Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1248/16.1T8BRR.L1-7
Relator: MARIA DA ASSUNÇÃO RAIMUNDO
Descritores: PROCESSO ESPECIAL DE REVITALIZAÇÃO
PLANO DE RECUPERAÇÃO
HOMOLOGAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/24/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I-O Processo Especial de Revitalização não foi criado para o consumidor em geral, mas para os agentes económicos que, em situação económica frágil, se propõem ainda impulsionar e revitalizar a sua atividade com vista ao desenvolvimento coletivo.
O regime específico da insolvência dos devedores não empresários reside na possibilidade de apresentação de um plano de pagamentos aos credores inserido no Título IX do CIRE.
II-Decorre do disposto no n.º 5, do art. 17.º-F, que “o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação (...), aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no Título IX, em especial, o disposto nos artigos 215.º e 216º”. Logo, o princípio da igualdade de credores, inserido naquele Título, está configurado como uma regra não negligenciável aplicável ao conteúdo do plano de revitalização.
III-Entre os princípios a que deve obedecer o plano de recuperação conta-se o princípio da igualdade dos credores que se acha consagrado no art. 194, nº 1, “ex vi” art. 17-F nº 5, onde se dispõe que “O plano (…) obedece ao princípio da igualdade dos credores (…), sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas.”
Neste preceito procurou acolher-se as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzidas na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto.

(Sumário da responsabilidade da Relatora)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, do Tribunal da Relação de Lisboa.



Relatório:


No Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Instância Central do Barreiro, 2ª Secção do Comércio, Juiz 2, corre termos o presente processo especial de revitalização requerido por Sandra ... ... ....

Decorridos os tramites legais, foi proferida sentença de homologação do plano de revitalização nos seguintes termos:

“…  Concluídas as negociações, foi colocado à votação o plano apresentado pela devedora, tendo votado credores representando 71,91% dos créditos constantes da lista definitiva de credores.
Votou favoravelmente o plano de recuperação um credor representando 70,76% dos créditos não subordinados relacionados na lista definitiva de credores (não existindo, de resto, créditos subordinados).
Votaram contra o plano de recuperação credores representando 28,09% dos créditos relacionados na lista definitiva. (…)
No caso concreto, a lista provisória de créditos transformou-se em lista definitiva por falta de impugnação. Assim, o quórum de aprovação é o correspondente a mais de dois terços da totalidade dos créditos constantes na lista definitiva, compreendendo mais de metade dos créditos não subordinados relacionados – art. 212º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas com as devidas adaptações.
Ora, o plano foi votado por credores cujos créditos representam pelo menos um terço do total dos créditos relacionados com direito de voto (70%, mais precisamente), e recolheu o voto favorável de mais de dois terços da totalidade dos votos emitidos e mais de metade dos votos emitidos corresponda a créditos não subordinados (foram mais de 71% da totalidade), não se considerando como tal as abstenções.
Não ocorre violação não negligenciável de normas procedimentais ou aplicáveis ao conteúdo do plano que impeçam a sua homologação, não prevendo este quaisquer condições suspensivas ou quaisquer atos ou medidas que devem preceder a homologação (art. 215º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa aplicável ex vi art.º 17.º-F n.º 5 in fine do mesmo diploma).
Assim sendo, nada obstando e tendo em conta o disposto no art.º 17.º-F n.º 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, deverá o plano de revitalização ser homologado.
Pelo exposto, nos termos do artigo 17.º-F, n.ºs 5 e 6 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, homologo por sentença, o plano de revitalização da devedora Sandra ... ... ....”

Inconformada com a decisão recorreu a credora ..., SUCURSAL DA S.A. FRANCESA, concluindo as suas alegações de recurso nos seguintes termos:

