Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1149/13.5TJLSB-A.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
CRÉDITO HIPOTECÁRIO
CASO JULGADO
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/03/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: “I - Não é oponível ao credor hipotecário a sentença que, com trânsito em julgado, tenha declarado, em ação em que o credor hipotecário não foi parte, a existência de direito de retenção alheio sobre o imóvel hipotecado, inclusivamente a favor do promitente-comprador do imóvel ou fração. II - Todas as questões contra a verificação do direito de retenção podem ser levantadas na ação de verificação e graduação de créditos. III - O credor hipotecário pode assim pôr diretamente em causa o direito de retenção mediante impugnação dos factos alegados na petição da ação de verificação e graduação de créditos, em que reclame, ou mediante sustentação da respetiva inconcludência. IV - E constituindo a existência do crédito garantido pressuposto do direito de retenção, ela mesma pode ser impugnada pelo credor hipotecário.”.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação

I – Nos autos de insolvência em que é insolvente A, veio o Administrador de Insolvência nomeado, apresentar relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do art.º 129º do C.I.R.E.

Merecendo tal lista, na parte relativa aos “credores reconhecidos”, impugnação por parte da B, S.A., no tocante ao crédito reclamado por C.
E, assim, considerando que o dito crédito – sendo a sentença que, noutro processo, reconheceu o direito de retenção àquele credor, inoponível à ora impugnante, por ser esta terceiro juridicamente interessado – deverá ser classificado como comum, prevalecendo a garantia hipotecária conferida à B sobre os prédios que identifica.

Houve resposta do credor C, sustentando a manutenção do reconhecimento do seu crédito como garantido, “considerando o direito de retenção do reclamante (…) sobre os imóveis identificados no inventário elaborado nos termos do artigo 153º do CIRE.”.

Frustrada a conciliação dos credores respetivos, operou-se a condensação processual, e, considerando-se “que os factos supra consignados permitem decidir do mérito já no saneador, designadamente quanto à impugnação suscitada, bem como quanto à ulterior graduação dos demais créditos reconhecidos”, ordenou-se a notificação do Sr. Administrador da insolvência “para vir juntar aos autos o auto de apreensão de bens, abrindo-se de seguida conclusão, a fim de proferir saneador/sentença.”.
Sendo aquela do seguinte teor decisório:
“Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, julgo procedente a impugnação apresentada B, S.A., e, em consequência, declaro que o direito de retenção invocado pelo credor C não é oponível ao credor B, e graduo os créditos reconhecidos e verificados (o crédito reclamado pelo M.P. no montante de €482.242,00, considera-se crédito sob condição suspensiva, até que se mostrem transitadas em julgado as decisões proferidas nos processos que correm termos pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria), para serem pagos por força do bens apreendidos, nos seguintes termos:
a). Sobre a metade indivisa do insolvente no prédio descrito na C.R.P. de Leiria sob o n.º 2286:
. Em primeiro lugar:
Crédito reclamado pela B, no valor de €240.019,33;
. Em segundo lugar:
Crédito reclamado por C, no valor de €240.000,00 a título de capital e juros de mora reconhecidos e verificados;
. Em terceiro lugar:
Todos os demais créditos, que serão pagos rateadamente.
b). Sobre o direito de meação do insolvente no património comum do dissolvido casal constituído por ele e a ex-mulher D:
. Em primeiro lugar:
Crédito reclamado pelo M.P., no valor de €10.204,00,
. Em segundo lugar:
Todos os demais créditos, que serão pagos rateadamente.”.

Inconformado, recorreu o credor reclamante C, dizendo, em conclusões das suas alegações (…).

Contra-alegou a Recorrida, formulando as seguintes conclusões (…):

Não se mostram produzidas contra-alegações.

II – Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do novo Código de Processo Civil, sendo que se trata de processo de 2013, tendo a decisão recorrida sido proferida em 26-1-2013 – é questão proposta à resolução deste Tribunal a de saber se as sentenças que reconheceram o direito de retenção de E – cedente dos créditos reclamados pelo cessionário e aqui credor reclamante, C – sobre o imóvel descrito na Código do Registo Predial de leiria sob o n.º …, são ou não oponíveis ao credor reclamante B.
Retirando, na positiva, as necessárias consequências em sede de graduação de créditos reclamado.
*
Considerou-se assente, na 1ª instância, sem impugnação a propósito, e nada impondo diversamente, o seguinte:
“1. Da lista provisória de credores apresentada nos termos do art. 154º do CIRE consta como credor C, titular de um crédito sobre o insolvente A no montante de €658.800,00, adveniente de contrato de cessão de créditos emergentes de contrato promessa de compra e venda.
2. Ainda de acordo com a mesma lista provisória de credores, tal crédito é classificado como garantido, considerando o “direito de retenção” do referido credor sobre os imóveis identificados no Inventário elaborado nos termos do art. 153 do CIRE.
3. O Administrador da Insolvência considerou a reclamação de créditos apresentada por C, nos termos da qual este alegou:
a) Ter celebrado com E e F, em 1 de Agosto de 2011, dois contratos de cessão dos créditos que estes detinham sobre o insolvente, créditos judicialmente reconhecidos por sentenças transitadas em julgado nos processos nºs … do 5º Juízo Cível do Tribunal de Leiria e … do 1º Juízo do Tribunal de Leiria;
b) Em ambos os processos, E, invocando o incumprimento de contratos promessa de compra e venda celebrados com os RR, peticionou a resolução dos mesmos contratos e a condenação no pagamento do valor do sinal em dobro, bem como a declaração de reconhecimento do direito de retenção sobre os imóveis objecto dos ditos contratos promessa.
c) Direito de retenção que igualmente foi objecto dos ditos contratos de cessão de créditos.
4. E e F, por um lado, e C, por outro, assinaram um documento escrito intitulado "Cessão de Créditos", do qual consta:
“Primeiro: Que os Primeiros Contratantes, detém um crédito no montante global de 370.000,00 € (trezentos e setenta mil euros), acrescido de juros à taxa legal, resultante entrega dum sinal para aquisição dum imóvel, conforme sentença já transitada em julgado pelo Tribunal Judicial de Leiria nos autos n.º … do 1º Juízo Civil, cujo imóvel já se encontra na tradição dos Primeiros Contratantes;
Segundo: Que, pelo presente contrato, os Primeiros cedem ao segundo a tradição do aludido imóvel alvo de litígio judicial, bem como o valor ao recebimento do sinal em dobro;
Terceiro: Que, pelo presente contrato, os Primeiros Contratantes cedem ao Segundo Contratante, que declara aceitar a cessão, o crédito acima identificado, com todas as garantias pelo preço de 370.000,00 (trezentos e setenta mil euros), que declaram ter recebido, por conta dum mútuo existente a favor do segundo há mais de cinco anos;
Quarto: Que os Cessionários se obrigam a notificar da cessão os Devedores, por carta amanhã expedida sob registo;
Quinto: Assim como proceder à respectiva habilitação dos autos de processo ordinário n.º … no 1º Juízo Cível no Tribunal Judicial de Leiria;
Sexta: que todas as despesas emergentes do presente contrato são da exclusiva responsabilidade do Cessionário.
5. Estamos, no caso concreto do aludido processo judicial, a referir os seguintes imóveis:
a) prédio urbano sito em Marrazes, na Rua do …, freguesia de Marrazes, inscrito na matriz predial urbana sob o art. 8965;
