Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1634/14.1T9SNT.L1-5
Relator: LUÍS GOMINHO
Descritores: ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
NULIDADE
ABERTURA DE INSTRUÇÃO
REQUERIMENTO
AMEAÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I-A eventual nulidade, por deficiência de fundamentação, de que possa padecer o despacho de arquivamento, não traduz temática de conhecimento directo da Relação, porquanto os recursos apenas conhecem de questões suscitadas em decisões judiciais.
II-Tal invocação, o que também é válido para os vícios catalogáveis como irregularidade, teria de ser suscitada perante o magistrado do Ministério Público que a haja deduzido, abrindo-se, em caso de discordância, a possibilidade da sua reclamação para o respectivo superior hierárquico.
III-Tendo-se verificado rejeição liminar do pedido de abertura de instrução, também não logra sentido suscitar-se a nulidade dirigida à correspondente decisão judicial por não se terem realizado quaisquer diligências probatórias, na medida em que, nesse contexto, não chega a verificar-se, enquanto tal, instrução.
IV-Pese embora a afirmação algo enganadora com que o art. 287.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, abre a sua estatuição, afirmando que o requerimento para abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais”, a verdade é que deverá conter uma súmula “das razões de facto de direito, de discordância relativamente à (…) não acusação”, e a ser requerida pelo assistente, porque também lhe é aplicável o disposto no art. 283.º, n.º 3, al.ªs b) e c), do mesmo diploma (que rege a acusação formulada pelo Ministério Público), terá que forçosamente incluir “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis”.
V-Ora ainda que nos termos do art. 283.º, n.º 3, al.ª b), do Cód. Proc. Penal, a narração dos factos possa ser sintética, terá que ser suficiente para albergar a consequência de poder fundamentar a aplicação de uma pena.
VI-Essa suficiência mede-se não só pela possibilidade do libelo acusatório conter todos os elementos subjectivos e objectivos indispensáveis à perfectibilização subsuntiva da infracção, como também, num outro domínio, o de poder funcionar como uma peça processual autónoma, ou seja, sem que para definição desses mesmos elementos se tenha de recorrer a outras peças do processo.
VII-Nas situações em que o Ministério Público se abstenha de acusar, é correcto afirmar-se que o requerimento de abertura de instrução deverá equivaler a uma acusação alternativa, ou como o refere o Prof. Germano Marques da Silva, deverá conter “uma verdadeira acusação”.
VIII-Isto porque, “na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (art.ºs 308.º e 309.º). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo”.
IX-A simples menção do art. 145.º, n.º 1, do Cód. Penal, como referência normativa ao crime de ofensa à integridade física qualificada que se pretenda imputar, não cumpre com suficiência aquela exigência de especificação, já que importa indicar também qual a alínea que justifica tal qualificação, qual o crime de base praticado e qual a circunstância legal que justifica o juízo de especial perversidade ou censurabilidade do agente.
X-Expressões como reagir de “forma intimidatória e agressiva”, “o assistente começou a ser alvo de intimidação por parte dos arguidos”,com “agressividade e ameaçando”são excessivamente genéricas para suportar uma pronúncia por crimes de ofensa à integridade física e ameaça, para mais, quando se tem em vista a actuação de uma pluralidade de arguidos, importando assim descriminar o que cada um efectuou.
XI-A possibilidade de corrigir deficiências de alegação no RAI ao nível da narração de factos, a partir do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005 de 12/05/2005, publicado no DR I.ª Série de 04/11/2005, está hoje em dia unanimemente reconhecida como não sendo possível.
(Sumário elaborado pelo Relator).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, os Juizes do Tribunal da Relação de Lisboa.


I-Relatório:


I-1.)Inconformado com o despacho aqui melhor constante de fls. 350 a 354, em que o Mm.º Juiz da Secção Central de Instrução Criminal da Comarca de Lisboa Oeste (Sintra), na sequência da instrução requerida pelos assistentes VL e VR, rejeitou o respectivo requerimento de abertura, por inadmissibilidade legal, por falta de objecto (com o que aqueles reagiam ao arquivamento do inquérito determinado pelo Ministério Público, relativamente a eventuais crimes de abuso de poder, ameaça e ofensa à integridade física qualificada, na forma tentada) recorreram os Assistentes supra-indicados para esta Relação, sustentando as seguintes conclusões:

1.ª-O presente recurso vem interposto do despacho de rejeição do requerimento de Abertura de Instrução (RAI), proferido pelo tribunal recorrido com a motivação que se segue.

2.ª-Findo o Inquérito o Ministério Público, ordenou o arquivamento dos autos quanto aos crimes de abuso de poder e ameaça imputados ao Arguido A. previstos e punidos pelos Art.ºs 386.º, n.º 2º, 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 2, d), do CP e quanto aos Arguidos L. e B., respectivamente pelos crimes de ofensa à integridade física qualificada na forma tentada p. e p. nos Art.ºs 22.º, 23.º e 145.º, n.º 2, e de ameaça previsto e punível pelos Art.ºs 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, todos do CP.

3.ª-Não se conformando, os Recorrentes requereram a Abertura de Instrução (RAI).

4.ª-Mas o RAI foi rejeitado por inadmissibilidade legal.

5.ª-Nos termos do Art. 287.º, n.º 3 do CPP o RAI "só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução".

6.ª-O despacho de rejeição refere a final: "Pelo exposto, por inadmissibilidade legal por falta de objecto, rejeito o presente requerimento de abertura de instrução e determino o arquivamento dos autos."

7.ª-Diz o despacho, que os Recorrentes "... não imputam factos concretos a pessoa determinada que conduzam a uma concreta incriminação com as respectivas circunstâncias de tempo, modo e lugar, bem como respectivos elementos material e subjectivo."

