Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
428/11.0TVLSB.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: SEGURO DE VIDA
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
EFICÁCIA
CONTRATO INDIVISÍVEL
ABUSO DE DIREITO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/08/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIAL PROCEDÊNCIA
Sumário: I - Uma declaração torna-se eficaz quando chega à esfera de acção do destinatário. “Isto é, quando o proponente passa a estar em condições de a conhecer. Concretizando algo mais: quando a declaração […] foi levada à proximidade do destinatário de tal modo que, em circunstâncias normais, este possa conhecê-la, em conformidade com os seus usos pessoais ou os usos do tráfico (v.g., apartado, local de negócios, casa); uma enfermidade, uma ausência temporária de casa ou do estabelecimento são riscos do destinatário, e também é considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele recebida – art. 224/2 […]”.
II – A resolução do contrato de seguro vida tinha, no âmbito da vigência do art. 33 do Decreto de 21/10/1907, de ser feita através de comunicação a todos os segurados e não só ao tomador do seguro. Para além de que, “perante um contrato indivisível, não é possível resolver o contrato apenas em relação a um dos devedores”.
III - A concludência de uma declaração tácita “baseia-se num nexo lógico-experimental em que factores de tipicidade social e factores jurídicos são também importantes”. “Trata-se […] de, num contexto prático de interacção, determinar o significado de um comportamento, de acordo com os […] critérios gerais” de interpretação.
IV – “A pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso, ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente, ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada”: “A pessoa que viole uma situação jurídica perturba o equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um procedimento equivalente ao que se seguiria se nada tivesse acontecido, equivaleria ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a conduta requerida já não poderá ser a mesma.”
(da responsabilidade do Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados

“A” (= autora) demandou a “B” – Companhia de Seguros, SA (= ré ou seguradora), pedindo que fosse:
a) declarado válido e em vigor o contrato de seguro celebrado entre a autora, o seu falecido marido e a ré, à data do falecimento do marido da autora (12/10/2009);
b) obrigada a ré a pagar ao Banco “C”, SA (= “C”), o capital seguro necessário para a amortização do empréstimo concedido à autora e marido, em quantia a liquidar em execução de sentença;
c) condenada a ré no pagamento à autora das quantias pagas para amortização do mútuo desde a data do falecimento do marido, em quantia a liquidar em execução de sentença, tudo acrescido dos juros legais contados desde a citação até integral pagamento.
Alega para tanto que em 2000 a ela e o marido celebraram um contrato de seguro do ramo vida com a ré, tendo como beneficiária o então “CC” (= “CC”, agora “C”); em 2009 foi atribuída ao marido da autora invalidez permanente em virtude de doença cancerígena; foi então informado pela ré que o contrato de seguro havia sido resolvido em 05/12/2000 por falta de pagamento do prémio contratado; não foi comu-nicada ao marido da autora nem à autora a falta de pagamento do prémio e consequente resolução do contrato; era imprescindível que a declaração de resolução tivesse sido dirigida à autora e ao marido; o marido da autora veio a falecer vítima de cancro; após a morte do marido a autora continuou a pagar as prestações para amortização do empréstimo.
A seguradora contestou dizendo que na proposta de seguro o se-gurado indicou uma conta para débito do prémio; a ré efectuou várias tenta-tivas de cobrança do prémio, sem êxito; após remeteu ao tomador do seguro carta a informar os valores em dívida, à qual não obteve resposta, pelo que enviou nova carta ao segurado a informar da resolução do contrato.
A autora replicou.
(utilizou-se, até aqui, no essencial, o relatório da sentença recorrida)
Depois do julgamento, foi dada resposta aos quesitos e depois proferida sentença condenando a ré nos pedidos.
A seguradora recorre destas decisões – para que uma das respos-tas seja alterada e para que a sentença seja revogada e substituída por outra que a absolva do pedido -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões (sintetizadas pelo relator deste acórdão):
I. O quesito 5º da base instrutória: “Com a data de 05/12/ /2000, a ré enviou ao marido da autora a carta que constitui fls. 57?”, foi dado como não provado, quando deveria ter resultado provado, por força do depoimento da testemunha “D” (= “D”), única testemunha que tem efectivo conhecimento dos procedimentos utilizados pela seguradora, no que respeita à emissão e envio de comunicações aos segurados e do qual também resulta que não foi recebida na seguradora qualquer devolução das cartas remetidas e porque, tratando-se de um procedimento automático, não se entende como pode ter sido dado como provado o envio da 1ª carta, datada de 06/10/2000, e não ter sido dado como provado o envio desta 2ª carta, tendo o procedimento sido exactamente o mesmo, com excepção do registo.
II. A autora não impugnou na sua réplica as cartas remetidas pela seguradora, como consta, aliás, da motivação da matéria de facto provada no que diz respeito ao quesito 3º.
III. O envio da carta a comunicar ao segurado a resolução do contrato não tem de ser feito com registo, nem este é o único meio de prova de tal envio.
IV. Feita a prova do envio da carta por parte da seguradora, fica a parte contrária, ou seja, aquela que se pretende fazer valer, neste caso, do facto de não ter recebido as cartas, incumbida de provar que as não recebeu e porque motivos: inverte-se o ónus da prova.
V. Tendo a seguradora remetido correctamente as suas comunicações para aquele que foi o único domicílio que lhe foi comunicado pelas pessoas seguras, ainda que o destinatário não tenha tido conhecimento das comunicações por ter domicílio em local diferente, apenas a culpa própria se fica a dever tal desconhecimento, pois deveria ter tido o cuidado de informar o remetente da verificada alteração do seu domicílio (conforme o disposto no art. 224.º/2 do CC). Invoca neste sentido, os acórdãos do TRC de 02/03/2011 e do STJ de 16/02/2012 (sem outras indicações).
VI. Nos termos das condições gerais da apólice de seguro contratada pelo marido da autora: tomador de seguro é a entidade que celebra o contrato com a seguradora e que é responsável pelo pagamento dos prémios; pessoa segura é a pessoa de que depende, nos termos contratuais, o funcionamento das garantias.
VII. A autora, sendo apenas segurada, não também tomadora, não tinha que ser interpelada para pagar nem tinha que ser alvo da comunicação da resolução do contrato (nos termos da cláusula 7ª das condições gerais a interpelação admonitória deve apenas ser dirigida ao tomador de seguro; e o art. 33.º do Decreto de 21/10/1907, quando se refere a segurado só se pode querer referir a tomador do seguro).
