Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1266/20.5TXLSB-C.L1-3
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: LIBERDADE CONDICIONAL
REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: A norma do nº 5 do artigo 43º do Código Penal, negando a possibilidade de aplicação do instituto da liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação, não contende com o princípio constitucional da igualdade.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os juízes desembargadores no Tribunal da Relação de Lisboa[1],

1. Nos autos de Regime de Permanência na Habitação nº 1266/20.5TXLSB-B, a Exmª juíza do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa, Juiz 6, decidiu não conceder a liberdade condicional ao condenado JD______ , por despacho judicial de 19 de Maio de 2021.
O condenado interpôs recurso e das motivações extraiu as seguintes conclusões (transcrição):
a) Por acórdão já transitado em julgado o Recorrente foi condenado pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão suspensa na sua execução com regime de prova e à obrigação de pagamento, no período de suspensão, da prestação pecuniária e dos demais acréscimos.
b) Tendo iniciado o cumprimento da pena em 03-08-2020 e atingido meio da pena em 03-05-2021.
c) Para efeitos de concessão de liberdade condicional foi desencadeado o competente processo, vindo a ser negada a pretensão do ora Recorrente, conforme consta da decisão a quo.
d) Referindo o seguinte: “Tendo em consideração o especial regime de cumprimento da pena de prisão imposta ao condenado (obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica), a mesma não está sujeita a concessão de liberdade condicional”.
e) O Digníssimo Representante do M.P. não se pronunciou relativamente à concessão da liberdade condicional;
f) O Conselho Técnico não emitiu qualquer parecer;
g) Desconhece-se qual tenha sido a linha de entendimento dos Serviços de Reinserção Social e o seu Director, irregularidades que, desde já, se invocam;
h) E não compreende desse modo quais os fundamentos em que se ancorou a decisão de não concessão, concluindo aquele aresto que o recluso não poderia beneficiar de tal regime;
i) A decisão sub judice posta em crise limita-se a aduzir conclusões sem dar a conhecer os elementos concretos conducentes ao invocado juízo negativo;
j) E além da aludida falta de comunicação o texto decisório evidencia uma desvalorização gritante do entorno sociofamiliar (nomeadamente, companheira e filhos) e dos projetos laborais do Recorrente;
k) O Recorrente revela capacidade de auto-subsistência;
l)  Caso a Equipa Técnica tivesse junto aos autos os competentes relatórios, ter-se-ia verificado que o comportamento do Recluso, aqui Recorrente, tem-se pautado pela regularidade;
m) S.m.o, numa decisão desta natureza, intrinsecamente restritiva de direitos, liberdades e garantias do cidadão, ainda que em situação de reclusão, impõe-se com mais acuidade que a mesma exponha de forma devidamente fundada as motivações em que assenta, concretizando, nomeadamente, quais as razões obiectivas para crer que o Recluso não possui capacidade para se reintegrar e que o mesmo não interiorizou suficientemente o desvalor da sua conduta;
n) Não obstante a deficiente fundamentação da decisão ora Recorrida, a qual é suscetível de gerar nulidade, nos termos doa art.379.°, n.°1, al.a), n.°2 e 3 CPP, o Recorrente não pode conformar-se com a decisão ora Recorrida;
o) Tendo o Recorrente informado os autos dos motivos pelos quais lhe devia ser concedida a Liberdade Condicional, pois cumpre os requisitos legais para tal;
p) No entanto, vem o mui Douto Tribunal a quo afirmar que, sem mais, atento o facto de haver um especial regime de cumprimento da pena de prisão imposta ao condenado, a mesma não está sujeita a concessão de liberdade condicional;
q) Não pode o Recorrente conformar-se com tal decisão, porquanto como pode um recluso a cumprir pena no Estabelecimento Prisional beneficiar do regime de Liberdade Condicional e o Recorrente, que se encontra a cumprir o regime de obrigação de permanência na habitação com vigilância eletrónica, não pode beneficiar de tal regime;
r) O Recorrente também se encontra a cumprir pena, tal como os demais reclusos que estão nos Estabelecimentos Prisionais;
s) Tal como o próprio regime indica: o Recorrido está obrigado a permanecer na habitação com vigilância eletrónica;
t) Tal como defende o Acórdão do Tribunal da Relação 'de Coimbra, Processo n.°239/15.4TXCBR-C.C1, datado de 25/01/2017: "O artigo 61.°, do Código Penal, nunca refere qualquer conceito de “prisão efetivamente sofrida” e, muito menos, qualquer noção de “cadeia efetivamente sofrida”, sobretudo com o caráter restritivo da prisão ou, melhor, da reclusão institucional. 5. Estabelecendo, como estabeleceu, o legislador a integral equiparação do regime de permanência na habitação à prisão, no n.° 4, do artigo 44°, do Código Penal, não se poderá defender que “...não é admissível a «liberdade condicional» do regime de permanência na habitação”.
