Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1669/13.1TVLSB.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: FIXAÇÃO JUDICIAL DE PRAZO
FUNDAMENTOS
NULIDADE DO CONTRATO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/11/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: Sumário  (do relator).

I – Não é exigível, em processo de fixação judicial de prazo, a prova do direito invocado, questão de natureza contenciosa, cometida a essa outra correspondente jurisdição, em via de ação com processo comum.

 II – Não está porém o requerente dispensado de justificar o direito à fixação judicial de prazo, o que equivale a dizer que a necessidade dessa fixação há-de ser equacionável em função da relação jurídica substanciada por aquele.

III – É assim de indeferir o requerido quando os factos alegados pelo próprio requerente excluírem a existência da obrigação para cujo cumprimento vem requerida a fixação de prazo, ou a necessidade dessa fixação.

 IV – Quando da relação contratual invocada resultasse ter sido convencionado que o co-mutuário ficava obrigado a alterar o contrato de mútuo, de modo a passar a figurar nele como único mutuário/ devedor, o outro co-mutuário, tal redundaria em negócio com objeto contrário à lei, cujos princípios fundamentais repudiam essa unilateral desvinculação, no confronto do credor, do originário devedor ou codevedor.

V – Por isso a correspondente convenção sempre seria nula.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam neste Tribunal da Relação

I – A requereu em processo especial, nos termos dos art.ºs 1026º e 1027º, do Código de Processo Civil, sendo requerido B, que:

a) Seja fixado o prazo de sessenta dias para o Requerido desonerar a Requerente do “crédito mutuário” contraído junto do Banco ...garantido por hipoteca sobre o imóvel sito na Rua ..., freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ..., da freguesia de Santa Maria dos Olivais, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ..., deixando a Requerente de constar como mutuária do contrato de crédito e de ser responsável pelo pagamento das respetivas prestações.

b) Seja o Requerido ser condenado na sanção pecuniária compulsória de € 20,00 por cada dia de mora no cumprimento do prazo fixado.

Alegando, para tanto e em suma:

Por sentença de 09-11-2011, transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre a Requerente e o Requerido.

E que para a aquisição da que foi a casa de morada de família, antecedentemente referida, Requerente e Requerido contraíram junto do … um mútuo, garantido por hipoteca constituída e registada a favor daquele banco.

Após o seu divórcio, Requerente e Requerido, por escritura pública de “Partilha por Divórcio”, outorgada em 5 de Março de 2012, declararam que, para pagamento da quota-meação do Requerido, foi-lhe adjudicado o sobredito imóvel.

Obrigando-se o requerido, na mesma escritura, ao “pagamento exclusivo do crédito contraído junto do ....”.

Sendo que a obrigação pelo Requerido da assunção exclusiva do crédito perante o ... foi um dos elementos essenciais para a adjudicação ao mesmo do dito imóvel.

Contudo, não foi fixado prazo para tal obrigação, apesar de a Requerente já ter procedido a interpelação escrita do Requerido para que o mesmo passasse junto da instituição bancária em causa a ser o único titular do crédito à habitação em causa, que se encontra garantido por hipoteca sobre um imóvel que não mais pertence à Requerente, nada foi feito pelo Requerido.

O facto de o Requerido não ter ainda retirado o nome da Requerente de mutuária do identificado contrato de mútuo, passando o mesmo a figurar como único titular do sobredito crédito hipotecário, continuando a Requerente agregada a tal crédito, impede-a de contratar outros créditos perante as entidades bancárias, uma vez que a sua taxa de esforço perante as instituições bancárias está esgotada.

Para além de viver a Requerente no permanente receio de que o Requerido não cumpra com o pagamento do crédito supra identificado, o que originará uma eventual comunicação ao Banco de Portugal, passando a Requerente a constar da listagem de risco da referida instituição.

O que teria efeitos gravosos para o bom nome da Requerente, bem como para a atividade empresarial da mesma.

Citado, respondeu o Requerido, dizendo, no essencial:

Que a Requerente sempre soube que a obrigação de o Requerido a desvincular do contrato de mútuo que aquele se obrigou a pagar não poderia ser assumida pelo Requerido, tal como lhe foi por diversas vezes explicado na escritura de partilha, dela fazendo parte integrante quer as advertências de que a assunção das dívidas pelos outorgantes, aí tituladas, é ineficaz em relação ao credor hipotecário, quer a informação de que a responsabilidade, pelo pagamento das dívidas descritas nas verbas do passivo, assumida por cada um deles, nos termos referidos, só produz efeitos perante o credor hipotecário com o consentimento deste.