8.ª-Mas os Recorrentes no seu requerimento, imputam factos concretos a pessoa determinada e referem as respectivas circunstâncias de modo como os factos se passaram.

9.ª-De facto, o RAI refere:

II-14)o arguido A. ordenou que fosse colocado um reboque-galinheiro (adiante designado apenas por galinheiro) a uma distância de cerca de 2 ou 3 metros da porta do estabelecimento e quase encostado à esplanada;
II-22)Por isso, o queixoso e assistente VL, nesse dia de manhã, dirigiu-se aos arguidos quando estes passavam em frente do café e com bons modos e cheio de boa-fé, pediu-lhes que ordenassem que o atrelado com o galinheiro fosse afastado daquele local,...
II-23)Mas esta tentativa de resolver o problema não surtiu efeito;
II-24)... o queixoso e assistente VR ... por volta das 11H30m desse domingo, dirigiu-se aos arguidos ... e fez uma segunda tentativa de resolver o problema, fazendo-lhes com bons modos o mesmo pedido;
II-25)Porém, ainda foi pior: os arguidos reagiram de forma intimidatória e agressiva e não mostraram nenhuma disponibilidade, nem vontade de resolver, ou sequer minimizar, o prejuízo provocado pelo galinheiro;
II-31)o queixoso e assistente VR pediu a intervenção da GNR...
II-32)De imediato, o assistente começou a ser alvo de intimidação por parte dos arguidos e
II-35)Na presença dos agentes, o arguido Bruno Alexandre Mendes Codeco, com agressividade e ameaçando o queixoso e assistente chegou-se tão perto deste, que quase lhe pôs a mão sobre o rosto;
II-39)Foi então que o arguido L. fez uma tentativa séria de agredir o queixoso e assistente VR;
II-41)A agressão só não se consumou devido à rápida intervenção do queixoso e assistente Vasile que foi em defesa do filho,
II- 44)Tudo isto aconteceu na presença do arguido A. que a tudo assistiu com absoluta passividade, sem que na sua qualidade de chefe dos fiscais, ou seja, chefe dos outros dois arguidos, tentasse dissuadi-los de agir conforme o supra exposto;
II-46)A proprietária do galinheiro, I.N., que presenciou estes acontecimentos e é testemunha nestes autos, dirigiu-se então ao arguido A. e disse-lhe que, para evitar problemas estava disposta a não trazer o galinheiro na próxima feira;
II-47)O arguido A., porém, logo a ameaçou dizendo que se ela não trouxesse novamente o reboque para junto da esplanada, na próxima feira, iria buscar outro galinheiro para colocar no mesmo local;
II-49)...há muito que o arguido A. tinha a intenção e uma vontade séria de prejudicar os queixosos e assistentes. Senão vejamos:
II-50)A testemunha I.N., no seu depoimento a fls. 220 v diz "... que da primeira vez que não levou o reboque o sr. A.... questionou ... o porquê de não ter trazido o reboque ... que... ameaçou que se ... não trouxesse novamente o reboque para junto da esplanada... que iria ceder aquele lugar junto ao café a outros feirantes..."
II-52)Entretanto, ..., o arguido A., virou-se para o queixoso e assistente V. e disse-lhe deforma prepotente e ameaçadora "Quer a minha identificação? Veja, veja (disse ele abrindo ostensivamente o blusão e mostrando o "crachat"). Mas a partir de hoje tenha muito cuidado III";

10.ª-Quanto às circunstâncias de tempo, refere o RAI em II - 12 - o dia 25 de Maio de 2014, domingo de feira de manhã, com referências ao tempo também nos pontos 13,14, 22, 24 e 28.

11.ª-Quanto às circunstâncias de lugar, refere o RAI em I - 1- Os factos passam-se mesmo em frente ao café/snack-bar designado T. Pedro de Sintra, local onde decorreram os factos objecto destes autos.

12.ª-Estão referidos no RAI os respectivos elementos material e subjectivo.

13.ª-O arguido A., ao insistir em que o galinheiro fique encostado à esplanada do café, prejudicando os Recorrentes (II- 47 e II - 50), valendo-se da sua qualidade de chefe dos fiscais da feira de S. Pedro de Sintra, e ao ameaçar o Recorrente V. (II - 52) incorre com a sua conduta (elemento objectivo), num crime de abuso do poder previsto e punível pelos Art.ºs 382.º e 386.º, n° 2, do CP, e ameaça previsto e punível pelo Art.153.º do CP.

14.ª-O elemento subjectivo dos crimes supra referidos, verifica-se, pelo depoimento da testemunha I.N., transcrito no RAI (II - 47, II - 50, II - 69 e II - 70), que o arguido sabia que a sua atitude era ilícita (elemento intelectual), mas quis praticá-la (elemento volitivo - dolo), tal como quanto ao crime de ameaça (II - 52), conforme depoimento da testemunha Ad. referido no RAI (II - 53).

15.ª-A conduta do arguido B., que com agressividade, se chegou tão perto do Recorrente VR, que quase lhe pôs a mão na cara (II - 35 e 37), é referido pela testemunha Ad. (II - 36 do RAI), demonstra o elemento objectivo do crime de ameaça em que incorre, previsto e punível pelo Art. 153.º do CP.

16.ª-A conduta do arguido L. ao tentar, seriamente agredir o Recorrente VR, tentativa esta que só não se consumou, porque o Recorrente V. foi em defesa do filho (II -39 e 41), o que é confirmado pelo depoimento da testemunha Ad. (II - 40 e 42), constitui o elemento objectivo do crime de ofensa à integridade física qualificada (por o arguido estar investido da autoridade de fiscal) previsto e punível pelo Art. 145.º, n.º1 do CP e na forma tentada, previsto e punível pelo Art. 22.º, 23.º e 24.º (este a contrario senso) do CP.

