Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1908/18.2T9FNC.L1-9
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: DIREITO AO RECURSO
LEGITIMIDADE
INTERESSE EM AGIR
CO-ARGUIDO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/01/2022
Votação: DECISÃO INDIVIDUAL
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REJEIÇÃO DO RECURSO
Sumário: I- O direito ao recurso pressupõe dois requisitos: legitimidade e interesse em agir. A legitimidade resulta directamente da norma legal que atribui esse direito e o interesse em agir é aferido pela necessidade de tutela dos interesses da pessoa visada, sendo analisado em função da posição concreta do sujeito em relação à decisão. Estamos aqui no domínio da materialização do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, do artigo 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa;
II- Assim um co-arguido não detém legitimidade para recorrer da absolvição de um outro co-arguido do pedido cível formulado contra ambos, sendo que a legitimidade para recorrer nestas situações pertencerá, em primeira linha, ao demandante e também ao Ministério Público, atento o disposto no artigo 401º, nº1 alíneas a) e c) e nº2, pois a decisão de absolvição de co-arguido não é proferida contra qualquer outro co-arguido, como exige a alínea b) do preceito, em relação ao recurso do arguido.;
III-As condenações de arguidos em situações de co-autoria, apenas respeitam a cada um dos arguidos individualmente considerados, não podendo ser aferido o direito ao recurso de cada um deles, pela repercussão que as mesmas possam ter na posição de cada um dos restantes co-arguidos, pois as decisões proferidas contra o arguido são aquelas que lhe imponham uma pena e ainda as proferidas contra o que tiver requerido;
IV-In casu, a absolvição do co-arguido não é contra o recorrente, nem contra algo que o mesmo tenha requerido, pelo que o aqui recorrente é um terceiro ilegítimo em relação a essa absolvição, não podendo substituir-se ao demandante no exercício do direito de recurso.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: DECISÃO SUMÁRIA

Efectuado exame preliminar dos autos supra identificados, nos termos do disposto no artigo 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, ambos do Código de Processo Penal afigura-se-nos que não pode este Tribunal da Relação conhecer do presente recurso, devendo o mesmo ser rejeitado.

I RELATÓRIO
No processo Comum Tribunal Singular nº 1908/18.2T9FNC, Tribunal Judicial da Comarca da Madeira, Juízo Local Criminal do Funchal - Juiz 2, por sentença de O4 de Julho de 2021, ao que esta decisão interessa, foi o arguido,
AA, casado, jornalista, nascido no dia ……………., filho de BB e de CC, natural da freguesia de São Pedro e concelho do Funchal, residente no ……………………., Funchal,
Condenado,
- pela autoria de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107°, n°s 1 e 2 e 105°, n°s 1 e 4 do RGIT, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de 8 (oito) euros, perfazendo um total de 640 (seiscentos e quarenta) euros, absolvendo-se o arguido DD e FF da co-autoria deste mesmo crime.
- Julga-se totalmente procedente o pedido de indemnização deduzido, mas apenas em relação ao demandado AA, condenando-se este demandado a pagar ao demandante "Instituto de Segurança Social da Madeira, IP-RAM" o valor de 11.114,68 euros (onze mil, cento e catorze euros e sessenta e oito cêntimos), acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, à taxa legal das dívidas à Segurança Social, contados em relação à data de vencimento de cada umas contribuições em mora, até integral pagamento, absolvendo-se do pedido o demandado ……………
*
Inconformado, o arguido AA, veio interpor recurso da referida sentença, com os fundamentos constantes da respectiva motivação (Ref. 39989983), concluindo nos seguintes termos: (transcrição)
A. O presente recurso vem interposto da sentença proferida pelo Juízo Local Criminal do Funchal – Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca da Madeira que julgou procedente o pedido de indemnização cível deduzido pela Demandante Instituto de Segurança Social da Madeira – IP-RAM, e que condenou o Demandado AA, a pagar-lhe € 11.114,68 (onze mil, cento e catorze euros e sessenta e oito cêntimos), acrescido de juros de mora à taxa legal das dívidas à Segurança Social, contados em relação à data de vencimento da cada uma das contribuições em mora, até integral pagamento, e absolvendo o Demandado DD e FF.