E tanto assim é que Requerente e Requerido aceitaram estipular consequências para o caso de um deles ser prejudicado pelo incumprimento das obrigações assumidas pelo outro.

Remata com a “improcedência” da ação e a sua “absolvição do pedido”.

Por despacho reproduzido a folhas 75 e 76, foi declarada a incompetência das Varas Cíveis de Lisboa para a preparação e julgamento da ação, e ordenada a remessa dos autos aos Juízos Cíveis de Lisboa.

Sendo, naqueles, proferida sentença que, considerando que não tendo sido “convencionada qualquer obrigação por parte do requerido, ou da requerente, de desonerar o outro das obrigações que este assumiu perante o credor hipotecário. Como, diga-se, não poderia ser, o que na própria escritura se reconhece (…) também não se mostra justificado o pedido de fixação de qualquer prazo para a sua realização”.

Inconformada, recorreu a Requerente, formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:

“1. O Tribunal a quo incorreu em erro de direito ao proferir juízo expresso acerca da inexistência da obrigação;

2. Não poderia o Tribunal a quo ter indeferido a fixação judicial de prazo com fundamento na conclusão da inexistência da obrigação alegada pela Apelante, porquanto “estão fora do âmbito deste processo (…) questões de carácter contencioso como as da inexistência ou nulidade da obrigação” (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 12 de Junho de 1996, no processo n.º 0098152, in www.dgsi.pt);

3. A Apelante demonstrou a sua legitimidade e a do requerido e alegou suficientemente a aparente existência da obrigação para cujo cumprimento se pede a fixação de um prazo;

4. Tanto que a Apelante alegou que o Requerido obrigou-se ao pagamento exclusivo do crédito contraído junto do ..., tendo a Apelante alegado nesse seguimento que a obrigação pelo Requerido da assunção exclusiva do crédito perante o ... foi um dos elementos essenciais para a adjudicação ao mesmo do imóvel sito na Rua ..., freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa;

5. Por isso, alegou a Requerente que, por força do declarado na escritura de “Partilha por Divórcio” em causa, o Requerido teria de proceder à alteração do contrato de mútuo junto do ..., em prazo razoável, passando o Requerido a figurar como único titular do sobredito crédito hipotecário;

6. Ou seja, estão preenchidos os pressupostos da fixação judicial de prazo, concretamente a alegação da obrigação e a não previsão de prazo pelas partes;

7. Logo, deveria o Tribunal a quo se ter bastado na análise do alegado nos artigos 6.º e 7.º do Requerimento Inicial, conjugado com o teor da escritura pública junta como doc. 2 para fixar o prazo requerido;

8. E sendo assim, ter-se-á de julgar procedente o recurso, revogando-se, consequentemente, a sentença recorrida e determinando-se a sua substituição por douta decisão que determine a fixação de prazo requerida.

Sem prescindir:

9. Ainda que se considere que o Tribunal a quo bem andou ao aquilatar da existência ou validade da obrigação alegada pelo Requerente, ainda assim sempre teria que se determinar a fixação judicial do prazo indicado, na medida em que a decisão de considerar o Apelado não obrigado a diligenciar pela alteração do contrato de mútuo conduziria a um resultado inadmissível;

10. Isto porque a douta sentença sob censura tem o efeito pernicioso de vincular a Apelante ad eternum a um contrato de que não mais é beneficiária, porquanto o crédito hipotecário em causa foi contraído para aquisição de uma habitação adjudicada ao Apelado, conforme resulta de fls. 6 do da escritura em causa;

11. Ou seja, a decisão impugnada sujeita a Apelante a ser responsabilizada patrimonialmente em resultado da eventual inadimplência do Apelado, o qual é o único obrigado ao pagamento do crédito bancário em causa;

12. É precisamente pelo facto de não ter sido fixado um prazo que a Apelante instaurou a presente acção especial de fixação judicial de prazo;

13. Dada a natureza da obrigação assumida, que implica a aquiescência do banco credor, não está a mesma subordinada ao princípio de imediata exigibilidade e, por isso, se impôs a instauração da presente acção com indicação de um prazo razoável para o seu cumprimento, que se computou em 90 dias;