17.ª-O elemento subjectivo destes crimes cometidos pelo arguido L.(II - 76 e 77) está presente na consciência que ele tinha (elemento intelectual) de que estando investido na autoridade de fiscal, não podia agir dessa forma contra um cidadão comum como o Recorrente VR, mas quis ter esta atitude ilícita (elemento volitivo - dolo).

18.ª-Diz o despacho, citando o Prof. Germano Marques da Silva, que "... se o requerimento para abertura de instrução não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde consta tal identificação, a instrução será inexequível. e constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente que a requer deixar de narrar os factos e de identificar as disposições legais aplicáveis... "

19.ª-Os Recorrentes narraram os factos e identificaram as disposições legais aplicáveis, pelo que, a Instrução não tem falta de objecto, portanto, não está ferida de inadmissibilidade legal.

20.ª-Quanto à identificação do arguido, nos termos do Art. 287.º, n.º2 do CPP "O requerimento não está sujeito a formalidades especiais,..." e nos termos do Art. 283.º, n.º 3, a), do CPP, que se aplica ao RAI, refere que este deve conter "As indicações tendentes à identificação do arguido;".

21.ª-O Art. 283.º, n.º3, a), do CPP apenas impõe que tais indicações sejam conducentes à identificação do arguido e não que a mesma seja exaustiva.

22.ª-A parte introdutória do RAI fá-lo com referência ao despacho de arquivamento, onde essa indicação é clara e precisa.

23.ª-No entanto, o RAI ao narrar os factos, identifica TODOS os arguidos:
O arguido A. é referido pelo seu próprio nome em II - 14 (com o nome completo), 20, 29, 44, 45, 46, 47, 49, 50, 52 e em III - 61 c), d) e e), 69, 78 d), C, D e E.
O arguido L. é referido também pelo seu próprio nome em II - 33 (com o nome completo), 39,43 e em III - 61 a), b), 70, 76, 77, 78 d,) A e B.
O arguido B. é referido também pelo próprio nome em 11-35 (com o nome completo), 43 e III - 61 d), 70, 78 d), D.

24.ª-Nestes termos, contendo o RAI a identificação dos arguidos, a Instrução é exequível e deverá ser aberta.

25.ª-Os Art.ºs 287.º, n.º 2 e 283.º, n.º 3 do CPP contêm os requisitos legais do requerimento de abertura de instrução.

26.ª-Nos termos do Art.  287.º, n.º2  "O requerimento ... deve conter,... as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação

27.ª-No II - 4 a 60 do RAI, os Recorrentes começam por narrar os factos.

28.ª-E no III - 61 a 77 os Recorrentes expõem as razões de facto e de direito de discordância relativamente ao despacho de arquivamento do MP.

29.ª-O Art. 287.º, n.°2 diz ainda que o requerimento deverá conter"... a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo.

30.ª-Os Recorrentes, no RAI, em III - 78 requereram que b) Sejam tomadas declarações a todas as testemunhas e c) Seja oficiada a Câmara Municipal de Sintra para vir aos autos juntar o processo disciplinar que correu contra os arguidos.

31.ª-O mesmo normativo refere que o requerimento deverá conter " ... a indicação ... dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito ... "

32.ª-Os Recorrentes, no RAI, em III - 78 requereram que a) Seja considerado com relevância para os presentes autos o depoimento da testemunha Adrian D.B....

33.ª-A testemunha Ad. nem sequer é nomeada no despacho de arquivamento do MP o qual não faz qualquer referência ao seu depoimento que é fundamental, porque ela é a principal testemunha dos factos, imprescindível e o depoimento dela confere credibilidade aos depoimentos das outras testemunhas.

34.ª-Nos termos do Art. 283.º, n.º 3 CPP o requerimento de abertura de instrução deve conter "sob pena de nulidade: a) As indicações tendentes à identificação do arguido;"

35.ª-O RAI dos Recorrentes identifica os arguidos:
O arguido A.é referido pelo seu próprio nome em II -14 (com o nome completo), 20, 29, 44, 45, 46, 47, 49, 50, 52 e em III - 61 c), d) e e), 69, 78 d) C, D e E.
O arguido L. é referido também pelo seu próprio nome em 11-33 (com o nome completo), 39, 43 e em III - 61 a), b), 70, 76, 77, 78 d) A e B.
O arguido B. é referido também pelo próprio nome em II - 35 (com o nome completo), 43 e III - 61 d), 70, 78 d) D.

36.ª-O Art. 283.º, n.º 3 diz que o requerimento deverá conter “b) A narração ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança..."

