Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1006/14.8TYLSB.L1-6
Relator: MANUEL RODRIGUES
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
ENCERRAMENTO DO PROCESSO DE INSOLVÊNCIA
AÇÃO DE ANULAÇÃO DE DAÇÃO EM CUMPRIMENTO
EXTINÇÃO DA SOCIEDADE INSOLVENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/21/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE / REVOGADA
Sumário: I - A declaração de insolvência de uma sociedade comercial não determina, por si só, a extinção da instância de uma acção declarativa em que a insolvente seja ré.
II - O processo de insolvência pode ser encerrado antes do rateio final e, em tais situações a sociedade comercial ré não se considera extinta, podendo retomar a sua actividade (artigo 234º do CIRE).

III - É o caso do processo ser encerrado após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, a pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência, por insuficiência da massa insolvente ou quando todos os credores prestem o seu consentimento (artigo 230º, n.º 1, alíneas b) a e), do CIRE).

IV - O prosseguimento de uma acção declarativa de anulação de dação em cumprimento proposta contra ré insolvente não se pode considerar actividade inútil, por se destinar a expurgar da ordem jurídica actos ilegais e a proporcionar a tutela efectiva dos direitos do autor.

V - Declarada a insolvência da sociedade ré, na pendência da acção declarativa, os órgãos sociais da devedora mantêm-se em funcionamento (artigo 82º, n.º 1, do CIRE).

VI – Durante a pendência do processo de insolvência, a substituição processual da ré insolvente pelo administrador da insolvência só opera relativamente às acções sociais previstas no artigo 82º, n.ºs 3 e 4, do CIRE e naquelas em que se apreciem questões de natureza patrimonial relativas a bens integrantes da massa insolvente, cujo resultado possa influenciar o valor da massa (art.º 85º, n.ºs 1 e 3, do mesmo compêndio legal).

VII - Extinta a sociedade comercial insolvente, com o registo do encerramento do processo, após o rateio final (art.º 234º, n.º 3, do CIRE), as acções em que seja parte prosseguem os seus termos normais, após a extinção da pessoa colectiva, que se considera substituída pela generalidade dos sócios (artigo 162º, n.º 1, do CSC).
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - Relatório:
1. Alfredo … e outros intentaram, em 09/07/2014, a presente acção de processo comum de declaração, contra Banco Espírito Santo S.A. – Em Liquidação e R... S.A. peticionando:
a) Seja declarada nula e de nenhum efeito a dação em cumprimento celebrada entre os 1º e 2ª Réus, por escritura de 27 de Dezembro de 2012 e, consequentemente, decretado o regresso à titularidade da D… das 12 fracções autónomas objecto da dação em cumprimento;
b) Subsidiariamente, caso assim não se entenda, sejam os Réus condenados solidariamente a pagar aos Autores a quantia de € 720.000,00 correspondentes a 40% do prejuízo total de €1.800.000,00 e na proporção das respectivas quotas, a título de ressarcimento do prejuízo sofrido por estes com a referida dação e o correspondente enriquecimento sem causa por parte do 1º Réu (BES).
Alegaram, para tanto, a existência de vícios no negócio em causa (a dação impugnada não foi precedida de convocatória e de deliberação dos accionistas da ora 2ª Ré, o que era exigido por estar fora do seu objecto social, e foi outorgada por administrador único irregularmente nomeado).
2. Através de requerimento de 23/11/2012 (ref.ª Citius 2809440), o Réu Banco Espírito Santo S.A., Em Liquidação veio requerer que seja declarada extinta a instância quanto ao mesmo, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 277º al. e) do Cód. Proc. Civil.-
Alegou para o efeito, em síntese, que o Banco Central Europeu revogou a autorização do referido Banco para o exercício da actividade de instituição de crédito, sendo que, relativamente ao pedido principal, o mesmo revela-se impossível e destituído de utilidade jurídica relativamente ao referido Réu e que relativamente ao segundo, existe, face à situação de insolvência do BES, uma situação de inutilidade superveniente da lide.-
3. Em sequência, o Tribunal a quo convidou os Autores a esclarecerem se tinham interesse no prosseguimento da acção e a pronunciarem-se sobre a extinção dos autos por inutilidade superveniente da lide, face ao invocado pelo BES e à constatada declaração de insolvência da outra Ré.