B. O tribunal a quo não cuidou de fundamentar a decisão de absolvição do co-Demandado ……………., referindo apenas que “não respondendo o coarguido …………. por ilícito criminal, não é, concomitantemente, responsável civil, pelo que será absolvido.”
C. O Recorrente confessou e justificou a falta de pagamento das contribuições devidas à Segurança Social como uma opção de gestão, tomada em conjunto com o outro gerente da sociedade comercial “Loja & Santos, Lda.”, atenta a falta de liquidez desta, a qual, de resto, veio a ser declarada insolvente por sentença proferida a 27.01.2016.
D. Os atos de gestão da sociedade eram praticados em conjunto pelo Recorrente e por ………………, pai do co-Demandado ………….., e que agia como procurador deste.
E. As testemunhas confirmaram que a gestão de facto da sociedade era levada a cabo pelo Recorrente e por …………., em substituição do filho.
F. O próprio ……………, ouvido como testemunha, declarou que foi ele e o ………….. que decidiram que iriam privilegiar o pagamento a outros credores, em detrimento da Segurança Social, e que o filho não interveio nessa decisão, sendo ele, com procuração do filho, quem o representava na gestão da sociedade.
G. Cumpre questionar se o gerente de direito …………, que mandatou o seu pai …………. para a gerência de facto, deve ou não deve ser solidariamente responsável pelo pagamento do pedido de indemnização civil deduzido pela Demandante, e também se a absolvição do crime implica per si a absolvição do pedido cível.
H. Dispõe o artigo 377.º, n.º 1 do CPP que “A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado (…)”.
I. “Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.” (cf. Assento 7/99 do Supremo Tribunal de Justiça).
J. O Recorrente discorda da sentença quando apenas afirma que “não respondendo o co-arguido …………. por ilícito criminal, não é, concomitantemente, responsável civil, pelo que será absolvido.”
K. Apesar dos factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação tributária – cujo incumprimento gera responsabilidade criminal – poderem ser parcialmente coincidentes, não podem ser confundidos os seus fins e regimes, pelo que a condenação no pedido cível deve fazer-se com base nas regras do direito civil e não da lei geral tributária ou do direito penal.
L. É a responsabilidade civil por factos ilícitos que constitui a causa de pedir fundamentadora do pedido de indemnização civil formulado pelo Instituto da Segurança Social da Madeira, IP-RAM.
M. Se se compreende que o co-arguido ………….. tenha sido absolvido da coautoria de um crime de abuso de confiança à Segurança Social, por inexistir dolo – o qual é elemento constitutivo do tipo legal –, já não se compreende a absolvição relativa à responsabilidade civil, cuja verificação se basta com a “mera culpa”.
N. Estando em causa responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, nos termos do artigo 483.º, n.º 1 do CC, e uma vez que o pedido civil que é deduzido e conhecido no processo-crime de abuso de confiança respeita à obrigação de indemnizar por danos causados, baseada na responsabilidade civil por facto ilícito e culposo, temos em crer que a sentença é nula no que respeita à absolvição do arguido ………….. do pedido de indemnização civil, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 379.º, n.º 1, al. c) do CPP.
O. ………… outorgou uma procuração ao seu pai,…………., através da qual conferiu poderes de representação. Esta procuração não pode nem deve servir como instrumento para o co-Demandado ……….. se desvincular da sociedade, discordando-se frontalmente da sentença quando defende o contrário.
P. “A questão da eventual existência de uma procuração enquadra-se no apuramento do exercício de facto da gerência, pois pode ser considerada como uma forma indirecta desse exercício.” (cf. Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo em 09/05/2001, Recurso n.º 25912).
Q. A sentença é clara quando conclui que “(…) também ……………, na perspectiva deste Tribunal, cometeu este crime.”
R. O Tribunal não pode condenar pela prática de um crime alguém que não está constituído como arguido nem vem acusado pela respectiva prática, mas não se compreende que se tenha abstido de subsumir os factos com relevo para a questão cível ao direito nem a tábua-rasa feita à procuração outorgada e aos poderes de representação conferidos.
