Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9471/09.9TBOER.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: PROCURAÇÃO IRREVOGÁVEL
JUSTA CAUSA DE RESOLUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/05/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I - Uma procuração não é irrevogável (art. 265/3 do CC) apenas porque nela se diz que é também passada no interesse da mandatária e por isso não pode ser revogada sem o acordo desta. Só se pode considerar que uma procuração foi conferida no interesse também do mandatário, e que por isso não pode ser revogada sem acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa, quando isso resultar da relação subjacente à outorga dos poderes de representação, ou seja, da relação que justifica e fundamenta a procuração.
II - Caso a irrevogabilidade tenha sido convencionada sem ocorrerem os pressupostos que deveriam estar na sua base, subsiste a procuração, sem a irrevogabilidade, pelo que a compra e venda celebrada com base na procuração não é nula (pois que também não o é a procuração a favor da ré).
III – Uma procuração irrevogável (a favor do réu) pode ser revogada com o consentimento do interessado ou com fundamento em justa causa, o que não se verifica no caso dos autos. Ou pode caducar, se caducar o negócio subjacente, o que também não se prova ter ocorrido no caso dos autos.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

N, C e Cr, representados pela mãe deles, L, intentaram a presente acção contra A e B, pedindo que:   
1. Deverá a procuração irrevogável em nome da ré ser declarada nula, por falsidade do seu conteúdo e assinatura que lhe foi aposta, sendo também declarada nula a escritura de compra e venda do imóvel no pressuposto da sua validade, de acordo com o regime geral da nulidade previsto nos artigos 285 e seguintes do Código Civil.
2. Subsidiariamente, deverá a mesma procuração ser declarada nula, por ausência de relação subjacente ao interesse da mandatária na cláusula de irrevogabilidade, devendo o tribunal conhecer oficiosamente da nulidade da escritura de compra e venda do imóvel, celebrada no pressuposto da sua validade, também de acordo com aquele regime geral da nulidade.
3. Consequentemente, deverá a ré ser condenada na restituição aos representados da autora de todas as quantias recebidas, a título de rendas do imóvel do arrendatário, com fundamento no disposto no artigo 289/1 do CC.
4. Declarada nula a escritura de compra e venda do imóvel identificado no artigo 2.º da presente petição inicial, celebrada em 04/07/2006, no Cartório Notarial, deverá ser ordenado o cancelamento do registo de aquisição feito a favor da 1.ª ré na 2.ª Conservatória do Registo Predial.
5. Mais deverá a procuração irrevogável outorgada a favor do réu ser revogada, por justa causa, nos termos do disposto no artigo 265/3 do CC.
6. Subsidiariamente, sempre a mesma procuração deverá ser declarada extinta, por caducidade do negócio que lhe serviu de base, nos termos do disposto no artigo 265/1 do CC.
Alegam para tanto, em síntese, que são os únicos herdeiros de CA. Este era proprietário de uma fracção autónoma que estava arrendada. A ré tinha em seu poder uma procuração, outorgada num consulado português, alegadamente passada por CA, também no interesse dela, para vender aquela fracção autónoma, inclusive a si própria. Com base nessa procuração a ré vendeu, em nome de CA, a si própria, aquela fracção autónoma, alegadamente por 50.000€ já recebidos por CA mas que de facto este nunca recebeu. A assinatura alegadamente de CA era falsa, pelo que é nula a venda efectuada com base nela. Mas ainda que se concluísse que a assinatura era de CA, não existia entre este e a ré qualquer relação que justificasse a passagem daquela procuração no interesse da mesma, tanto mais que CA nem sequer conhecia a ré; a inexistência dessa relação é facto constitutivo do direito à nulidade da procuração e, consequentemente, à nulidade da escritura de compra e venda com aquela celebrada.
Quanto ao réu: CA celebrou com ele, um acordo de intenção e compromisso comercial; no âmbito desse acordo, o réu assumiu dados compromissos em contrapartida dos quais CA lhe entregaria a propriedade da referida fracção autónoma, para o que passou a favor deste uma procuração, também no interesse do réu, para que o réu pudesse vender, inclusive a si próprio, a fracção autónoma já referida; o réu não cumpriu os compromissos, pelo que CA tinha justa causa para revogar a procuração; para além disso, o referido negócio tinha um prazo de validade a partir de um certo facto; nos termos da cláusula desse prazo, o acordo caducou, assim extinguindo a procuração.
Os réus contestaram; para além de deduzirem a excepção da incompetência internacional do tribunal e de arguirem a falsidade de alguns documentos e de impugnarem outros, bem como de referirem que a procuração a favor da ré é um documento autêntico, impugnam a maior parte dos factos alegados pelos autores e excepcionam o cumprimento, pelo réu, dos compromissos assumidos perante o pai dos autores, com modificações acordadas entre eles, o que foi reconhecido pelo pai dos autores outorgando procuração a favor do réu; e depois passou a procuração a favor da ré, a solicitação do réu, que assim cedeu o seu direito sobre a fracção autónoma à sua filha, com consentimento e elaboração do cedido/pai dos autores. Concluíram no sentido da improcedência da acção.
Os autores replicaram, impugnando a matéria das excepções.
A excepção de incompetência foi julgada improcedente no despacho saneador.
Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença em que se julgou a acção improcedente, por não provada, e em consequência os réus foram absolvidos do pedido.
Os autores recorrem, para que sejam alteradas as respostas aos quesitos 1, 2, 14, 15 e 16 – de não provados para provados – e, em consequência, os pedidos sejam julgados procedentes.
Os réus não contra-alegaram.
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Questões que importa decidir: se a matéria de facto deve ser alterada e se, face aos factos provados, a acção devia ter sido julgada procedente.
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Estão provados os seguintes factos [vêm todos dos factos assentes, não se tendo provado nenhum da base instrutória]:
A) Foi elaborada escritura da habilitação de herdeiros por óbito de CA, falecido em 11/10/2008, na cidade da B, M, no estado civil de divorciado em que se declarou que lhe sucederam como únicos herdeiros os seus três filhos, ora autores.
B) Na 2.ª Conservatória do Registo Predial foi inscrita, pela apresentação 00 de 00/00/1983 a aquisição, por compra, a favor de CA, da fracção autónoma designada pela letra B, que constitui o r/c esq. do prédio sito na Rua T em U.
C) CA declarou dar de arrendamento esta fracção, tendo passado a receber renda mensal.
D) Em 30/10/2001 o réu e CA acordaram entre si e reduziram a escrito um:
PROTOCOLO DE INTENÇÃO E COMPROMISSO
Entre: [réu], divorciado, portador do DIRE nº 0000 com Autorização de Residência nº 000000 de 30/11/2001, morador na Av. E, M, considerado o 1º Outorgante e CA, divorciado, portador do BI nº 000000 emitido a 02.04.1997 pelo Arquivo de Identificação de M, morador na Av. J, M, considerado o 2º Outorgante.