4. Os Autores pronunciaram-se dizendo, em síntese, que mantém interesse na acção, pretendendo em primeira linha a nulidade do negócio e que o facto de as frações estarem agora registadas em nome do Novo Banco não vai prejudicar o pedido dos Autores.
5. O Réu BES, por requerimento apresentado em 02/02/2010 (ref.ª Citius 28094040) renovou o pedido de extinção da instância quanto ao mesmo.
6. Na sequência, em 27-02-2018 (ref.ª Citius 373967896), a Senhora Juíza a quo proferiu decisão que julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos e com os fundamentos que, no que aqui releva, se transcrevem:
«(…) O Réu Banco Espírito Santo S.A. (em liquidação) veio requerer que seja declarada extinta a instância quanto ao mesmo, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 277º al. e) do Cód. Proc. Civil.-
Alegou para o efeito, em síntese, que o Banco Central Europeu revogou a autorização do referido Banco para o exercício da atividade de instituição de crédito, sendo que, relativamente ao pedido principal, o mesmo revela-se impossível e destituído de utilidade jurídica relativamente ao referido R. e que relativamente ao segundo, existe, face à situação de insolvência do BES, uma situação de inutilidade superveniente da lide.-
O tribunal convidou os AA. a esclarecerem se tinham interesse no prosseguimento da ação e a pronunciarem-se sobre a extinção dos autos por inutilidade superveniente da lide, face ao invocado pelo BES e à constatada declaração de insolvência da outra R.-
Os AA. pronunciaram-se dizendo, em síntese, que mantém interesse na ação, pretendendo em primeira linha a nulidade do negócio e que o facto de as frações estarem agora registadas em nome do Novo Banco não vai prejudicar o pedido dos AA.-
2. Factos a considerar.
1 – Por deliberação datada de 13.07.2016, o Banco Central Europeu revogou a autorização para o exercício da atividade do Banco Espírito Santo S.A. (Cfr. processo n.º 18588/16.2T8LSB, J1, Juízo de Comércio de Lisboa).-
2 – A referida decisão implicou a dissolução e a entrada em liquidação do referido Banco (idem).-
3 – Em 21.07.2016 foi proferido, no âmbito do processo n.º 18588/16.2T8LSB, J1, Juízo de Comércio de Lisboa, despacho de prosseguimento (idem).-
4 - A R….S.A. foi declarada insolvente por sentença de 29.09.2015, transitada em julgado no Proc. n.º 2606/15.4T8LSB que corre os seus termos no J2 deste tribunal (consulta do processo em referência).-
3 – O atual titular dos imóveis dados em dação referidos na presente ação é o Novo Banco S.A. (acordo das partes).-
3. Fundamentos.
Face aos factos em apreço e não obstante a posição dos AA. verifica-se o seguinte: no que respeita aos bens, os mesmos encontram-se neste momento na titularidade de outra entidade que não nenhum dos RR. nos presentes autos. Assim sendo, o primeiro pedido formulado perdeu a sua utilidade e possibilidade, na sua parte final, desde logo no que respeita ao R. BES por ser ao mesmo impossível cumprir uma eventual condenação no que respeita ao primeiro pedido, na sua parte final e o tribunal impossibilitado de ordenar o regresso à titularidade a uma sociedade de bens que não estão atualmente na titularidade de qualquer das partes do processo. No que respeita ao segundo R. o pedido igualmente, nesta parte, não poderia ser procedente, face a essa impossibilidade por parte do Co- Réu e não presença na ação do atual titular dos bens.-
Alias o reconhecimento prático dessa situação é os AA. se encontrarem desde há longo tempo a negociar com o Novo Banco S.A. e não com os RR. no que respeita ao objeto da presente ação, como resulta da consulta dos requerimentos apresentados.-
No que concerne à declaração de nulidade e ainda em correlação com o supra referido, importa ter em atenção os efeitos sobre o devedor da declaração de insolvência previstos no art.º 88º do C.I.R.E., assumindo o administrador de insolvência a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência, não podendo pois os AA. sem mais, obter na presente ação a condenação dos RR. nos termos pretendidos e a declaração de nulidade de um negócio que foi celebrado antes da liquidação de um e da declaração de insolvência de outro e com efeitos na esfera de terceiro, como já dissemos não presente na ação.-
No que concerne ao segundo pedido, importa desde logo ter em consideração o decidido no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência 1/2014 do Supremo Tribunal de Justiça, tratando-se de um pedido de condenação no pagamento de um crédito, tendo este Acórdão decidido que: “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide”.-
Importa aqui não esquecer que nos termos do art.º 8º n.º 2 do Decreto-Lei 199/2006 de 25 de outubro: “A decisão de revogação da autorização (…) produz efeitos de declaração da insolvência”.-
Assim sendo, impõe-se concluir que a presente ação, deve ser declarada extinta por impossibilidade e inutilidade superveniente da lide.- Cfr. art.º 277º al. e) do C.I.R.E. (…)».