b) prédio urbano sito em Marrazes, na Rua da …, descrito na 2ª CRP de Leiria sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana sob o art. …;
c) prédio urbano sito na Rua da …, descrito na 2ª CRP de Leiria sob o nº … da freguesia de Parceiros e inscrito na matriz predial urbana sob o art. …;
d) prédio rústico sito em …, Opeia, freguesia de Caranguejeira, descrito na 2ª CRP de Leiria sob o nº …e inscrito na matriz predial urbana sob o art. ….
6. Na decisão proferida no processo n.º … (transitada em julgado em 31.05.2011) refere-se que os acima mencionados prédios foram objecto de contrato promessa de compra e venda celebrado em 01.01.2008, entre E – como promitente comprador – e A e D (que foram casados entre si, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado em 05.04.2006) – como promitentes vendedores.
7. Sobre o prédio urbano sito em Marrazes, na Rua da …, descrito na 2ª Código do Registo Predial de Leiria sob o nº … e inscrito na matriz predial urbana sob o art. … incide hipoteca constituída a favor da B, registada a favor desta pela inscrição AP 83 de 1991/08/10.
8. E e F, por um lado, e C, por outro, assinaram um documento escrito intitulado "Cessão de Créditos", com o seguinte teor:
“Primeiro: Que os Primeiros Contratantes, detém um crédito no montante global de 240.000,00 € (duzentos e quarenta mil euros), acrescido de juros à taxa legal, resultante entrega dum sinal para aquisição dum imóvel, conforme sentença já transitada em julgado pelo Tribunal Judicial de Leiria nos autos n.º … do 5º Juízo Civil, cujo imóvel já se encontra na tradição dos Primeiros Contratantes;
Segundo: Que, pelo presente contrato, os Primeiros cedem ao segundo a tradição do aludido imóvel alvo de litígio judicial, bem como o valor ao recebimento do sinal em dobro;
Terceiro: Que, pelo presente contrato, os Primeiros Contratantes cedem ao Segundo Contratante, que declara aceitar a cessão, o crédito acima identificado, com todas as garantias pelo preço de 240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros), que declaram ter recebido, por acerto de contas dum mútuo que existia a favor do Segundo Outorgante há mais de cinco anos; Quarto: que os Cessionários se obrigam a notificar da cessão os Devedores, por carta amanhã expedida sob registo;
Quinto: Assim como proceder à respectiva habilitação dos autos de processo ordinário n.º … no 5º Juízo Cível no Tribunal Judicial de Leiria
Sexta: que todas as despesas emergentes do presente contrato são da exclusiva responsabilidade do Cessionário.
Leiria, 1 de Agosto de 2011”.
9. Estamos, no caso concreto deste processo judicial, a referir o seguinte imóvel: Fracção autónoma designada pela letra “T”, destinada a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na Urbanização Aldeamentos de … II, lote …, Rua da Quinta, em …, descrito na 2ª CRP de Leiria sob o nº ---T, freguesia de Parceiros e inscrito na matriz predial sob o art. … T.
10. Na decisão proferida no processo n.º … (transitada em julgado em 06.07.2011) refere-se que o imóvel mencionado foi objecto de contrato promessa de compra e venda celebrado entre E – como promitente comprador – e A e G (que foram casados entre si, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado em 11.06.2013), como promitentes vendedores.
11. Sobre a fracção identificada, adquirida pelo insolvente e sua então mulher, em 11 de Maio de 2009, para habitação própria e permanente do casal, incide hipoteca constituída a favor da B, registada a favor desta pela inscrição AP 4648 de 2009/05/11.
12. A B não foi interveniente nos processos identificados sob o n.º … e n.º ….”.