14. Ou seja, pelo facto de a realização de tal obrigação não estar na disponibilidade das partes, estando também dependente da vontade do credor hipotecário, é essa natureza da prestação e as circunstâncias que a determinaram que permitem que a Apelante recorra ao Tribunal para a fixação do prazo, nos termos do artigo 777.º, n.º 1 do CC;

15. E, se assim não fosse, a douta sentença impugnada, para além de considerar a Apelante obrigada a figurar como devedora perante o ... até à extinção do contrato pelo cumprimento - o que, como é consabido, dificulta a contratação de outros créditos perante as entidades bancárias, uma vez que o crédito em causa influi na taxa de esforço -, sujeitaria totalmente a Apelante à actuação do Apelado na execução do contrato de financiamento bancário em causa;

16. Ou seja, a decisão sob censura contém elementos de injustiça e de violação do sentimento jurídico prevalente na comunidade social, colocando a Apelante indefinidamente dependente do bom e atempado cumprimento pelo Apelado do mútuo bancário em causa, o que é clamorosamente ofensivo da justiça, ainda que ajustado ao conteúdo formal do direito;

17. Mais, é o próprio elemento sistemático e a forma como o nosso ordenamento jurídico se encontra estruturado que apontam no sentido de ser exigível a fixação de um prazo para cessar a co-responsabilidade das partes perante o credor hipotecário;

18. Tanto que o nosso ordenamento jurídico é “avesso” ao perpetuar de obrigações duradouras ou até à compropriedade, atribuindo aos comproprietários o direito de fazer cessar a compropriedade, conferido pelo n.º 1, do artigo 1412.º Código Civil através da acção de divisão de coisa comum;

19. Pelo que, também por isso, se imporia o deferimento do requerimento de fixação judicial de prazo.

Sem prescindir:

20. Sempre se dirá que o Tribunal a quo não poderia desde logo ter determinado a improcedência da fixação judicial de prazo sem ser produzida a prova testemunhal indicado nos articulados das partes;

21. Realmente, ainda que se considere que era legítimo ao Tribunal a quo indagar da existência da obrigação alegada pela Apelante, tal facto terá de ser provado por prova testemunhal, que o Tribunal a quo descurou tendo proferido a decisão sob censura;

22. Tanto que a Requerente não se amparou apenas no teor da escritura pública junta ao Requerimento Inicial como doc. 2, como também a Requerente referiu que o Requerido se obrigou a alterar o contrato de mútuo junto do ..., em prazo razoável, passando o mesmo a figurar como único titular do sobredito crédito hipotecário;

23. Na verdade, mesmo que tal obrigação não resulte textualmente da escritura pública dos autos, não poderia o Tribunal a quo indeferir o pedido de fixação judicial de prazo, porquanto se impõe a produção da prova testemunhal indicada;

24. Termos em que deverão prosseguir os autos a fim de se apurar se, de facto, a outorga da escritura pública junta como doc. 2 ao Requerimento Inicial pressupunha a obrigação do Apelado em proceder à alteração do contrato de mútuo junto do ..., passando o mesmo a figurar como único titular do sobredito crédito hipotecário;

25. Pelo que, também por isso, subsidiariamente, deverá revogar-se a douta decisão em crise, substituindo-se a mesma por outra que ordene o prosseguimento dos autos para produção da prova requerida.

A decisão sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais:

• Artigo 777.º, n.º 2 do CC;

• Artigo 1026.º do CPC.”.

Contra-alegou o Requerido, pugnando pela manutenção do julgado.

II – Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.

Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do Código de Processo Civil – é questão proposta à resolução deste Tribunal, a de saber se é caso de fixação judicial de prazo, para cumprimento pelo Requerido da obrigação invocada pela Requerente.

***

Resulta do documento – cópia de escritura de partilhas em consequência de divórcio, junto pela Requerente a folhas 54 a 61, que o Requerido não impugnou – e em enunciação mais especificante e autonomizada, do que a adotada na sentença recorrida – que:

a) Requerente e Requerido contraíram, como mutuários, perante o Banco Comercial Português, S.A. (...), como mutuante, um empréstimo para aquisição, para habitação, do imóvel sito na Rua …, freguesia de Santa Maria dos Olivais, concelho de Lisboa, descrito na Conservatória do Registo Predial de Lisboa sob o n.º ..., da freguesia de Santa Maria dos Olivais, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ....

b) O crédito do ..., S.A., encontra-se garantido por hipoteca constituída sobre aquele imóvel, e registada a favor do referido banco.