7. Inconformados com tal decisão, os Autores recorreram de apelação para este Tribunal da Relação, e, alegando, formularam as seguintes conclusões:
«1 - A acção foi proposta contra o BES mas quem a contestou foi o Novo Banco;
2 - A 8 de Fevereiro de 2016, o Novo Banco apresentou um requerimento a informar que “a responsabilidade em apreço nos presentes autos não transitou do BES para o Novo Banco”, concluindo que o BES deveria passar a figurar como Réu em substituição do Novo Banco;
3 - No entanto, as negociações que foram sido mantidas e que originaram algumas suspensões da instância motivadas pela possibilidade de alcançar um acordo, foram-no sempre com o Novo Banco;
4 - Para os Autores, ora recorrentes, o Novo Banco sempre foi parte no processo, razão pela qual manteve com esta entidade negociações com vista a chegar a um acordo;
5 - Atenta esta factualidade o tribunal a quo nunca deveria ter deferido o requerimento do Novo Banco, quando este, simultaneamente, e até em momento posterior, estava a negociar com os Autores um acordo que pusesse fim aos autos;
6 - Convém ainda não esquecer que o Novo Banco sucedeu ao BES como proprietário das fracções que foram objecto da dação; a nulidade da dação implicaria o regresso dos imóveis à titularidade do BES e consequentemente à titularidade da D…;
7 - Julgou erradamente o tribunal a quo ao decidir pela substituição do Novo Banco pelo BES;
8 - O tribunal a quo considerou em face da revogação da autorização pelo Banco de Portugal do BES e da declaração e insolvência da REIN que “fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado”;
9 - O pedido principal dos Autores foi que seja declarada nula e de nenhum efeito a dação em cumprimento entre o BES e a REIN e, consequentemente seja decretado o regresso à titularidade da D…das 12 fracções objecto da dação em cumprimento;
10 - Relativamente ao pedido principal os Autores apenas pretendem que a dação seja nula, o que nada tem que ver com créditos ou indemnizações;
11 – Era pedido ao tribunal que apurasse se a dação em cumprimento celebrada entre as Rés tinha sido precedida dos formalismos legais aplicáveis às sociedades comerciais, designadamente da D…, nomeadamente se tinha sido precedida de convocatória e de deliberação dos accionistas, o que era exigido por estar fora do seu objecto social e porque outorgada por administrador irregularmente nomeado;
12 - Entende-se que a apreciação desta matéria e a própria declaração de nulidade da dação em nada colidiria com a situação de insolvência das Rés;
13 - A declaração de nulidade do negócio não teria qualquer implicação ou reflexo nos credores dos Réus, uma vez que a titularidade das 12 fracções já não lhes pertencia;
14 - Deve este tribunal revogar a decisão recorrida, ordenando ao tribunal a quo que o processo prossiga.»
8. Contra-alegou o Réu Banco Espirito Santo, S.A. Em Liquidação (“BES”), pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
9. Foram colhidos os vistos legais.

II – Delimitação do objecto do recurso:
Nos termos do disposto nos artigos 635º, n.º 3 e 639º, n.º 1, ambos do CPC, o objecto do recurso delimita-se, em princípio, pelas conclusões do recorrente, sem prejuízo do conhecimento das questões de que cumpra apreciar oficiosamente, por imperativo do art.º 608, n.º 2., por remissão do n.º 2 do art.º 663º, do mesmo diploma legal.