Vejamos.

1. Considerou-se, na sentença recorrida:
“Sucede que, como decorre igualmente dos factos dados como provados, os créditos invocados e a garantia que os acompanha foram reconhecidos por sentenças proferidas em processos nos quais o beneficiário de hipoteca sobre os mesmos imóveis não teve intervenção, no caso vertente, a B.
Ora, o credor hipotecário que não tenha intervindo na acção onde foi reconhecido o direito de retenção a favor do promitente comprador do imóvel hipotecado não está vinculado à referida decisão judicial, por se tratar de um terceiro interessado, ou seja, a decisão proferida nesse processo não constitui caso julgado em relação a ele.”.

Contrapondo o Recorrente que:
“Se a sentença não trouxer aos terceiros prejuízo jurídico, eles têm de a acatar tal como ela foi proferida entre as partes, bem como a correspondente definição judicial da relação litigada.
E a sentença não causa prejuízo jurídico sempre que deixar na integra a consistência jurídica do direito de terceiros, não afetando nem a sua existência, nem a sua validade, embora lhes possa causar um prejuízo de facto ou económico.
E, voltando à situação dos autos, a verdade é que o direito de crédito e de retenção do cessionário, agora recorrente, reconhecido ao cedente e por este transmitido ao cessionário/recorrente, sobre os imoveis hipotecados a favor da impugnante, não afeta juridicamente o crédito da B e a respetiva garantia, a hipoteca, deixando integra a respetiva consistência jurídica.
Isto é, “ O direito continua o mesmo, com o mesmo conteúdo e a mesma garantia hipotecária, sendo apenas afetado pela graduação”- Acórdão do STJ de 24-3-1992 e de 12-1-93 (in BMJ415, p.622 e 423 p.463)
Pelo que perante a sentença que reconheceu ao cedente o direito de retenção, a impugnante é terceiro juridicamente indiferente, sendo-lhe consequentemente, tal sentença oponível.
Impondo-se pois que a credora B acate as sentenças proferidas e transitadas em julgado.”.

2. Refere-se Artur Anselmo de Castro[1] ao caso julgado material – de que tratam os art.ºs 497º, 498º e 671º, do Código de Processo Civil de 1961, e 580º, 581º e 619º, do novo Código de Processo Civil – como incidindo “sobre a relação jurídica em causa”, e dele resultando “que a definição que lhe for dada tem de ser acatada em todos os tribunais e por todas as autoridades – quando lhes for submetida, a qualquer título, quer a título principal (repetição de causa) quer prejudicial (como fundamento ou base de qualquer outro efeito da mesma relação), sem necessidade da sua invocação (oficiosamente)”.
 Sendo, no tocante aos limites subjetivos daquele, que “O caso julgado vale apenas com relação às respectivas partes, tomadas estas não no sentido da sua identidade física, mas da sua qualidade jurídica – eadem conditio personarum.”.[2]
Tratando-se aquela limitação, como se refere em Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-11-2013, de “reflexo do princípio do contraditório – art. 3.º, n.ºs 1 a 3 do Código de Processo Civil – no sentido de que quem não pode defender os seus interesses num processo pendente, não pode ser afetado pela decisão que nele foi proferida.”.[3]
Assim, como regra, os terceiros não podem ser nem prejudicados nem beneficiados pelo caso julgado de uma decisão proferida numa acção em que não participaram nem foram chamados a intervir.[4]
Ressalvando porém o mesmo Artur Anselmo de Castro, a necessidade de distinguir entre aqueles “aos quais o caso julgado apenas acarrete prejuízo de facto ou económico – terceiros juridicamente indiferentes; e terceiros a quem ele ocasione prejuízo jurídico.”.
Sendo “opinião corrente”, quanto àquele último grupo, “que a sentença não valendo contra eles, também não vale a seu favor.”.[5]