VIII. Face à informação dada pela seguradora de que a apólice contratada se encontrava já anulada por falta de pagamento dos prémios de seguro, o facto de os segurados requererem a subscrição de nova apólice de seguro só pode representar para o declaratário normal uma aceitação tácita de tal anulação. Caso contrário, em face de tal situação sempre os segurados tentariam fazer valer os seus direitos de imediato ao invés de solicitar a subscrição de uma nova apólice.
IX. Não se tendo procedido, durante 9 anos, ao pagamento de um único prémio de seguro, os recorridos tinham pleno conhe-cimento de que a apólice já não poderia encontrar-se em pleno vigor.
X. É ofensivo da boa-fé pretender actuar os “direitos” emergentes de um contrato de seguro, quando as pessoas seguras há 9 anos que deixaram de cumprir com a obrigação de pagamento dos prémios. Estaríamos, portanto, perante uma actuação manifestamente abusiva, o que tornaria ilegítimo o direito dos recorridos de pedir que a seguradora pagasse agora o capital assegurado.
XI. A sentença recorrida, ao condenar a seguradora no pagamento dos montantes indemnizatórios, viola claramente o equilíbrio contratual das partes, na medida em que os segurados permaneceram 9 anos sem prestar qualquer contrapartida pelo contrato de seguro que agora pretendem que seja considerado válido e eficaz.
XII. O acórdão da Relação de Lisboa de 31/05/2007, invocado pela sentença recorrida para concluir que não existe abuso de direito, refere-se a uma situação em que a seguradora não informou os segurados da sua situação de mora, o que não é o caso dos autos.
A autora contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso.
*
Questões que cumpre solucionar: se deve ser alterada a resposta dada ao quesito 5º da base instrutória (conclusões I a III); se, alterando-se esta resposta, deve ser considerado que era à autora que cabia provar que não recebeu a carta (parte da conclusão IV) e que se dela não teve conhecimento tal se deve a culpa sua (parte da conclusão V); se a carta de 06/10/2000 (facto 4) deve ser considerada recebida pelo marido da autora e nesse caso qual o relevo de tal facto (parte restante das conclusões IV e V); se a comunicação da resolução for considera eficaz em relação ao marido da autora, importa saber se à autora não tinha também que ser notificada a resolução do contrato (conclusões VI e VII); já sem dependência da alteração da resposta ao quesito 5, fica por saber se o comportamento da autora e marido deve ser considerado uma aceitação tácita da resolução do contrato (VIII); e se o exercício do direito da autora é abusivo (conclusões IX a XII).
*
Factos provados (os sob alíneas vêm dos factos assentes; os sob nºs vêm da resposta aos quesitos):
A) A autora casou com o seu marido em 29/08/1992.
B) A 20/01/2000, a autora e o marido subscreveram a proposta de seguro junta por cópia a fls. 51-52, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido, proposta essa em que figura como tomador do seguro o marido, pessoas seguras o marido, residente no Loteamento ..., Lote 35, ..., ..., e a autora, capital a segurar 20.000.000$, beneficiário “CC” e herdeiros legais e uma autorização de débito em conta domiciliada no B... em nome do marido, conta essa com o NIB .... .
C) A ré aceitou a referida proposta e enviou ao marido da autora, para o Loteamento ..., Lote 35, ..., 0000 ..., a carta que constitui fls. 53, datada de 21/01/2000 e cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido.
D) A 31/01/2000 a ré emitiu a apólice n.º ...., que constitui fls. 7, com o seguinte teor:
Tomador do seguro – marido da autora (…).
1.Pessoa segura – marido da autora;
2. Pessoa segura – autora;
Plano de protecção ao crédito
Seguro principal: temporário:
Seguro complementar: invalidez total e permanente
Capital seguro: 20.000.000$
Duração: 30 anos
Data de início 2000/01/21 Data termo: 2030/01/20
(…)
Beneficiários
- em caso de morte: beneficiário aceitante: “CC”
- em caso de vida: beneficiário aceitante: “CC”.
E) Da referida apólice faz parte integrante a Condição Especial constante de fls. 8 com o seguinte teor:
“Seguro temporário
Garantias
A Companhia garante o pagamento do capital seguro à primeira morte ou invalidez total e permanente que ocorrer no conjunto das pessoas seguras antes da data termo do contrato.
(…)”
F) A referida apólice é ainda constituída pelas condições gerais de fls. 65-68, cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido, em cujo art. 15 - domicilio - consta: “Para efeitos deste contrato serão considerados domicílios do tomador do seguro e da pessoa segura os indicados nas condições particulares ou, em caso de mudança, quaisquer outros que por escrito, tenham sido pelo mesmo comunicados à seguradora.”
3. A ré remeteu ao marido da autora, para Loteamento…, Lote …, ..., ..., a carta, datada de 6/10/2000, que constitui fls. 56, com o seguinte teor:
“Assunto: Apólice n.º ... – Seguro de vida
Prémios em dívida desde 21/01/2000
Total em dívida: 53 530$
Exm.º Senhor
Com os nossos melhores cumprimentos, vimos pela presente informar que, relativamente à apólice em referência se encontram por liquidar prémios no total acima indicado, podendo proceder ao seu pagamento através de cheque cruzado à ordem da “B” Vida, utilizando para o efeito o envelope e o impresso anexos.
Se, dentro de 30 dias, contados a partir da presente data, o pagamento não tiver sido efectuado, lamentamos informar que, nos termos do art. 7 das condições gerais, a apólice será considerada nula e de nenhum efeito a partir da data termo desse prazo.
Informamos ainda que, de acordo com o definido no número 4 do artigo 10 das Condições Gerais da apólice, esta decisão foi comunicada ao beneficiário aceitante.”
4-A. Na sequência do envio da carta de fls. 56, a ré não recebeu qualquer pagamento da autora e ou do marido.
G) A 26/03/2001, o “CC”, na qualidade de primeiro outorgante e o marido da autora e a autora, na qualidade de segundos outorgantes, subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 9-17, denominado Contrato n.º ... (com hipoteca) foi celebrado o contrato de mútuo, onde consta:
“1ª (Montante e Finalidade)
Os segundos outorgantes, adiante designados por devedores, solicitaram e obtiveram do “CC”, adiante designado por IC, um empréstimo de 20.000.000$, no regime geral de crédito, de que se confessam devedores, para aquisição do prédio […].
(…)
13ª (Seguros)
O imóvel hipotecado será seguro em companhia seguradora aceite pela IC. Na respectiva apólice deverá constar a declaração expressa de ser esta IC credor privilegiado.
Faz parte integrante da garantia do presente contrato o seguro de vida aceite pela IC, sendo esta a beneficiária.
Os aludidos seguros só poderão ser anulados ou alterados por intermédio desta IC ou com o seu prévio acordo.