Acordam entre ambos e assumem a intenção e compromisso de concretizar o seguinte:
1º - O 1º Outorgante, realizará o investimento financeiro necessário para, constituir uma sociedade comercial por quotas, que terá a actividade de Farmácia, na Rua D, B, no imóvel propriedade do 2º Outorgante.
O 1º Outorgante terá de no seu investimento financeiro a realizar, a reabilitação exterior do imóvel, assim como o espaço comercial para a actividade da Farmácia e 1º andar do imóvel assim como todas as infra-estruturas para o início da actividade, incluindo a parte logística.
O 2º Outorgante realizará com a sociedade um contrato de arrendamento no mínimo com a duração de 10 anos, com um valor de renda mensal 2.000.000 de meticais, com o aumento anual conforme o índice de inflação oficial.
A sociedade comercial por quotas, a constituir, terá como sócios o 1º Outorgante com 90% do capital social, e RJA portador do BI nº 00000, emitido a 28.06.2001, pelo Arquivo de Identificação de M, morador no 8º B – M – B que terá as funções de Director Técnico e que tem o pedido de licença feito em seu nome pessoal, que obrigatoriamente tem de efectuar a passagem dessa licença a favor da sociedade a constituir, da qual terá 10% do capital social, como quota a realizar.
Este compromisso entre o 1º Outorgante e o 2º Outorgante, terá a validade de 6 meses, a partir da data da revalidação da citada licença para abertura de Farmácia.
Após 90 dias do início de actividade da Farmácia, o 1º Outorgante cederá a sua posição de 90% do capital social ao 2º Outorgante, livre de quaisquer ónus, o qual 2º Outorgante pagará essa cedência, por permuta da sua propriedade, situada em Plano de Expansão de U, célula 15, lote 22 em U, Freguesia de U, Concelho de O, Portugal, com regime de propriedade horizontal, inscrito na Matriz Predial, respectiva sob o artigo 0000-B, com licença de habitação nº 000, fracção autónoma designada por B que constitui o R/C – esqº, do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial – sob o nº 0000, a folhas 00 do livro B-00, actualmente Rua A – U.
O 1º e 2º Outorgantes, assumem que o 1º Outorgante fará procuração irrevogável da sua cedência da quota ao 2º Outorgante, assim como o 1º Outorgante entregará ao 1º Outorgante a procuração irrevogável com todos os poderes, da sua propriedade citada para permuta e realização do negócio entre ambos. (…)”
[conforme consta do documento que foi dado por reproduzido e que dos autos é fls. 64 e 65]
E) Em 14/10/2002, na Chancelaria do Consulado Geral de Portugal em M, CA outorgou a favor do réu a seguinte:
PROCURAÇÃO
No dia 14/10/2002, nesta Chancelaria do Consulado Geral de Portugal em M, perante mim, AJ, Vice Cônsul, compareceu como outorgante, CA, divorciado, emigrante, contribuinte fiscal nº 0000, natural de G e residente na Av. J, M, M, pessoa cuja identidade verifiquei em face do passaporte nº 0000, emitido em M aos 26-02-1993.
E por ele foi dito, que constitui seu bastante procurador [o réu], divorciado, emigrante, contribuinte fiscal nº 00000, natural de L e residente na Av. E, M, M, ao qual com os de substabelecer, lhe confere plenos poderes para vender pelo preço, condições e cláusulas, que entender a fracção Autónoma [já referida], podendo outorgar e assinar contratos de arrendamento, pelo preço, condições e cláusulas que entender, receber rendas e passar os respectivos recibos, admitir inquilinos, usar ou desistir do direito de preferência em quaisquer contratos. Mais confere ao dito mandatário, os poderes para o representar junto dos inquilinos, assinando todos e quaisquer documentos como se dele mandante se tratasse, outorgar e assinar a competente escritura de compra e venda, podendo ainda na Conservatória do Registo Predial respetiva, requerer quaisquer actos de registo, provisórios e definitivos, averbamentos e cancelamentos e prestar declarações complementares, tudo requerendo e assinando como se dele mandante se tratasse, podendo ainda representá-lo junto de quaisquer Repartições Públicas ou Administrativas e Instituições Bancárias, requerendo e assinando tudo o que se tornar necessário.
Esta procuração é também passada no interesse do mandatário e por isso não pode ser revogada sem acordo deste e não caducará por morte ou interdição dos mandantes, tudo nos termos dos artigos 265/3, 1170/2 e 1175 do CC.
O mandatário fica autorizado a celebrar negócio consigo mesmo, nos termos do artigo 261 do referido CC.(…)” conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 62 e 63.
F) Foi elaborada escritura pública de compra e venda em 04/07/2006 no Cartório Notarial, em A, em que [a ré], outorgando por si e como procuradora de CA declarou "Que, pelo preço de 50.000€, que o seu representado já recebeu, vende a si própria a [referida] fracção autónoma, e que "aceita a venda que destina a sua habitação própria permanente", conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 45 a 47.
G) A ré outorgou a dita escritura pública por si e ainda na qualidade de procuradora do CA, com base numa procuração pública, datada em 13/08/2003 na Chancelaria do Consulado Geral de Portugal em M, onde consta, além do mais, que:
"lhe confere plenos poderes para “(…) vender pelo preço condições e cláusulas que entender a [referida] fracção autónoma, podendo outorgar e assinar contratos de arrendamento, pelo preço e condições e cláusulas que entender, receber rendas e passar os respectivos recibos, admitir inquilinos, usar ou desistir do direito de preferência em quaisquer contratos. Mais lhe confere à dita mandatária, os poderes para o representar junto dos inquilinos, assinando todos e quaisquer documentos como se dele mandante se tratasse, outorgar e assinar a competente escritura de compra e venda, podendo ainda na Conservatória do Registo Predial respectiva, requerer quaisquer actos de registo provisórios e definitivos, averbamentos e cancelamentos e prestar declarações complementares tudo requerendo e assinando como se dele mandante se tratasse, podendo ainda representá-lo junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas e instituições bancárias, requerendo e assinando tudo o que se tornar necessário. Esta procuração é também passada no interesse da mandatária e por isso não pode ser revogada sem o acordo deste e não caducará por morte ou interdição dos mandantes, tudo nos termos dos artigos 265, 1170/2 e 1750 do Código Civil. A mandatária fica autorizada a celebrar negócio consigo mesma, nos termos do artigo 261 do referido CC”
[conforme consta do documento que foi dado por reproduzido e que dos autos é fls. 67 a 69]
H) Em 04/10/2006, o núcleo de administração de propriedades do BTA-SA, enviou a CA um e-mail, cujo teor aqui dá por parcialmente reproduzido para todos os efeitos legais: “(…) Na sequência do mail infra, vimos informar que recebemos documentação do inquilino da [referida fracção autónoma], confinando a venda do andar em que habita. Assim, a partir desta data deixaremos de prestar qualquer serviço de administração de propriedades referente a esta fracção”, conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 51.