A.-Na sequência das negociações entre Devedora e Credores – às quais a aqui Recorrente aderiu – foi apresentado plano de pagamentos com vista à revitalização o qual foi votado desfavoravelmente pela aqui Credora e pelo Credor Santander Totta e votado favoravelmente pelo Credor Caixa Geral de Depósitos, credor hipotecário.
B.-Pelo que em 25/10/2016 foi proferida sentença homologatória do plano de pagamentos aprovado com vista à revitalização dos Devedores, por 71,91% dos votos.
C.-O Plano de pagamentos apresentado pelos Devedores no que respeita ao Credor Hipotecário – Caixa Geral de depósitos S.A. – prevê:
D.-Para os Créditos Garantidos:
E.-Pagamento do empréstimo até ao ano de 2032
F.-Spread: 2,125%
G.-Taxa de Juro EUR 360 6M;
H.-Para os créditos comuns: (contrato de mútuo com promessa de hipoteca e fiança)
I.-Realização da escritura de hipoteca no mês seguinte à sentença de homologação do plano de revitalização, em data a indicar pela Caixa Geral de Depósitos, S.A.
J.-Manutenção das demais condições contratualizadas.
K.-Para os restantes credores comuns e credor subordinado o plano de pagamentos implicava:
L.-Perdão de 70% dos valores reclamados e reconhecidos e o pagamento dos restantes 30% em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas.
M.-A primeira prestação vence-se no mês seguinte à data da sentença de homologação do plano especial de revitalização.
N.-Nos termos do artigo 212.º, n.º2, alínea a) do CIRE não conferem direito de voto os créditos que não sejam modificados pela parte dispositiva do plano.
O.-No caso em apreço e no que respeita ao crédito da Caixa Geral de Depósitos S.A., credor hipotecário as únicas alterações ao contrato inicial previstas no plano de pagamentos apresentado são referentes ao prazo e spread que não comportam para aquela entidade qualquer redução do crédito ou constrangimento à sua cobrança, razão pela qual o voto de tal entidade não pode entrar no cômputo do quórum deliberativo, pela singela razão que nem sequer tinha direito de voto.
P.-Pelo que, e salvo o devido respeito, não poderia o Credor Caixa Geral de Depósitos S.A. ter tido expressão no mapa de votação do plano – cfr. artigo 212.º, n.º2, alínea a) do CIRE.
Q.-O que, considerando que o plano de pagamento dos Devedores foi aprovado com o voto maioritário do Credor Caixa Geral de Depósitos, S.A., implicaria que o mesmo tivesse sido recusado, por não se verificar existência de quorum necessário à sua aprovação.
R.-Acresce que o Plano de pagamentos apresentado pela Devedora não deveria igualmente ter sido alvo de homologação por ser claramente discriminatório no que respeita aos diversos créditos comuns.
S.-Efetivamente, e conforme supra mencionado o plano apresentado pela Devedora prevê condições diferentes para o crédito comum da generalidade dos credores e para o crédito comum da Caixa geral de Depósitos, credor hipotecário.
T.-Para a mesma tipologia de créditos o plano apresentado prevê assim condições claramente diferenciadas de pagamento em clara violação do disposto no artigo 194.º do CIRE.
U.-Inexistindo qualquer razão justificativa para a diferenciação entre os diversos credores comuns ou consentimento ainda que tácito dos restantes credores para esse tratamento mais favorável.
V.-O credor diferenciado Caixa Geral de depósitos votou de forma favorável o plano apresentado.
W.-Sendo que, salvo melhor opinião, tal tratamento diferenciado teve somente como intuito conseguir o voto favorável daquele credor, voto esse sem o qual o plano de pagamentos teria sido recusado.
X.-Não sendo, contudo, no entender da Recorrente, tal circunstância justificação suficiente para a discriminação entre os credores.
Y.-Ao abrigo do artigo 215.º do CIRE, deveria ter o tribunal a quo decidido pela não homologação do Plano Especial de Revitalização porquanto do mesmo consta uma violação inequívoca e não negligenciável das regras procedimentais, maxime o príncipio da igualdade entre os credores,
Z.-Pelo exposto – e porque o plano de recuperação apresentado pelos Devedores não deveria ter sido alvo de homologação pelo douto Tribunal a quo – deverá tal decisão ser revogada.
Termos em que, Venerandos Senhores Juízes Desembargadores, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, assim, ser revogada a decisão proferida pelo tribunal a quo de homologação do plano de recuperação apresentado.
A requerida apresentou contra alegações e, em resumo, conclui que a sentença recorrida salvaguarda os interesses de todas as partes e não padece de quaisquer vícios.
Termina pela manutenção do decidido.