A IC poderá alterar ou anular os referidos seguros, pagar por conta do “devedor” os respectivos encargos, debitando-os na conta de depósitos à ordem do “devedor” adiante mencionada e, em seu nome, receber as indemnizações em caso de sinistro”.
H) O “CC” denomina-se hoje “C”, SA.
I) Com a data de 14/04/2009, o marido da autora endereçou à ré a carta que constitui fls. 58, solicitando a emissão de 2ª via da apólice do seguro de vida n.º .....
J) A ré respondeu enviando a carta que constitui fls. 59, dizendo não poder satisfazer o pedido por a apólice se encontrar anulada desde 5/12/ 2000.
L) A 26/05/2009, o marido da autora e a autora subscreveram a proposta de seguro de vida que constitui fls. 60-63 e cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido.
M) O marido da autora faleceu a 12/10/2009.
1-A. A autora e o marido não procederam ao pagamento de nenhum dos prémios de seguro.
2. O marido da autora faleceu em consequência de doença do foro oncológico.
*
I
Do recurso da decisão da matéria de facto
(Conclusões I a III)
Como se viu, a seguradora pretende que o quesito 5 passe a ter a resposta de provado, ao contrário daquela que lhe foi dado pela decisão recorrida.
O quesito 5 tem o seguinte teor:
“Com a data de 05/12/2000, a ré enviou ao marido da autora a carta que constitui fls. 57, com o seguinte teor
“Assunto: apólice n.º ...- Seguro de vida
Anulação
Dado não ter sido liquidado o total dos prémios, constante da nossa carta de 20/07/2000, procedemos, nesta data, nos termos do art. 7 das condições gerais, à resolução do contrato titulado pela apólice em referência.
Lembramos, no entanto, que o contrato resolvido pode ser reposto em vigor, nas mesmas condições, dentro do prazo de seis meses, contado a partir da presente data, nos termos do art. 8 das condições gerais da apólice”?
A resposta de não provado teve a seguinte fundamentação:
“A testemunha “D” declarou em conformidade, baseando-se no facto de ser um procedimento automático. Mas a mesma testemunha confirmou que a carta em causa não [foi] envi[a]da sob registo e AR. Neste conspecto, o depoimento daquela testemunha é manifestamente insuficiente para prova desta factualidade.”
Como as respostas e as fundamentações aos quesitos 3 e 4 também servem de argumento às alegações de recurso da seguradora, passam também a transcrever-se as mesmas:
Em relação ao quesito/facto 3 – que tem a ver com o envio da carta de 06/10/2000 - a fundamentação da resposta positiva foi a seguinte:
“O tribunal teve em consideração o depoimento da testemunha “D” conjugado com o documento de registo junto em audiência pela ré e não impugnado pela autora.”
E quanto ao quesito 4 - Carta [a de 06/10/2000, quesito/facto 3] que foi recebida pelo marido da autora? - que o tribunal deu como não provado, a fundamentação da convicção baseou-se no seguinte:
“Está em causa saber se o falecido marido da autora recebeu a carta. A testemunha “D” declarou que no processo [da seguradora – acrescenta-se neste acórdão] não consta a carta devolvida. No entanto, tal prova é insuficiente para se poder afirmar que o marido da autora recebeu a carta. Desde logo, a carta em causa não foi enviada com aviso de recepção. Foi enviada por meio de registo. Mas nos autos não existe qualquer documento dos CTT comprovativo da entrega da carta.”
*
Sobre esta pretensão da ré (alteração da resposta ao quesito 5), diz a autora, nas contra-alegações, no essencial o seguinte:
“Como é sabido, as transmissões postais podem ser acompanhadas de meios acessórios em ordem a permitir provar, havendo necessidade, o seu efectivo envio e a recepção de missivas dirigidas a pessoas ou entidades concretas.
Para prova do envio exige-se o registo da correspondência e para prova da recepção o aviso de recepção. Tal prática já se perde quase no tempo e é do conhecimento de qualquer pessoa que, minimamente avisada, opta pela mesma a fim de ter possibilidade de fazer prova em sede judicial, por exemplo.”
*
Diga-se desde já que a fundamentação do tribunal recorrido é coerente e tem em conta, como decorre do que antecede, o seguinte:
Por um lado, uma carta pode ser enviada com registo e a/r. O registo serve de prova do envio, o a/r de prova de recepção. E quem quer fazer prova de qualquer destes factos tem por regra enviar a carta com registo e com a/r. Muito mais quando o assunto é de valor elevado ou muito elevado (ao menos para a contraparte) e o custo do envio com registo e a/r é particularmente insignificante. E ainda mais quando se trata de uma entidade habituada a litígios nos tribunais e que sabe que o ónus da prova de tais factos lhe incumbe a ela. E ainda mais se tal entidade não tem quaisquer dificuldades económicas.
Como diz Jorge Morais de Carvalho, depois de se referir à existência de vários meios de transmissão da declaração, pressupondo naturalmente a sua validade e suficiência:
“Se o objectivo é, por um lado, a prova do envio da mensagem e, por outro lado, uma maior certeza na efectiva recepção desta, o meio mais eficaz talvez ainda seja o correio tradicional, mas, neste caso, apenas se o envio for registado […].” (Os contratos de consumo, Reflexão sobre a autonomia privada no direito do consumo, Almedina, Junho 2012, pág. 151).
Por outro lado, um trabalhador de uma entidade patronal, a depor em questão de que a entidade patronal é parte, contra terceiro, terá naturalmente tendência a prestar um depoimento a favor desta, que é a fonte do seu rendimento económico. E muito mais será assim, se a matéria da causa diz respeito ao seu trabalho. E ainda mais se a testemunha fala apenas daquilo que é norma ser feito, mas não diz ter sido ele a fazê-lo (como é o caso dos autos, em que a testemunha apenas sabe daquilo que diz ser feito automaticamente e daquilo que viu no processo que consultou, como resulta claramente da audição do seu depoimento).
Ora, perante isto, uma de duas:
Se o depoimento do empregado for corroborado por um outro qualquer elemento de prova, os dois elementos de prova, em conjunto, servem para formar a convicção positiva do juiz. Se o depoimento do empregado não tiver qualquer corroboração o juiz não ficará convencido.
Assim: a carta de 6/10/2000 foi enviada com registo (que está junto aos autos) e o empregado disse que ela foi enviada. O juiz dá o facto como provado.
Essa mesma carta (de 6/10/2000) não foi enviada com a/r. O que quer dizer que não há a/r a comprovar a recepção. O empregado diz que a carta não foi devolvida (o que apontaria para a sua recepção). Mas o seu depoimento não é corroborado. O juiz não dá o facto – recepção - como provado. É certo que, tendo a carta sido expedida com registo, a ré podia ter junto o documento comprovativo da assinatura do marido da autora, mas não o fez, como é assinalado na resposta ao quesito: “Foi enviada por meio de registo. Mas nos autos não existe qualquer documento dos CTT comprovativo da entrega da carta.”
