Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1507/16.3GCALM-A.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: QUEIXA
DENÚNCIA
DIFAMAÇÃO
SOCIEDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: – A noção de «queixa» tem conteúdo e natureza processual específicos; não constitui, como a denúncia, a simples transmissão do facto com relevância criminal, pelo que não constitui, processualmente, queixa uma simples declaração de ciência feita acerca de um facto.

– A queixa exige que se manifeste uma vontade específica de perseguição criminal pelo facto, e distingue-se nos seus elementos da denúncia; na queixa, além da declaração de ciência na transmissão da ocorrência de um facto, exige-se ainda «uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra ao agente», constituindo uma declaração de vontade e uma específica forma de comunicação da notícia de um crime no sentido dos art.ºs 241.º e seguintes, para efeitos de procedimento criminal, como condição de integração e pressuposto da legitimidade do MP para promoção do processo.

– Uma sociedade não é, enquanto tal, passível de ser ofendida num crime de difamação; poderá sê-lo de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva (cfr. art. 187.º do Cód. Penal).

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal (5.ª) da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


I–1.)- Inconformado com o despacho aqui melhor constante de fls. 75 a 78, em que a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal de Almada (Juiz 2), Comarca de Lisboa, não admitiu a constituição nos autos na qualidade de Assistente à sociedade “P. , Unipessoal, Ld.ª”, recorreu o Ministério Público para esta Relação, condensando as razões da sua discordância com a apresentação das seguintes conclusões:

1.ª- Vem o presente recurso interposto do despacho proferido pela Mm.ª JIC a fls. 76 a 79, que indeferiu a constituição como assistente da sociedade P. , Lda. e versa sobre a matéria de direito.

2.ª- No despacho recorrido, a Mm.ª JIC indeferiu a constituição como assistente da sociedade P. , Lda., “por falta de legitimidade uma vez que não foi apresentada queixa-crime e que a ratificação é inoperante”.

3.ª- Ao decidir nos termos em que o fez, a Mm.ª JIC violou o disposto nos arts. 68.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, 113.º, n.º 4 do Código Penal, e 268.º do Código Civil.

4.ª- Na verdade, do teor do auto de denúncia que deu origem a estes autos - e ainda que a redacção dada pelo órgão de polícia criminal não tenha a terminologia jurídica correcta -, resulta que A. não apresentou a queixa como se fosse o próprio o titular dos direitos ofendidos, mas sim em nome do seu restaurante, e consequentemente, em nome da sociedade P. , Lda, que explora tal estabelecimento comercial.

5.ª- Nesta medida, e tendo sido a denúncia apresentada em nome da sociedade que explorava aquele estabelecimento comercial, a ratificação da queixa por CI , gerente de direito da sociedade, é válida, nos termos dos arts. 268.º do Código Civil e 27.º, n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil.

6.ª- Considerando que a ratificação opera retroactivamente , a ratificação pelo representante legal dos actos anteriormente praticados faz com que esses actos passem a valer como se ele próprio (o titular do direito de queixa) os tivesse praticado.

7.ª- Acresce que do teor de fls. 19 resulta que a sociedade P. , Lda. declarou, em tempo, desejar procedimento criminal contra o denunciado pelos factos participados por A. em 15.12.2016.

8.ª- Ora, para além da ratificação da denúncia apresentada por A. validamente efectuada pela representante legal da sociedade P. , Lda., temos que a sociedade P. , Lda. declarou, através de mandatário forense, que desejava procedimento criminal contra o denunciado, pelo que ao contrário do invocado pela Mm.ª JIC, a mesma é queixosa nos autos e, consequentemente deveria ter sido admitida a intervir como assistente.

9.ª- Assim, o douto despacho recorrido deverá ser revogado e substituído por outro que admita a intervenção da sociedade P. , Lda. como assistente nos autos, sob pena de violação do disposto nos arts. 68.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, 113.º, n.º 4 do Código Penal, e 268.º do Código Civil.