I) O BST remeteu a CA em 24/11/2006 missiva em que além do mais afirmava "De acordo com a fotocópia da escritura de compra e venda, o andar em assunto foi vendido no dia 04/07/2006 [à ré]. Presumimos que o inquilino continue a residir no andar visto que, na carta que nos enviou em 03/10/2006, informou-nos que passaria a pagar as rendas à nova proprietária (incluindo a de Setembro 2006), As rendas foram creditadas na conta de V. Exa até à que se venceu em Agosto 2006 e o valor mensal era de 323,69€", conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 44.
J) CA recebia então a título de renda mensal dessa fracção a quantia de mensal € 323,69.
K) Em 04/09/2009 esta aquisição foi inscrita na 2ª CRP, provisório por dúvidas, a favor da ré, conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 50.
L) CA nunca conheceu a ré.
M) CA nunca recebeu da ré qualquer quantia em dinheiro, a título de pagamento do preço do andar.
N) O réu nunca constituiu a sociedade comercial por quotas com o RJA e nunca se deu a cessão de quota de 90% do capital social da mesma sociedade, por inexistência da própria sociedade.
O) Foi emitida certidão emitida pela CRC de M, onde consta que a sociedade denominada Farmácia B Lda foi inscrita naqueles serviços a 25/03/2003, e que o capital social de 5000 meticais corresponde à soma de duas quotas: uma no valor nominal de 3750 pertencente ao sócio CA, e, outra, em nome do réu no valor nominal de 1250 meticais correspondente a 25% daquele, conforme consta do documento que dou por reproduzido e que dos autos é fls. 110 e 111.
P) Resulta provado mercê dos assentos de nascimento juntos aos autos que a ré é filha do réu.
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Da impugnação da decisão da matéria de facto
Os autores entendem que os quesitos 1 e 2 deviam ter sido dados como provados, em vez de não provados.
Estes quesitos tinham o seguinte teor:
1. A assinatura que foi aposta na procuração outorgada a 13/08/2003 a favor da ré não é do punho de CA?
2. O CA nunca teve qualquer tipo de negócio ou relação com a ré?
A decisão de não dar como provado o quesito 1 está fundamentada assim na sentença recorrida:
Os autores requereram exame à letra e assinatura que foi aposta na procuração pública outorgada na Cancelaria do Consulado Geral de Portugal, em M, que se encontra a fls. 67 a 69.
Foi realizado exame pericial, em 17/03/2013, nos termos requeridos pelos autores (cfr requerimento de 28.05.2013 sob apresentação 0000), do qual decorre a seguinte conclusão
Com base nos elementos presentes e face aos resultados obtidos deduz-se a(s) seguinte(s) conclusão(ões):
A reduzida quantidade e qualidade das semelhanças e diferenças registadas no confronto da escrita suspeita da assinatura (doc.1 deste relatório) com a dos autógrafos de CA, bem como as limitações mencionadas em Nota, não permitem obter resultados conclusivos”.
No quadro anexo vem a seguinte explicação:
A expressão “Não concluir” indica que não foi possível obter resultados conclusivos no exame pericial. Isto pode dever-se a várias razões, das quais se referem, a título exemplificativo, as que se seguem:
- a escrita suspeita e/ou comparação não tem qualidade (p.ex, se existem fotocópias, faxes ou microfilmes do documento)
- a escrita suspeita e/ou comparação é insuficiente (p. ex. a escrita não contém um número suficiente de elementos para uma análise detalhada).
- a escrita suspeita e/ou comparação está de tal forma disfarçada que não podem ser determinadas características individuais.
- a escrita suspeita foi obtida por métodos fraudulentos (por ex. Imitação ou decalque), não permitindo determinar as características identificativas do seu autor.
Nos exames perícias de escrita manual intervêm no mínimo dois peritos: um que executa a perícia, outro que valida o resultado. Relativamente à validação das conclusões, cada exame pericial é verificado por um segundo perito e ambos devem chegar a uma conclusão unânime.
Não foi o relatório pericial objecto de reclamação e nem foi requerido segundo exame, do que resulta a conformação dos autores à conclusão do relatório pericial.
A este respeito não foi produzido qualquer outro meio de prova.
Na verdade, nenhum das testemunhas inquiridas respondeu a este quesito e nem do respectivo depoimento resulta qualquer referência a esta matéria.
Quanto ao quesito 2, a fundamentação da decisão de não o dar como provado foi a seguinte [transcreve-se tirando repetições]:
Com respeito à matéria deste quesito os autores requereram o depoimento de parte da ré, requerimento do qual desistiram no inicio da audiência final.
Mas sobre este quesito foi produzida prova testemunhal:
AM, advogado de profissão, e que disse conhecer o CA do exercício da sua actividade profissional declarou quanto a este ponto “Refere a testemunha que não conhece a ré e também não tem conhecimento de qualquer tipo de relação ou negócio que tenha existido entre CA e a ré”.
Foi, de novo, inquirido, em 04/03/2015, no Tribunal Judicial da Província de S, onde respondeu que “o referido CA foi seu constituinte em vários processos que correram termos na província de S e, pelo que saiba, este nunca teve qualquer tipo de negócio com relação à ré.”
O depoimento não é assertivo. Diz “(…) também não tem conhecimento (…)” e no segundo depoimento “(…) e pelo que saiba (….)” que é diferente de se afirmar saber, invocando a sua razão de ciência, que CA não teve qualquer relação com a ré.
EA, gestor de profissão, testemunha arrolada pelos autores (fl. 183) e amigo de CA respondeu, quanto ao quesito 2, que “não sabe dizer se o CA, nunca teve qualquer tipo de negócio com relação à ré (…).”
A inquirição por carta rogatória, a possível, não permitiu apurar sobre a relação de amizade invocada, se era apenas pessoal, social, circunstancial ou decorria de um contacto profissional entre ambos e ainda ao seu início, por forma a podermos melhor aferir sobre a razão de ciência da testemunha. Mas o certo é que afirmou “(…) não sabe dizer (…).
Do exposto decorre que inexistem depoimentos seguros e assertivos sobre esta matéria, sendo que a testemunha AM tinha contacto com o CA por virtude da sua profissão de advogado, mas sendo a primeira amigo do CA declarou não ter conhecimento.
São extractos de depoimentos que evidenciam que as testemunhas não sabem dizer ou desconhecerem se havia ou não algum negócio entre a ré e CA, que é diferente de se dizer que não tinha, do que resulta negativa a resposta.
Contra esta decisão, os autores, como se a matéria fosse a mesma, dizem o seguinte a propósito dos quesitos 1 e 2:
Embora do exame pericial (fls. 307 a fls. 314) tenha resultado a mencionada conclusão, porém, não resultou provado que, face aos elementos disponíveis, aquela assinatura era do punho do falecido CA.