S. O co-Demandado ………. é civilmente responsável pelo pagamento devido à Demandante Instituto de Segurança Social da Madeira – IP-RAM, pelo que deveria ter sido condenado solidariamente com o Recorrente.
T. Pelo exposto, deve a sentença proferida ser revogada na parte relativa à condenação no pedido cível e substituída por outra que condene o co-Demandado ……….. a pagar ao Demandante a quantia de € 11.114,68 solidariamente com o Recorrente. (fim de transcrição)
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Tal recurso não foi, inicialmente, admitido por despacho do Meritíssimo Juiz, (Ref. 50663152), com os seguintes fundamentos: (transcrição)
Requerimento de interposição de recurso de fls. 1020 e ss. – Compulsado o requerimento apresentado, designadamente as suas conclusões, mormente a última, conclui este Tribunal que o arguido AA interpõe o presente com o objectivo, não de ser total ou parcialmente absolvido, seja pelo crime, seja do pagamento da indemnização em que foi condenado, mas com o único e exclusivo propósito de que o co-arguido e co-demandado …………………, que foi de ambos absolvido, seja também condenado a pagar a indemnização em que é demandante o “Instituto de Segurança Social da RAM, EPE”.
Salvo o devido respeito por opinião contrária, o demandado AA não tem, em face do disposto no artº 401º, nº 1 do C. P. Penal, legitimidade para interpor um recurso com este objecto. De facto, só têm legitimidade para recorrer o arguido e o demandado cível contra decisões contra eles proferidas e não de decisões proferidas contra ou a favor de outrem. Quem tem legitimidade para recorrer contra a absolvição do demandado ……………… é, exclusivamente, quem o demandou, o “Instituto de Segurança Social da RAM, EPE”. Ora, tendo-se o demandante conformado com a absolvição do demandado ………………….., a sentença absolutória transita em julgado quanto a este, não podendo o co-demandado condenado ao pagamento de indemnização substituir-se ao demandante interpondo um recurso que este não quis interpor.
Apesar de se reconhecer que o ora recorrente tem um interesse reflexo na condenação do co-demandado, consistente em que este também responda solidariamente perante o credor, tal interesse reflexo não consente que se subverta, salvo melhor entendimento, a regra cristalina, patente no nº 1 do artº 401º do C. P. Penal, que é, reitera-se, só ter um demandado cível legitimidade para recorrer de sentença contra si proferida.
Pelo exposto, não se admite o recurso interposto por AA, por falta de legitimidade, atento o objecto do seu recurso, para recorrer. Notifique. (fim de transcrição)
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Após reclamação do recorrente AA, o recurso veio a ser admitido em obediência ao despacho da Exma. Desembargadora Presidente deste Tribunal da Relação de Lisboa (Ref. 17952787 no Apenso).
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O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal de Relação limitou-se a apor o seu visto por entender que o recurso se reporta “(…)ao domínio cível (pedido indemnizatória e sua extensão subjectiva), carece o MºPº de legitimidade para, naquele contexto temático, intervir, respondendo e, agora, emitir Parecer, do que nos absteremos”.
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Não foi cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal por desnecessidade.

II FUNDAMENTAÇÃO
1. O arguido AA vem, nos presentes autos, recorrer da absolvição do co-arguido PP……………….., do pedido de indemnização civil formulado contra ambos pelo Instituto de Segurança Social da RAM, EPE.
Vejamos.
O artigo 401º, nº 1, al. b), do Código de Processo Penal estatui que:
1 — Têm legitimidade para recorrer:
(...)
b) O arguido e o assistente, das decisões contra eles proferidas.
2 — Não pode recorrer quem não tiver interesse em agir.
Da leitura do preceito resulta inequívoco que o direito ao recurso pressupõe dois requisitos: legitimidade e interesse em agir.
A legitimidade resulta directamente da norma legal que atribui esse direito e o interesse em agir é aferido pela necessidade de tutela dos interesses da pessoa visada, sendo analisado em função da posição concreta do sujeito em relação à decisão. Estamos aqui no domínio da materialização do acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva dos direitos e interesses legalmente protegidos, do artigo 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa.