Nestes termos, e nos melhores de Direito que V. Ex.as doutamente suprirão, deverá o despacho recorrido ser revogado em consonância com o que se expôs.
I–2.)- Não coube resposta ao recurso apresentado.
II– Subidos os autos a esta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta limitou-se a apor o seu visto.         
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Seguiram-se aqueles outros referidos no art. 418.º do Cód. Proc. Penal.
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Teve lugar a conferência.
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Cumpre apreciar e decidir:

III–1.)- De harmonia com as conclusões acima deixadas transcritas, a única questão suscitada pelo recurso ora interposto, atém-se à existência, ou não, de uma ratificação válida, por parte da sociedade “P. , Ld.ª”, de “queixa” formulada, ou a existência de outra autonomamente apresentada, em ordem a legitimar a sua constituição como assistente.

III–3.)- Como temos por habitual, importa conferir primeiro o teor da decisão de que se recorre:

Os presentes autos iniciaram-se com uma queixa apresentada por A.  em 15.12.2016.

O M.P. proferiu despacho de arquivamento do processo por o queixoso não se ter constituído assistente atenta a natureza particular do crime denunciado.

O queixoso A. veio dizer que apresentou tempestivamente requerimento em que ele e a sociedade P. pretendiam constituir-se assistentes.

Junto aos autos encontra-se o comprovativo do pagamento de uma taxa de justiça.

O queixoso A.  juntou procuração forense após ter sido notificado para o efeito.

O M.P. determinou a reabertura do inquérito e promoveu que o queixoso A.  fosse admitido a constituir-se como assistente.

Em virtude de terem sido duas as pessoas que pediram a constituição como assistente, - A.  e a Sociedade P.  Lda - e a queixa ter sido feita por uma delas em nome individual, foi exarado o despacho judicial de fls. 37.

Veio a Sociedade P.  Lda dizer que a taxa de justiça paga diz respeito ao seu pedido de constituição como assistente e junta procuração forense.

Veio o M.P. exarar novo despacho, desta vez, promovendo que a Sociedade P.  Lda fosse admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente.

Nessa sequência foi proferido o despacho judicial de fls. 51 do qual consta que a sociedade P.  Lda não apresentou queixa nem foi notificada para se constituir assistente.

Por despacho datado de 24.01.2018, o M.P. determina a notificação da representante legal da P.  Lda para ratificar a queixa apresentada por A. .

A fls. 60 CI , na qualidade de representante legal da sociedade P. Lda, vem ratificar a queixa apresentada por A.  e fá-lo em requerimento assinado por ela e por um advogado sendo certo que não se encontrava junta aos autos qualquer procuração outorgada pela requerente C..

Foi proferido despacho judicial.
Em suma:
- A queixa foi apresentada por A. .
- O M.P. proferiu despacho de arquivamento por falta de constituição de assistente.
- A.  e a Sociedade P.  Lda vieram requerer a sua constituição como assistentes dizendo que deram entrada tempestivamente a requerimento que, segundo informação do Sr. Funcionário de Justiça, não deu entrada.
- Foi só paga uma taxa de justiça.
- Após notificação veio a Sociedade P.  Lda dizer que era correspondente ao seu pedido de constituição de assistente.
- Tal sociedade não apresentou queixa.
- O M.P. remeteu o processo ao Juiz de Instrução para que fosse A.  admitido a constituir-se como assistente.
- Após despacho judicial, o M.P. remeteu novamente o processo ao Juiz de Instrução, desta vez promovendo que fosse a Sociedade P.  Lda admitida a constituir-se como assistente.
- Foi proferido despacho judicial no sentido de tal não ser possível uma vez que não havia queixa apresentada por tal sociedade.
- O M.P. mandou notificar o representante legal de tal sociedade para ratificar a queixa e após, remeteu os autos ao Juiz de Instrução.
- Foi proferido despacho judicial no sentido de não se afigurar possível ratificar a queixa neste processo crime.
- Insistiu o M.P. considerando que estava ratificado o processado e que deveria a Sociedade P. Lda ser admitida a intervir na qualidade de assistente.

Salvo melhor opinião, já está por demais demonstrado que tal não pode acontecer.

A queixa foi apresentada por A.  em nome individual no dia
15.12.2016, conforme se extrai do auto de denúncia de fls. 3 e 4.