Foram dispensados os vistos ao abrigo do art. 657 nº4 do Código de Processo Civil.

Cumpre apreciar e decidir:
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De acordo com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. a título de exemplo os Acórdãos do S.T.J. de 2/12/82, BMJ nº 322, pág. 315; de 15/3/2005, Proc. nº 04B3876; de 11/10/2005, Proc. nº 05B179; de 25-5-2010, Proc. nº 8254/09.0T2SNT.L1.S1; e de 30-6-11, Proc. nº 527/05.8TBVNO.C1.S1, todos publicados nas Bases de Dados Jurídicos do ITIJ), o âmbito do recurso determina-se em face das conclusões da alegação do recorrente pelo que só abrange as questões aí contidas, como resultava dos arts. 684 nº3 e 685-A nº1 do Cód. Proc. Civil e continua a resultar das disposições conjugadas dos arts. 635 nº 4, 637 nº2 e 639 do N. Cód. Proc. Civil.

Nesta conformidade, a recorrente coloca à apreciação deste tribunal as seguintes questões:
1.O plano apresentado pela Devedora prevê condições diferentes para o crédito comum da generalidade dos credores e para o crédito comum da Caixa geral de Depósitos, credor hipotecário (?).
2.Em clara violação do disposto no artigo 194.º do CIRE (?). Inexistindo qualquer razão justificativa para a diferenciação entre os diversos credores comuns ou consentimento ainda que tácito dos restantes credores para esse tratamento mais favorável (?).
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O processo especial de revitalização, claramente definido no art. 17-A do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE – diploma de que serão todas as disposições legais citadas sem menção de origem), tem a finalidade de permitir ao devedor que, comprovadamente, se encontra em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente, mas que ainda seja suscetível de recuperação, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com este acordo conducente à sua revitalização.

Assim, concluindo-se as negociações, o plano de recuperação apresentado considera-se aprovado quando venha a reunir a maioria dos votos prevista no nº. 1 do artº. 212 - aprovação de um plano de recuperação no âmbito de um processo de insolvência -, sendo o quórum deliberativo calculado com base nos créditos relacionados contidos na lista a que se referem os nºs 3 e 4 do art. 17-D.

Operada a votação e aprovação do Plano de Revitalização, por parte dos credores, cabe ao Juiz, no prazo de dez dias a contar da receção do mesmo - artº. 17º-F, nºs. 5 e 6 – apreciar o Plano aprovado, aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do Plano de Insolvência previstas no título IX do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas, em especial, nos arts. 215 e 216.

Decorre dos referidos arts. 215 e 216 o dever de o Juiz recusar a homologação do plano de recuperação aprovado, caso seja confrontado com situações de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda nos casos em que não sendo o proponente do Plano o devedor, este solicite ao juiz a recusa da homologação mediante as justificações expressas naquele ultimo normativo.

Normas procedimentais são, pois, todas aquelas que regem a atuação e desenvolvimento do processo e, bem assim, as relativas ao modo como ele deve ser elaborado e apresentado. Normas relativas ao conteúdo serão, por sua vez, todas as respeitantes à parte dispositiva do Plano, mas, além delas, ainda aquelas que fixam os princípios a que ele deve obedecer imperativamente e as que definem os temas que a proposta deve contemplar.

A primeira questão que nos é colocada prende-se com as normas relativas ao conteúdo, devendo o requerente, ao abrigo do art. 216 nº1, demonstrar em termos plausíveis, em alternativa, que a) a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, designadamente face à situação resultante de acordo já celebrado em procedimento extrajudicial de regularização de dívidas; b) O plano proporciona a algum credor um valor económico superior ao montante nominal dos seus créditos sobre a insolvência, acrescido do valor das eventuais contribuições que ele deva prestar.

Ora a recorrente vincando embora, que o plano em causa, prevê:

A)-para o crédito comum da CGD:
- Pagamento do empréstimo até ao ano de 2032
- Spread: 2,125%
- Taxa de Juro EUR 360 6M;
- Realização da escritura de hipoteca no mês seguinte à sentença de homologação do plano de revitalização, em data a indicar pela Caixa Geral de Depósitos, S.A.;
- Manutenção das demais condições contratualizadas; (conclusões D a J).