Quanto à carta de 05/12/2000, o empregado diz que é norma o tipo de carta de 05/12/2000 ser enviado. Mas nem sequer diz que foi ele a enviá-la. E não há qualquer registo nem a/r. O juiz naturalmente não dá o facto como provado.
E a apoiar esta decisão, correcta como se vê, ainda se podia acrescentar que nem sequer há explicação para o seguinte: se o sistema é “automático” (como tanto insiste a testemunha, esclarecendo que com isso quer dizer mais do que ser “habitual”, e é isso apenas que a leva a dizer, sistematicamente, que a carta foi enviada), porque é que uma carta (a de 06/10/ /2000) sai com registo e outra (05/12/2000 – menos de dois meses depois) sem registo?
Não há assim qualquer razão para duvidar do bem fundado da decisão.
*
Designadamente, não há qualquer contradição com a resposta dada ao quesito 3: neste há registo, enquanto no quesito 5 não há. A ré não tem, pois, razão para dizer que “o procedimento foi exactamente o mesmo, com excepção do registo”. Tendo em conta o que antecede, o correcto seria dizer: o procedimento foi exactamente o contrário, porque não existe registo…
Por outro lado, é certo o que a ré diz na conclusão III - o envio da carta não tem de ser feito com registo, nem este é o único meio de prova de tal envio; mas não se trata de afirmar o contrário disto, apenas de dizer que, nas circunstâncias do caso concreto, o registo era necessário para corroborar o outro elemento de prova, de modo a convencer o juiz da verdade da afirmação feita pela ré sobre o facto.
Quanto à conclusão II ela é irrelevante. A autora logo na petição inicial (arts. 13, 14, 23), em defesa antecipada, tinha posto em causa a suposta comunicação de 05/12/2000 e na réplica torna a impugnar a comunicação invocada (art. 6 da réplica). Ora, era só isto que estava em causa no quesito 5. Não há pois nenhuma confissão ficta do facto.
*
Não são, pois, procedentes as razões das três primeiras conclusões do recurso, ou seja, a parte do recurso contra a decisão da matéria de facto.
*
Do recurso contra a decisão de direito
Conclusões IV e V
Parte da matéria destas duas conclusões estava dependente da alteração da resposta ao quesito 5, pelo que o seu conhecimento, nessa parte, fica prejudicado.
II
Da eficácia da carta de 06/10/2000
Mas o conteúdo das conclusões IV e V, adaptado, levanta outra questão que é referente à carta de 06/10/2000 (a do facto provado sob 3).
Diz a seguradora: tendo ficado provado que a ré enviou essa carta ao marido da autora, era a esta que cabia provar que aquele não tinha recebido a carta (art. 224/2 do CC).
Posto isto (e sem se esquecer que as regras que se seguem são aplicáveis também aos simples actos jurídicos: art. 295 do CC):
O art. 224/1 do CC diz que: A declaração negocial que tem um destinatário torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida […]”; o nº. 2 acrescenta: “É também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida.”
Logo a propósito do nº. 1 do art. 224 do CC, diz, por exemplo, Mota Pinto: o contrato está perfeito quando a resposta, contendo a aceitação, chega à esfera de acção do proponente. Isto é, quando o proponente passa a estar em condições de a conhecer. Concretizando algo mais: quando a declaração […] foi levada à proximidade do destinatário de tal modo que, em circunstâncias normais, este possa conhecê-la, em conformidade com os seus usos pessoais ou os usos do tráfico (v.g., apartado, local de negócios, casa); uma enfermidade, uma ausência temporária de casa ou do estabelecimento são riscos do destinatário, e também é considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele recebida – art. 224/2 […]”. ((Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, 2005, pág. 440).
Diz também Henrich Ewald Hörster, também a propósito do nº. 1 do art. 224 do CC: “Acrescente-se, ainda, que para se dar a chegada ao poder não é conceitualmente necessário que a declaração negocial chegue ao poder imediato do próprio declaratário, bastando o depósito no local indicado para o efeito em condições normais […]” (A parte geral do CC português, TGDC, Almedina, 1992, pág. 450).
Portanto, sem necessidade de aplicação do nº. 2 do art. 224 do CC, tem-se considerado que o depósito de uma carta na caixa de correio da casa do destinatário é condição suficiente para se considerar que ela chegou à esfera de acção do destinatário, que ele passou a estar em condições de a conhecer.
Note-se que isto não corresponde ao recebimento efectivo da carta pelo próprio destinatário e que, por isso, tal não põe em causa a resposta negativa ao quesito 4.
Assim, apesar de não haver prova de a carta ter sido recebida efectivamente pelo próprio destinatário, ela chegou à sua esfera de acção, passando este a estar em condições de a conhecer.
E, assim, embora não pelas razões da seguradora, nem com base na norma por ela invocada, nem, ver-se-á, com os efeitos que ela quer, a carta de 06/10/2000 tornou-se eficaz.
Neste sentido, ainda, vejam-se Carlos Ferreira de Almeida, Contratos, I, Almedina, 2000, págs. 68 a 70; e Pedro Pais de Vasconcelos, TGDC, vol. I, Lex 1999, págs. 205 a 210, referindo ao nº. 2 do art. 224 como reforço da orientação de fazer equivaler ao conhecimento efectivo da declaração a sua colocação à disposição e ao alcance do destinatário; e ainda os acórdãos citados pela ré e que agora se identificam como 357/09.8TBCBR.C1, com ampla invocação de doutrina e jurisprudência no mesmo sentido, e 4323/06.7TBBRG.G1.S1, ambos da base de dados do ITIJ.
Não se considera, pois, neste ponto, correcta a sentença, nem o ac. do STJ (04B4775 – estes números referem-se sempre à base de dados do ITIJ) por ela citado.
III
Da eficácia da carta de 06/10/2000 (cont.)
Assinale-se, no entanto, desde já o seguinte: a agora reconhecida eficácia da carta não quer dizer que o marido da autora tenha tido conhecimento efectivo do seu conteúdo (a doutrina e os acórdãos acabados de referir dizem, por regra, o mesmo, por outras palavras), tanto mais que não há prova de a carta ter sido recebida; quer apenas dizer que o seu conteúdo, independentemente de ser ou não conhecido, pode produzir os efeitos que visa. Com conhecimento ou sem conhecimento, o marido da autora foi interpelado. Mas, já agora, note-se também desde já, quem está interpelado é ele, marido da autora, não a autora. A autora não foi interpelada para nada.