37.ª-Foi o que os Recorrentes fizeram no RAI:
II-14o arguido A. ordenou que fosse colocado um reboque-galinheiro (adiante designado apenas por galinheiro) a uma distância de cerca de 2 ou 3 metros da porta do estabelecimento e quase encostado à esplanada;
II-22-Por isso, o queixoso e assistente VL, nesse dia de manhã, dirigiu-se aos arguidos quando estes passavam em frente do café e com bons modos e cheio de boa-fé, pediu-lhes que ordenassem que o atrelado com o galinheiro fosse afastado daquele local,...
II-23-Mas esta tentativa de resolver o problema não surtiu efeito;
II-24-... o queixoso e assistente VR... por volta das llh30m desse domingo, dirigiu-se aos arguidos ... e fez uma segunda tentativa de resolver o problema, fazendo-lhes com bons modos o mesmo pedido;
II-25-Porém, ainda foi pior: os arguidos reagiram de forma intimidatória e agressiva e não mostraram nenhuma disponibilidade, nem vontade de resolver, ou sequer minimizar, o prejuízo provocado pelo galinheiro;
II-31-... o queixoso e assistente VR pediu a intervenção da GNR...
II-32-De imediato, o assistente começou a ser alvo de intimidação por parte dos arguidos e
II-35-Na presença dos agentes, o arguido B., com agressividade e ameaçando o queixoso e assistente chegou-se tão perto deste, que quase lhe pôs a mão sobre o rosto;
II-39-Foi então que o arguido L. fez uma tentativa séria de agredir o queixoso e assistente VR;
II-41-A agressão só não se consumou devido à rápida intervenção do queixoso e assistente V. foi em defesa do filho,
II-44-Tudo isto aconteceu na presença do arguido A.que a tudo assistiu com absoluta passividade, sem que na sua qualidade de chefe dos fiscais, ou seja, chefe dos outros dois arguidos, tentasse dissuadi-los de agir conforme o supra exposto;
II-46-A proprietária do galinheiro, I.N., que presenciou estes acontecimentos e é testemunha nestes autos, dirigiu-se então ao arguido A.e disse-lhe que, para evitar problemas estava disposta a não trazer o galinheiro na próxima feira;
11-47-O arguido A., porém, logo a ameaçou dizendo que se ela não trouxesse novamente o reboque para junto da esplanada, na próxima feira, iria buscar outro galinheiro para colocar no mesmo local;
II-49-... há muito que o arguido A.tinha a intenção e uma vontade séria de prejudicar os queixosos e assistentes. Senão vejamos:
II-50-A testemunha I.N., no seu depoimento a fls. 220 v diz "... que da primeira vez que não levou o reboque o sr. A.... questionou ... o porquê de não ter trazido o reboque... que... ameaçou que se... não trouxesse novamente o reboque para junto da esplanada... que iria ceder aquele lugar junto ao café a outros feirantes..."
II-52-Entretanto, ..., o arguido A., virou-se para o queixoso e assistente V. e disse-lhe deforma prepotente e ameaçadora "Quer a minha identificação? Veja, veja (disse ele abrindo ostensivamente o blusão e mostrando o "crachat"). Mas a partir de hoje tenha muito cuidado!!!".

38.ª-O Art. 283.º, n.º 2, b) diz ainda "... incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática,..."

39.ª-Foi o que os Recorrentes fizeram no RAI:
Quanto ao tempo, refere o RAI em II -12 - o dia 25 de Maio de 2014, domingo de feira de manhã, com referências ao tempo também nos pontos 13,14, 22, 24 e 28.
Quanto ao lugar, refere o RAI em I - 1- Os factos passam-se mesmo em frente ao café/snack-bar designado T. em S. Pedro de Sintra e em II - 7 - Este café/snack - bar situa-se no Largo emS. Pedro de Sintra, local onde decorreram os factos objecto destes autos.

40.ª-O Art. 283.º, n.º 3, c, diz " A indicação das disposições legais aplicáveis;"

41.ª- Foi o que os Recorrentes fizeram no III - 78 d) A, B, C, D e E do RAI:
O arguido A. praticou um crime de abuso do poder p. e p. pelo Art.ºs 382.º e 386.º, n.º 2, do CP, de ameaça p. e p. pelo Art. 153.º do CP e de cumplicidade previsto e punível pelo Art. 27.º do CP.
O arguido B. praticou um crime de ameaça p. e p. pelo Art. 153.º do CP e de cumplicidade p. e p. pelo Art. 27.º do CP.
O arguido L. praticou um crime de ofensa à integridade física qualificada (por o arguido estar investido da autoridade de fiscal) p. e p. pelo Art. 145.º, n.º 1, do CP e na forma tentada, p. e p. pelo Art. 22.º, 23.º e 24.º (este a contrario senso) do CP.

42.ª-O Art. 283.º, n.º3, f), diz "A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;"

43.ª-Foi o que os Recorrentes fizeram em III - 78 c) Seja oficiada a Câmara Municipal de Sintra para vir aos autos juntar o processo disciplinar que correu contra os arguidos.

44.ª-No entendimento dos Recorrentes o Meritíssimo Juiz de Instrução do Tribunal a quo, ao rejeitar o requerimento dos Assistentes para abertura de instrução com o fundamento na admissibilidade legal, violou:

A-O disposto nos Art. 287.º, n.ºs 2 e 3 e 283.º, n.º 3, b) e c), ambos do CPP;
B-O disposto nos Art. 22.º, 23.º, 24.º, 27.º, 145.º, n.º1, 153.º, 382.º, 386.º, n.º 2 do CP;
C-O disposto nos Art.ºs 13.º, n.º1, 15.º, n.º 1 e 202.º, n.º2 da Constituição da República Portuguesa;
D-O disposto nos Art.ºs 7.º, 8.º e 10.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem;
E-O disposto nos Art.ºs 13.º e 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

TERMOS em que por ter cumprido todas as imposições leais o requerimento de abertura de instrução dos Assistentes deverá ser admitido, devendo ser declarada aberta a Instrução.

Nestes termos, deverá ser dado provimento ao recurso e declarada aberta a instrução.

I-2.1.)Na sua resposta, o Digno magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Sintra veio a concluir no sentido de que:

1.º-O que resulta do teor do requerimento de abertura de instrução é uma manifesta discordância quanto aos fundamentos invocados pelo Ministério Público aquando do encerramento do inquérito, bem como uma síntese dos actos e ou depoimentos prestados.
2.º-Não há qualquer delimitação do campo factual sobre o qual a instrução há-de versar nem consequentemente uma vinculação temática a que o Juiz de Instrução delimite o seu objecto concluindo-se assim pela sua falta de objecto ou inexequibilidade.
3.º-O requerimento é totalmente omisso quanto às disposições legais violadas.
4.º-Não faz a narração de factos, o lugar, o tempo nem a motivação da sua prática.
5.º-Deverá, pois, manter-se a decisão recorrida.