B)-e que o mesmo plano, para os restantes credores comuns e credor subordinado, prevê:
-Perdão de 70% dos valores reclamados e reconhecidos e o pagamento dos restantes 30% em 120 prestações mensais, iguais e sucessivas.
-Vencendo-se a primeira prestação no mês seguinte à data da sentença de homologação do plano especial de revitalização, (conclusões K a M),
esquece-se de alegar/concluir/demonstrar que a sua situação, ao abrigo do plano apresentado, é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano.

Na verdade, o nº1 al. a), do art. 216, impõe ao interessado demonstrar em termos plausíveis, que a sua situação ao abrigo do plano é previsivelmente menos favorável do que a que interviria na ausência de qualquer plano, sendo certo que não há conhecimento da situação a que alude ultima parte da referida norma.

Porém, como se disse, a recorrente não o fez e limitou-se a assinalar o tratamento diferenciado entre o seu crédito e o crédito da instituição bancária CGD.

Com efeito o que substancialmente importa para efeitos da referida norma é a comparação entre a situação emergente da homologação do plano e a que interviria na sua ausência. Ora esses elementos não foram trazidos aos autos pela recorrente.

Contudo, apreciando plano junto a fls. 65 e 66, constatamos que todos os créditos da devedora são da mesma natureza e que a recorrente integra o grupo de credores com tratamento idêntico, grupo que, excluindo apenas a CGD, sofre um corte de 70% nos seus créditos e que o montante restante - 30% - levará 10 anos a pagar.

A recorrente, não demonstrado o seu favorecimento com a não homologação do PER, esquece que o espírito que presidiu à criação deste tipo de processo especial foi não só assegurar a recuperação do devedor, mas também cuidar da satisfação dos interesses dos seus credores por forma a evitar o desaparecimento de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo considerável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais. – cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, em “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado” pág. 143.

A recorrente nem perspetivou como seriam pagos os seus créditos (ou de todo o grupo de credores a que pertence) se a recorrida estivesse em franca situação de insolvência, face ao crédito relevante da CGD, tendo em consideração o privilégio que esta beneficia (…)

Mas tendo em conta a disposição do art. 215, apreciemos de per si a situação da devedora, bem como a motivação do plano de revitalização que elaborou, por forma aferir a alegada violação do art. 194.

Retira-se do requerimento inicial do presente processo que “a requerente é motorista de serviço publico na Companhia Carris de Ferro de Lisboa, SA, auferindo o vencimento base de 746,30€ (…) a requerente não obstante todos os esforços, encontra-se atualmente numa situação económica fragilizada, o que inviabiliza o acesso ao crédito ou liquidez que lhe permita efetuar o pagamento das suas dívidas”. (artigos 3º e 4º).

Por isso, no Plano de Revitalização que apresentou aos autos, fundamenta as medidas planeadas nos seguintes termos: “… Face aos parcos rendimentos da requerente, bem como do elevado volume de crédito concentrado no credor hipotecário não tem a devedora outra alternativa senão propor o perdão de 70% dos créditos comuns.
Pelo que, só assim, a devedora conseguirá honrar os seus compromissos, tendo em conta os seus parcos rendimentos, que são absorvidos em grande parte pelo pagamento do crédito habitação, constituído para adquirir a sua casa de morada de família.
A enorme relevância assumida pelo credor hipotecário, conduziu a aplicação de perdão de 70% aos demais credores comuns…” – cfr. fls. 65

É notório que a devedora apresenta uma motivação exclusivamente pessoal, em defesa dos seus interesses financeiros e bem estar individual, servindo-se de um processo que não foi criado para o consumidor em geral, mas para os agentes económicos que, em situação económica frágil, se propõem ainda impulsionar e revitalizar a sua atividade com vista ao desenvolvimento coletivo.