E quais eram então os efeitos visados pela carta?
A carta do ponto 3 dos factos provados tinha, para além do fim de interpelação admonitória, um nítido conteúdo resolutivo (cominatório): dava a conhecer ao marido da autora que estavam por liquidar prémios do seguro e que se, dentro de 30 dias, contados a partir da presente data, o pagamento não fosse efectuado, a apólice seria considerada nula e de nenhum efeito a partir da data termo desse prazo.
Como nada foi pago, o contrato deveria, em princípio, considerar--se resolvido.
IV
Impedimento à eficácia resolutiva da carta de 06/10/2000
Só que, como esclareceu a sentença (seguindo de perto o acórdão do STJ de 31/01/2007 que cita – e que está publicado na base de dados do ITIJ sob o nº. 06A4485, o que se indica agora) a eficácia resolutiva não pôde ocorrer por duas razões:
“O contrato em causa teve o seu início a 21/01/2000, pelo que o regime jurídico aplicável era, à data, o do Decreto de 21/10/1907 (pois que só veio a ser revogado pelo art. 6/2b) do DL 72/2008, de 16/04), cujo art. 33 dispunha: “O contrato de seguro de vidas somente poderá considerar-se insubsistente por falta de pagamento de prémio, quando o segurado, depois de avisado por meio de carta registada, não satisfaça a quantia em dívida no prazo de oito dias ou noutro, nunca inferior a este, que se ache estipulado na apólice”
[acrescentava o § único: O prazo a que se refere o presente artigo contar-se-ha da data do registo da carta, a qual será dirigida para a última residência do segurado, que conste dos registos e documentos da sociedade seguradora. O conteúdo destes parênteses foi colocado agora]
[…] resulta da factualidade provada que o contrato de seguro em apreço nos autos foi celebrado pelo falecido marido da autora e pela autora, já que a proposta de seguro foi subscrita por ambos (ponto 2 da fundamentação de facto), pelo que a aqui autora era parte no contrato.
De referir estar provado que o marido da autora e a autora casaram um com o outro a 29/08/1992 (ponto A da fundamentação de facto).
Como resulta da certidão de fls. 84, o falecido e a autora casaram sem convenção antenupcial, pelo que o regime de bens do casamento é, nos termos do art. 1717 do CC, o da comunhão de adquiridos.
[…]
É certo que nos termos da cláusula 7ª das condições gerais a interpelação admonitória apenas devia ser dirigida ao tomador do seguro – que, no caso, era o falecido, como resulta dos pontos B e D da fundamentação de facto.
Porém, o art. 33 do Decreto de 21/10/1907 impunha que o segurado fosse interpelado para pagar. Ora, a aqui autora era segurada.
Além disso, estamos perante um contrato indivisível, ou seja, uma vez que ambos os cônjuges eram segurados na mesma apólice, não era possível resolver o contrato apenas em relação a um deles.
Neste conspecto haveria a ré de enviar uma carta de interpelação com a cominação de resolução, também à autora.
Ora, a ré não alegou que o tivesse feito, pelo que a resolução do contrato nunca operaria.”
Para a questão da necessidade da resolução ser dirigida a todos os devedores, no caso de pluralidade de devedores, o ac. do STJ cita Vaz Serra (Resolução do Contrato, no BMJ nº 68, págs. 239 e 240): “a resolução, como medida excepcional, só se adoptaria… contra todos os devedores… Isto, mesmo que… os devedores sejam solidários…”. Também a propósito da resolução do contrato de arrendamento, se diz que “colocando-se a questão da existência de uma pluralidade […] de locatários, apresenta-se como regra fundamental a necessidade de exercício do direito de resolução […] face a todos os que lhe estão sujeitos. A resolução exercida apenas contra um ou alguns dos […] locatários é ineficaz […]” (David Magalhães, A resolução do contrato de arrendamento urbano, Coimbra Editora, 2009, pág. 109, também citando Vaz Serra, loc. cit. – Brandão Proença sobre A resolução do contrato no direito civil…, Coimbra Editora, 1996, também remete para este mesmo estudo, mas em separata, na nota 426, pág. 150, para o caso de pluralidade de credores e/ou devedores).
No mesmo sentido da necessidade da comunicação da resolução à autora e ao marido, vejam-se os acs. do STJ de 11/09/2012 (4578/07.0TBGDM.P1.S1– embora relativo a uma associação mutualista, os argumentos são os mesmos e aplicáveis sem reserva como até se vê do facto deste acórdão transcrever quase na íntegra, nesta parte, o de 2007), do TRG de 14/01/2010 (762/07.4TBFLG.G1) Sendo o contrato indivisível, a resolução só pode operar se a declaração respectiva tiver sido feita em relação a ambos os tomadores [mas o acórdão queria referir-se a segurados: a situação referia-se a segurados e não a tomadores; tomador era só o marido, como no caso dos autos – vejam-se os pontos 8 e 9 dos factos provados], ainda que estes respondam solidariamente pelo pagamento dos prémios de seguro; e do TRP de 12/05/2009 (0824635: I - O artigo 33 do Decreto de 21/10/1907, ao referir-se à resolução do contrato de seguro de vida estabelece expressamente que o segurado deve ser avisado, por meio de carta, de que se não satisfizer os prémios em dívida no prazo de 8 dias ou noutro que se ache convencionado na apólice, o contrato será considerado insubsistente. II - Assim era indispensável que a ré seguradora tivesse feito duas comunicações de rescisão do contrato de seguro, uma à recorrida, e outra ao marido. III - Quem contratou o seguro foram ambos os cônjuges, sendo os dois devedores dos prémios de seguro, no bastando à seguradora comunicar a resolução do contrato apenas ao marido).
No sentido da vigência do Decreto de 21/10/1907 (publicado no Diário do Governo de 23/10/1907), à data, vejam-se ainda, para além dos acabados de citar, os seguintes, entre outros: do STJ 20/05/2010 (1198/07.2TVPRT.P1.S1 só sumário), do TRC de 02/02/2010 (2107/03.3TB PMS.C1), do TRL de 21/01/2010 (1518.2TBDL.L1-8) e do STJ de 09/07/1998 (98B646).
V
Conclusões VI e VII
Contra o acabado de referir, dedica a seguradora estas duas conclusões.
Sem razão, já que se limita a avançar proposições sem base legal, nem apoio doutrinário ou jurisprudencial. A cláusula 7ª das condições gerais não se pode impor ao regime jurídico vigente, como foi explicado na sentença recorrida, e a referência ao “segurado” constante deste regime não pode ser substituída, por simples vontade da seguradora, por “tomador”. De resto, a seguradora, na contestação, censurava também à autora, não só ao marido, a falta de pagamento, como se pode ver no seu art. 29 (: “a autora e o marido não procederam ao pagamento de nenhum dos prémios de seguro a que estavam obrigados”).