Como refere doutamente o Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 18 de outubro de 2000, “Como flui explicitamente da lei (art.º 401.º, do CPP), dois dos requisitos de que depende a admissão de um recurso penal são a "legitimidade" e o "interesse em agir" de quem lança mão de tal expediente. A "legitimidade" consubstancia-se na posição de um sujeito processual face a determinada decisão proferida no processo, justificativa da possibilidade de a impugnar através de um dos recursos tipificados na lei. Ou seja: diz-se parte legítima aquela que pode, segundo o Código, recorrer de uma determinada decisão judicial. Trata-se, portanto, aqui, de uma posição subjectiva perante o processo, que é avaliada "a priori". Outra coisa diferente é o "interesse em agir", que consiste na necessidade de apelo aos tribunais para acautelamento de um direito ameaçado que precisa de tutela e só por essa via se logra obtê-la. Portanto, o interesse em agir radica na utilidade e imprescindibilidade do recurso aos meios judiciários para assegurar um direito em perigo. Trata-se, portanto, de uma posição objectiva perante o processo, que é ajuizada "a posteriori"”.[1]
Perante este entendimento, com o qual concordamos, não logramos descortinar como pode um co-arguido ter legitimidade para recorrer da absolvição de um outro co-arguido do pedido cível formulado contra ambos.
É indiscutível que a legitimidade para recorrer nestas situações é, em primeira linha, do demandante e também do Ministério Público, atento o disposto no artigo 401º, nº1 alíneas a) e c) e nº2.
A decisão de absolvição de co-arguido não é proferida contra qualquer outro co-arguido, como exige a alínea b) do preceito, em relação ao recurso do arguido. As condenações de arguidos em situações de co-autoria, apenas respeitam a cada um dos arguidos individualmente considerados, não podendo ser aferido o direito ao recurso de cada um deles, pela repercussão que as mesmas possam ter na posição de cada um dos restantes co-arguidos.
Como refere Germano Marques da Silva, tentando densificar a expressão “contra eles proferidas” utilizada pelo legislador no preceito, considera que as decisões “proferidas contra o arguido são aquelas que lhe imponham uma pena e ainda as proferidas contra o que tiver requerido”.[2]
Ora, no caso em apreço a absolvição do co-arguido não é contra o recorrente, nem contra algo que o mesmo tenha requerido.
A absolvição do co-arguido é contra o demandante Instituto de Segurança Social da RAM, EPE. e é este quem tem legitimidade e interesse em agir para recorrer.
O aqui recorrente é um terceiro ilegítimo em relação a essa absolvição, não podendo substituir-se ao demandante no exercício do direito de recurso.
Verdadeiramente, o co-arguido recorrente está a pretender zelar e defender interesses que não são seus, nem estão na sua disponibilidade, a saber, a cobrança dos montantes em falta ao Instituto de Segurança Social da RAM, EPE. É este quem tem legitimidade para defesa desses interesses, como resulta do Decreto Legislativo Regional n.º 34/2012/M de 16 de Novembro de 2012.
O eventual interesse reflexo que o co-arguido reclama na sua motivação, não lhe confere legitimidade para recorrer, atento o que ficou dito anteriormente sobre o artigo 401º do Código de Processo Penal.
Assim, não tendo o recorrente legitimidade e tendo em conta que a decisão de admissão não vincula este tribunal de recurso (artigo 414º, nº 3 do Código de Processo Penal), o mesmo não é admissível devendo, por isso, ser rejeitado.

III DECISÃO
Em face do exposto e, ao abrigo do disposto nos artigos 401º, nº1, al. b), nº2, 414.º, n.ºs 2 e 3, 417.º, n.º 6, alínea b) e 420.º, n.º 1, alínea b), e 2, todos do Código de Processo Penal, decide-se pela rejeição do recurso por falta de legitimidade do recorrente.
Fixo em 3UCs a taxa de justiça devida e em 3UCs a taxa a que alude o artigo 420.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
Notifique.

Antero Luís
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[1] Transcrito no acórdão de 8 de Outubro de 2008, Proc. nº 08P2283, disponível em www.dgsi.pt
[2] In Direito processual Penal Português, Do Procedimento, Vol.3, pág. 313, Universidade Católica Editora, Lisboa 2015.