Com efeito, se consultarmos a Proposta de Lei nº 39/XII, que originou a Lei nº 16/2012, de 20 de Abril, que, por seu turno, consagrou o processo especial de revitalização encontramos na exposição de motivos que “o processo especial de revitalização pretende assumir-se como um mecanismo célere eficaz que possibilite a revitalização de devedores que se encontrem em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente mas que ainda não tenha entrado em situação de insolvência atual. A presente situação económica obriga, com efeito, a gizar soluções que sejam, em si mesmas, eficazes e suficientes no combate ao “desaparecimento” de agentes económicos, visto que cada agente que desaparece representa um custo apreciável para a economia, contribuindo para o empobrecimento do tecido económico português, uma vez que gera desemprego e extingue oportunidades comerciais que, dificilmente, se podem recuperar pelo surgimento de novas empresas”.

Por sua vez, Paulo Olavo e Cunha[1] secunda este mesmo entendimento quando menciona que “O PER é exclusivamente aplicável a empresas, só para estas fazendo sentido. Com efeito, e apesar de os arts. 17.º-A e seguintes serem omissos sobre eventuais restrições à aplicação do procedimento a pessoas singulares que não sejam titulares de empresas, a recuperação a empreender com este procedimento visa essencialmente salvaguardar e viabilizar uma empresa, sendo suficiente aplicar o plano de insolvência ao devedor que que seja pessoa singular, visto que a sua situação patrimonial é, por definição, estática relativamente à de uma empresa, em que as variações patrimoniais são constantes. Consideramos, pois, o PER aplicável às empresas, incluindo as de titularidade individual, e diferenciando, assim, as empresas (singulares e coletivas) das pessoas singulares que não são titulares de empresas no acesso a este procedimento de revitalização. Esta contraposição – que agrega as empresas, independentemente da titularidade do seu capital social – não deve surpreender, por não ser inédita no quadro do Código da Insolvência, que reserva certas medidas às situações em que da massa insolvente faça parte uma empresa, ainda que esta seja individual (cfr. arts. 223.º a 229.º).”

Face ao que se acaba de expor, os motivos/fundamentos do Plano de Revitalização em apreço é, desde logo, desprovido objeto válido para os efeitos do art.17-A, sendo certo que “o regime específico da insolvência dos devedores não empresários (…) reside na possibilidade de apresentação de um plano de pagamentos aos credores (…)[2].

Mas não fora esta realidade pessoal da devedora, desajustada ao objeto do presente processo, também o Plano de Revitalização que apresenta, revela, com grande evidência, um tratamento desigual entre os credores, em clara violação do princípio da igualdade consignado no art. 194.

Apreciando de novo o plano junto a fls. 65 e 66, constatamos que todos os créditos da devedora são da mesma natureza e que a recorrente integra o grupo de credores com tratamento idêntico, grupo que, excluindo apenas a CGD, sofre um corte de 70% nos seus créditos e que o montante restante - 30% - levará 10 anos a pagar.

Ou seja, o credor CGD, não sofre qualquer corte do seu capital, sendo certo que é o maior credor. E a justificação que a devedora encontra para tal tratamento diferenciado é “a manutenção da sua casa de morada de família”.

Dispõe o art. 194:
1-O plano de insolvência obedece ao princípio da igualdade dos credores da insolvência, sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas.
2-O tratamento mais desfavorável relativamente a outros credores em idêntica situação depende do consentimento do credor afetado, o qual se considera tacitamente prestado no caso de voto favorável.
3-É nulo qualquer acordo em que o administrador da insolvência, o devedor ou outrem confira vantagens a um credor não incluídas no plano de insolvência em contrapartida de determinado comportamento no âmbito do processo de insolvência, nomeadamente quanto ao exercício do direito de voto.

E decorre do disposto no n.º 5, do art. 17.º-F, que “o juiz decide se deve homologar o plano de recuperação (...), aplicando, com as necessárias adaptações, as regras vigentes em matéria de aprovação e homologação do plano de insolvência previstas no Título IX, em especial, o disposto nos artigos 215.º e 216º”. Logo, o princípio da igualdade de credores, inserido naquele Título, está configurado como uma regra não negligenciável aplicável ao conteúdo do plano de revitalização.

Assim sendo, voltando ao Plano dos autos, constata-se, desde logo que o tratamento diferenciado dado à CGD não foi fundado por razões objetivas (nº1 do art. 194), mas teve em consideração a manutenção de um “modus vivendi”, consubstanciado na manutenção de um crédito à habitação à custa de um corte (perdão) de 70% dos restantes créditos (créditos que, como resulta da lista de créditos junta aos autos, resultam de mútuos, à exceção do crédito à NOS que é de prestação de serviços).