Pelo que improcedem as razões invocadas e o contrato tem que se considerar em vigor.
VI
Conclusão VIII (aceitação tácita da anulação…)
Relembre-se a argumentação da seguradora: “face à informação dada pela seguradora de que a apólice contratada se encontrava já anulada por falta de pagamento dos prémios de seguro, o facto de os segurados requererem a subscrição de nova apólice de seguro só pode representar para o declaratário normal uma aceitação tácita de tal anulação. Caso contrário, em face de tal situação sempre os segurados tentariam fazer valer os seus direitos de imediato ao invés de solicitar a subscrição de uma nova apólice.”
Quanto a isto dizia a sentença recorrida, no essencial, que “a referida factualidade é insuficiente para se considerar que a apresentação da nova proposta de seguro […], constitua inequívoca aceitação, por parte do marido da autora e da autora, de que o contrato de seguro […] estava resolvido e bem resolvido. Na verdade, na falta de outra factualidade, não é possível concluir da forma descrita, de acordo com os usos do ambiente social, com toda a probabilidade.”
E diz a autora nas contra-alegações, também no essencial: ”sempre seria mais razoável concluir que o desespero da autora, em face da suposta resolução do contrato, era tanto, que tentou, por todos os meios, ficar numa situação de protecção que lhe permitisse manter a habitação, no caso do seu marido vir a falecer.”
Mota Pinto diz que “a declaração é tácita quando do seu conteúdo directo se infere um outro, isto é, quando se destina a um certo fim, mas implica e torna cognoscível, a latere, um autoregulamento sobre outro ponto – em via oblíqua, imediata, lateral (“quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam” [art. 217.º/1, parte final, do CC]). Não quer isto dizer que “a inequivocidade dos factos concludentes” exija “que a dedução, no sentido do autoregulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária”, mas a dedução tem de, “conforme os usos do ambiente social”, poder “ter lugar com toda a probabilidade.”. Também “não exige a consciência subjectiva por parte do seu autor desse significado implícito”, mas este tem de poder “ser deduzido do comportamento do declarante”, “objectivamente, de fora, numa consideração de coerência” (obra citada, págs. 422/423).
Paulo Mota Pinto vê a concludência como problema de interpretação: trata-se de determinar/extrair/obter, de factos concludentes (o elemento objectivo), enquadrados nas respectivas circunstâncias e de acordo com o critério interpretativo (da impressão do destinatário), uma declaração (não uma vontade) negocial tácita (págs. 746 a 754). Ou seja, a ilação depende do juízo sobre se um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, a efectuaria (pág. 755). E trata-se de uma inferência prática que não é guiada apenas por critérios lógicos. A concludência baseia-se, pois, num nexo lógico-experimental em que factores de tipicidade social e factores jurídicos são também importantes (pág. 768). Trata-se de, num contexto prático de interacção, determinar o significado de um comportamento, de acordo com os seus critérios gerais (pág. 769). No que toca ao grau de segurança da ilação, não são requeridas a necessidade ou a segurança absolutas, mas antes uma elevada probabilidade de inferência (pág. 772) (Declaração tácita e comportamento concludente no negócio jurídico, Almedina, 1995).
No caso dos autos, tendo em conta as circunstâncias concretas e a experiência das coisas, o que a conduta da autora e do marido - contraentes privados fracos em confronto com contraente forte -, permite inferir é apenas que aqueles não iriam discutir a resolução do contrato, suposto que a solução encontrada resultasse no efeito prático visado com a existência do contrato. O que se extrai do respectivo comportamento é uma atitude de: não nos importa que vocês considerem o contrato anulado ou que vocês façam o que quiserem com ele, desde que, com a celebração de um novo contrato, nós consigamos o mesmo resultado que resultaria daquele. Não temos tempo, nem dinheiro, nem vontade de nos envolvermos em conflito com alguém que tem tudo isto, pelo que, se conseguirmos o que queremos sem nos envolvermos na discussão da questão, óptimo.
Assim, para além da declaração expressa com vista à celebração do novo contrato, não é possível ver na conduta da autora e do marido uma outra declaração negocial no sentido de revogarem o anterior ou de concordarem em que o contrato estava resolvido ou a apólice anulada (o que aliás não poderia acontecer, nesta parte, porque o contrato não estava resolvido…).
Conclusão IX
Tem como pressuposto que a apólice não está em vigor, o que, como já se sabe não é correcto.
VII
Conclusão X a XII (do abuso de direito)
O (des)conhecimento da falta de pagamento do seguro
Na perspectiva mais forte com que estas conclusões podem ser lidas, elas têm um pressuposto de facto que não vem explicitado: a autora e o seu marido sabiam que nunca tinham pago as prestações pressupostas pela vigência do contrato de seguro.
Mas este facto não está provado, nem foi alegado, nem, por isso, foi sujeito a contraditório, nem se sabe se as circunstâncias que rodearam o não pagamento das prestações de seguro implicariam o conhecimento, pela autora e seu marido, de que não estavam a pagar o seguro.
Relembre-se que o seguro devia ser pago por débito directo através de uma conta-bancária. Não se trata, por isso, de alguém estar obrigado a, todos os meses, ir pagar uma dada prestação pecuniária ao credor, situação em que a falta de pagamento não poderia deixar de ser conhecida. Não se conhecem também as características de tal conta bancária, nem se a autora e o seu marido estavam em contacto com a mesma. Nem se sabe o valor da prestação mensal e se ela era significativa para os rendimentos da autora e seu marido. Quando se programa o pagamento através de débito directo, visa-se precisamente obter um estado de despreocupação com a realização dos pagamentos respectivos.
Para além disto tudo, o seguro (celebrado em Janeiro de 2000) visava a cobertura de um crédito que só veio a ser concedido através de um contrato celebrado mais de um ano depois (Março de 2001). Quando a autora e marido celebraram o seguro ainda não tinham contraído o empréstimo e só o contraíram um ano depois. Será que eles se aperceberam, na altura, que deviam começar logo a pagar o seguro e que, não o fazendo, entraram em incumprimento? E quando mais de um ano depois contraíram o empréstimo, ter-se-ão apercebido de que o que pagavam mensalmente pelo empréstimo não incluía o seguro? Isto sempre sem se esquecer que o pagamento era feito através de débito directo.