Não haverá, contudo, que conhecer de questões cuja decisão se veja prejudicada pela solução que tiver sido dada a outra que antecedentemente se haja apreciado, salientando-se que, com as “questões” a resolver se não confundem os argumentos que as partes esgrimam nas respectivas alegações e que o Tribunal pode ou não abordar, consoante a utilidade que veja nisso, na medida em que o juiz não está sujeito às alegações das partes, no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5º, n.º 3, do CPC)[1].
Destarte, a questão suscitada que importa resolver é a de saber se o Tribunal a quo decidiu erradamente, com violação do disposto na línea e) do artigo 277.º do CPC, ao declarar extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, quando ao pedido principal (de declaração de nulidade da dação em cumprimento).
III – FUNDAMENTAÇÃO:
A) Motivação de  Facto:
1. A matéria de facto relevante para a decisão da causa é a que consta do relatório que antecede.
B) Motivação de Direito:
1. - Do erro de julgamento, por violação da alínea e) do artigo 277.º do Código de Processo Civil, quando ao pedido principal:
Insurgem-se os Recorrentes contra a decisão do Tribunal a quo que declarou a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, argumentando, em substância, que a fundamentação vertida na decisão em crise aplicar-se-á ao segundo pedido dos Autores, que relativamente ao pedido principal os Autores apenas pretendem que a dação seja declarada nula, o que nada tem que ver com créditos ou indemnizações. Trata-se apenas de o Tribunal apurar se a dação em cumprimento celebrada entre as Rés foi precedida dos formalismos legais aplicáveis às sociedades comerciais, designadamente à D…, nomeadamente se tinha sido precedida de convocatória e de deliberação dos accionistas, o que era exigido por estar fora do seu objecto social e porque outorgada por administrador irregularmente nomeado.
A irresignação dos Recorrentes cinge-se ao segmento decisório que declara a inutilidade superveniente da lide quanto ao pedido principal, pois entendem que, quanto ao este, - ao contrário do que sucede com o pedido indemnizatório subsidiário - a apreciação do mérito da causa e a própria declaração de nulidade da citação em nada colidiria com a situação de insolvência das Rés, que não teria qualquer implicação ou reflexo nos credores das Rés, uma vez que a titularidade das 12 fracções objecto de dação em cumprimento já não lhes pertencia, mas sim ao Novo Banco, S.A.
As disposições chave para a apreciação da questão objecto do presente recurso são os artigos 277º, alínea e), do CPC, 289.º do Cód. Civil, 141º, n.º 1, alínea e) e 162º do CSC e 82º e 85º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE)
Com efeito, a problemática em questão respeita aos (i) efeitos externos da situação de insolvência das sociedades Rés (BES e R…) e à (ii) substituição processual do insolvente.
Os efeitos processuais externos da declaração de insolvência compreendem o conjunto dos efeitos sobre as acções a propor ou pendentes em que o insolvente é parte (como autor ou como réu), ao passo que os efeitos processuais externos respeitam à tramitação (eminentemente executiva) subsequente à prolação da sentença, designadamente, a apreensão e liquidação dos bens e o pagamento aos credores.
Dispõe o artigo 85º, do CIRE, na redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto:
“1. Declarada a insolvência, todas as acções em que se apreciem questões relativas a bens compreendidos na massa insolvente, intentadas contra o devedor, ou mesmo contra terceiros, mas cujo resultado que possa influenciar o valor da massa, e todas as acções de natureza exclusivamente patrimonial intentadas pelo devedor são apensadas ao processo de insolvência, desde que a apensação seja requerida pelo administrador da insolvência, com fundamento na conveniência para os fins do processo.
2. O juiz requisita ao tribunal ou entidade competente a remessa, para efeitos de apensação aos autos da insolvência, de todos os processos nos quais se tenha efectuado qualquer acto de apreensão ou detenção de bens compreendidos na massa insolvente.
3. O administrador da insolvência substitui o insolvente em todas as acções referidas nos números anteriores, independentemente da apensação ao processo de insolvência e do acordo da parte contrária.”
