Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA DE DEUS CORREIA | ||
Descritores: | INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CADUCIDADE CONHECIMENTO SUPERVENIENTE CONHECIMENTO NO SANEADOR VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 05/16/2019 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Texto Parcial: | N | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Sumário: | I- Não obstante o n.º1 do art.º 1817.º do Código Civil (aplicável às acções de investigação de paternidade ex vi do disposto no art.º 1873.º) determinar que esta acção só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou no prazo de dez anos após a maioridade, o n.º3 do mesmo preceito estabelece que a acção ainda pode ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos factos aí enunciados. II- O conhecimento superveniente a que se refere o art.º 1817.º n.º3 c) do Código Civil reporta-se a factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação ou, dito de outro modo, a factos que justifiquem que tenha sido apenas nesse momento e não antes – ou seja, dentro do prazo de dez anos após a maioridade ou emancipação – que o investigante tenha lançado mão da acção com vista a exercer o seu direito de ver estabelecido o vínculo da filiação. | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 6.ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa I-RELATÓRIO A intentou acção de investigação de paternidade contra: B, ambos melhor identificados nos autos. O Réu invocou a excepção da caducidade do direito de acção. Alegou, para o efeito, o disposto no art. 1817º nº 1 do Código Civil aplicável “ex vi” artº 1873º do mesmo diploma legal, nos termos do qual a acção de investigação da paternidade só pode ser intentada no prazo de dez anos, contado da maioridade ou emancipação do investigante. Ora, a Autora, à data da propositura da acção, tinha 34 anos de idade, tendo atingido a maioridade em 3 de Outubro de 2001, ou seja, há 16 anos atrás. Tendo a Autora atingido a maioridade em 3 de Outubro de 2001, o direito de acção teria que ter sido exercido até 3 de Outubro de 2011. Pelo que ter-se-á que concluir que o prazo de caducidade do direito de acção encontra-se, há muito, ultrapassado. A caducidade constitui forma extintiva de direitos, para quando o direito não é exercido dentro de um dado prazo, fixado por lei ou convenção, encontrando-se o seu regime, no Direito Civil, estabelecido nos artigos 328.º, e seguintes do Código Civil. No âmbito do direito adjectivo, a caducidade do direito da acção ocorre pelo decurso do respectivo prazo sem que tenha sido exercido pelo seu titular. Verificada a caducidade do direito de acção, verdadeira excepção peremptória, importará, nos termos do preceituado no número 3., do artigo 576.º, do Código de Processo Civil, a absolvição do pedido. Notificada da contestação e, consequentemente, da excepção de caducidade invocada pelo réu. Realizada audiência prévia, foi nesta, proferido saneador-sentença, no âmbito do qual foi julgada procedente a invocada excepção da caducidade e, por conseguinte, foi o Réu absolvido do pedido, nos termos do disposto no artº 576º nº 3 C.P.C. Inconformada com a decisão, a Autora interpôs o presente recurso de apelação formulando as seguintes conclusões: A) Da matéria de facto: 1- No dia 17 de Janeiro de 1983, a mãe da Autora e o Réu praticaram relações sexuais de cópula completa, e fruto dessas relações veio a nascer a Autora. 2- Quando soube que estava grávida, a mãe da Autora deslocou-se ao local de trabalho do Réu para o informar sobre tal gravidez. Quando chegou ao local de trabalho do Réu, foi informada que ali não trabalhava nenhum senhor com o nome de António e que o único trabalhador português que conheciam, que conduzisse um “Fusca vermelho”, se chamaria João … e que já tinha regressado a Portugal com a sua família. 3- A partir daquele dia, a mãe da Autora, sentindo-se envergonhada e enganada, desistiu de o procurar. 