E, portanto, a resposta a estes quesitos deverá ser encontrada no conjunto da matéria de facto provada, nomeadamente nas alíneas L [CA nunca conheceu a ré], M [CA nunca recebeu da ré qualquer quantia em dinheiro, a título de pagamento do preço do andar] e N [O réu nunca constituiu a sociedade comercial por quotas com o RJA e nunca se deu a cessão de quotas de 90% do capital social da mesma sociedade, por inexistência da própria sociedade].
Face à matéria provada nestas alíneas é absolutamente improvável que uma pessoa, no caso, o CA, tenha outorgado a favor da ré uma procuração pública para que esta outorgasse uma escritura pública, naqueles termos, com a concessão de plenos poderes para, entre o mais, vender pelo preço condições e cláusulas que entender a fracção autónoma, para além de constar que era outorgada no interesse da mandatária e por isso não pode ser revogada sem o acordo desta e não caducará por morte ou interdição dos mandantes, e ainda ficando a mandatária autorizada a celebrar negócio consigo.
Isto sem que existisse qualquer relação subjacente que suporte o interesse desta mandatária na referida procuração irrevogável.
A testemunha AMN disse [o já transcrito acima].
Decidindo:
Realce-se a mistura de matérias nesta impugnação, o que é uma forma de reconhecimento da impossibilidade de impugnar adequadamente cada uma por si.
Quanto ao quesito 1:
A procuração em causa neste quesito consta de um documento autêntico (arts. 363/2, 369, 370 e 371, todos do CC; artigos 51, 55 e 57 do regulamento consular então em vigor, do DL 381/97, de 30/09), gozando da fé pública que lhe é conferida pela participação no acto da Chanceler do Consulado, que declarou que CA, cuja identidade verificou em face do BI do mesmo, tinha comparecido perante ela naquele Consulado e lhe tinha dito aquilo que ela fez constar daquele instrumento, tendo sido lido em voz alta e explicado o seu conteúdo ao outorgante que assinou juntamente com ela, Chanceler. E a seguir constam as duas assinaturas. Esta procuração tem o selo do respectivo consulado e está arquivada no mesmo e certificada nos autos nos termos do art. 164 do Código Notariado.
Do que antecede, resulta que a procuração em causa presume-se da autoria da Chanceler do Consulado e os factos por ela narrados como tendo sido por ela praticados e atestados com base nas suas percepções estão plenamente provados, ou seja, que CA compareceu pessoalmente e declarou o que consta da procuração e a assinou, tal como o fez a dita Chanceler. 
A presunção de autenticidade do documento só poderia ser ilidida mediante prova em contrário e a força probatória plena do documento só poderia ser posto em causa com base na prova da sua falsidade (artigos 370/2 e 372 do CC e 446 e 447 do CPC – sobre tudo isto, viu-se Lebre de Freitas, A acção declarativa comum, 4.ª edição, Gestlegal, 2017, páginas 268 a 274).
Ora, não tendo o exame pericial podido concluir que a assinatura na procuração não era de CA, não seria nunca qualquer raciocínio baseado na probabilidade do acontecer das coisas, segundo os autores, que poderia servir sequer de início de prova de que a assinatura não era daquele e, por isso, de início de prova, sequer, de que a procuração pública em causa era falsa.
Quanto ao quesito 2
Repare-se, desde logo, que os autores nem tentam rebater a argumentação da sentença relativa ao valor probatório do depoimento da testemunha Anastácio e nada dizem quanto à outra testemunha em causa.
A argumentação da decisão da matéria de facto está correcta e demonstra que o depoimento destas duas testemunhas não podia servir para prova do que se dizia no quesito 2.
Quanto ao que consta das alíneas dos factos assentes: obviamente, o que consta de L refere-se apenas a um conhecimento físico, pois o contrário é que seria estranho face às relações entre CA e o réu, pai da ré. Quanto ao que consta de M, é coerente com a versão dos réus e nada tem de estranho que, havendo o negócio entre CA e o réu, caso viesse a ter lugar a permuta, nos termos inicial ou posteriormente acordados, com a fracção autónoma, nada fosse pago do alegado preço de venda. Quanto a N, o facto de o negócio não se ter concretizado como inicialmente previsto pode ter a sua explicação em alterações supervenientes. Assim, a matéria daquelas alíneas dos factos assentes não é minimamente suficiente para prova do que constava do quesito 2.
*
Os autores entendem que os quesitos 14, 15 e 16 deviam ter sido dados como provados, em vez de não provados.
Estes quesitos tinham o seguinte teor:
14. O réu não fez investimentos financeiros para constituir a sociedade comercial por quotas, que teria a actividade de farmácia?
15. O réu não procedeu à reabilitação do exterior do imóvel e do 1º andar?
16. O réu não procedeu à reabilitação do espaço comercial onde se instalaria a farmácia e de todas as infra-estruturas para o início da actividade, incluindo a parte logística?
A fundamentação desta decisão faz referência ao depoimento de três testemunhas, que tinha acabado de transcrever na íntegra, já que tinham sido ouvidos por carta precatória e estavam reduzidos a escrito.
Para evitar repetições e descontextualizações, procede-se a essa transcrição integral (com simplificações e correcções):
AMN, testemunha arrolada pelos autores:
Esclarece que é Advogado de profissão e que foi contratado por CA, para acompanhamento de um caso jurídico que correu os seus termos legais em vários tribunais da Província de S, da República de M e prestou o seu depoimento nos seguintes termos:
Não conhece a ré e também não tem conhecimento de qualquer tipo de relação ou negócio que tenha existido entre CA e a ré.
Ouviu falar que a farmácia B funcionou num imóvel que esteve em disputa entre os senhores CA e ET no momento que prestou a sua assistência ao seu cliente, CA. A farmácia não existia há bastante tempo e não voltou a funcionar mais.
A farmácia B, terá funcionado no tempo colonial e nos primeiros anos da independência, nomeadamente, nos anos de 1976 e 1977.
Não tem qualquer conhecimento relativo à composição da sociedade Farmácia B Lda, e muito menos da eventual confiança existente entre o Sr. CA e o Sr. RJA e também não tem conhecimento de que o réu manifestou ao Sr. CA a intenção de ceder a sua quota na sociedade e que este eventualmente terá recusado.
Não tem conhecimento de que o réu não fez investimentos financeiros para constituir a sociedade por quotas, que teria a actividade de farmácia.
No momento em que conheceu o imóvel, nos anos de 2003 a 2007, este se encontrava completamente degradado e em estado de abandono assim continuou até mais ou menos 2009 e 2010, altura em que a viúva de CA decidiu vender o imóvel e o novo proprietário optou por optou em fazer nele alguma intervenção.
O contacto inicial com CA para tratar do assunto ligado ao imóvel foi estabelecido entre os anos de 2003 a 2007, por isso, não pode saber do que teria acontecido antes desta data, nomeadamente se o Sr. CA assinou a procuração de 12/10/2002, por considerar que o réu havia cumprido o protocolo qua ambos haviam celebrado.”