A apensação é uma consequência do carácter universal e concursal do processo de insolvência, porquanto nele são apreendidos e liquidados todos os bens penhoráveis do insolvente e porque, independentemente da verificação do passivo, todos os credores devem ser chamados ao processo para nele e apenas nele (exclusividade da instância) obterem a satisfação dos seus créditos.[2]
Por tal motivo, as acções declarativas intentadas contra o insolvente, pendentes à data da declaração de insolvência, poderão seguir uma das seguintes vias: são apensadas[3] ao processo de insolvência, são suspensas ou extinguem-se.
A apensação de uma acção pendente contra o devedor insolvente ao processo de insolvência apenas ocorrerá a requerimento do administrador de insolvência e se o juiz entender que a mesma é conveniente para os fins do processo, tendo como vantagem o aproveitamento da actividade desenvolvida nas acções pendentes, por forma a serem consideradas na verificação do passivo.
Na havendo lugar à apensação, coloca-se de imediato a questão de saber se a declaração de insolvência de uma entidade (pessoa singular ou colectiva) importa a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, de uma acção declarativa em que é demandada essa mesma entidade, para efeitos de condenação no reconhecimento de um crédito.
No caso sub judice, atendendo à forma como os Autores configuram o pedido principal e os fundamentos da acção, está em causa uma acção de declaração de nulidade de dação em cumprimento, proposta contra duas sociedades comerciais declaradas insolventes.
Não foi requerida nem decidida a apensação da presente acção ao processo de insolvência em curso, nem se discutem na acção (atento o pedido principal) questões de natureza patrimonial susceptíveis de influenciar o valor da massa insolvente[4].
Ainda assim, suscita-se a questão de saber se a declaração de insolvência das Rés tornou ou não inútil o prosseguimento da lide, importando a extinção da instância.
A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objecto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência pretendida. Num e noutro caso, a solução do litígio deixa de interessar – além por impossibilidade de atingir o resultado visado; aqui por ele já ter sido atingido por outro meio.[5]
Vejamos.
Nos termos do preceituado na alínea e) do n.º 1 do artigo 141º do CSC, nos termos do qual “A sociedade dissolve-se nos casos previstos no contrato e ainda (…) pela declaração de insolvência da sociedade”.
As causas de dissolução concretizadas nesse preceito são imperativas.
Como refere Ricardo Costa[6], “de acordo com a fonte criadora temos causas legais - quando a lei determina que certo facto, por si só ou acompanhado por certos factos, conduz à dissolução, através de norma imperativa e inderrogável (seja nos estatutos, seja por deliberação) - e causas contratuais ou estatutárias - quando é a vontade dos sócios que, plasmada no pacto estatutário da sociedade, determina uma causa dissolutiva diferente da própria vontade dos sócios em dissolver a sociedade
Nas outras causas legais de dissolução da sociedade previstas nas alíneas a) a d) do artigo 141º do CSC «decurso do prazo fixado no contrato; deliberação dos sócios; realização completa do objecto social; e ilicitude superveniente do objecto contratual», à dissolução da sociedade segue-se a indigitação dos Liquidatários (membros da Direcção – cf. 151º, n.º 1, do CSC - e a fase da Liquidação e Partilha (artigos 146º a 159º do CSC).
Tal não sucede na dissolução imediata prevista na alínea e) do artigo 141º do CSC «declaração de insolvência da sociedade», uma vez que em consequência da declaração de insolvência o devedor fica privado dos poderes de disposição e de administração dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência (art.º 81º, n.º 1, do CIRE).
Por isso, em todas as acções patrimoniais pendentes em que o insolvente seja autor ou réu, o administrador da insolvência substitui automaticamente o insolvente, sem necessidade de qualquer habilitação, independentemente da apensação do processo e do acordo da parte contrária (artigo 85º, n.º 3, do CIRE).
O CIRE também atribui ao administrador da insolvência legitimidade exclusiva, na pendência do processo de insolvência, para propor e/ou fazer seguir as acções elencadas nos n.ºs 3 e 4 do artigo 82º do referido diploma legal. 
O artigo 82º do CIRE, sob a epígrafe «Efeitos sobre os administradores e outras pessoas», estabelece:
«1 - Os órgãos sociais do devedor mantêm-se em funcionamento após a declaração de insolvência, não sendo os seus titulares remunerados, salvo no caso previsto no artigo 227
2 - Os titulares dos órgãos sociais podem renunciar aos cargos logo que procedam ao depósito de contas anuais com referência à data da decisão de liquidação em processo de insolvência.