c) Por sentença proferida em nove de Novembro de dois mil e onze, transitada no dia nove de Dezembro de dois mil e doze, pelo … de Família e Menores de Lisboa, no processo de divórcio, convolado em por mútuo consentimento, que correu os seus termos naquele Tribunal, sob o número …, foi decretado o divórcio entre os aqui Requerente e Requerido, declarando-se dissolvido o respetivo casamento.

d) Após o seu divórcio, Requerente e Requerido, por escritura pública de "Partilha por Divórcio", outorgada em 5 de Março de 2012 no Cartório Notarial de …, em Lisboa, exarada de f1s. 5 a fls. 8 do Livro para escrituras diversas n.º 234-A, declararam que, para pagamento da quota-meação do Requerido, foi-lhe adjudicado o imóvel referido supra em a).

e) Ainda, nos termos declarados na escritura pública em causa, o Requerido assumiu ser da sua “exclusiva responsabilidade o pagamento da dívida” resultante do “empréstimo contraído pelos partilhantes junto” do ..., referido em a).

f) Mais declararam os outorgantes, na referida escritura, “Que, uma vez que a responsabilidade pelo pagamento das dívidas descritas nas verbas do passivo assumidas por cada um deles, nos termos referidos, só produz efeitos perante o credor hipotecário com o consentimento deste, na falta do qual continuam ambos responsáveis, nos termos em que o eram, expressamente declaram, para ficar consignado, que, para além do pagamento do empréstimo que cada um assumiu, ficam igualmente obrigados ao pagamento dos seguros associados, ficando também expressamente acordado entre ambos que se algum deles deixar de pagar as responsabilidades aqui assumidas, ficando o outro obrigado a substituir-se-lhe nesse pagamento, ou se qualquer um deles, tiver, por esse facto imputável ao outro, o seu nome na lista de incumpridores do Banco de Portugal, fica o outorgante não cumpridor obrigado ao pagamento de uma indemnização correspondente ao dobro do valor pago pelo outro.”.

g) Consignando-se ainda, naquele documento, que “Foi feita aos outorgantes a leitura e explicação do conteúdo desta escritura, tendo advertido os mesmos de que a assunção das dívidas pelos outorgantes, aqui tituladas, é ineficaz em relação ao credor hipotecário enquanto não for por eles ratificada, nos termos do art. 595º, n° 1 - al. a) do Código Civil.”.

***

Vejamos.

1. O processo especial de fixação judicial de prazo, regulado nos art.ºs 1026º e 1027º do novo Código de Processo Civil, foi introduzido pelo Decreto-Lei n.º 47690, de 11-05-67, que, em adjetivação do art.º 777º, n.º 2, do Código Civil, deu nova redação aos art.ºs 1456º e 1457º do Código de Processo Civil de 1961.

Antes da entrada em vigor do atual Código Civil, apenas se previa a fixação judicial de prazo, na falta de acordo entre as partes, na execução para prestação de facto, como uma espécie de fase introdutória nela enxertada, cfr. art.ºs 939º e 940º, do Código de Processo Civil de 1939.

Posto o que, e como dá nota Antunes Varela,[1] “Em qualquer outro caso, o credor parece que teria de aguardar o decurso de um prazo razoável, a fim de que a obrigação fosse considerada como vencida pelo tribunal, na hipótese de ter de recorrer às vias executivas.”.

 Sob a epígrafe “Determinação do prazo”, dispõe-se no sobredito art.º 777º:

“1. Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-se dela.

2. Se, porém, se tornar necessário o estabelecimento de um prazo, quer pela própria natureza da prestação, quer por virtude das circunstâncias que a determinaram, quer por força dos usos, e as partes não acordarem na sua determinação, a fixação dele é deferida ao tribunal.

3. Se a determinação do prazo for deixada ao credor e este não usar da faculdade que lhe foi concedida, compete ao tribunal fixar o prazo, a requerimento do devedor.”.

Consagra-se no n.º 1, o princípio geral das chamadas obrigações puras, que, “por falta de estipulação ou disposição em contrário se vencem logo que constituídas, ou seja, logo que o credor mediante interpelação exija o seu cumprimento (quod sine die debetur statim debetur) ou o devedor pretenda realizar a prestação devida.”.[2]

Na categoria das obrigações a prazo, ou seja daquelas “cujo cumprimento não pode ser exigido ou imposto à outra parte antes de decorrido certo período ou chegada certa data”, incluem-se ainda aquelas a que se refere o n.º 2 do artigo 777.°, e que a doutrina designa como obrigações de prazo natural, circunstancial ou usual,[3] assim carecidas, na falta de acordo, de fixação de prazo para o seu cumprimento.