Foi, de novo inquirido, em 04/03/2015 [repetição casual, não determinada por ninguém].
Da matéria do quesito 2, respondeu dizendo: o referido CA, foi seu constituinte em vários processos que correram termos na província de S e, pelo que saiba, este nunca teve qualquer tipo de negócio com relação à ré.
Ao quesito 9 respondeu dizendo que, o momento em que foi constituído mandatário do senhor CA, a farmácia B já não existia, existiam, isso sim, os escombros do edifício aonde funcionou a referida farmácia e em estado de abandono.
Quanto ao quesito 10, respondeu que desconhece do conteúdo acordado entre CA e o réu.
No que diz respeito ao quesito 11, esclareceu que, embora conheça a pessoa RJA com antigo procurador de CA, reitera desconhecer os motivos que estão na origem da criação da sociedade farmácia B, Lda.
No que diz respeito aos quesitos 12 ao 17 e, em conformidade com o que respondeu ao quesito 9, a testemunha desconhece, por completo, as razões que estavam na origem da sociedade farmácia B Lda, sublinhando, uma vez mais, que a partir do momento fora constituído mandatário judicial de CA, a referida farmácia já havia sindo transformado em ruínas e confiada a um guarda que se envolveu em disputas litigiosas com o Sr. CA.”
Testemunha RJA, técnico de farmácia, testemunha arrolada pelos réus e autores.
Respondeu ser amigo do Sr. CA, mas nem por isso lhe impede de dizer a verdade e somente a verdade ao tribunal.
Quesito 9: respondeu ter presenciado todos os momentos, desde a reabilitação e abertura da Farmácia B Lda, embora não se lembre com precisão das datas porque já passa muito tempo.
Esclareceu que foi feita reabilitação do imóvel aonde iria funcionar aquela farmácia, reabilitação esta que constituiu na pintura e na reparação do sanitário.
Disse que recebeu o respectivo imobiliário, nomeadamente, prateleiras aonde se acomodaram os medicamentos bem como um aparelho de ar condicionado que veio a ser montado por ordens do Sr. CA.
Quesito 10: não sabe dizer se a composição da sociedade Farmácia B Lda, não foi a constante do réu, a solicitação do CA, mais esclarece que ouviu dizer do próprio CA que havia aquela intenção de criação da farmácia cujos termos do referido acordo foram alcançados na sua ausência (da ora testemunha) na cidade de M.
Quesito 11: Não sabe dizer, igualmente, que tenha havido perda de confiança na sua própria pessoa, tendo esclarecido que apenas era Director Técnico da Farmácia e nunca ter auferido qualquer remuneração embora a referida licença de exploração fosse sua, o CA e o V fizeram uso da mesma em benefício próprio.
Quesito 12: Nada sabe se o réu tinha manifestado a intenção de receber a sua quota.
Quesito 13: Nada sabe da recusa ou sobre a razão do CA.
Quesito 16: Não sabe dizer ao certo, se o réu não procedeu a reabilitação do espaço comercial onde se instalaria a farmácia e de todas a estrutura para o início da actividade incluindo a parte logística. Esclareceu entretanto, de ter comparecido naquele local um cidadão de nome MJG para proceder à reabilitação do imóvel onde iria se instalar a farmácia, mas sem saber se foi a mando do réu ou do Sr. CA. E mais não disse.”
EA, de 57 anos, gestor de profissão, testemunha arrolada pelos autores. Respondeu dizendo ser amigo do Sr. CA, mas nem por isso lhe impede de dizer a verdade e somente a verdade ao tribunal.
À matéria dos autos respondeu aos quesitos 2, 9 e 17.
Quesito 2: respondeu, que não sabe dizer se Sr. CA, nunca teve qualquer tipo de negócio com relação à ré.
Quesito 9: nada sabe sobre se a Farmácia B Lda veio a abrir as suas portas definitivamente equipada e reabilitação em perfeitas condições.
Quesito 17 desconhece por completo se o CA assinou a procuração de 14/10/2002 por se considerar o réu tinha cumprido o protocolo que ambos tinham celebrado. E mais não disse.”
E depois, a sentença recorrida diz:
Significa isto que quanto à matéria dos quesitos 3 a 8 da BI não foi produzido qualquer meio de prova e, por conseguinte dá-se como não provada.
Em conclusão quanto aos demais quesitos:
Do depoimento da testemunha AMN nenhum conhecimento relevante foi extraído, por a testemunha desconhecer a factualidade em causa e situa esse desconhecimento no facto de apenas ter passado a acompanhar os assuntos de CA a partir de “(…) o contacto inicial com o Sr. CA para tratar do assunto ligado ao imóvel foi estabelecido entre os anos de 2003 a 2007, (…)”, datando os factos controvertidos a período temporal anterior.”
De seguida, a sentença recorrida passa a referir-se a documentos juntos pelos réus, à impugnação deles pelos autores e “à impossibilidade de as testemunhas poderem ser confrontadas com os documentos em causa, pelo que, impugnados pelos autores e não objecto de qualquer outro meio de prova que os corroborasse, não foram, por isso, considerados para prova da factualidade controvertida”, pelo que se vê que não se está a pronunciar sobre esta matéria.
Contra a decisão destes pontos, os autores dizem o seguinte:
Dos depoimentos prestados pelas testemunhas AMN e RJA resulta claramente que o réu incumpriu com o PROTOCOLO DE INTENÇÃO E COMPROMISSO que celebrou com CA.
E, depois de os transcreverem outra vez, concluem:
Pelo que, face à prova documental constante do processo e aos depoimentos prestados pelas testemunhas AMN e RJA, os autores consideram incorrectamente julgados os quesitos 14, 15 e 16.
Decidindo:
Na parte final da impugnação, os autores referem-se em termos genéricos à prova documental junta aos autos. Como já acima se disse, este tipo de impugnação não cumpre minimamente a exigência do art. 640/1-b do CPC, pois que não indica os concretos meios probatórios, constantes do processo […] que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
Quanto ao depoimento da testemunha JA, o seu valor probatório já foi afastado pela decisão recorrida. A testemunha foi contactada em data indeterminada de 2003 a 2007 e os factos relativos à farmácia referem-se, no que importa, na versão dos réus, quando muito de 2001 a meados de 2003, pelo que a própria testemunha diz não saber nada sobre eles. Por outro lado, do seu depoimento decorre que ela não sabe nada do que o réu terá ou não feito, matéria dos quesitos 14, 15 e 16.
Por fim, quanto ao outro depoimento invocado pelos autores, o da testemunha RJA, esta nem sequer se refere aos quesitos 14 e 15; quanto ao que consta do quesito 16 diz não saber e depois acrescenta algo que até pode apontar para a hipótese de o réu ter feito algo do que está em causa, portanto em sentido contrário ao que se diz em 16.