3 - Durante a pendência do processo de insolvência, o administrador da insolvência tem exclusiva legitimidade para propor e fazer seguir:
a) As acções de responsabilidade que legalmente couberem, em favor do próprio devedor, contra os fundadores, administradores de direito e de facto, membros do órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, independentemente do acordo do devedor ou dos seus órgãos sociais, sócios, associados ou membros;
b) As acções destinadas à indemnização dos prejuízos causados à generalidade dos credores da insolvência pela diminuição do património integrante da massa insolvente, tanto anteriormente como posteriormente à declaração de insolvência;
c) As acções contra os responsáveis legais pelas dívidas do insolvente.
4 - Compete unicamente ao administrador da insolvência a exigência aos sócios, associados ou membros do devedor, logo que a tenha por conveniente, das entradas de capital diferidas e das prestações acessórias em dívida, independentemente dos prazos de vencimento que hajam sido estipulados, intentando para o efeito as acções que se revelem necessárias.
5 - Toda a acção dirigida contra o administrador da insolvência com a finalidade prevista na alínea b) do n.º 3 apenas pode ser intentada por administrador que lhe suceda.
6 - As acções referidas nos n.ºs 3 a 5 correm por apenso ao processo de insolvência».
Decorre do referido normativo que se concentrou na instância insolvencial a apreciação das actuações dos gerentes ou administradores, de facto ou de direito, e dos fundadores, membro dos órgão de fiscalização do devedor e sócios, associados ou membros, perante a sociedade insolvente (n.º 3, alínea a), como corolário da perda de poder de disposição e de administração pelo insolvente (art.º 81º, n.º 1) e, perante os credores sociais, neste caso como consequência directa da exclusividade da instância solvencial para a reclamação dos créditos (art.º 82º, n.º 3, alíneas b) e c).
Estipula-se, assim, que na pendência do processo de insolvência, quem tem legitimidade ao abrigo do direito societário para propor as acções previstas no artigo 82º, n.º 3 do CIRE “sociedade, sócios e credores da sociedade”, encontra-se privado de legitimidade activa para propor e fazer seguir acção social de responsabilidade contra os gerentes ou administradores de facto ou de direito, afastando-se a aplicação do artigo 75º, n.º 1 do CSC, segundo o qual “a acção de responsabilidade proposta pela sociedade depende de deliberação dos sócios, tomada por simples maioria (…)”.
Da análise das supracitadas disposições legais decorre que o CIRE não contém normativo que preveja a substituição processual dos sócios pelo administrador da insolvência numa acção declarativa como a que aqui está em causa (nulidade/anulação de negócio jurídico).
A referida substituição só opera relativamente às acções sociais previstas no artigo 82º, n.º 3 e 4, do CIRE e naquelas em que se apreciem questões de natureza patrimonial relativas a bens integrantes da massa insolvente, cujo resultado possa influenciar o valor da massa (art.º 85º, n.ºs 1 e 3, do mesmo compêndio legal).
No caso vertente, está em causa uma acção de declaração de nulidade/anulação de negócio jurídico (dação em cumprimento), proposta contra duas sociedades comerciais em situação de insolvência.
A procedência do pedido de declaração de nulidade da dação em cumprimento, a ocorrer, com a consequente restituição à titularidade da D… das 12 fracções autónimas em poder do Novo Banco, S.A. nenhum reflexo teria na posição dos credores da Rés insolventes ou na própria massa insolvente.
Entendemos, por isso e sem necessidade de outros considerandos, que a presente acção deve prosseguir os seus termos normais, que a situação de insolvência das Rés não implica, de modo algum, a inutilidade superveniente da lide.
Como bem sustentam os Recorrentes, a apreciação do pedido principal e a eventual declaração de nulidade da dação em cumprimento em nada colidiria com a situação de insolvência das Rés, em nada afectaria a posição dos credores da insolvência, uma vez que as 12 fracções objecto da dação em cumprimento estão na titularidade do Novo Banco, S.A. e não integram o acervo patrimonial apreendido para a massa insolvente das Rés.