4- Nasceu a Autora, e uns anos mais tarde, quando atingiu maturidade suficiente para o fazer, deslocou-se a esse mesmo local de trabalho do Réu para conseguir obter algumas informações sobre o seu paradeiro bem como dados relativos à sua identificação, como o seu apelido, mas sem sucesso. 5- Anos mais tarde, decidiu voltar à Fazenda supra referida pela terceira vez, com o mesmo intuito das vezes anteriores, e nesse dia teve a sorte de se cruzar com o Sr. Ismael, que lhe transmitiu que o único português que trabalhou naquela Fazenda e com aquelas características se chamava JOÃO …….. – e não António, como este havia dito à sua mãe –, que era casado e que tinha outros filhos, os quais estiveram a estudar na Escola Municipalizada de Santa Rosa, Itaguaí, Brasil. 6- Após obter esta informação, a Autora dirigiu-se à “Defensoria Pública” e pediu autorização para obter junto da Escola Municipalizada de Santa Rosa, informações completas, dados ou cópias de documentos que permitissem ajudá-la a conhecer o paradeiro do seu pretenso pai. (Doc.Cit.nº2 da P.I.) 7- Descoberto o nome completo dos irmãos, através da Escola, a Autora começou a procurar na Internet, nomeadamente no Facebook, os seus nomes e conseguiu identificá-los uns meses mais tarde. 8- Com a ajuda da sua tia, conseguiu contactar o seu pretenso pai e obter a sua verdadeira morada e após algumas tentativas de contacto acabou também por conseguir falar com o seu irmão mais velho, DÉCIO …… e com a ajuda de todos, organizou a sua vinda para Portugal. 9- Chegada a Portugal, residiu durante duas semanas na casa de morada de família do seu pretenso pai, da qual fora expulsa pela mulher daquele, que sempre se terá mostrado pouco entusiasmada com a sua chegada. 10- Após esta expulsão, foi residir com a irmã do seu pai MARIA ……. 11- Desde então, não voltou a falar com o pai, ora Réu, apesar de o ter tentado contatar, por diversas vezes, porém sem sucesso, uma vez que até os números de telefone foram alterados, sem qualquer razão aparente. 12- Apesar do Réu, até à presente data, não ter assumido legalmente a paternidade da Autora, é certo que esta é considerada como sendo sua filha, pela irmã deste e por quem priva com estes. 13- Após estes inesperados acontecimentos, a Autora intentou contra o Réu a correspondente ação de reconhecimento da paternidade, que correu os seus trâmites no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte – Juízo de Família e Menores de Vila Franca de Xira. 14- Em sede de defesa o Réu apresentou a sua contestação, impugnando os factos alegados pela Autora e invocando a caducidade desta ação, porque instaurada mais de 10 anos após a maioridade da Autora. 15- Foi proferido despacho saneador pelo Mmº juiz, que julgou procedente a exceção de caducidade e absolveu o Réu do pedido que contra si foi formulado, razão pela qual vem a Autora, nos presentes termos, interpor Recurso, uma vez que se trata de um direito que lhe assiste, enquanto pessoa, de conhecer e identificar as suas raízes. B)- Da matéria de direito: 16- No seguimento da ação de reconhecimento da paternidade intentada pela Autora, veio o Réu, JOÃO ……., em sede de contestação, invocar a exceção da caducidade do direito de ação da mesma, com base no disposto no artigo 1817º do Código Civil. 17- Ora, tratando-se de uma questão suscitada apenas pelo Contestante, teria esta de ter sido alvo de discussão entre as partes. 18- O contraditório às exceções deverá, desde 2013, ser feito nos termos do nº4 do artigo 3 do Código do Processo Civil, pelo que à exceção perentória deduzida pelo Réu na sua contestação, poderia (deveria) a Autora ter respondido oralmente em sede de audiência prévia. 19- Ora, no caso em apreço, tal não aconteceu porque iniciada a audiência prévia, foi dito pelo Mmº juiz que, “Notificada da contestação e consequentemente da exceção de caducidade invocada pelo réu, a autora nada disse”, e “tendo aquela atingido a maioridade em 3 de Outubro de 2001, o direito de ação teria que ser exercido até 3 de Outubro, pelo que o prazo de caducidade do direito de ação encontra-se há muito ultrapassado”. 20- Notificada da data da audiência prévia, a Autora iria preparada para refutar a exceção invocada, fundando-se no conhecimento superveniente dos factos, justificando o acesso tardio a essas informações com base no desconhecimento de dados completos que permitissem identificar o Réu, bem como com a sua ausência em parte incerta. 21- Como não lhe foi dada a oportunidade de se pronunciar no que diz respeito à caducidade do seu direito, nem, ao menos, relegado para final a apreciação da dita excepção, acredita a Autora que a decisão proferida pelo juiz a quo, se consubstanciou numa manifesta violação do princípio do contraditório. 22- Pelo juiz a quo foi ainda dito que, “Da articulação da A. Resulta que esta sempre soube que o R. era seu pai, não invocando qualquer facto ou circunstância que a tenha impedido de propor a acção, pelo menos durante os 10 anos seguintes a ter atingido a maioridade”. 23- Não pode o juiz a quo afirmar que “aquela sempre soube que o Réu era seu pai”, quando tal não corresponde à verdade, uma vez que a Autora apenas conhecia daquele o seu nome próprio (subsistindo ainda a dúvida sobre qual deles seria o verdadeiro) e o local onde aquele terá trabalhado há 35 anos. 24- Das poucas ou nenhumas informações a que teve acesso, foi dito pela Autora na sua P.I. que “por mais do que uma vez, esteve no local onde pretensamente o seu pai tinha trabalhado”, sendo que só na terceira vez que se deslocou a tal local teve a sorte de conhecer um senhor, de nome Ismael, que a informou que o único português que conhecia e que trabalhou naquela Fazenda, chamava-se JOÃO ……. 25- Acresce que, foi junto aos autos um documento que comprova que a Autora, após ter obtido aquelas informações do Sr. Ismael, dirigiu-se à “Defensoria Pública” do Estado do Rio de Janeiro, para que lhe fossem fornecidos dados do seu pretenso pai, de maneira a conseguir identificar o seu verdadeiro paradeiro. 26- Pelo que, não percebe a Autora como decidiu o Mmº juiz afirmar que esta não “invocou qualquer facto ou circunstancia que a tenha impedido de propor a ação”, quando tal documento comprova que a Autora desconhecia o paradeiro e a identidade completa do investigado. 27- Cremos que a ausência do pretenso pai em parte incerta e, portanto, desconhecida pela Autora, comprovam os factos e circunstâncias que justificam a propositura tardia da ação. 28- Posto isto, provando-se que a Autora só terá tido conhecimento dos verdadeiros e completos dados do pretenso pai, em finais do ano 2016, ter-se-á iniciado nesta data o prazo-especial de três anos, previsto na alínea c) do número 3 do artigo 1817º do Código Civil. 29- Dita o número 3 do artigo 1817º do Código Civil que “a ação de investigação da maternidade, pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: c) Em caso de inexistência de maternidade determinada, quando o investigante tenha tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem e justifiquem a investigação”. 30- Assim, tendo a presente ação sido instaurada a 18 de Outubro de 2017, a caducidade não poderia operar. 31- Sem prejuízo de considerarmos que o anteriormente exposto já seria suficiente para a improcedência da exceção da caducidade invocada pelo Réu, julgamos ser pertinente abordar a vexata quaestio da (in)constitucionalidade dos prazos de caducidade das ações de investigação da paternidade. 32- Nos últimos anos, os tribunais têm sido confrontados com a controversa questão de saber se o direito de propor a ação de investigação da paternidade pode estar sujeita a prazos de caducidade, ou se, pelo contrário, esse direito deve ser imprescritível. 33- A Lei nº 14/2009, de 1 de Abril, veio “tentar” resolver o problema, fixando, no artigo 1817º do Código Civil, novos prazos de caducidade para a propositura da ação: um prazo geral de dez anos após a maioridade ou emancipação e um prazo de três anos após o conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias justificativas da propositura da investigação. 34- Sucede que a questão não ficou resolvida e a (in)constitucionalidade dos prazos previstos para a propositura das ações de investigação da paternidade continua, nos dias de hoje, polémica. 35- Quanto a nós, parece-nos que o sucessivo alargamento do prazo pelo legislador se vai traduzindo numa posição tímida, mas ainda não totalmente assumida, a favor da imprescritibilidade de tais ações. 36- E, como não poderia deixar de ser dada a natureza pessoalíssima dos interesses em causa, julgamos que a posição espelhada na atual redação dada ao artigo 1817º do Código Civil continua inconstitucional, porque violadora dos direitos fundamentais previstos nos artigos 26º/1, 36º/1 e 18º/2 da CRP. 37- Parece-nos que se revela excessivo e desproporcional restringir os referidos direitos fundamentais – bem como tantos outros que aqui estão em jogo, nomeadamente o direito à verdade biológica, o direito à historicidade e o direito constituir família –, em detrimento da segurança e certeza jurídica do pretenso pai e respetivos herdeiros. 38- Aliás, parece-nos que se trata de “tentar” colocar num patamar equivalente interesses/valores que, sem poderem ser desprezados, não poderão ser equacionados e tutelados de igual forma. 39- Isto porque, se o pretenso pai tem plena consciência de que não vai ser declarado progenitor, então não sente qualquer tipo de “insegurança” que mereça ser tutelada, e se, pelo contrário, tem consciência de que pode ser declarado progenitor, então só tem de assumir as suas responsabilidades porque mais ninguém o poderá fazer no seu lugar, uma vez que é sobre si que recai o dever jurídico de assumir a responsabilidade de reconhecer os filhos biológicos que ajudou a conceber. 40- Quanto à segurança jurídica e legítimas expectativas dos herdeiros e familiares do pretenso pai, sempre diremos que este é também ele um argumento fácil de rebater, uma vez que entendemos que estes podem a qualquer tempo intentar a correspondente ação de petição da herança. 41- E, subsistindo quaisquer dúvidas relativamente às verdadeiras intenções do filho que intenta uma ação de reconhecimento de paternidade, julgamos razoável que se lhe negue os benefícios sucessórios e patrimoniais que do estabelecimento do vínculo jurídico viessem a resultar, mas jamais será aceitável negar-lhe a constituição do vínculo de filiação com efeitos meramente pessoais. 42- Admitir que a ação seja proposta depois de caducar o prazo de dez anos com a consequência de a filiação estabelecida apenas relevar para efeitos pessoais é preferível e mais aceitável do que admitir que a proteção da segurança patrimonial do pretenso pai e seus respetivos herdeiros possa excluir sem mais, o direito, eminentemente, pessoal que integra uma dimensão fundamental da personalidade de cada indivíduo, que é saber quem é o seu pai biológico. 43- Por fim, podemos encontrar ainda um outro argumento a favor da imprescritibilidade destas ações, talvez com menos força, mas também ele com alguma lógica, que surge associada à ideia de que a recusa do reconhecimento jurídico do vínculo biológico abre uma porta para admitir o incesto, com todas as implicações negativas que tal implica para a sociedade. 44- Expostos todos estes argumentos, cremos que os atuais prazos previstos no artigo 1817º do Código Civil, consubstanciam uma restrição excessiva e desproporcionada aos assinalados direitos fundamentais, pelo que, são inconstitucionais. 45- Por serem inconstitucionais, não deveria o Tribunal de 1.ª instânicia ter aplicado a referida norma e em consequência ter julgado procedente a exceção perentória da caducidade. 46- Atento o supra exposto, violou o Tribunal a quo, o disposto nos artigos, 1817º do Código Civil, no nº 4 do artigo 3º do Código de Processo Civil e ainda, os artigos, 26º, nº1, 36º, nº1 e 18º, nº2, todos eles da Constituição da Republica Portuguesa. 47- Assim, pelo exposto, pedimos a V. Exas., que se dignem a concluir pela tempestividade da instauração da ação e, como tal, pela improcedência da exceção de caducidade invocada pelo Réu, ao invés do decidido pelo tribunal a quo, devendo a ação prosseguir os seus ulteriores termos. Termos pelos quais, dando provimento ao presente Recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, V.Exas., farão, como de costume, a louvável justiça. Não foram apresentadas contra – alegações. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir: II-OS FACTOS Na 1.ª instância foram dados como provados os seguintes factos: 1 – A presente acção foi intentada a 18 de Outubro de 2017 (cf. fls. 21). 2 – A autora nasceu a 3 de Outubro de 1983 e encontra-se registada como filha de Tereza …, sendo omissa a paternidade. (cf. fls. 13). III-O DIREITO Tendo em conta as conclusões de recurso formuladas que delimitam o respectivo âmbito de cognição deste Tribunal as questões a apreciar são as seguintes: 1-Violação do princípio do contraditório 2-Caducidade do direito de propor a acção de investigação de paternidade 3-Inconstitucionalidade da norma constante do art.º 1817, do Código Civil 1-A Apelante invoca nas suas conclusões 16.ª a 21.ª, uma violação do princípio do contraditório, alegadamente porque “não lhe foi dada a oportunidade de se pronunciar no que diz respeito à caducidade do seu direito”, já que “O contraditório às exceções deverá, desde 2013, ser feito nos termos do nº4 do artigo 3 do Código do Processo Civil, pelo que à exceção perentória deduzida pelo Réu na sua contestação, poderia (deveria) a Autora ter respondido oralmente em sede de audiência prévia”. Cumpre apreciar: Não há dúvida de que o princípio do contraditório é, realmente, um princípio basilar do nosso direito processual civil. E, por isso mesmo, encontra-se consagrado em termos sistemáticos, em lugar de destaque, no código de processo civil, no art.º 3.º, estipulando: “1 - O tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a ação pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja devidamente chamada para deduzir oposição. 2 - Só nos casos excecionais previstos na lei se podem tomar providências contra determinada pessoa sem que esta seja previamente ouvida. 3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem. 4 - Às exceções deduzidas no último articulado admissível pode a parte contrária responder na audiência prévia ou, não havendo lugar a ela, no início da audiência final. E é tão grave a violação do mesmo, pois põe em causa o equilíbrio de todo o processo de decisão, que não pode haver qualquer cedência em relação ao seu escrupuloso cumprimento. Vejamos então se, no caso dos autos, se verificou o atropelo de tão relevante princípio. Invocada pelo Réu, na contestação, a excepção peremptória da caducidade, e tendo a Autora sido notificada da mesma, é certo que, por força do disposto nos artigos 3.º n.º4, 591.º n.º b) e 595.º n.º1 b) do CPC, tinha a Autora o direito de se pronunciar na audiência prévia, sobre a invocada excepção. Era, na verdade, esse o momento processual para o fazer. Ora, do teor da acta da audiência prévia consta o seguinte: “Iniciada a audiência, e porque as partes mantinham as respectivas pretensões, foi pelo Mmº. Juiz proferido o seguinte: Saneador- sentença” Sucede que nos termos em que a acta foi elaborada, maxime a expressão “ as partes mantinham as respectivas pretensões”, inculca a ideia de que as partes tiveram oportunidade de manifestar as suas posições, sobre a matéria em discussão, embora a redacção não seja explícita, quanto aos pontos, em concreto, sobre os quais incidiu eventualmente, o debate entre as partes. Vem a Apelante invocar que “não lhe foi dada a oportunidade de se pronunciar no que diz respeito à caducidade do seu direito”. Mas tal não resulta da acta da audiência prévia. O que resulta da acta é precisamente o oposto, ou seja, que as partes puderam discutir as suas pretensões. E a Apelante não alega que a acta da audiência prévia não espelhe fielmente aquilo que decorreu na respectiva diligência. É que, se assim não foi, se a Apelante quer significar que pediu a palavra para exercer o seu direito de se pronunciar sobre a matéria da caducidade e tal lhe foi negado, tal deveria ter ficado a constar da acta. Se não consta, o Tribunal tem de presumir que não aconteceu, a menos que seja invocada a falsidade da acta, o que também não sucede. Não pode, assim, dar-se como aceitável a alegação de não ter sido dada a oportunidade de a Autora se pronunciar sobre a caducidade do seu direito Perante o exposto, temos de concluir que não foi violado o princípio do contraditório. Improcedem as alegações de recurso a tal respeito. 2-Importa agora analisar a verificação ou não da caducidade do direito da Autora. Vejamos o teor da decisão recorrida: « Estipula o art.º1817º do Código Civil que: “1. A acção de investigação de maternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação. 2. Se não for possível estabelecer a maternidade em consequência do disposto no artigo 1815º, a acção pode ser proposta nos três anos seguintes à rectificação, declaração de nulidade ou cancelamento do registo inibitório. 3. A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: a) Ter sido impugnada por terceiro, com sucesso, a maternidade do investigante; b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no nº1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe. c) Em caso de inexistência de maternidade ou paternidade determinada, ter o investigante tido conhecimento superveniente de factos ou circunstâncias que possibilitem a investigação. 4. No caso referido na alínea b) do número anterior, incumbe ao réu a prova da cessação voluntária do tratamento nos três anos anteriores à propositura da acção.” A autora, à data da propositura da acção, tinha 34 anos de idade, tendo atingido a maioridade em 3 de Outubro de 2001, ou seja, há 16 anos atrás. Tendo a autora atingido a maioridade em 3 de Outubro de 2001, o direito de acção teria que ter sido exercido até 3 de Outubro de 2011. Pelo que o prazo de caducidade do direito de acção encontra-se, há muito, ultrapassado. De referir, ainda, que da articulação da A. resulta que esta sempre soube que o R. era seu pai, não invocando qualquer facto ou circunstância que a tenha impedido de propor a acção, pelo menos durante os 10 anos seguintes a ter atingido a maioridade (só o vindo fazer agora, com 34 anos à data da propositura da acção). Considero, assim, que no caso em análise não tem aplicabilidade qualquer das alíneas do nº3 do artigo 1817º do CC e que conferem a possibilidade da acção ser ainda proposta pelo investigante no prazo dos três anos posteriores a algum dos factos constantes das referidas alíneas. Assim, e face ao supra exposto, julgo procedente a invocada excepção de caducidade, assim se absolvendo o Réu do pedido, nos termos do disposto no artº 576º nº 3 C.P.C. (cf. neste sentido jurisprudência do Tribunal Constitucional –(…)» Não há dúvida de que o prazo previsto no art.º 1817.º n.º1 do Código Civil – dez anos após a maioridade da Apelante - há muito estava ultrapassado, à data em que foi proposta a acção. Contudo, prevê ainda o art.º 1817.º n.º 3 b) do C.C que “A acção pode ainda ser proposta nos três anos posteriores à ocorrência de algum dos seguintes factos: a) (…) b) Quando o investigante tenha tido conhecimento, após o decurso do prazo previsto no nº1, de factos ou circunstâncias que justifiquem a investigação, designadamente quando cesse o tratamento como filho pela pretensa mãe [ pai].” Importa, pois, averiguar, em face dos factos alegados pela Autora, ora Apelante, se tais factos poderão considerar-se susceptíveis de integrar fundamento de alargamento do prazo de caducidade, tal como previsto no art.º art.º 1817.º n.º 3 b) do CC. Vejamos o que, a este propósito, a Autora alegou: “ 16º Desde sempre, a Isabela ficou muito curiosa sobre a possibilidade de conhecer e identificar o seu pai, questionando por vários e longos anos a mãe, sobre a sua identificação, a qual, nunca lhe soube dizer qual o seu paradeiro, sabendo apenas as informações supra referidas, ou seja, que o pai tinha regressado a Portugal. 17º Pelo que a Autora, persistente/insistente e resiliente, teve a ideia de tentar descobrir o paradeiro de seu pai e por mais do que uma vez, esteve no local onde pretensamente o seu pai tinha trabalhado, sendo que uma das pessoas que aí trabalhava, Sr. Ismael, lhe transmitiu que o conhecia e lhe deu conhecimento que era casado, tinha outros filhos, os quais estiveram a estudar na Escola Municipalizada de Santa Rosa, Itaguaí, Brasil. 18º Após ter obtido estes conhecimentos, dirigiu-se à “Defensoria Publica” no Brasil, entidade equivalente ao Ministério Público em Portugal e pediu autorização para obter junto da escola Municipalizada de Santa Rosa, informações sobre os seus irmãos. (Doc.2) 19º Obtida tal autorização, descobriu então o nome completo do pai, dos irmãos e as suas moradas no Brasil. 20º Descoberto o nome completo dos irmãos, através da Escola, começou a procurar no Facebook e na Internet, pelos seus nomes e conseguiu identificar os mesmos, entre Outubro e Dezembro de 2016. 21º Apesar de lhe ter pedido amizade, estes não aceitaram, tendo no entanto conhecido a Tia, Maria de ….., irmã de seu pai, com quem travou conhecimento e após alguns meses de diálogo conseguiu convencê-la a ajudá-la e por seu intermédio, obter mais informações, nomeadamente, a morada correta de seu pai, aqui Réu. 22º Em consequência e após alguns contactos da tia, conseguiu falar com o seu pai, aqui Réu e com o irmão mais velho, Décio …. e organizou a sua vinda para Portugal.” A Autora/ Apelante alega que durante muitos anos procurou saber junto de sua mãe, sobre a identidade do seu pai, mas que a mesma “nunca lhe soube dizer qual o seu paradeiro”. Só em 2016, conseguiu obter o nome completo do seu pai e irmãos. Ora, o preenchimento da previsão do art.º 1817.º n.º3 b) “exige que o conhecimento superveniente se reporte a factos ou circunstâncias que possibilitem a investigação ou, dito de outro modo, a factos que justifiquem que tenha sido apenas nesse momento (e não antes – ou seja, dentro do prazo geral de dez anos após a maioridade ou a emancipação) que o investigante tenha lançado mão da acção com vista a exercer o seu direito de ver estabelecido o vínculo da filiação”.[1] Ora, a verdade é que antes da alegada data de 2016, sendo desconhecido o paradeiro do pretenso pai, a viabilidade de uma acção de investigação era muito reduzido. Através da Lei n.º 14/2009 de 01-04 que alargou os prazos de caducidade previsto no art.º 1817.º do Código Civil, “o legislador previu uma cláusula geral de salvaguarda que permitisse a propositura da acção para além do referido prazo mínimo normal, contanto que o autor cumprisse o ónus de alegar factos que tornassem a propositura tardia da acção desculpável ou justificável (maxime, o desconhecimento, sem culpa, da identidade do progenitor ou a existência de reais obstáculos práticos ou sociais à propositura da acção)”.[2] Tendo a Autora alegado factos susceptíveis de fundamentar uma decisão no sentido da aplicabilidade do disposto no art.º 1817.º n.º3 b) do Código Civil, deveriam tais factos ser considerados e não estando provados fazerem parte dos temas da prova a produzir. Na verdade, provando-se que a Autora só teve conhecimento dos verdadeiros e completos dados do pretenso pai, em finais do ano 2016, poderá vir a concluir-se que se iniciou nesta data o prazo-especial de três anos, previsto na alínea c) do número 3 do artigo 1817º do Código Civil. Procedem, nesta parte, as conclusões da Apelante. Deverá, por conseguinte, ser revogada a decisão que julgou procedente a invocada excepção da caducidade, logo no saneador, devendo relegar-se para final, após produção de prova, o seu conhecimento. 3- Fica assim, prejudicado o conhecimento da questão da inconstitucionalidade do art.º 1817.º do Código Civil. IV-DECISÃO Face ao exposto, acordamos neste Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar procedente o recurso e, por consequência, revogando a decisão recorrida, determinar o prosseguimento dos autos, relegando-se para final o conhecimento da excepção da caducidade do direito de acção. Custas pela parte vencida a final. Lisboa, 16 de maio de 2019 Maria de Deus Correia Maria Teresa Pardal Carlos de Melo Marinho [1] Vide a este respeito e num caso semelhante, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-02-2017, Processo 200/11.8TBFVN.C2.S1, disponível em www.dgsi.pt. [2] Vide Acórdão do STJ, supra citado. |