Teixeira de Sousa[6] – depois de assinalar que “Coerentemente com a dupla proibição de contradição e de repetição, o tribunal da acção posterior deve abster-se de qualquer pronúncia sobre o mérito” da questão já decidida com trânsito em julgado – considera, no tocante aos limites subjetivos daquele, que “O caso julgado apenas vincula, em regra, as partes da acção, não podendo vincular terceiros”.
Explanando subsequentemente, porém, que “Além da eficácia inter partes – que o caso julgado possui sempre -, o caso julgado também pode atingir terceiros.”.
E, assim, seja por via de eficácia reflexa, seja por via de extensão do caso julgado a terceiros, caraterizada pela vinculação direta desses terceiros.
A primeira, “verifica-se quando a acção decorreu entre todos os interessados directos (quer activos quer passivos) e, portanto, esgotou os sujeitos com legitimidade para discutir a tutela judicial de uma situação jurídica, pelo que aquilo que ficou definido entre os legítimos contraditores (…) deve ser aceite por qualquer terceiro. Pelo contrário, a extensão do caso julgado a terceiros justifica-se quando, mesmo que a presença de todos os interessados directos permita a produção do efeito reflexo, importa abranger pelo caso julgado os terceiros para os quais ele implica a constituição, modificação ou extensão de uma situação jurídica.”.
Mas, nesta última hipótese, “a extensão do caso julgado não possui um âmbito absoluto, porque o fundamento que lhe subjaz só vale em relação a certos terceiros (…)”.
Assim, ficarão vinculados ao caso julgado, por extensão, “todos aqueles que, perante o objecto apreciado, possam ser equiparados, atendendo à sua qualidade jurídica (…) às partes da acção”; “O caso julgado formado na acção em que intervém como parte o substituto processual é extensível à parte substituída”; tal extensão do âmbito subjetivo “também se justifica quando o objecto apreciado for prejudicial relativamente a uma situação jurídica de um terceiro.”; e, conclui ainda aquele Autor, “Através do registo da acção obtém-se a oponibilidade do caso julgado a terceiros.”.

3. Temos para nós como instrumento mais adequado para operar nesta área, a abordagem de José Lebre de Freitas,[7] aliás, e desde logo, citado pela Recorrida nas suas contra-alegações.