II-Subidos os autos a esta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
*

No cumprimento do preceituado no art. 417.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, os Assistentes para além de virem suscitar questões relacionadas com a eventual falta de fundamentação do despacho de arquivamento, no que tange ao ora recorrido, alegam que o mesmo padecerá igualmente de nulidade sanável, dado que o Tribunal de Instrução não oficiou à Câmara Municipal de Sintra para vir juntar aos autos o processo disciplinar que correu contra os arguidos, nem efectuou a reinquirição das testemunhas.
*

Seguiram-se os vistos legais.
*

Tendo os autos sido submetidos à apreciação da conferência.

III-1.)De harmonia com as conclusões apresentadas, consabidamente definidoras do respectivo objecto, a questão essencial colocada pelo recurso interposto pelos Assistentes VL e VR, centra-se na indagação da real satisfação dos requisitos legalmente exigidos por parte do RAI que apresentaram nos autos, em ordem a divergir do juízo de rejeição da instrução, no que se traduz a vertente decisória fundamental aportada pelo despacho recorrido.

III-2.)Confiramos primeiro o teor do despacho de que se discorda:

REJEIÇÃO DA FASE FACULTATIVA DE INSTRUÇÃO POR FALTA DE OBJECTO.

Os assistentes vêm requerer a abertura da instrução.

No seu requerimento insurgem-se contra o despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, descreve discussões ocorridas com fiscais de uma feira e elementos da GNR.

Contudo não imputam factos concretos a pessoa determinada que conduzam a uma concreta incriminação com as respectivas circunstâncias de tempo modo e lugar, bem como respectivos elementos material e subjectivo.

Com efeito, não é em fase de instrução que tais factos devem ser recolhidos ou procurados, em face da finalidade específica reservada a esta fase processual pelo art. 286.º, n.º 1, do CPP.

Questão idêntica foi detalhadamente debatida no Acórdão do STJ, de 12/03/2009, publicado em www.itij.pt.
Com efeito ai se refere que: “conhecido o paralelismo existente entre a acusação e o requerimento para abertura da instrução apresentado pelo assistente na sequência dum despacho de arquivamento, conforme se reconheceu no acórdão deste Supremo Tribunal de 07-05-2008 – proc.4551/07 e estatuindo o n.º 2 do art. 287.º do Código de Processo Penal, que é aplicável ao requerimento do assistente para abertura de instrução o disposto no art. 283.º, n.º 3 als. b) e c), norma que diz respeito à acusação, atentemos nas situações que determinam a manifesta falta de fundamento da acusação, com vista a aquilatar da possibilidade da sua aplicação ao requerimento para abertura da instrução.

De harmonia com o art. 311.º, n.º 3, a acusação considera-se manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as prova que a fundamentam; d) se os factos não constituírem crime.

É evidente que se o requerimento para abertura de instrução não contém a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde consta tal identificação, a instrução será inexequível. E constituirá uma fase processual sem objecto se o assistente que a requer deixar de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis, elementos acerca dos quais o Prof. Germano Marques da Silva (op. cit,, pág.ª 145), refere: “insiste-se que, tratando-se doe requerimento do assistente, é imprescindível que do requerimento conste sempre a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes e das disposições legais aplicáveis”.

A propósito da alínea d) do art. 311º nº 3, escreve o Prof. Germano Marques da Silva: “Também esta alínea era desnecessária, porque os factos narrados hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança e só a podem fundamentar se constituírem crime. Se os factos não constituírem crime verifica-se a inexistência do objecto do processo, tornando-o inexistente e consequentemente não pode prosseguir”. Pode, portanto, afirmar-se, fazendo uso das palavras do Conselheiro Maia Gonçalves (op. cit., pág. 667) que “acusação manifestamente infundada é aquela que, em face dos seus próprios elementos, não tem condições de viabilidade” Ora, se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente nos seus precisos termos, conclui que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que aquele narra jamais constituirão crime, deverá rejeitar o requerimento do assistente. É que, num caso desses, o debate instrutório nenhuma utilidade poderia ter, nomeadamente, porque, tal como se decidiu no acórdão para fixação de jurisprudência nº 7/2005 (D.R. nº 212 – S-A de 4-11-2005) “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 28.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Também o Tribunal Constitucional afirma, no acórdão nº 385/2004, de 19 de Maio de 2004, que “a estrutura acusatória do processo penal …. Impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e precisão adequados em determinados momentos processuais, ente os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução”.

Quando assim suceder, quando pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, então estaremos face a uma fase instrutória inútil. Ou, conforme se refere no mencionado acórdão de fixação de jurisprudência, “uma instrução que peque por défice enunciativo de factos susceptíveis de conduzir à pronúncia do arguido titularia um acto inútil que a lei não poderia admitir (art.137º do CPP)”. O que significa que, a par de outros fundamentos da rejeição, que se reconduzem também a realidades de que deriva a inutilidade da instrução, se deva ter a instrução como legalmente inadmissível.

Também a jurisprudência tem considerado que “não faz sentido procede-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (ac. do STJ, de 22-10-2003 – proc. 2608/03-3), entendendo ser de “rejeitar, por inadmissibilidade legal «vista a analogia perfeita entre a acusação e a instrução», o requerimento de abertura e instrução apresentado pelo assistente no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito … e omite em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime” (ac. de 22-03-2006 – proc. 357/05-3 e de 07-05-2008, proc. 4551/07-3) E, mais especificamente, o acórdão de 7-12-1005 – proc. 1008/05, que o aqui relator subscreveu como adjunto, onde foi decidido, com um voto de vencido, que “se o requerimento do assistente para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf. art. 308.° do CPP), pois a instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137.º do CPC e 4.° do CPP), e como tal legalmente inadmissível”, sendo certo que “a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento para abertura da instrução, nos termos do n.º 3 do aludido art. 287°”.

