º, nº 1, al. b), do Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012, “É um normativo inspirado, por um lado, pela ideia divulgada pela doutrina nacional e estrangeira de que a prestação característica do contrato de compra e venda é a do vendedor, por assumir natureza não monetária. E, por outro, pela ideia de que o foro do domicílio do sujeito passivo deve ser completado pelo estabelecimento de foros alternativos em razão do vínculo entre a jurisdição e o litígio, com vista a facilitar a boa administração da justiça. Visou-se o estabelecimento de um conceito autónomo de lugar de cumprimento da obrigação nos mais frequentes contratos, que são o de compra e venda e o de prestação de serviços, por via de um critério factual, com vista a atenuar os inconvenientes do recurso às regras de direito internacional privado do Estado do foro”, estando em causa uma verdadeira presunção juris et de juris. “Decorrentemente, é fundado o entendimento de que a alínea b) do nº 1 do artigo 5º abrange qualquer obrigação emergente do contrato de compra e venda, designadamente a obrigação de pagamento de qualquer contrapartida pecuniária do contrato e não apenas a de entrega da coisa que constitui o seu objeto mediato”.
Tal como entendem as partes, é irrelevante, para efeitos de determinação da competência do tribunal, o lugar de cumprimento da obrigação de pagamento do preço dos bens ou dos serviços, mesmo que o pedido se fundamente nesta obrigação (como é o caso), tendo em conta a consagração da regra de que na venda de bens só releva o lugar de cumprimento da obrigação de entrega e na prestação de serviços o lugar do cumprimento da obrigação do prestador de serviços [7].
Como se sumaria no Ac. do STJ de 14.12.2017, P. 143378/15.0YIPRT.G1.S1 (Maria dos Prazeres Beleza), em www.dgsi.pt, “… IV - O Regulamento n.º 1215/2012, tal como o Regulamento n.º44/2001, adotou um conceito autónomo de lugar do cumprimento para as ações fundadas em contratos de compra e venda ou de prestação de serviços, identificando as obrigações que são características de um (entrega dos bens) e de outro (prestação do serviço) e relevantes para fundamentar uma conexão do contrato com um lugar que, por um lado, seja suficientemente forte para justificar a competência alternativa com aquela que cabe ao Estado do domicílio do demandado (cfr. considerando 16 do Regulamento n.º 1215/2012) e, por outro lado e por isso mesmo, suficientemente segura para permitir determinar com certeza qual é o Estado cujos tribunais são competentes para julgar qualquer pretensão resultante do mesmo contrato. V - A interpretação autónoma da al. b) do n.º 1 do art.º 7.º do Regulamento n.º 1215/2012, tal como se entendia à luz de idêntico preceito constante do art.º 5.º, n.º 1, al. b), do Regulamento n.º 44/2001, com a finalidade de identificar a obrigação característica dos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, deve fazer-se “à luz da génese, dos objetivos e da sistemática do regulamento”. VI – Ambos os Regulamentos se afastaram do regime definido pela Convenção de Bruxelas de 1968, relativa à competência jurisdicional e à execução de decisões em matéria civil e comercial, ao tomar como referência, quanto aos contratos de compra e venda e de prestação de serviços, já não a obrigação controvertida na ação, mas antes a obrigação característica do contrato, impondo uma definição autónoma do “lugar de cumprimento enquanto critério de conexão ao tribunal competente em matéria contratual”.
Revertendo ao caso em apreço, constatamos que o pedido deduzido pela A. de condenação da R. a pagar-lhe a quantia de €461.691,75, acrescida de juros legais, está alicerçado no(s) contrato(s) outorgado(s) entre a A. e a R., nos termos do(s) qual(is), a A. se obrigou, a pedido da R., a elaborar/preparar um conjunto de projetos de arquitetura cujas edificações seriam implementadas, em Lanzarote, Espanha.