Assim sendo, do depoimento das duas testemunhas invocadas pelos autores não decorre minimamente provado o que consta dos quesitos 14, 15 e 16.
*
Pelo exposto, improcede, no seu todo, a impugnação da decisão da matéria de facto.
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Do recurso sobre matéria de direito
A fundamentação da decisão recorrida foi a seguinte, segundo se consegue compreender depois das referências (i) ao regime jurídico da procuração, (ii) à jurisprudência sobre o assunto, (iii) aos factos provados e (iv) à falta de prova de outros:
“Ainda que se provasse que CA nunca conheceu a ré não resulta provado que ele não tivesse qualquer relação com a ré que o levasse a outorgar procuração a favor da mesma.”
E aqui a sentença lembra a versão dos réus: “a procuração foi emitida a favor da ré a solicitação do réu, cedendo assim o seu direito sobre a fracção autónoma à sua filha, com o consentimento e [co]laboração do ‘cedido’ (ainda que não aleguem ter sido revogada a procuração outorgada ao réu).”
A primeira consideração, tendo como pano de fundo a segunda, leva à improcedência do 2º pedido: a procuração não é nula porque não se demonstra a falta de relação subjacente ao interesse da mandatária na procuração. E não sendo ela nula, também não o seria a compra e venda celebrada com base nela.
Isto pressupõe que a sentença, implicitamente, face à falta de prova da falsidade da procuração, afasta logo o 1.º pedido que se baseava nessa nulidade.
E a improcedência destes dois, leva à improcedência do 3.º e do 4.º pedidos, que estavam na dependência da procedência do 1.º ou do 2.º.
Quanto aos outros pedidos, a sentença também não diz nada expressamente, mas face às normas legais e jurisprudência invocadas, a fundamentação, da sentença, para a improcedência é esta:
A procuração a favor do réu foi passada também no seu interesse (Ana Prata, Código Civil Anotado, volume I, 2017, Almedina, pág. 318) pelo que só poderia ser revogada por acordo de ambos ou com justa causa (art. do 265/3 do CC – Ana Prata, obra citada, págs. 323 e 324 e Antunes Varela e Pires de Lima, Código Civil anotado, vol. I, 4.ª ed., Coimbra Editora, pág. 247, e ac. do STJ de 28/05/2015, proc. 123/06.2TBVS.E1.S1), acordo ou justa causa que não se verificam tendo em conta os factos provados.
E, sendo irrevogável, não caduca (acórdãos do TRE de 18/11/2009, proc. 67/1999.E1, e do STJ de 03/06/1997, proc. 97A140).
Contra isto, os autores dizem o seguinte [transcreve-se no essencial e sem a referência a factos que não constem dos provados]:
As procurações em causa nos presentes autos são irrevogáveis e conferidas também no interesse dos mandatários, e não caducam por morte do mandante.
Porém, a procuração a favor da ré é nula por não existir relação subjacente que suporte o interesse da mandatária na cláusula de irrevogabilidade (a relação subjacente é constituída por um negócio que tenha por objecto a celebração de outros negócios, ou a prática de outros actos, e que exija a procuração como algo necessário ou útil a esse negócio. O dominus e o procurador deverão ser partes do negócio que constitui a relação subjacente).
Por outro lado, esta procuração, com excepção da identificação da mandatária, é uma cópia fiel da procuração irrevogável que o CA outorgou a favor do réu, cuja assinatura que lhe foi aposta, é manifestamente desconforme com a do punho do mandante. Pelo que, a procuração irrevogável em nome da ré sempre deverá ser declarada nula, por falsidade do seu conteúdo e da assinatura que lhe foi aposta.
Sendo nula a procuração irrevogável é também nula a escritura de compra e venda do imóvel, celebrado no pressuposto da sua validade, com as consequências referidas nos pedidos 3 e 4.
A procuração a favor do réu é revogável por existir justa causa para a revogação, nos termos do disposto no artigo 265/3 do CC, pois que subjacente a esta procuração existiu um “Protocolo de Intenção de Compromisso” celebrado entre o CA e o réu, que este não cumpriu nos seus precisos termos.
Por outro lado, o Protocolo de Intenção e Compromisso” acima reproduzido, tinha a validade de seis meses, a partir da data da revalidação da licença para a abertura da Farmácia. Nos termos desta cláusula, o negócio que serviu de base à procuração irrevogável caducou e, consequentemente, extinguiu-se a procuração, de acordo com o disposto no art. 265/1 do CC.
Decidindo:
Visto que os autores não conseguiram alterar a matéria de facto relativamente à falsificação da assinatura da procuração passada a favor da ré, não é possível retirar a consequência da nulidade da escritura da compra e venda com base na nulidade de procuração.
A outra via para a nulidade da escritura, resultaria da nulidade da procuração, por constar dela que era outorgada também no interesse da ré e afinal não se demonstrar a existência de um negócio subjacente do qual resultasse tal interesse.
Quanto a isto diga-se (seguindo de perto o ac. do TRL de 10/01/2013, proc. 918/08.2TMLSB-A) que só se pode considerar que uma procuração foi conferida no interesse também do mandatário quando isso resultar da relação base ou relação subjacente à outorga dos poderes de representação, ou seja, da relação que justifica e fundamenta a procuração (a relação de gestão ou relação gestória, de que fala Manuel Januário da Costa Gomes, em Tema de revogação do mandato civil, Almedina, 1989, pág. 240, a propósito do mandato; quanto a esta relação vejam-se os arts. 264/1 e 265/1, ambos do CC e Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, Tomo III; 2001, Almedina, págs. 179/180: “[…A] lei pressupõe que, sob a procuração, exista uma relação entre o representante e o representado, em cujos termos os poderes devem ser exercidos […]. A efectiva concretização dos poderes implicados por uma procuração pressupõe, assim, um negócio nos termos do qual eles sejam exercidos: o negócio base.”)