Também os tribunais da Relação vêm decidindo que a falta de indicação de factos que preencham os elementos típicos do crime produz uma situação de inadmissibilidade legal da instrução. Nesse sentido, cfr. entre outros, os acs. da Rel. de Lisboa de 03-10-2001 – p. 1293/00, de 18-03-2003 – p. 77635; de 30-03-2004 – p. 8701/03; de 30-05-2006 – p. 1111/06; da Rel. do Porto de 15-12-2004 – p. 3660/03; de 01-03-2006 – p. 5577/05; de 21-06-2003 – p. 1176/06; e da Rel. de Coimbra de 23-04-2008 – p. 988/05.8TAACN

Tudo quanto se deixou exposto permite concluir que a falta de indicação no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório. Ou seja, nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia. Haverá, assim, em consequência, que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissão da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissão de actos processuais em geral.”

Como se referiu, a leitura do presente requerimento para abertura de instrução revela ser manifesto que não poderá ser imputado qualquer crime a um agente determinado.

Pelo exposto, por inadmissibilidade legal por falta de objecto, rejeito o presente requerimento para abertura de instrução e determino o arquivamento dos autos.

Custas a cargo dos assistentes com taxa de justiça que fixo em três unidades de conta para cada um deles, respectivamente.

Notifique.”

III-3.1.)Antes de entrarmos propriamente na apreciação do objecto do recurso, importa introduzir aqui duas breves notas para responder a outras tantas incidências suscitadas pelos Assistentes na resposta ao Parecer da Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação.

A nulidade por eventual deficiência de fundamentação do despacho de arquivamento, não traduz temática de conhecimento directo deste Tribunal, porquanto os recursos apenas conhecem de questões suscitadas em decisões judiciais.

Para aquele efeito, o que também é válido para os vícios catalogáveis como irregularidade, teriam os mesmos que ser arguidos perante o respectivo magistrado subscritor, abrindo-se, em caso de discordância, a possibilidade da sua reclamação hierárquica para o respectivo superior.

A nulidade sanável dirigida à decisão recorrida também não se verifica, pois tendo havido rejeição liminar da instrução, naturalmente que, nessa conformidade, não haveria que realizar quaisquer diligências probatórias.

III-3.3.)Passando agora a analisar a questão supra indicada, cumpre uma vez mais recordar, que pese embora a afirmação algo enganadora com que o art. 287.º, n.º 2, do Cód. Proc. Penal, abre a sua estatuição, proclamando que o requerimento para abertura da instrução “não está sujeito a formalidades especiais”, a verdade é que deverá conter, por um lado, uma súmula “das razões de facto de direito, de discordância relativamente à (…) não acusação” (art. 287.º, n.º2).
Mas porque lhe é também aplicável o disposto no art. 283.º, n.º 3, al.ªs b) e c), do mesmo diploma (que rege a acusação formulada pelo Ministério Público), terá que incluir, por outro, “a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada e a indicação das disposições legais aplicáveis”.

Ora por via da alteração legislativa conferida pela Lei 59/98, de 25 de Agosto, do desenvolvimento da estrutura acusatória do processo penal consagrada pelo art. 32.º, n.º 5, da CRP, e das suas implicações directas na definição do objecto do processo e nas questões adjectivas colocadas pela sua eventual alteração, esta é uma matéria que, nos tempos mais recentes, conheceu uma significativa evolução Doutrinal e Jurisprudencial apontando sempre no sentido do reforço da exigências colocadas na sua satisfação.

Nas situações, como as presentes, em que o Ministério Público se absteve de acusar, é correcto afirmar-se que o requerimento de abertura de instrução deverá equivaler a uma acusação alternativa, ou como o refere o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, pág.ª 139), deverá conter “uma verdadeira acusação”.
E isto porquê?

Porque “na instrução a requerimento do assistente, o juiz investigará os factos descritos no requerimento instrutório e se os julgar indiciados e nada mais obstar ao recebimento da acusação pronunciará o arguido por esses factos (art.ºs 308.º e 309.º). Não há lugar a uma nova acusação; o requerimento do assistente actuou como acusação e, assim, se respeita formal e materialmente a acusatoriedade do processo” (obra citada, pág.ª 140).

Dito por outras palavras, nem a Instrução traduz um novo inquérito para colmatar eventuais faltas investigatórias que tenham ocorrido naquela fase, nem após a realização das diligências instrutórias se abre a possibilidade de formulação da acusação.

Ora ainda que nos termos do art. 283.º, n.º 3, al.ª b), do Cód. Proc. Penal, a narração dos factos possa ser sintética, a verdade é que terá que ser suficiente para albergar a consequência de poder fundamentar a aplicação de uma pena.

Essa suficiência mede-se pois, não só pela possibilidade do libelo acusatório conter todos os elementos subjectivos e objectivos indispensáveis à perfectibilização subsuntiva da infracção, como também, num outro domínio, o de poder funcionar como uma peça processual autónoma, ou seja, sem que para definição desses mesmos elementos se tenha de recorrer a outras peças do processo.

III-3.3.)Conferindo o RAI apresentado, logo se alcança, na parte que aqui importa considerar, onde se situa a origem das deficiências apontadas:

É que, com a configuração equivalente à ideia que normalmente dela possuímos, não existe, enquanto tal, qualquer “acusação”.

O que temos, é uma justaposição de domínios versados pelo requerimento em causa, “enquadramento dos factos”, “razões de facto e de direito de discordância do despacho de arquivamento da queixa dos Assistentes”, e por fim, um artigo – o n.º 78 –, em que para além do pedido de abertura da instrução, se concita a relevância do depoimento da testemunha Ad., se solicita a realização de determinadas diligências, e se pede a pronúncia dos arguidos por determinados crimes.