E assim:
“7.1. No âmbito da extensão subjectiva da sua eficácia, a sentença só pode ser posta em causa mediante recurso de revisão, destinado a obter a sua revogação (art. 771 CPC), sem prejuízo, se ocorrerem os respectivos pressupostos, do recurso de oposição de terceiro (art. 778 CPC).
Mas o recurso a estes meios processuais só é necessário e adequado na medida em que quem deles queira lançar mão seja abrangido pela eficácia do caso julgado.
Não é o caso do credor hipotecário cujo direito de garantia se tenha constituído antes do direito de retenção, autor da acção declarativa.
A consagração constitucional do direito de defesa tem como corolário que o caso julgado não possa produzir-se contra quem não tenha tido oportunidade de intervir no processo em que a sentença é proferida, pelo que a sujeição de terceiros ao regime definido na sentença não é uma sujeição à autoridade do caso julgado, mas tão-só à eficácia da sentença, e circunscreve-se no plano dos efeitos práticos ou de facto, não podendo um terceiro ver afectada a existência ou o conteúdo dum seu direito. Independentemente da possibilidade de invocação do caso julgado favorável em certos casos de contitularidade ou dependência de situações jurídicas em que a lei o alarga a terceiros secundum eventum litis e da produção do caso julgado perante terceiros que, citados para intervir na causa, não o quiserem fazer, a limitação subjectiva do âmbito do caso julgado faz-se em termos paralelos aos da circunscrição da eficácia do negócio jurídico pelas regras da legitimidade ou, segundo a doutrina tradicional, pela regra res inter allios acta aliis nec nocere nec prodesse potest, pelo que a sentença acerta as situações jurídicas das partes entre si com a mesma eficácia com que elas próprias o poderiam fazer celebrando um negócio jurídico à data em que ela é proferida e a produção dos seus efeitos perante terceiros limita-se aos casos em que estes estão sujeitos pelo direito substantivo às consequências do exercício dos poderes dispositivos da parte.
Assim se explica que terceiros juridicamente indiferentes, mas titulares de direitos cuja consistência prática pode ser afectada pela decisão, sejam abrangidos pela eficácia da sentença. É o caso do credor comum da parte na acção de reivindicação, que, não podendo impedir o acto (extrajudicial) de alienação dum bem do seu devedor, não obstante a consequente diminuição da garantia patrimonial do seu crédito, tão-pouco pode pôr em causa a sentença que reconheça o direito da outra parte sobre o bem reivindicado ou que lho atribua com base no exercício dum seu direito potestativo (execução específica, preferência, partilha ou divisão de coisa comum).
Assim se explica também que terceiros (juridicamente interessados) titulares de situações jurídicas dependentes, já não apenas na sua consistência prática mas na sua própria existência ou conteúdo, da situação jurídica da parte, não possam discutir a questão coberta pelo caso julgado, quando a subsistência ou o conteúdo dessa sua situação jurídica também extrajudicialmente podia ser afectado por via da manifestação de vontade negocial da parte na relação jurídica de que a sua situação depende. É o caso do subcontratante, tal como o sublocatário ou o subempreiteiro, cuja posição contratual se extingue com a extinção da locação ou da empreitada, inclusivamente por acto de vontade do locatário (resolução, nos termos do art. 1050 CC; denúncia, nos termos dos arts. 1054-1 CC e 1055 CC; revogação por acordo com o locador), do dono da obra (desistência, nos termos do art. 1229 CC; resolução, nos termos gerais dos arts. 432 CC e 801-2 CC) ou do empreiteiro (resolução, nos termos gerais; revogação por acordo com o dono da obra), e que, por isso, resultará também extinta por via de sentença que anule ou declare a nulidade da locação ou da empreitada ou verifique a sua extinção.
Mas já quando o terceiro é titular duma situação jurídica dependente da da parte principal, mas sem que esta a possa negativamente afectar por via negocial, ou duma situação jurídica paralela, concorrente ou independente e incompatível com a da parte principal, por isso nunca afectável negativamente por uma actuação negocial desta, o caso julgado não pode ser contra ele invocado.
Facilmente se vê, em face destes princípios, que não é oponível ao credor hipotecário a sentença que, em acção que tenha corrido entre o promitente comprador e o promitente vendedor, ou entre o empreiteiro e o dono da obra feita no prédio hipotecado, reconheça o direito de retenção do primeiro.