Neste sentido, veja-se Pedro Albuquerque, A representação voluntária em direito civil (ensaio de reconstrução dogmática), Almedina, Abril de 2004, págs. 969 e segs:
“[A] competência representativa, em si mesma entendida de forma neutra e indeterminada, necessita de ser, sempre, completada através de uma causa ou relação que a determina e suporta” (pág. 973); “[p]ara existir irrevogabilidade da procuração esta deve desempenhar a função de permitir o cumprimento ou a execução da relação subjacente. Noutros termos, para a procuratio e o poder de representação serem insusceptíveis de revogação deve resultar para o procurator ou tertius, ou eventualmente ambos, uma pretensão cuja satisfação pressuponha o exercício do poder de representação como um instrumento ao serviço de uma posição própria destes. […] [A irrevogabilidade dos poderes de representação…] só pode existir quando em virtude de um outro acto de autonomia da vontade o constituído possa, mesmo contra a vontade do constituinte, impor a satisfação ou comprimento da sua pretensão. Noutros termos, a procuração irrevogável apenas é considerada admissível quando o representado se vinculou à celebração de um negócio representativo através do procurador.” (págs. 974/975) “Caso a irrevogabilidade tenha sido convencionada sem ocorrerem os pressupostos que deveriam estar na sua base, a communis opinio aceita, em regra […] a manutenção do poder de representação, mas de forma susceptível de revogação.” (pág. 976) […] “Não basta um qualquer interesse do procurador ou terceiro para excluir a possibilidade de o constituinte retirar, ao constituído, os poderes concedidos de forma irrevogável. A irrevogabilidade da procuração apenas é admitida naqueles casos nos quais a relação fundamental, justificativa da procuração, imponha como um seu trecho a manutenção do vínculo procuratório, pois, de outra maneira, se violaria essa relação fundamental.” (págs. 976/977). E em nota (1612) acrescenta: “o interesse do procurador, ou do tertius, referido no art. 265/3 do CC, não é, senão, a pretensão ou direito à realização do negócio ou acto ao serviço de cuja realização a procuratio irrevogável se encontra. Torna-se, assim, despiciendo procurar ou indagar acerca da existência de quaisquer vantagens ou proveitos de natureza económica ou outra, a serem alcançados se os poderes concedidos fossem de facto exercitados”. E mais à frente, noutra nota (1615, pág. 977/978) diz: “Não nos parece, por exemplo, poder considerar-se irrevogável uma procuração para realização de uma doação a favor do procurador ou de terceiro, pelo simples facto de este ter nisso um interesse económico ou jurídico se, ao mesmo tempo, o donatário não tiver de facto o direito de exigir o cumprimento da doação. A procuração não equivale ao negócio definitivo. Ver em hipóteses como esta um interesse do procurador ou do terceiro de molde a tornar a procuração irrevogável é um claro atentado à autonomia privada do representado. Este não deve ficar vinculado à realização de uma liberalidade pelo simples facto de outrem ter um mero interesse económico ou jurídico no resultado de uma procuração, mas a cujo cumprimento não tem direito”.
No mesmo sentido, na parte que interessa, veja-se Pedro Pais de Vasconcelos, Contratos atípicos, Almedina, 1995:
“[A] procuração irrevogável está sempre ligada a um contrato, que lhe constitui a relação subjacente […]” (pág. 301); “a procuração, como simples acto de outorga de poderes de representação, pressupõe uma relação fundamental que lhe dá causa […]” (pág. 302); “É perante a relação subjacente que vai ser apurado se a procuração é outorgada no exclusivo interesse do representado […] ou no interesse do procurador ou de terceiro, casos em que não é livremente revogável” (pág. 303); “a irrevogabilidade da procuração só é admissível quando esta desempenhe a função de possibilitar o cumprimento ou a execução da relação subjacente, e dessa relação subjacente resulte para o procurador ou para o terceiro, ou para ambos, uma pretensão cuja satisfação implique o exercício do poder representativo do procurador, como um poder próprio, mesmo contra o representado e contra a sua vontade” (pág. 305); “A irrevogabilidade […] tem de resultar do relacionamento da procuração com a relação subjacente, sendo ineficaz a nua estipulação de uma irrevogabilidade que não tenha fundamento numa relação subjacente lícita” (pág. 306).
(Vai no mesmo sentido, no essencial, para o que interessa, Januário Gomes, obra citada, págs. 145 a 152 e 169 a 186, embora a propósito do nº. 2 do art. 1170 do CC, pelo que tem de ser lido com as devidas adaptações. E ainda Luís Miguel D. P. Pestana de Vasconcelos, A cessão de créditos em garantia e a insolvência, em particular da posição do cessionário na insolvência do cedente, Coimbra Editora, Outubro de 2007, págs. 72 a 77, especialmente pág. 75)
No mesmo sentido, ainda, e mais antigo, vai o ac. do TRE citado na sentença recorrida, que segue o ac. do STJ de 03/06/1997 (proc. 97A140):
Não é o facto de na declaração de vontade (…) se ler que "o mandante considera esta procuração irrevogável nos termos da Lei por ser passada no interesse da própria mandatária" que a torna irrevogável, havendo que conhecer se concretamente ela foi conferida também no interesse desta». A esta caracterização se refere Januário Gomes, quando declara que a «convenção de irrevogabilidade nada acrescenta ao regime legal, sendo, de per si, inoperante» (obra citada, p. 149 [é lapso, a passagem citada está na pág. 205]): ou há interesse comum do mandante e do mandatário ou de terceiro, e há irrevogabilidade, com ou sem convenção expressa; ou não há tal interesse comum, e prevalece a livre revogabilidade, que torna ineficaz qualquer convenção em contrário. Como diz ainda o mencionado ac. STJ, citando Vaz Serra, «a irrevogabilidade tem de "resultar da relação jurídica basilar e, em especial, por ter sido conferido no interesse do mandatário (ou do procurador) ou de terceiro."
Nesta perspectiva”, continua o ac. do TRE, “é essencial aferir da existência de interesse do mandatário (ou procurador) ou de terceiro para se poder considerar irrevogável a procuração […].”
Na caracterização desse interesse afirma-se que «para se concluir pelo interesse do mandatário ou de terceiro, é forçoso descortinar um direito subjectivo de que um deles seja titular, direito que é exercido, ou por qualquer forma actuado, através do mandato e, mais especificamente, através do cumprimento do acto gestório» (assim, Januário Gomes, idem, p. 149). Por sua vez, declara-se no ac. STJ de 03/06/1997, citando anteriores arestos do STJ, que «para haver mandato de interesse comum não basta que o mandatário ou o terceiro tenham um interesse qualquer, é necessário que esse interesse se integre numa relação jurídica vinculativa, isto é, que o mandante, tendo o mandatário o poder de praticar actos cujos efeitos se produzem na esfera jurídica daquele, queira vincular-se a uma prestação a que o mandatário ou terceiro tenham direito».
Ora, no caso dos autos não se provou a existência de qualquer relação subjacente à outorga da procuração a favor da ré, pelo que não é possível dizer – como o diz a sentença recorrida - que a procuração foi conferida também no interesse dela. E não se diga que esse interesse resulta do facto de a ré estar autorizada a celebrar negócio consigo mesma, porque isso não quer dizer que o pudesse celebrar no seu interesse (não resultando de nenhum negócio base o interesse da procuradora, o negócio consigo mesmo que a procuradora realizasse teria de ser no interesse do representado).
Não se podendo dizer que a procuração foi passada também no interesse da procuradora, não se pode concluir pela irrevogabilidade da procuração, irrevogabilidade no sentido previsto no art. 265/3 do CC, isto é, de não poder “ser revogada sem o acordo do interessado, salvo ocorrendo justa causa.”
Mas, como já decorre das citações feitas, os autores não têm razão em concluir, da falta de prova da existência da relação subjacente, pela nulidade da procuração e, por aí, da venda efectuada com base nela.