Por outras palavras, não deixando de se alegar nos tópicos mencionados matéria que importa à dedução da referida “acusação”, claramente a mesma não traduz um tratamento estruturado e autónomo em termos sobretudo de facto, para além do que, como iremos verificar, padece de uma técnica incorrecta ao nível da sua descrição.
 
Em termos gerais, não será dos requerimentos para abertura de instrução mais deficitários com que nos temos confrontado.

Não se começa por dizer contra quem se requer a instrução, mas mais próximo do seu final, consegue-se alcançar esse elemento.

A identificação dos arguidos não será a mais proficiente, mas também não é por aqui que o requerimento se rejeitaria.

Não levantaríamos sequer qualquer objecção relativamente à localização dos factos.

Existe realmente uma articulação da sucessão do que se terá passado na óptica dos Assistentes.

Mas pergunta-se: o RAI apresentado, na parte em que respeita à “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve”, cumpre com os padrões actuais preconizados pelo art. 283.º, n.º 3, al.ª b), do Cód. Proc. Penal?

Propendemos para uma sua resposta negativa fundada na deficiência da invocação e na incompletude factual do alegado.

III–3.4.)Tenha-se em conta, antes que tudo, que é propósito dos Assistentes imputar ao arguido L., um crime de ofensa à integridade física qualificada (por o arguido estar investido da autoridade de fiscal), previsto no art. 145.º, n.º 1, do Cód. Penal, e aparentemente um outro, na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 22.º, 23.º e 24.º (este a contrario senso) “só não se consumou devido a intervenção do queixoso e assistente V”.
Ao arguido A., um crime de abuso do poder p. e p. pelo art.ºs 382.º e 386.º, n.º 2, do CP, por ser “chefe dos fiscais”. E bem assim, um crime de ameaça (art. 153.º).
Finalmente os arguidos A. e B., um “crime de cumplicidade” (art. 27.º do Cód. Penal), no caso da ofensa à integridade física na forma tentada.

Esta última referência só poderá ficar a dever-se a lapso. A cumplicidade não constitui qualquer crime a se, mas antes uma forma de participação num crime.

Depois, a simples indicação do art. 145.º, n.º 1, do Cód. Penal, por referência ao crime de ofensa à integridade física qualificada imputado ao arguido Luís Fernandes, não é legalmente suficiente.
Qual a alínea que justifica tal qualificação, qual o crime de base praticado e qual a circunstância legal que justifica o juízo de especial perversidade ou censurabilidade do agente?

O facto de se ser “chefe dos fiscais” não é normativamente equiparável a gestor, titular dos órgãos de fiscalização e trabalhadores de empresas públicas, nacionalizadas, de capitais públicos ou com participação maioritária de capital público e ainda de empresas concessionárias de serviços públicos, donde não se alcançar o sentido desta conjugação.

Querer-se-á significar que aquele seria trabalhador de uma empresa pública?

Então isso teria que ser igualmente alegado.

Seja como for, examinemos o enquadramento dos factos:

Segundo os pontos 24 e 25, quando os arguidos se encontravam no recinto da feira, o queixoso e assistente VR terá feito uma segunda tentativa de resolver o problema, ou seja, renovou o pedido de que o galinheiro fosse afastado da proximidade do seu estabelecimento, sendo que aqueles reagiram de “forma intimidatória e agressiva”, não tendo mostrado qualquer disponibilidade de resolver ou minimizar o problema.

Ora, para além de reagir de forma intimidatória e agressiva constituir uma expressão conclusiva, sendo três, os arguidos implicados, fica por saber o que cada um terá feito.
Neste aspecto, o despacho recorrido tem razão.

Depois, perante o pedido de identificação (pontos 27 a 30), o arguido A. forneceu-a, embora tenha dito aos berros para o queixoso que os demais «não tinham nada que se identificar”.
Mas aqui, estamos, quanto muito, perante um ilícito de natureza disciplinar. 

A circunstância seguidamente referida no ponto 32, em como após o assistente VR ter pedido a intervenção da GNR, que aliás, também foi solicitada pelo arguido L., “o assistente começou a ser alvo de intimidação por parte dos arguidos” sofre da mesma deficiência de alegação acima já pontada.

Também o facto reportado no ponto 35, “o arguido B., com “agressividade e ameaçando” o queixoso e assistente chegou-se tão perto deste, que quase lhe pôs a mão sobre o rosto”, não se especificando o modo como aquela agressividade e ameaça se manifestou, ou o significado objectivo daquele gesto, pauta-se pelos mesmos padrões.

E já agora, foi a mão ou o dedo que apontou, como depois se coloca na boca da testemunha Ad..

Seja como for, perante os termos consignados para o pedido de pronúncia, não vemos que haja a intenção de por esta via autonomizar um crime de ofensa à integridade física tentada, em relação a este arguido, uma que não está convocado.

Seguidamente, ao que se refere, aquele assistente VR terá empurrado aquele arguido ou afastado o respectivo braço.

E nessa altura o arguido L. “fez uma tentativa séria de agredir o queixoso”.

Voltamos ao mesmo: o que é uma tentativa séria de agredir; o arguido fez exactamente o quê?

Julgamos que este seria o crime tentado – “a agressão só não se consumou devido à rápida intervenção do queixoso assistente Vasile” (facto 41).

Mas para além de não bastarem as expressões genéricas como as utilizadas para o integrar, onde se situará o consumado?

Anote-se igualmente, que ainda que o arguido A. nada tivesse feito para impedir o que estava a acontecer, sem mais, tal atitude não traduz cumplicidade.

Esta é basicamente o auxílio material ou moral à prática de um crime (cfr. art. 27.º, n.º1, do Cód. Penal).
No caso concerto em que se traduziu?
Não se sabe.

Para além disso, em relação ao arguido B., não está também escrito que tentou afastar o arguido L. do local (cfr. ponto 43); Então como imputar-lhe tal forma de crime?