7.2. O direito real de garantia, uma vez validamente constituído, não está, na sua existência ou conteúdo, sujeito às vicissitudes da actuação negocial do devedor ou do proprietário do bem (ou titular de direito real menor sobre ele) que negativamente o possam afectar.
(…)
Ora ao conteúdo do direito real de garantia, que implica a afectação especial duma coisa ao pagamento duma dívida, com preferência do credor sobre os demais credores que, por lei, não lhe devam preferir, é inerente a posição do credor na graduação de créditos. (…) Uma das características do direito real, inerente à sua natureza de direito absoluto, é, precisamente, a preferência ou prevalência de que é dotado em face dos outros direitos; ela surge também como característica do direito real de garantia, mas desta vez como factor de resolução do fenómeno da sua concorrência com outros direitos da mesma natureza incidentes sobre a mesma coisa; em especial, o grau hipotecário de tal modo faz parte do conteúdo do direito de hipoteca que pode ser objecto de cessão autónoma a outro credor hipotecário (art. 729 CC). Portanto, a sentença de que resulte que outro direito real deve sobre ele prevalecer afecta-o no seu conteúdo e consistência jurídica. Do titular do direito real de garantia nunca se pode dizer que é um terceiro juridicamente indiferente a uma sentença que afecte o grau da sua garantia. Na realidade, a relação jurídica de garantia real é, ao mesmo tempo que dependente da relação de crédito que garante (como resulta do art. 717-2 CC), independente e incompatível em face de outras relações de garantia que tenham por objecto o mesmo bem.
Em contrário, não se pode vir dizer que não há incompatibilidade porque, reconhecido, por exemplo, o direito de retenção, o direito de hipoteca continua a existir, embora graduado depois dele. Do mesmo modo, dir-se-ia então que não há incompatibilidade entre o direito de propriedade e o direito de usufruto ou de servidão, visto que a existência deste não extingue a propriedade, que permanece não obstante a existência de usufruto ou servidão alheia sobre o bem próprio; ou entre o direito de propriedade e o direito de hipoteca, visto que o proprietário conserva o seu direito sobre o bem hipotecado; ou ainda entre o direito de usufruto e o direito de servidão ou de superfície. Na realidade, são entre si incompatíveis todos os direitos reais incidentes sobre a mesma coisa, sejam eles de gozo ou de garantia, pois, ainda que possam coexistir, esta coexistência diminui a utilidade que cada um dos titulares pode tirar da coisa, por afectar quer a extensão do uso e fruição da coisa (pelo titular do direito real de gozo), quer o valor que, através de um acto de alienação, dela pode ser extraído (pelo titular do direito real de gozo ou pelo titular do direito real de garantia).
(…)
Por fim, o art. 869-5 CPC,[8] ao impor o litisconsórcio necessário passivo de exequente, executado e restantes credores reclamantes na acção autónoma que o credor com garantia real que não tenha título executivo deve propor para ser admitido a reclamar, mostra bem que o credor com garantia real não é nunca um terceiro juridicamente indiferente.
Não é, pois, invocável perante o credor hipotecário a sentença que, com trânsito em julgado, tenha declarado, em acção em que o credor hipotecário não foi parte, a existência de direito de retenção alheio sobre o imóvel hipotecado, inclusivamente a favor do promitente comprador do imóvel ou fracção ou do empreiteiro que nele construiu um prédio urbano.” (sublinhados nossos).
E “8.1. Não sendo contra ele invocável a sentença que declare a existência de direito de retenção sobre a coisa hipotecada em acção movida pelo respectivo titular contra o promitente vendedor ou o dono de obra, não carece o credor hipotecário de dela recorrer extraordinariamente, nem de mover acção declarativa própria. Todas as questões contra a verificação do direito de retenção podem ser levantadas na acção de verificação e graduação de créditos. (…). O credor hipotecário pode assim pôr directamente em causa o direito de retenção nos termos gerais, isto é, mediante impugnação dos factos alegados pelo empreiteiro, na petição da acção executiva por ele proposta ou na petição da acção de verificação e graduação de créditos, em que reclame, ou mediante sustentação da respectiva inconcludência; e, constituindo a existência do crédito garantido pressuposto do direito de retenção, ela mesma pode ser impugnada pelo credor hipotecário, embora com as limitações adiante referidas.” (sublinhado nosso).