u) Assim sendo, o Recorrente entende que não lhe conceder o regime de liberdade condicional é completamente incompatível com os fins de prevenção especial;
v) Ao entender como entendeu o mui Douto Tribunal a quo, está a beliscar a Constituição da República Portuguesa, nomeadamente o art.13.°, porquanto estaria a conceder liberdade condicional aos reclusos que estejam a cumprir pena no Estabelecimento Prisional e não concederia aos reclusos que se encontram a cumprir pena na habitação, sob vigilância eletrónica;
w) Como se explica que um recluso que não se encontra em sociedade há largos meses possa beneficiar de tal regime e um recluso que se encontre a cumprir escrupulosamente o regime de obrigação de permanência de habitação, como é o caso dos autos, não pode?
x) Seria tratar de forma desigual aquilo é igual, violando assim o art.13.° da Constituição da República Portuguesa;
y) Pois que, tal como refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 6530/10.9TXLSB- N.L1 - 3., datado de 28/01/2015:
“Mais entende que a não concessão da liberdade condicional constitui nova condenação o que viola o disposto no art° 29°/5, da CRP e o art° 61°/ CP, «estando-lhe a ser negados os mais elementares direitos constitucionais e processuais».
z) Pelo que, não obstante a inconstitucionalidade material plasmada nos presentes autos, por violação do princípio da igualdade, consagrado no art.13.º CRP, o Recorrente não se conforma com a decisão que indefere o seu pedido de liberdade condicional por tratar de forma desigual aquilo que é igual;
aa) Como tal, a manutenção da privação da liberdade tem uma indiscutível conexão com a restrição de direitos, liberdades e garantias, afectando um bem jurídico essencial que é o direito à liberdade, protegido no n° 1 do artigo 27° da C.R.P.;
O Ministério Público, por intermédio do Exmº magistrado junto do Tribunal de Execução das Penas de Lisboa, apresentou resposta, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso por manifestamente improcedente.
Na intervenção processual prevista no artigo 416º nº 1 do Código de Processo Penal, o Ministério Público, representado pelo Ex.º Procurador-Geral Adjunto, exarou parecer concordando com a posição assumida pela magistrada junto do tribunal de primeira instância, no sentido de que deve ser negado provimento ao recurso.
Não houve resposta ao parecer do Ministério Público.
Realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. A decisão recorrida é a seguinte (transcrição parcial):
“Mediante requerimento que antecede, veio o condenado pedir a concessão da liberdade condicional por a pena estar a atingir o seu meio.
Cumpre apreciar e decidir.
*
Tendo em consideração o especial regime de cumprimento da pena de prisão imposta ao condenado (obrigação de permanência na habitação com vigilância electrónica), a mesma não está sujeita a concessão de liberdade condicional.
Ou seja, o condenado tem de cumprir integralmente o período da duração da pena de prisão obrigação de permanência na habitação).
*
Nos termos e pelos fundamentos expostos, indefiro o requerido.
Notifique.
Lisboa, 19-05-2021.”
2. O objecto do recurso e os limites de cognição do tribunal definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Impõe-se ainda ter presente que o objecto dos recursos das decisões relativas à liberdade condicional está legalmente limitado nos termos do disposto no art.º 179º/1 do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade (aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro adiante designado apenas pelas iniciais CEPMPL), com o seguinte teor: “O recurso é limitado à questão da concessão ou recusa da liberdade condicional.”.
3. A questão a decidir reside em saber se o Recorrente JD______ , condenado numa pena de um ano e seis meses de prisão, em execução sob o regime de permanência na habitação e com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pode beneficiar da concessão de liberdade condicional. 
A norma do nº 5 do artigo 43º do Código Penal, na redacção da Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto, não permite hoje dúvidas ao negar a possibilidade de aplicação do instituto da liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação[2].
O recorrente invoca a violação do princípio constitucional da igualdade nesta decisão, por considerar injustificada a discrepância na aquisição do direito de concessão de liberdade condicional entre o cumprimento de pena como recluso num estabelecimento prisional e a execução da pena na habitação sob vigilância electrónica.
Vejamos.