A irrevogabilidade, declarada conclusivamente na procuração, no caso, é uma nua estipulação sem fundamento numa relação subjacente lícita (utiliza-se a construção de Pais de Vasconcelos), por isso sem eficácia para levar à irrevogabilidade, mas sem afectar a validade da procuração.
Nos termos já referidos de Pedro Albuquerque: “Caso a irrevogabilidade tenha sido convencionada sem ocorrerem os pressupostos que deveriam estar na sua base, a communis opinio aceita, em regra […] a manutenção do poder de representação, mas de forma susceptível de revogação.” Ou nos termos de Januário Gomes: “a convenção de irrevogabilidade nada acrescenta ao regime legal, sendo, de per si, inoperante.” (embora a revogação possa conduzir à responsabilidade civil: págs. 203 a 208). Ou nos termos de Pedro Leitão Pais de Vasconcelos: “A irrevogabilidade […] tem de resultar do relacionamento da procuração com a relação subjacente, sendo ineficaz a nua estipulação de uma irrevogabilidade que não tenha fundamento numa relação subjacente lícita” (pág. 306).
Assim, a conclusão é apenas que a procuração podia ser revogada, apesar de nela se dizer que era irrevogável. Ou seja, a falta de interesse da ré na procuração, levaria a poder questionar-se a revogabilidade da procuração, mas não a sua validade. Os autores dizem o contrário mas não invocam qualquer norma legal para o efeito, nem suporte doutrinário ou jurisprudencial, que existe, sim, mas para a posição oposta.
Assim, fica afastada a possibilidade de considerar que a procuração era nula, o que só por si basta para a improcedência dos quatro primeiros pedidos.
Quanto ao 5.º pedido (revogação da procuração a favor do réu, por justa causa) e ao 6.º pedido (caducidade desta procuração).
Antes de mais note-se que estes pedidos só teriam relevo caso se considerasse procedente o essencial dos anteriores, anulando-se a venda efectuada pela ré. Subsistindo esta venda a favor da ré e estando registada a fracção a favor dela, o réu já não poderá utilizar a procuração passada a seu favor e não importaria que tivesse caducado o negócio subjacente à procuração.
Seja como for…
*
Pressuposto do 5.º pedido é que se provasse a verificação de uma justa causa.
“O conceito de ‘justa causa’, diz Baptista Machado (Pressupostos da Resolução por Incumprimento, em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor J. J. Teixeira Ribeiro, II, Coimbra, 1979, págs. 356-363, especialmente 361-362), é um conceito indeterminado cuja aplicação exige necessariamente uma apreciação valorativa do caso concreto. Será uma ‘justa causa’ ou um ‘fundamento importante’ qualquer circunstância, facto ou situação em face da qual, e segundo a boa fé, não seja exigível a uma das partes a continuação da relação contratual; todo o facto capaz de fazer perigar o fim do contrato ou de dificultar a obtenção desse fim, qualquer conduta que possa fazer desaparecer pressupostos, pessoais ou reais, essenciais ao desenvolvimento da relação, designadamente qualquer conduta contrária ao dever de correcção e lealdade (ou ao dever de fidelidade na relação associativa). A ‘justa causa’ representará, em regra, uma violação dos deveres contratuais (e, portanto, um ‘incumprimento’): será aquela violação contratual que dificulta, torna insuportável ou inexigível para a parte não inadimplente a continuação da relação contratual. Em certos casos, porém, a ‘justa causa’ não consiste numa violação do contrato pelo sujeito contra o qual é exercido o direito de resolução, mas num facto que se liga à vida ou à esfera de controle daquela das partes a que a lei confere o direito de resolução: assim, por ex., o comodante que venha a ter uma necessidade urgente e inesperada do objecto dado em comodato pode resolver o contrato com fundamento em ‘justa causa’ nos termos do citado art. 1140”.
Ou seja, pressuposto do 5.º pedido é que se provasse que o réu não cumpriu os compromissos que assumiu no protocolo que consta de D dos factos provados. Ora, o único facto que se provou relacionado com esse incumprimento consta de N e dele não é possível concluir que a situação em causa configure uma ‘justa causa’ de resolução da procuração, nos termos descritos, tanto mais que a procuração foi passada em Out2002, portanto um ano depois do protocolo (Out2001) e não se pode dizer que o incumprimento tenha ocorrido depois da procuração (já podia estar a ocorrer e, nesse caso, tal até apontaria em sentido contrário ao pretendido, pois que a outorga da procuração, nesse caso, significaria que o pai dos autores não considerava que o réu estivesse em incumprimento).
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Quanto ao 6.º pedido, trata-se de saber se, como pressupõem os autores, a procuração referida em E dos factos provados tinha caducado (os autores não dizem quando), por ter caducado o negócio subjacente (o protocolo transcrito em D dos factos provados), visto ter um prazo de validade de 6 meses. Construção que se aceita como possível (neste sentido, com lugares paralelos, por exemplo, o comentário de Raul Guichard / Catarina Brandão Proença / Ana Teresa Ribeiro, pág. 646/4/I, do Comentário ao CC, Parte Geral, da UCP/FD/UCE, 2014).
No protocolo datado de 30/10/2001, o réu assumia o compromisso de realizar alguns comportamentos para a constituição de uma sociedade e abertura de uma farmácia, tendo o compromisso, recíproco, a validade de 6 meses, a partir da data da revalidação da citada licença para abertura de Farmácia, sendo que 90 dias após o início de actividade da Farmácia, o réu teria que ceder a sua quota de 90% no capital da mesma a CA, o qual, em contrapartida, pagaria por essa cedência, por permuta, a propriedade da fracção em causa. Em 14/10/2002, CA passou uma procuração, irrevogável, ao réu, na qual se incluíam poderes para venda, ao próprio réu, da fracção em causa.
Ora, daquelas cláusulas contratuais sintetizadas não é possível extrair uma data fixa a partir da qual começaria a correr o prazo de validade referido no protocolo. Por outro lado, não se sabe quando é que se verificaram, ou não, os factos de que dependiam o início daquele prazo. Assim sendo, não é possível dizer que se verificou a caducidade do negócio subjacente à procuração do ponto E dos factos provados. E em sentido contrário a essa caducidade sabe-se que, cerca de um ano depois da celebração do protocolo, CA passou uma procuração ao réu para que este pudesse celebrar, sozinho, a compra e venda da fracção para si próprio, o que até indicia que os compromissos assumidos pelo réu tinham sido cumpridos – o que justificaria a passagem da procuração - e que, por isso, não se tenha verificado a caducidade.
Tudo isto leva a que se tenha de concluir que não há prova de factos que permitam considerar que se verificou a caducidade do negócio que justificava a procuração, o que é suficiente para se ter que considerar que o pedido relativo a essa caducidade se tem de considerar improcedente (sendo que, não é objecto deste processo, por não corresponder a nenhum pedido, saber se a procuração caducou por qualquer outra razão).
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte, pelos autores (que decaíram no recurso).
Lisboa, 05/11/2020
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas