Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17536/07.5YYLSB-A.L1-2
Relator: EDUARDO AZEVEDO
Descritores: SIGILO BANCÁRIO
CONFLITO DE DEVERES
EXECUÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: INCIDENTE
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: Sumário (do relator).

1- O sigilo bancário não correspondendo a um direito absoluto, já que o titular das contas bancárias pode autorizar o seu levantamento.

2- Deve ceder perante outros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos, desde que lhe sejam superiores. 

3- Como tem sido uniformemente decidido, atenta a forma como está regulado esse sigilo, havendo conflito entre o dever do sigilo bancário e o dever de cooperação para a realização da justiça, porque este interesse é mais relevante, há-de aquele ceder perante este.

4- Mostra-se necessária ainda essa quebra se o exequente necessita de elementos referentes à morada e números de bilhete de identidade e fiscal do executado que de outro modo não consegue, para obter a penhora de bens e conseguir a compensação do crédito exequendo.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa

A instaurou execução para pagamento de quantia certa (17536/07.5YYLB) contra B, dando como título à execução um cheque sacado sobre a “C”, com o valor aposto de 3.269,85€, datado de 02.03.2007, com o nº 8179658873, da conta 0257003278200, na titularidade de B e que apresentado a pagamento foi devolvido, por falta de provisão (cheque de fls 23/4, cujo teor se dá aqui por reproduzido).

No requerimento executivo não foram indicados bens à penhora.   

A exequente requereu, em 29.03.2011, que nos termos do artº 519º do CPC fosse oficiada aquela entidade bancária para informar os elementos de identificação do executado que constem na sua ficha de cliente com referência a tal conta bancária, como número do bilhete de identidade, número de contribuinte e morada, na medida em que apesar das diligências encetadas pela agente de execução em consulta às bases de dados previstas no artº 833º, nº 1 do CPC para se obterem elementos seguros referentes à identificação do executado, tal ainda não tinha sido logrado, por isso não tendo sido igualmente possível penhorar qualquer bem do mesmo apesar de “todas as diligência já efectuadas” pela mesma agente.

Por despacho de 21.05.2013 (fls 6-28) ordenou-se, nos termos conjugados dos artºs 833º, nº 7, e 519º do CPC que se notificasse essa instituição bancária para informar de tais elementos que constassem nos seus registos.

Respondeu-se, por carta de fls 7 (29), cujo teor de dá aqui por reproduzido, recusando-se a comunicação desses elementos por estarem sujeitos a segredo bancário, nos termos do artº 78º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL 298/92, de 31.12.

A exequente insistiu na notificação da entidade bancária, em suma, dado que o despacho referido só podia ser entendido como despacho judicial de autorização para fornecimento de elementos sujeitos a regime de confidencialidade para efeitos do disposto nos artºs 833º-A, nº 7, e 519º-A, nº 2, do CPC (então em vigor), ora 749º, nº 7, e 418º, nº 2,  do CPC, pelo que a escusa não era legítima.

Foi então proferido o seguinte despacho (01.07.2014): 

“Por despacho proferido a fls. 28, foi determinada a notificação da "C", com cópia do cheque dado à execução, para informar nos autos acerca dos elementos de identificação do executado e titular da conta em questão que constam nos seus registos.

A mesma entidade bancária veio, a fls, 29, dizer que os elementos solicitados estão sujeitos a sigilo bancário e que não se verificando qualquer excepção das legalmente previstas, não pode fornecer os dados solicitados sob pena de violação do segredo a que está vinculada.

Notificada da posição manifestada pela entidade bancária, a exequente veio, na peça processual de fls. 32 a 34, dizer que a recusa é ilegítima pois contende com as normas processuais civis relativas à dispensa de sigilo, e que os elementos solicitados são essenciais à prossecução da execução, devendo ser ordenado à "C" que preste as informações solicitadas.

Decidindo:

O sigilo bancário não constituiu um direito absoluto, devendo ceder perante exigências de correcta e eficaz administração da justiça a realizar pelos Tribunais.

A lei processual civil prevê expressamente a no âmbito do processo de execução o levantamento do sigilo bancário mediante despacho judicial.

Ora, apesar de a recusa bancária se afigurar como legítima face ao Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (designadamente o seu artigo 79.°), cumpre, face à exigência de correcta eficaz administração da justiça, ponderar, no caso concreto, se tais elementos solicitados são relevantes, o que se afigura.

Desta forma, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 417.°, nºs 3, al. c) e 4, do Código de Processo Civil, e 135.°, nºs 2 e 3, e 182.°, do Código de Processo Penal e cabendo a indicada decisão ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, extraia certidão de fls. 21/22, 25/26, 28, 29, 32 a 34, e do presente despacho, e autue por apenso como incidente de quebra de sigilo bancário, aí abrindo conclusão.

(…)”

Efectuado o exame preliminar e corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões a conhecer revertem unicamente para a quebra do sigilo bancário para o fim em vista da exequente.

Fundamentação

A matéria fáctica a ter em consideração é a que resulta objectivamente do antecedente relatório.

Para além disto, que as bases de dados do arquivo de identificação civil e da segurança social pesquisadas pela agente de execução, segundo teor de fls 25 a 28 que aqui se dá por reproduzido, e os elementos de identificação do executado constantes do requerimento executivo e referente ao domicílio apenas coincidem relativamente aos de uma das menções pessoais fornecida pela primeira base, sendo que as demais menções dessa base e da segunda ou não permitem qualquer determinação ou são inconclusivas para averiguação ao certo de outro domicílio que neste momento possa ter o executado.

Assim, também, no pressuposto que se tem de se ter como correcto, que os despachos aludidos são proferidos porquanto não foi possível efectivamente efectuar qualquer penhora considerando inclusive a morada contante do requerimento executivo, apesar das diligências já efectuadas, vejamos os demais parâmetros em que se desenvolve a questão.

  Este incidente foi apropriadamente suscitado perante este tribunal, considerando os termos conjugados dos artºs 417º, nºs 3, al c) e 4, do CPC, 135º, nºs 2 e 3, e 182º do CPP.

Segundo o artº 78º do DL 298/92, de 31.12: os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, os seus empregados, mandatários, comitidos e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços (1); estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias (2); e o dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços (3).

Contudo, no termos do artº 79º do mesmo diploma, como excepções ao dever de segredo, são os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição que sejam revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição (1); e, para além disto, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo revelados ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições, à Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições, ao Fundo de Garantia de Depósitos, no âmbito das suas atribuições, nos termos previstos na lei penal e de processo penal e quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.

O apuramento dos elementos pretendidos pela exequente porque através de entidade bancária está efectivamente a coberto do segredo bancário.

Este destina-se a tutelar a privacidade e o bom nome dos clientes bancários, a proteger o funcionamento normal das instituições, evitando a degradação da sua imagem e desconfiança entre o público (José Maria Pires, Direito Bancário, 1º, 120).

Como se refere no AFJ nº 02/08, de 13.02.2008: “O segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses. Por um lado, de ordem pública: o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança, e indirectamente para o bom funcionamento da economia, já que o sistema de crédito, na dupla função de captação de aforro e financiamento do investimento, constitui, segundo o modelo económico adoptado, um pilar do desenvolvimento e do crescimento dos recursos.

Por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a «biografia» de cada sujeito, de forma que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.” (artºs 26º, nºs 1 e 2, 35º, nºs 4 e 7, da CRP, e 80º CC).

Sem embargo, como alerta ainda o mesmo acórdão, “esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita.”

Assim sendo, já que igualmente cabe na esfera de disponibilidade do titular das contas bancárias autorizar o levantamento do sigilo bancário, pode ceder perante outros direitos ou interesses também constitucionalmente protegidos, desde que sejam superiores àquele (art 335º do CC).

É, de resto, o que se extrai também do nº 3 do artº 135º, do CPP que manda aplicar o princípio da prevalência do interesse preponderante. 

No âmbito cível a quebra do segredo bancário apenas encontra expressão evidente no artº 780º (penhora de depósitos bancários) do CPC (correspondente ao artº 861º-A do regime anterior).

Sem embargo, o artº 417º (ex artº 519º) do mesmo diploma, consagra o dever de cooperação de todas as pessoas, sejam ou não parte na causa, de prestarem a sua colaboração para a descoberta da verdade.

E como tem sido decidido uniformemente, atenta a forma como está regulado no DL 298/92, havendo conflito entre o dever de sigilo bancário e o dever de cooperação para a realização da justiça, porque os interesses por este envolvidos são mais relevantes, há-de aquele ceder perante este (acórdão da RC de 06.04.2010, Procº 120-C/2000.C1, www.dgsi.pt). 

É, pois, no interesse público dos tribunais estes disporem de todos os elementos necessários para decidirem de acordo com a verdade das coisas: o «acesso ao direito e aos tribunais, para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos», impondo-se assegurar-lhes que a causa em que são partes «seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo», de modo a que se apure a «verdade» e se consiga a «justa composição do litígio» (artºs 20º, nºs 1 e 4, da CRP, 2º, 3º, 5º, 6º e 417º do CPC ou 2º, 3º, 265º, 266º e 519º do anterior regime).

Como se dá conta no acórdão do STJ. de 21.03.2000, “foi intenção do legislador … afastar a invocação de excessivos e desproporcionados sigilos profissionais” (CJ, I, 131). 

Para além disto, no caso concreto, o objectivo da obtenção desses elementos enquadra-se nas providências adequadas no processo à reparação efectiva do direito patrimonial da exequente tutelado directamente pelas normas processuais executivas.

A obtenção vai ser por meio judicial e as informações assim obtidas irão ser “estritamente utilizadas na medida indispensável à realização dos fins que determinaram a sua requisição, não podendo ser injustificadamente divulgadas nem constituir objecto de ficheiro de informações nominativas” (artº 418º, nº 2, do CPC).

Os interesses tutelados pelo sigilo bancário apenas saem prejudicados na estrita medida das necessidades reveladas neste processo.

Pode-se formular um juízo elevado de verosimilhança de que não existirá outra forma de a exequente obter tais informações para a realização da justiça.

Neste contexto, o conflito de interesses há-de ser dirimido a favor do que está subjacente ao direito da exequente e, em conformidade, deve ser quebrado o segredo bancário e a final decidido este incidente para que a dita instituição bancária preste a informação que já lhe foi solicitada em conformidade com o citado despacho de 21.05.2013.

Custas pelo executado.

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Lisboa, 20.11.2014

Eduardo José Oliveira Azevedo

Olindo Santos Geraldes

Lucia Sousa