Após ter determinado o arquivamento do inquérito por falta tempestiva de constituição de assistente e após ter sido considerado um requerimento em que o denunciante A.  e a Sociedade P.  Lda requeriam a sua constituição como assistentes e após ter promovido no sentido de A.  ser admitido a intervir nos autos na qualidade de assistente e após ter invertido tal posição e promover que deve ser a sociedade P.  Lda admitida como assistente, vem o M.P., mais de um ano após a queixa apresentada individualmente por A. , determinar que se notifique a legal representante da sociedade P. , Lda para ratificar o processado.
Ora, em primeiro lugar, a ratificação só tem lugar quando alguém actua processualmente sem ter poderes para o efeito. No entanto, como se vê a queixa foi apresentada em nome próprio por A. e não por ele em representação da sociedade. E tanto foi esse o entendimento do M.P. que, conforme já se explanou em anterior despacho judicial, determinou a notificação de A. Gonçalves para se constituir assistente dado que se investigava um crime de natureza particular e, como tal não foi feito, arquivou o processo e não determinou a notificação de qualquer pessoa colectiva ou seu representante legal para vir ratificar a queixa.
“A ratificação da queixa-crime pressupõe que alguém, sem poderes de representação, actue em nome de outrem; não é juridicamente aplicável quando alguém age em nome próprio no exercício de um direito meramente aparente.” (cfr. Ac. do Trib. da Relação de Coimbra de 19.02.2014).

Entende-se que não pode ter lugar a ratificação do processado feita por um terceiro relativamente a uma queixa feita por outrem em nome individual. É que, repete­se, a queixa não foi feita por A. em nome da sociedade P.  Lda mas sim em nome individual.

Assim, por falta de legitimidade uma vez que não foi apresentada queixa-crime e que a ratificação é inoperante, e no seguimento dos anteriores despachos judiciais e do supra exposto, não admito a sociedade P.  Lda a intervir nos autos na qualidade de assistente.
Notifique.
           
III–3.3.1.)- Sem prejuízo da complexa e inusitada sucessão processual dos actos acabados de reportar, e do merecimento devido pela posição sustentada em recurso, julgamos ser de conferir melhor razão ao despacho recorrido quando sustenta que a queixa inicialmente apresentada por A.  (diversamente do agora pretendido na conclusão 4.ª), o foi em nome pessoal.

Pode-se aceitar que o auto de denúncia não será muito eloquente sobre a exacta qualidade em que se apresenta a realizá-la – identifica-o porém, no campo do “lesado”.
Mas é inquestionável que o sentido que depois dele se retirou, é que a mesma foi efectuada em nome individual, leia-se, em nome próprio.

Sintomática dessa asserção é a circunstância de, por estar em causa um crime particular (difamação) e aquele não se ter constituído assistente, o Ministério Público haver determinado o arquivamento dos autos.

É inquestionável que, com data de 16 de Fevereiro de 2017, o referido A. e a sociedade “P. , Ld.ª” dão entrada de requerimento em que solicitam a abertura do inquérito, pois que por um outro, datado de 02/01/2017, haviam pedido a sua constituição como “assistente”, (no singular) constituído mandatário forense, juntado “procurações” (só surge uma passada pela pessoa colectiva), manifestado a intenção de deduzir pedido de indemnização cível e declarado ainda pretenderem procedimento criminal contra os Denunciados pela prática dos factos constantes na participação de 15/12/2016.

Sendo que a Secção vem a informar que o original daquele documento não deu entrada na respectiva Central.
Segue-se despacho do M.P. a determinar a regularização da representação forense do queixoso.

O inquérito é reaberto “atenta a queixa tempestivamente apresentada por A.  da Cunha”, e é em relação a ele que se promove a constituição de assistente (cfr. fls. 34).

Sobrevém a dificuldade de só ter sido paga uma única taxa de justiça… que a final se irá esclarecer pertencer à sociedade…

Mas como se pode verificar, o sentido inequívoco da tramitação realizada é no sentido do inicialmente indicado, ou seja, o de que a queixa inicial havia sido realizada em nome individual pelo mencionado A. .

Aliás, da certidão permanente de fls. 45 a 47 resulta evidente que a gerente da “P. ” foi sempre CI  e no aludido requerimento de fls. 16 de Fevereiro, também não afastou essa indicação.

Só em Janeiro de 2018 surge a notificação do Exm.º Mandatário da sociedade para ratificar a queixa inicial apresentada por aquele primeiro e a esclarecer o seu relacionamento com a referida pessoa colectiva.

Ora se assim também se entende, não vemos que igualmente faleça razão ao Mm.º Subscritor(a) do despacho recorrido quando afirma que a ratificação depois operada não é operante.

Como refere o acórdão da Relação de Coimbra de 19/02/2014, no processo n.º 154/11.0GBCVL.L1, por si citado, “a ratificação da queixa-crime pressupõe que alguém, sem poderes de representação, actue em nome de outrem; não é juridicamente aplicável quando alguém age em nome próprio no exercício de um direito meramente aparente”.

III–3.3.2.)- Remanesce então, como uma outra via para se alcançar o mesmo resultado, o aproveitamento da “queixa” que não se encontrou, mas de que existe traço, no tal requerimento de 16 de Fevereiro, subscrito por Mandatário com procuração passada pela sociedade “P.  Ld.ª”, em que esta afirma conjuntamente com o denunciante pessoa física, que “declara(m) que pretende(m) procedimento criminal contra os Denunciados pela prática dos factos constantes na participação de 15/12/2016”.

Sobre esta possibilidade, haverá que sublinhá-lo, que a Mm.ª Juíza de Instrução Criminal, nos seus sucessivos despachos, foi sempre referindo que a sociedade em causa “não é queixosa” ou, como depois o dirá de forma mais expressa, no ora recorrido, “não apresentou queixa”.
Donde, se inferir que não considerou o escrito em causa como  consubstanciando uma queixa, embora não especificando as razões pelas quais assim entendia.

Segundo os Exm.ºs Sr. Conselheiros Henriques Gaspar e Outros, no seu Código de Processo Penal Comentado (Almedina, 2014, pág.ª 181), “a noção de «queixa» tem conteúdo e natureza processual específicos; não constitui, como a denúncia, a simples transmissão do facto com relevância criminal, isto é, não constitui processualmente queixa uma simples declaração de ciência feita acerca de um facto. A queixa exige que se manifeste nessa declaração uma vontade específica de perseguição criminal pelo facto, e distingue-se nos seus elementos da denúncia; na queixa, além da declaração de ciência na transmissão da ocorrência de um facto, exige-se ainda «uma manifestação de vontade de que seja instaurado um processo para procedimento criminal contra ao agente».

A «queixa» constitui uma declaração de vontade e uma específica forma de comunicação da notícia de um crime no sentido dos art.ºs 241.º e seguintes; para efeitos de procedimento criminal, como condição de integração e pressuposto da legitimidade do MP para promoção do processo”.

No caso em apreço, não faleceria a validade da transmissão efectuada por via da intervenção de Mandatário, já que para o efeito não carecerá de poderes especiais.
E em bom rigor, não faltará também a manifestação da vontade procedimental no sentido da instauração de processo criminal.

O que se questiona, sim, é a simples remissão para a queixa antes formulada pelo Denunciante A., pois que a mesma terá de reportar-se a um “determinado facto”.

Ora ainda que se conceda que aquela pudesse comungar de várias circunstâncias ali reportadas nessa queixa, note-se que uma sociedade não é, enquanto tal, passível de ser ofendida num crime de difamação.

Poderá sê-lo de um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa colectiva (cfr. art. 187.º do Cód. Penal).

Donde, à pessoalidade que deve revestir a factualidade conexa com o exercício daquele direito, se somar o condicionalismo próprio da narração do crime em causa.

Pelo que, em conclusão, conviremos também na afirmação de que não houve «queixa» por parte da sociedade “P., Unipessoal, Ld.ª”, e como tal, pela improcedência do recurso.

IV–Decisão:

Nos termos e com os fundamentos mencionados, acorda-se pois em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público.

Sem custas.


Lisboa,13-11-2018


Luís Gominho
José Adriano