Por outro lado, não confundamos planos: mesmo dando como bom que o arguido A., dirigindo-se à proprietária do galinheiro, lhe terá dito “que se ela não trouxesse novamente o reboque para junto da esplanada, na próxima feira, iria buscar outro galinheiro para colocar no mesmo local”, isto traduz uma ameaça?

É que a ameaça, como crime, tem um sentido normativo que não se confunde com a sua asserção comum do dia a dia.

A sua densificação assume uma forma vinculada, e tem que se reportar à prática de um crime contra a vida, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual, ou bens patrimoniais de considerável valor (cfr. art. 153.º, n.º1, do Cód. Penal).
O que não sucede.

Para além do que, aspecto não menos importante, se o facto é esse, então ofendida é tal dona do “galinheiro” e não os Assistentes, que não tem legitimidade para o actuar.

O mesmo vale para o alegado no ponto 50.

Ai nível da ameaça, onde esta poderá assumir uma consistência mais palpável, é quando (cfr. facto 52), se refere que o arguido A., após ter mencionado “Quer a minha identificação? Veja, veja”, mais terá acrescentado “mas a partir de hoje tenha mais cuidado”.

Mas na nossa perspectiva, também não chega para constituir uma ameaça penalmente relevante.

III–3.5.)E por aqui se queda o “enquadramento dos factos”.

Nada sobre os aspectos relativos ao conhecimento, vontade e intenção colocada no cometimento das condutas supra referidas, da mesma forma que sobre o conhecimento da respectiva ilicitude ou interacção no propósito de praticar as acções em causa.

É certo que, em sede das “razões de facto e de direito de discordância do despacho de arquivamento da queixa dos
Assistentes”, depois de se indicar que tal decisão “não corresponde à realidade demonstrada da análise dos factos”, e após já se ter defendido a presença dos elementos objectivos, se afirma então, que os subjectivos estarão igualmente também reunidos.

Não porque se tenham alegado autonomamente, em local próprio, mas porque se entendeu que:

69-O arguido A. manifestou sempre, de forma consciente e livre uma verdadeira intenção e vontade de prejudicar os queixosos e assistentes na forma como insistiu com a proprietária do galinheiro para que o colocasse encostado à esplanada do café, ameaçando-a até que se não o fizesse, poria outro no mesmo local e manifestando esta intenção mesmo antes dos factos que deram origem a estes autos;
70-Essa intenção e verdadeira vontade de prejudicar os queixosos e assistentes, levam-no até a presenciar com verdadeira passividade e cumplicidade às tentativas de agressão perpetradas pelos arguidos L. e B. seus subordinados, podendo evitar que esses actos ilícitos e criminais fossem cometidos;
71-Valendo-se para isso da sua qualidade de autoridade por estar investido das funções de fiscal da feira de S. Pedro de Sintra;
72-Cometendo, por isso de forma livre e consciente um crime de abuso de poder p. e p. pelo ART. 82º, com referência e remissão para o ART. 386º Nº2 do CP;
73-O mesmo arguido, depois dos ânimos terem serenado, ao ostentar o seu crachat de fiscal da feira, ameaçando o queixoso e assistente VL,
74-Cometendo assim desta forma, também de forma livre e consciente um crime de ameaça p. e p. pelo ART.153º do CP e
75-Cometendo ainda um crime de cumplicidade p. e p. pelo ART. 27º do CP;
76-O elemento subjectivo do crime de ofensa à integridade física na forma tentada p. e p. pelos ART. 22º, 23º e 24º, este último a contrario senso, todos do CP, cometido pelo arguido L., que também o fez de forma livre e consciente, porque sendo fiscal, bem sabia que não podia, nem devia agir dessa forma;
77-O elemento subjectivo está também presente na conduta do arguido L., ao cometer de forma livre e consciente um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo ART. 145º Nº 1 do Código Penal (CP), porque as ofensas foram produzidas em circunstâncias que revelam especial censurabilidade do agente, uma vez que o arguido estava investido da autoridade de fiscal municipal da feira de S. Pedro de Sintra e sabia que não devia ter semelhante conduta contra um cidadão comum.

Mas para além desta não ser nem a forma, nem a sede própria para o fazer, também não supre as deficiências já registadas ao nível da descrição dos correspondentes tipos objectivos.

Donde, com um fundamento próximo, mais ainda que não totalmente coincidente com o do despacho recorrido, acabarmos por convir na solução propugnada.

III-3.5.)A possibilidade de corrigir as deficiências patenteadas, está hoje em dia arredada.

Com efeito, a partir do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005 de 12/05/2005, publicado no DR I.ª Série de 04/11/2005, proferido, aliás, na esteira do decidido pelo próprio Tribunal Constitucional (cfr. por exemplo Ac. n.º 389/2005T.Const. de 14/07/2005, publicado no DR II.ª Série de 19/10/2005, pág.ª 14917), essa via deixou de estar disponibilizada.
 
Com o que se conclui que não há que efectuar qualquer reparo ao despacho recorrido, na medida em que também existe larga cobertura Jurisprudencial no sentido das situações ora referenciadas se integrarem na figura da inadmissibilidade legal que permite a sua rejeição.

Nesta conformidade

IV–Decisão:

Nos termos e com os fundamentos indicados, decide-se pois negar provimento ao recurso interposto pelos assistentes VL e VR.
Pelo seu decaimento, e independentemente do benefício do apoio judiciário de que possam beneficiar, ficará cada um deles condenado no pagamento de 3 (três) UCs de taxa de justiça ex vi do art. 515.º, n.ºs 1, al. b), do CPP, e respectivo Regulamento das Custas Processuais).


Lisboa,25-10-2016


(Luís Gominho)
(José Adriano)