De algum modo neste sentido, diz a autora nas contraalegações: “Chamando à colação, neste âmbito, um critério de razoabilidade, tendo por base o critério do homem médio, minimamente diligente e instruído, seria perfeitamente normal concluir que a autora pensasse que ao pagar a prestação de amortização do empréstimo estaria também a pagar o prémio de seguro, pois um tal pagamento é perfeitamente confundido, pela generalidade das pessoas, com o pagamento da prestação do crédito à habitação. Estaria também por esta via afastado o instituto em causa.”
Mas, ainda mais significativo do que tudo isto, é o seguinte: o contrato de empréstimo bancário tinha como condição a existência de um seguro (naturalmente que em vigor). O contrato de empréstimo ocorreu em Março de 2001. A seguradora diz ter anulado a apólice do seguro no quarto trimestre de 2000 e diz ter comunicado a anulação quer à autora e marido quer ao Banco. Assim, só circunstâncias muito particulares é que podem justificar que o Banco, em Março de 2001, tenha celebrado o contrato de empréstimo, sem que o seguro estivesse a ser pago e com a suposta comunicação da seguradora de que tinha anulado a apólice.
Assim, tudo isto permite a afirmação de que existem circunstâncias particulares muito especiais, que já acima se disse não serem do conhecimento deste processo, o que impede que se tire a conclusão – que a seguradora quer tirar sem ter alegado os factos respectivos - de que a autora e o seu marido tivessem conhecimento de que não estavam a pagar o seguro.
VIII
De novo quanto à interpelação cominatória
Põe-se também aqui a questão do alcance do que se disse acima quanto à interpelação admonitória/resolutiva, decorrente da carta de 06/10/2000 (a propósito de parte das conclusões IV e V).
Mas também já acima se esclareceu que, por força dessa carta, o marido da autora considera-se notificado eficazmente da interpelação cominatória, sem que tal implique que tenha tido conhecimento efectivo do conteúdo da mesma.
Pelo que é irrelevante.
*
Assim, a questão do abuso de direito põe-se nestes termos:
Nunca tendo sido pagas as prestações de seguro durante toda a vigência do contrato (9 anos), não será abusivo que a autora venha accionar o seguro, mesmo não se provando que ela soubesse que o seguro não estava a ser pago?
IX
Abuso de direito – tu quoque
O abuso de direito, previsto expressamente no art. 334 do CC, apresenta-se como “uma constelação de situações típicas [sem prejuízo do aparecimento de situações atípicas, ocorrências de sobreposição e ocorrências desfocadas em relação ao núcleo duro dos diversos tipos] em que o Direito, por exigência do sistema, entende deter uma actuação que, em princípio, se apresentaria como legítima”. O que acontece pela concretização do princípio da boa fé através da mediação dos princípios da tutela da confiança e da primazia da materialidade subjacente (Menezes Cordeiro, Do abuso do direito: estado das questões e perspectivas, Estudos em homenagem ao Prof. Doutor António Castanheira Neves - Vol. II, Coimbra Editora, Stvdia Ivridica, Dez2008, págs. 125 a 144). Dito de outro modo, o abuso de direito é a violação de limitações ao exercício de posições jurídico-subjectivas que só são determináveis em concreto, que correspondem a exigências globais que se projectam – ou podem projectar - em exercícios precisos, que se ordenam em função de princípios gerais como o da tutela da confiança e o da primazia da materialidade subjacente e que equivalem, em termos jurídico-positivos, a uma regra de conduta segundo a boa fé (obra citada, págs. 168/169). E a base ontológica do abuso de direito é a disfuncionalidade intra-subjectiva, ou seja, o exercício do direito que contraria o sistema: o abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jurídico-subjectivos por, embora consentâneos com normas jurídicas permissivas concretamente em causa, não confluírem no sistema em que estas se integram (págs. 169/170). Dito ainda de outro modo: O abuso do direito é o exercício disfuncional de posições jurídicas (pág. 172).
(em termos substancialmente diversos quanto a tudo isto, principalmente à ligação entre o abuso e a boa fé entendida como regra de conduta, veja-se Carneiro da Frada, que entende que a boa fé, aqui, é a expressão de uma justa composição dos interesses entre sujeitos e não regra de conduta - Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Janeiro 2004, págs. 839/865 -; mas, ao que se crê, esta divergência não tem relevo no caso concreto, para mais quando o sub-instituto que vai estar em causa abaixo não está ligado à tutela da confiança mas à da primazia da materialidade subjacente)
Entre essas situações está a que dá origem ao sub-instituto do to quoque, que “exprime a máxima segundo a qual a pessoa que viole uma norma jurídica não pode, depois e sem abuso, ou prevalecer-se da situação jurídica daí decorrente, ou exercer a posição jurídica violada pelo próprio ou exigir a outrem o acatamento da situação já violada.” (Menezes Cordeiro, estudo citado, pág. 153).
Isto tem na sua base a seguinte fundamentação: “a ordem jurídica postula uma articulação de valores materiais, cuja prossecução pretende ver assegurados. Nesse sentido, ela não se satisfaz com arranjos formais, antes procurando a efectivação da substancialidade. Pois bem: a pessoa que viole uma situação jurídica perturba o equilíbrio material subjacente. Nessas condições, exigir à contraparte um procedimento equivalente ao que se seguiria se nada tivesse acontecido, equivaleria ao predomínio do formal: substancialmente, a situação está alterada, pelo que a conduta requerida já não poderá ser a mesma. Digamos que, da materialidade subjacente, se desprendem exigências ético-jurídicas que ditam o comportamento dos envolvidos (Menezes Cordeiro, estudo citado, págs. 154 e 155).
Ora, do ponto de vista da seguradora, é esta a situação que resulta do exercício do direito de accionar o seguro pela autora: esta pretende beneficiar do seguro sem ter pago nada em contrapartida durante nove anos (ou seja, encontrando-se numa situação objectiva de violação da posição jurídica que pretende que a seguradora acate).
Mas, numa perspectiva oposta, chega-se a uma resultado muito mais grave: dando provimento à pretensão da seguradora ir-se-ia, contra a lei, retirar à segurada a protecção de um seguro que tem por fim cobrir o risco de perda de rendimentos para pagar o empréstimo bancário, podendo, por isso, levar à perda da habitação própria contraída com esse empréstimo, e isto sem se provar, sequer, que ela sabia que o seguro não estava a ser pago.
Ora, contra a solução que a seguradora contesta, ela podia-se ter prevenido simplesmente cumprindo a lei, ou seja, comunicando devidamente a declaração de resolução do contrato, o que simultaneamente permitiria cumprir outro objectivo da mesma lei: dar aos segurados o conhecimento efectivo da declaração da resolução do contrato, para que, querendo, possam celebrar um novo contrato que os ponha a coberto do risco de perda do seguro.