Assim:
“5.º Em junho de 2017, o Réu solicitou ao Autor a elaboração do projeto de arquitetura do Hotel PB, …
6.º Na comunicação de correio eletrónico dirigida pelo Réu ao Autor, em 12 de junho de 2017, é inequívoca a “encomenda” realizada ao Autor para, num primeiro momento, elaborar o Anteprojeto do Hotel PB e, num segundo momento, realizar o projeto para a construção das obras (Projeto Básico e Projeto de execução e direção de obras).
8.º Em fevereiro de 2019, o Réu solicitou ao Autor a elaboração do projeto de arquitetura do Edifício A, …
10.º Nessa mesma altura, o Réu dirigiu ao Autor um novo pedido, atinente à elaboração do projeto de arquitetura de uma Quinta, sita em La Geria, …
13.º Os estudos prévios destes 3 projetos – “Hotel PB”, “Edifício A” e “Quinta LG” – foram, numa fase inicial, entregues pelo Autor ao Réu, que os analisou e aceitou, solicitando, consequentemente, a continuação dos referidos trabalhos. Com efeito
14.º O “Esquema conceptual" do projeto do “Hotel PB”, foi entregue, pelo Autor ao Réu, em dezembro de 2017 e o respetivo Estudo Prévio foi entregue em março de 2019 …
15.º O Estudo Prévio referente ao projeto do “Edifício A” foi entregue em março de 2019 e, por fim, o Estudo Prévio do projeto da “Quinta LG” foi entregue, pelo Autor ao Réu, em maio de 2019 …
16.º Na sequência do desenvolvimento dos 3 projetos identificados supra foi realizada uma exposição dos mesmos no atelier do Autor, em Lisboa, em novembro de 2019, tendo sido, nessa mesma exposição, apresentados diversos desenhos e maquetes a diversas escalas, relativos a cada um dos 3 projetos: “Hotel PB”, “Edifício A” e “Quinta LG”) ...
17º Em paralelo com o desenvolvimento dos referidos projetos, o Réu, em maio/junho de 2020, solicitou ao Autor a elaboração de mais 2 projetos de arquitetura, a saber: a “Casa dos Cs” e a “Casa en frente a la Ig” …
22.º Uma vez concluídos os trabalhos solicitados, o Autor, em 30 de julho de 2020, enviou ao Réu, por via postal e por correio eletrónico, os Anteprojetos dos 5 projetos identificados anteriormente, acompanhados das respetivas faturas pró-forma …
24.º Os elementos enviados (peças desenhadas e peças escritas) foram entregues com o detalhe correspondente a um “Anteprojeto”, …”.
Subjacente ao peticionado pagamento do preço está o alegado incumprimento de um contrato de prestação de serviços (art.º 1154º do CC [8]) celebrado entre a A. e a R., sendo a obrigação primacial desse contrato a elaboração dos referidos anteprojetos e projetos pela A. e a sua entrega à R.
Em regra, qualquer contrato de prestação de serviços cujo objeto é a elaboração de projetos de arquitetura comporta, na sua génese, a obrigação de entrega do trabalho (dos projetos) ao cliente ou a quem este indicar, se assim for convencionado.
É certo que, no caso, a entrega dos anteprojetos e projetos em causa (em Espanha) ganha particular relevância na medida em que os mesmos seriam completados e materializados com recurso a arquitetos locais, ainda que com a colaboração da A., como resulta dos documentos juntos pela A. com a PI (correspondência trocada).
Contudo, a parte principal da obrigação da A., a “obrigação característica do contrato” é, indiscutivelmente, o estudo e elaboração dos anteprojetos e projetos.
Como escreve Luís Lima Pinheiro, em Direito Internacional Privado, Vol. III - Tomo I, Competência Internacional, AAFDL, 2019, pág. 126, “Se a prestação de serviço tiver lugar em diversos Estados-Membros o tribunal competente para conhecer de todos os pedidos baseados no contrato é o da jurisdição onde se encontra o lugar da principal prestação de serviço” [9].
A principal obrigação da A. no contrato de prestação de serviço acordado com a R. foi o estudo e elaboração dos anteprojetos e projetos, o que fez em Lisboa [10].
Nesta conformidade, o tribunal recorrido é internacionalmente competente para conhecer da presente ação, nos termos do art.º 7º, nº 1, als. a) e b), segundo travessão (Secção 2) do Regulamento UE nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012, ao contrário do decidido.
Procede, pois, a apelação, devendo revogar-se a decisão recorrida, declarando-se internacionalmente competente o tribunal recorrido para conhecer da ação, a qual deverá prosseguir os seus termos.
As custas da ação [11] e da apelação são da responsabilidade da apelada, por ter ficado vencida (art.º 527º, nºs 1 e 2, do CPC).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, que se substitui por outra a declarar o tribunal recorrido internacionalmente competente para conhecer da ação, que deverá prosseguir seus termos.
Custas pela Recorrida.

Lisboa, 2022.03.14
Cristina Coelho
Edgar Taborda Lopes
Luís Filipe Pires de Sousa
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[1] No facto jurídico de que procede a pretensão deduzida – art.º 581º, nº 4, do CPC.
[2] Que revogou o Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial (art.º 80º).
[3] Conforme alegado pela A.
[4] Como escreve Luís Lima Pinheiro, em Direito Internacional Privado, Vol. III, Competência internacional e reconhecimento de decisões estrangeiras, pág. 81, por referência ao Regulamento (CE) nº 44/2001 do Conselho, de 22.12.2000, mas aplicável ao Regulamento (UE) nº 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12.12.2012, “Em matéria contratual estabelece-se como critério especial de competência o lugar onde a obrigação em questão foi ou deva ser cumprida (art.º 5º/1/a). Entendeu-se que o foro do lugar do cumprimento da obrigação não só está bem colocado para a condução do processo como também é aquele que, em regra, apresenta a conexão mais estreita com o litígio. Uma vez que oferece ao autor uma alternativa ao foro do domicílio do réu, esse critério de competência contribui para um equilíbrio entre os interesses do autor e os do réu.”.   
[5] Neste sentido, cfr. Marco Carvalho Gonçalves, Competência Judiciária na União Europeia, na revista Scientia Ivridica, Tomo LXIV, nº 339 – setembro/dezembro de 2015, pág. 427.
[6] E num caso em que o negócio subjacente era o de compra e venda.
[7] Neste sentido, cfr. entre outros, os Acs. do STJ de 5.4.2016, P. 27630/13.8YIPRT-A.G1.S1 (Fonseca Ramos), do   STJ de 13.11.2018, P. 6919/16.0T8PRT.G1.S1 (Cabral Tavares), da RC de 23.5.2017, P. 1012/16.8 T8CTB.C1 (Maria Domingas Simões), e da RG de 4.10.2018, P. 6029/17.2T8GMR.G1 (Heitor Gonçalves), todos em www.dgsi.pt. Ver, ainda, Luís Lima Pinheiro, na ob. cit., pág. 84.
[8] A A. obrigou-se a proporcionar à R. certo resultado do seu trabalho intelectual.
[9] No mesmo sentido se pronuncia Marco Carvalho Gonçalves, na ob. cit., pág. 429, citando jurisprudência do TJUE.
[10] Onde, conforme alegado, realizou uma exposição dos 3 primeiros projetos, no seu atelier, em novembro de 2019, tendo sido apresentados diversos desenhos e maquetes a diversas escalas, relativos a cada um dos 3 referidos projetos.
[11] Como se escrevem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, no CPC, Vol. I, 3ª ed., pág. 627, “…, quando o acórdão do tribunal superior revogar total ou parcial da decisão recorrida, justificar-se-á que seja redefinida a responsabilidade global pelas custas nas diversas instâncias, de acordo com as regras gerais (STJ 20-12-21, 2104/12, STJ 17-10-19, 2458/15).”