Acresce que, a ser declarada tal nulidade, pela eficácia retroactiva da declaração de nulidade (artigo 289º, n.º 1, do CC) tudo se passa como se o contrato não tivesse sido celebrado, ou produzido quaisquer efeitos, nessa medida se impondo inelutavelmente a restituição das aludidas 12 fracções autónomas à titularidade da D….
Como se ponderou no Acórdão desta Relação, de 20/05/2010, proc. 2541/03.9TCLRS.L1-6, disponível em www.dgsi.pt., “I-A impossibilidade ou inutilidade superveniente da lide pode verificar-se ou porque se extinguiu o sujeito, ou porque se extinguiu o objecto ou ainda porque se extinguiu a causa de pedir”.
Ora, nenhuma dessas hipóteses se verifica no caso vertente.
Só se verifica a inutilidade superveniente da lide quendo essa inutilidade for jurídica, pelo que não podemos considerar actividade inútil o prosseguimento de um processo de declaração de nulidade de negócio jurídico quando ele se destine a expurgar da ordem jurídica actos ilegais e a proporcionar a tutela efectiva dos direitos daqueles a quem o mesmo atinge.
A prossecução da acção é útil e possível, devendo seguir os seus trâmites normais, no que concerne ao pedido principal e só quanto a este, sem as dilações a que tem sido sujeita.
Diga-se, ainda, que o argumento, de natureza adjectiva, utilizado pela 1.ª instância, como óbice ao prosseguimento da acção, de que os efeitos a produzir pela eventual declaração de nulidade se iriam produzir na esfera de terceiro (NOVO BANCO) não presente na acção não pode colher na medida em que ao juiz compete “, dirigir activamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção (…)” bem como o “suprimento da falta de pressupostos processuais susceptíveis de sanação (…)” - cf. artigos 6.º, n.ºs 1 e 2 e 590.º, n.º 2, alínea a), do CPC.
Conclui-se, pois, que decisão recorrida é infundada, na parte em julgou extinta a instancia, por inutilidade superveniente, quanto ao pedido principal, tendo incorrido, neste segmento, em erro de interpretação e aplicação da alínea e) do artigo 277.º do CPC.
Procede, em consequência, a apelação, devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que determine o prosseguimento dos trâmites normais da acção, relativamente ao pedido principal (declaração de nulidade da dação em cumprimento das 12 fracções autónomas…).
IV – Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogar a decisão recorrida no segmento em que que julgou extinta a instância, por inutilidade superveniente da lide, relativamente ao pedido principal, e outrossim determinar que os autos prossigam os seus termos normais quanto a este pedido de declaração de nulidade da dação em cumprimento outorgada em o 1º e 2ª Réus e de consequente restituição à titularidade da D… das 12 fracções autónomas objecto daquela dação em cumprimento.
*
Custas pelas Rés (art.º 527º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
*
Registe e notifique.
*
Lisboa, 21 de Junho de 2018

Manuel Rodrigues

Ana Paula A. A. Carvalho

Maria Manuela Gomes


[1] Cf., entre outros, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 13/09/2007 (proc. n.º 07B2113) e de 08/11/2007 (proc. n.º 07B3586), consultáveis em www.dgsi.pt.
[2] Pedro Sousa Macedo, Manual do Direito das Falências, vol. II, p. 111, refere-se a este propósito a um efeito aglutinador do processo de insolvência – “todas as responsabilidades do falido são apreciadas pelo procedimento falimentar, no apenso de verificação do passivo”.
[3] A apensação vigora apenas na pendência do processo de insolvência. Encerrado o processo, a acção é desapensada do processo e remetida ao tribunal competente (art.º 233º, n.º 4, do CIRE).
[4] Se fosse esse o caso, a inutilidade superveniente da acção era para nós inquestionável, atento o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 1/2014, de 8 de Maio de 2013  (Conselheiro Manuel Augusto Fernandes da Silva), que fixou o seguinte entendimento:  “Transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a acção declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do artigo 287º do CPC” 
[5] Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Coimbra Editora, 1999, p. 512.
[6] Código das Sociedades Comerciais em Comentário, 2011, Vol. II, IDET, pág. 567).