Aliás, a seguradora também não alegou – para depois provar – que cumpriu outra elementar regra de cautela do seu risco - que agora quer evitar, afastando a lei a pretexto do abuso de direito -, que seria a comunicação da declaração de resolução do contrato de seguro ao Banco: o que poderia ter evitado a celebração do contrato de empréstimo bancário.
Assim sendo, conclui-se que, para evitar o resultado que a seguradora agora não quer - mas que poderia ter evitado se tivesse actuado com um mínimo de cuidado, de resto como a lei lhe impunha -, se iria cair numa situação muito mais grave de desprotecção da segurada, com a possível consequência da perda do direito desta à própria habitação.
Ora, a aplicação do abuso de direito não se destina a criar este tipo de situações…
*
A sentença recorrida afasta o abuso de direito com base, no essencial, na fundamentação aduzida pelo ac. do TRL de 31/05/2007 (publicada na base de dados do ITIJ sob o nº. 4560/2007-6, o que se acrescenta agora) que apresenta outros bons argumentos no sentido do defendido e que por isso se passam a transcrever:
“[…] tem de se aceitar que o caso dos autos se situa na fronteira entre o uso e o abuso de direito, sendo de propender para um lado ou para outro, conforme seja de realçar o exercício legítimo do direito em face da manutenção em vigor da apólice de seguro, por não resolvido o contrato, ou de sobrelevar o condicionalismo externo ao exercício de tal direito, consistente na falta de pagamento dos prémios de seguro, com a consequência de a seguradora ter de responder nos termos do contrato sem ter usufruído integralmente da contrapartida financeira acordada.
Por outras palavras será que fere o sentimento jurídico dominante que a seguradora seja chamada a cumprir o contrato de seguro em vigor, quando os seus beneficiários não cumpriram integralmente com a satisfação dos prémios que estavam adstritos a liquidar?
Propendemos, com todo o respeito por entendimento contrário, para não considerar verificado no caso sob recurso uma situação caracterizável de abuso de direito.
À partida não se pode perder de vista que estamos em face de uma relação contratual em que a parte mais forte é indubitavelmente a seguradora, não só por ser a autora dos termos do contrato como por ser detentora de melhores meios e condições para intervir adequadamente na execução duradoura do mesmo contrato.
Em segundo lugar temos de concreto que tendo o tomador do seguro deixado de pagar determinados prémios seguro (de Fevereiro/Março de 1998), a seguradora (…) não avisou, ou não fez prova de ter avisado, o segurado para satisfizer os prémios em dívida colocando-se, assim, na situação de manter o contrato como subsistente, por nem o poder resolver por falta de notificação admonitória para o efeito.
Como opção conscientemente assumida ou como descuido pelo qual só pode ser responsável, ao manter em vigor o contrato após se ter verificado a falta de pagamento do respectivo prémio, no primeiro momento e pelo tempo fora, não podia possuir qualquer legítima expectativa de não vir a ser demandada nos termos da apólice, na hipótese de o segurado (no caso também tomador do seguro) vir a sofrer sinistro de que adviesse morte ou invalidez total e definitiva, como se veio a verificar.
Sendo previsível o exercício do direito por parte dos beneficiários do seguro nos termos acordados na apólice e sendo a seguradora detentora da faculdade de exigir o rigoroso cumprimento do contrato e até de o resolver e não o tendo feito, por opção ou por incúria, não poderá no caso em análise considerar-se a presente demanda como integradora de uma situação de abuso de direito.
É certo que o facto de ter decorrido um lapso de tempo apreciável entre a data em que ocorreu o não pagamento dos prémios de seguro e a data em que o tomador e pessoa segura faleceu (cerca de 5 anos e 9 meses) e até entre a primeira data e a data em que foi exigido o pagamento do capital (cerca de 6 anos), choca um pouco, à primeira impressão, o sentimento jurídico, mas apenas pelo longo lapso de tempo em que se manteve a falta de pagamento dos prémios de seguros e não por qualquer tardio exercício do direito, já que este seguiu no imediato ao decesso da pessoa segura. No entanto, na situação vertente não se pode tirar argumento seguro com o decurso do tempo, pois que tal sempre seria reversível, na medida em que se a falta de pagamento se protraiu demasiado no tempo, desse tempo todo também usufruiu a seguradora para exigir o cumprimento, ou até a resolução, do contrato e nada provou ter feito em tal sentido. Quer dizer a seguradora gozou de tempo bastante, ou mesmo excessivo, para se precaver de qualquer indesejada demanda e apesar disso, não quis, ou não soube, usá-lo na defesa dos direitos que lhe assistiam.
A seguradora diz que a razão de ser do decidido neste acórdão não se aplica pois que, no caso dos autos, ao contrário do caso do acórdão em causa, a seguradora informou os segurados da sua situação de mora. Mas, como já se viu (início da parte III e partes VII e VIII deste acórdão), não é assim, pois que o facto de se considerar eficaz a interpelação cominatória em relação ao marido não equivale a conhecimento efectivo da situação de mora por parte deste e menos ainda da autora, nem os fundamentos invocados têm só a ver com este desconhecimento.
X
Do parcial abuso de direito
De qualquer modo, a seguradora tem, em parte, razão: o accionamento de um qualquer seguro pressupõe a vigência de um contrato durante o qual é suposto haver, pela contraparte da seguradora, o pagamento periódico de um prémio. Ou seja, durante o período de vigência do contrato e em contrapartida do risco em que a seguradora incorre de vir a ter que pagar o valor seguro, é suposto que o tomador do seguro pague uma contraprestação. Assim, receber o benefício do seguro sem a contrapartida do pagamento da quantia correspondente ao período em que ele vigorou, seria desrespeitar esta correspondência. Há que evitar esse resultado, o que, aliás, pode ser conseguido com naturalidade. Basta que se imponha o desconto daquilo que era suposto o tomador de seguro ter pago no período em causa no valor daquilo que a seguradora tiver que pagar. E como base deste desconto, aqui sim, poderá funcionar, o abuso de direito, concretizado na modalidade do to quoque.
E assim considera-se que em parte procedem estas conclusões da ré seguradora.
*
(…)
*
Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, alterando-se apenas o segundo traço da decisão recorrida para dele passar a constar o seguinte:
- condena-se a ré a pagar ao “C” a quantia necessária para amortização do empréstimo celebrado com o então “CC”, descontado do valor dos prémios de seguro que os segurados deviam ter pago, tudo a liquidar em incidente próprio.
Custas pela ré e pela autora na proporção do decaimento, quer na acção quer no recurso.

Lisboa, 8 de Novembro de 2012

Pedro Martins
Eduardo Azevedo
Lúcia Sousa