Decorre dos referidos arts. 215 e 216 o dever de o Juiz recusar a homologação do plano de recuperação aprovado, caso seja confrontado com situações de violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo, qualquer que seja a sua natureza, e ainda nos casos em que não sendo o proponente do Plano o devedor, este solicite ao juiz a recusa da homologação mediante as justificações expressas naquele ultimo normativo.

Como já referimos,são não negligenciáveis todas as violações de normas imperativas que acarretem a produção de um resultado que a lei não autoriza. Diversamente, são desconsideráveis as infrações que atinjam simplesmente regras de tutela particular que podem, todavia, ser afastadas com o consentimento do protegido.
Verdadeiramente do que se trata, para decidir se ela justifica ou não a recusa de homologação de um plano aprovado pelos credores, é de avaliar a relevância, ou não, da violação constatada.” – cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, em “Código da Insolvência e Recuperação de Empresas Anotado”, 2ª edição, pág. 826

Convenhamos que um perdão de 70% do capital, seguido do pagamento dos restantes 30% durante 10 anos, constitui um quadro de um enorme prejuízo para os credores visados, nomeadamente a recorrente, parecendo-nos inaceitável que a devedora se “livre” das suas dívidas à custa dos seus credores.

Verifica-se no referido tratamento e para a mesma classe de credores, uma clara violação do princípio consignado no art. 194.

Ora entre os princípios a que deve obedecer o plano de recuperação conta-se o princípio da igualdade dos credores que se acha consagrado no art. 194, nº 1, “ex vi” art. 17-F nº 5, onde se dispõe que “O plano (…) obedece ao princípio da igualdade dos credores (…), sem prejuízo das diferenciações justificadas por razões objetivas.”

Neste preceito procurou acolher-se as duas facetas em que se desdobra o princípio da igualdade, traduzidas na necessidade de tratar igualmente o que é semelhante e de distinguir o que é distinto.

Como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15-9-2015, Proc. nº 2438/14.7T8OAZ.P1, em www.dgsi.pt: “Os valores subjacentes ao princípio da igualdade não podem deixar de se correlacionar com critérios de proporcionalidade, mesmo na diferença admissível entre as soluções encontradas para créditos de natureza igualmente diversa. De qualquer modo, não pode deixar de se realçar que o princípio da igualdade dos credores configura-se como uma trave basilar e estruturante do plano de recuperação e, por conseguinte, a sua afetação traduz-se, seja qual for a perspetiva, numa violação grave, não negligenciável, das regras aplicáveis”. (sublinhado nosso).

Ora, na linha do que temos vindo a expor, há a concluir que o plano de recuperação aprovado nos autos ofende o princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio da igualdade. Há uma desoneração de 70% das dívidas de todos os credores à exceção de um. E a justificação de tal tratamento é claramente subjetiva e do âmbito pessoal da requerente[3].

Deste modo, com fundamento no art. 215º, por violação não negligenciável de norma aplicável ao conteúdo do plano de recuperação, mais concretamente do disposto no art. 194º, deveria o Mmº Juiz “a quo” ter recusado a homologação do plano.

Decisão:

Nos termos expostos, na procedência do recurso, decide-se:
1-Revogar a decisão recorrida;
2-Não homologar o plano de recuperação.
Custas pela recorrida.
(Texto escrito e revisto pela relatora, que assina e rubrica as restantes folhas)


Lisboa, 24-01-2017



Relatora: Des. Assunção Raimundo
1º Adjunta: Des. Graça Amaral 
2º Adjunto: Des. Alziro Cardoso



[1]Os deveres dos gestores e dos sócios no contexto da revitalização de sociedades” – II Congresso da
Insolvência, Almedina, 2014, p. 220-221
[2]Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa Anotado, 2ª edição, pág. 810, e artigos 251.º do mesmo diploma.
[3]Não contribuindo, mesmo indiretamente, para o enriquecimento ou revitalização do tecido económico português – art. 17-A.