Neste sentido se tendo decidido em Acórdão desta Relação de 05-12-2013,[9] em cujo sumário ler-se pode:
“I – (…). II) A sentença condenatória não só não é necessária como não é suficiente, pois mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no próprio processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento. III) Por maioria de razão, o credor não carecerá de uma sentença prévia que lhe reconheça o respectivo direito de retenção para que o possa invocar no processo de insolvência; ademais a eventual sentença prévia não seria invocável contra os demais credores, porque não constituiria quanto a eles caso julgado material. IV) O procedimento previsto no art.º 128º do CIRE é o meio processual suficiente e adequado a fazer valer o direito de crédito resultante do incumprimento de contrato promessa e a atribuir-lhe eventual preferência no caso de, nesse procedimento processual, se demonstrar o direito de retenção.”.

4. Diga-se, e por fim, que o direito de retenção – garantia real das obrigações – previsto com caráter genérico no art.º 754º do Código Civil, é especialmente conferido ao “beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art.º 442º”, vd. art.º 755º, n.º 1, alínea f), do Código Civil.
Importando assim que o credor reclamante de crédito, alegadamente titular de direito de retenção sobre fração autónoma apreendida para a massa insolvente, alegue, na sua reclamação, os factos substanciadores da promessa, da tradição, e do incumprimento que fundamentará o seu arrogado crédito.
Mas não só, pois, como frisa Miguel Lucas Pires,[10] “o direito de retenção pressupõe, como condição sine qua non do seu exercício, a posse da coisa objecto desse direito por parte do retentor”.
Referindo Maria Isabel Helbling Menéres Campos,[11] entre os requisitos cumulativos enunciados pela doutrina “tanto para a manutenção como para o nascimento do direito de retenção (…) em primeiro lugar, que alguém detenha licitamente uma coisa cuja entrega é devida a outrem”.
E, desde logo, assinalando Luís A. Carvalho Fernandes[12] que “O direito de retenção (…) pressupõe sempre a detenção da coisa que constitui a garantia do crédito.”, tanto assim que se extingue pela entrega da coisa, cfr. art.º 761º, do Código Civil.

Ora na reclamação de créditos do Recorrente – vd. folhas 64-68 – aquele limita-se, basicamente, e na parte que agora interessa, a invocar a aquisição, por via de cessão, de um crédito de E e F, no valor de 240.000,00€ sobre o insolvente, bem como do direito de retenção daqueles para garantia de tal crédito, sobre a fração autónoma em causa – designada pela letra “T” – e o reconhecimento, por decisão judicial transitada em julgado, daquele crédito e desse direito.
E que, “apesar de condenado ao pagamento o insolvente nada pagou.”.

Sendo tal reclamação absolutamente omissa quanto ao negócio jurídico no âmbito do qual ocorreu a tradição da fração autónoma.
Como também e desde logo quanto à própria retenção pelo Recorrente…e sua manutenção até que teve lugar a apreensão para a massa insolvente.
E, bem assim, no tocante à especificação do incumprimento contratual de que resultaria o crédito assim garantido pelo invocado direito de retenção.
Não colhendo a pretensão de fazer valer como alegação de factos a mera remissão para documentos juntos.

Posto o que sempre estaria a reclamação, e enquanto fundada no referido direito de retenção, votada ao fracasso.
*
Improcedem assim as conclusões do Recorrente.

III – Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelo Recorrente, que decaiu totalmente, nesta instância.
*
***
Lisboa, 2014-04-03

Ezagüy Martins


Maria José Mouro


[1] In “Direito Processual Civil Declaratório”, Vol. III, Almedina, 1982, págs. 383-384.
[2] Idem, pág. 385.
[3] Proc. 106/11.0TBCPV.P1.S1, Relator: SERRA BAPTISTA, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[4] Paulus, D.20.4.16: Nec res inter alios iudicata aliis prodesse aut nocere solet, também citado naquele Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça.
[5] A. A. de Castro,  in op. cit., pág. 386.
[6] In “Estudos Sobre o Novo processo Civil”, LEX, 1997, págs. 588 e seguintes.
[7] In R.O.A., Ano 66-2006 – Vol. II – Setembro 2006, Doutrina, “Sobre a prevalência, no apenso de reclamação de créditos, do direito de retenção reconhecido por sentença”, “Extensão subjectiva da eficácia da sentença sobre o direito de retenção” e “Legitimidade para impugnar o direito de retenção na acção de verificação e graduação de créditos”.

[8] Art.º 792º, n.ºs 4 e 5, no novo Código de Processo Civil.
[9] Proc. 235/11.0TBRNR-A.L1-6, Relator: ANTÓNIO MARTINS, in www.dgsi.pt/jtrl.nsf.              
[10] In “Dos privilégios creditórios: Regime jurídico e sua influência no concurso de credores”, Almedina, 2004, págs. 154-155.
[11] In “Da hipoteca – caracterização, constituição e efeitos”, Almedina, 2003, pág. 222.
[12] In “Lições de direitos reais”, 5ª ed., Quid Juris, 2007, pág. 160.

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