O Tribunal Constitucional tem abundante jurisprudência sobre o princípio da igualdade, considerado como “um dos principais eixos estruturantes do regime constitucional dos direitos fundamentais – um princípio estruturante do Estado de Direito democrático e do sistema constitucional da República Portuguesa» (cfr. Acórdão n.º 526/2016), impondo fundamentalmente “que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente» (cfr. Acórdão n.º 437/2006).
Também sabemos que o instituto da liberdade condicional prossegue o objectivo de estabelecer, principalmente nas penas de média e longa duração, um período de transição entre a reclusão e a liberdade, durante o qual o delinquente possa, de forma equilibrada, recuperar o sentido de orientação social necessariamente enfraquecido por efeito do afastamento da vida em meio livre. A finalidade primária consiste na reinserção social do recluso (cfr. Rodrigues, Anabela Miranda, A Fase de Execução das Penas e Medidas de Segurança no Direito Português, BMJ, 380, pag. 30 a 33, Dias, Figueiredo, Direito Penal Português, 1993, pag. 527 e 528).
Concomitantemente, o regime de permanência na habitação com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância tem por finalidade limitar os efeitos perniciosos do cumprimento em meio fechado num EP, evitando a ruptura no enquadramento familiar e das ligações afectivas do condenado, salvaguardando a possibilidade de exercício de actividade profissional e de manutenção de vínculos sociais.
Nesta forma de cumprimento, regulada no artigo 43º do Código Penal, o tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para actividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.
O que seguramente terá acontecido no caso do condenado-Recorrente: logo no despacho inicial de 02-09-2020 foi concedida a autorização para o condenado JD______   se ausentar da habitação durante o tempo necessário para a sua actividade profissional, todos os dias de 2ª a 6 ª feira entre as 7 h e 30 m e as 17 h e 30.
O constrangimento da liberdade num ambiente fechado, com a imposição de confinamento a determinados espaços e limitação dos contactos com familiares e amigos a curtos períodos de tempo, revela-se muito mais severo no cumprimento da pena de prisão em estabelecimento prisional por comparação com a execução da pena em regime de permanência na habitação.
As dissemelhanças entre o regime de uma e outra realidade são evidentes, atingindo os elementos essenciais da vida diária do condenado.
Pode mesmo afirmar-se que sendo cumprida a pena na habitação, com manutenção do acesso ilimitado do condenado aos bens de conforto e a comunicação social, junto da família nuclear, com possibilidade de exercício da actividade profissional, bem como de convívio com os familiares e amigos, perde razão de ser e utilidade a concessão da liberdade condicional, enquanto período de transição entre a reclusão e a liberdade total, visando a recuperação do sentido de orientação social  e a reinserção social.
Concluímos assim que a norma do artigo 43º nº 5 do Código Penal, interpretada no sentido que não pode era concedida liberdade condicional a condenado que cumpra a pena de prisão em regime de permanência na habitação, não ofende, nem o princípio da proporcionalidade, nem o princípio da igualdade, consagrados nos artigos 18º e 13º da Constituição da República Portuguesa, respectivamente.
O despacho recorrido não merece censura e deve ser mantido, assim se negando provimento ao recurso.
4.Em caso de decaimento ou improcedência total do recurso, há lugar ainda a condenação do arguido nas custas pela actividade processual a que deu causa, compreendendo a taxa de justiça e os encargos (artigos 513º e 514º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto no artigo 8º nº 9 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais, a taxa de justiça a fixar, a final do recurso, varia entre três e seis UC.
Tendo em conta a complexidade do processo na presente fase, julga-se adequado fixar essa taxa em quatro UC.
5. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso de JD ____, confirmando a decisão recorrida.
Condena-se o recorrente em quatro UC de taxa de justiça, sem prejuízo da isenção que lhe seja reconhecida.

Lisboa, 22 de Setembro de 2021.
Elaborado em computador e revisto pelo relator.  
João Lee Ferreira
Maria Leonor Silveira Botelho
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[1] O juiz relator escreve de acordo com a ortografia anterior ao Acordo Ortográfico de 1990. As transcrições serão efectuadas nos seus precisos termos, ou seja, respeitando a ortografia original.
[2] O acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25-01-2017, proc. 239/15.4TXCBR-C.C1, relator José Eduardo Martins que o Recorrente cita na motivação, foi proferido ainda no âmbito da legislação anterior à revisão do regime de cumprimento de pena sob permanência na habitação. Vide em sentido oposto, ainda no mesmo regime anterior, os acórdãos do mesmo TRC de 25-11-20009, proc. 938/09.0TXCBR.C1, Paulo Guerra e de 21-04-2010, no proc. 2412/095TXCBRR.C1, Orlando Gonçalves, acessíveis in www.dgsi.pt .