2. A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça no tocante à fixação judicial de prazo, tem apresentado algumas nuances.

Assim em Acórdão de 14-12-2006,[4] julgou aquele Tribunal que a causa de pedir, na processo de fixação judicial de prazo é “a falta de acordo das partes quanto ao prazo de cumprimento de obrigação de que não é disputada a existência, validade e eficácia”, sendo “finalidade própria - e exclusiva - desse processo especial, a fixação de prazo para esse efeito, a questão a dirimir no processo especial de jurisdição voluntária regulado nos arts.1456º e 1457º CPC é apenas a da fixação do prazo”.

Não sendo “consentida indagação aprofundada sobre a existência da obrigação em causa, na acção com processo especial de marcação de prazo regulada nos arts.1456º e 1457º CPC não é exigível a prova do direito invocado; mas nem por isso a lei dispensa a justificação desse direito, de entender, pelo menos, em termos da aparência de direito (fumus boni juris) exigida nos procedimentos cautelares.”.

E “Não se justifica, por inútil, a fixação judicial de prazo para o cumprimento de obrigação a quem não reconheça a sua existência e se recuse, por consequência, a cumpri-la.”.

Já em Acórdão de 05-03-2002,[5] se julgou que “Neste processo o requerente apenas terá que justificar o pedido de fixação, mas não de fazer prova dos seus fundamentos; a função jurisdicional esgota-se no momento em que o prazo for fixado.”.

E, em Acórdão de 4-11-2006,[6] que “O processo de fixação judicial de prazo (arts. 1456.º e 1457.º do CPC) não comporta a discussão de questões de natureza contenciosa, como a inexistência ou nulidade da obrigação, o incumprimento definitivo, a resolução, pois tudo isso são problemas a resolver no quadro de uma acção comum.”.

Também no Acórdão de 20-10-2009,[7] se havendo decidido que “Na acção de fixação judicial de prazo – acção de jurisdição voluntária – o objecto da decisão limita-se à afirmação da necessidade de fixação de prazo em função do tipo de estipulação estabelecida pelas partes e à respectiva obrigação imposta judicialmente”.

Nele se citando o Acórdão desta Relação de 29.1.2004, in CJ, 2004, I, 91: “…Em processo de fixação judicial de prazo, a determinação deste não tem que passar por prévia demonstração da exigibilidade da obrigação. Esta forma processual não é o lugar certo para discutir a questão de fundo que é sempre a obrigação para cujo cumprimento não se fixou prazo ou se não logrou obter consenso quanto a ele. Está pois fora do objecto deste tipo de processo a averiguação sobre a validade do contrato, a existência da obrigação ou a sua extinção. A fixação de prazo não está sujeita à condição de ambas as partes estarem de acordo quanto à existência da obrigação.”.

Enfileiramos com a corrente assim largamente maioritária, para a qual não sendo exigível a prova do direito invocado – questão de natureza contenciosa, naturalmente cometida a essa outra correspondente jurisdição, em via de ação com processo comum – não está o requerente dispensado de justificar o direito à fixação judicial de prazo, o que equivale a dizer que a necessidade dessa fixação há-de ser equacionável em função da relação jurídica substanciada por aquele.

Sendo de indeferir o requerido quando os factos alegados pelo próprio requerente excluírem a existência da obrigação para cujo cumprimento vem requerida a fixação de prazo, ou a necessidade dessa fixação.

Pois bem:

3. A Requerente, recorde-se, peticionou a fixação de prazo para o Requerido “desonerar a Requerente do crédito mutuário contraído junto do Banco ...garantido por hipoteca sobre o imóvel” àquele adjudicado em escritura de partilhas em consequência do divórcio decretado entre ambos, “deixando a Requerente de constar como mutuária do contrato de crédito e de ser responsável pelo pagamento das respectivas prestações”.

Ora, e desde logo, se é certo que “nos termos declarados na escritura pública em causa, o Requerido obrigou-se ao pagamento exclusivo do crédito contraído junto do ...”, já não é verdade ser “suposto”, “nos termos” dessa mesma escritura, “que o aqui Requerido procedesse à alteração do contrato de mútuo (…). Passando (…) a figurar como único titular do sobredito crédito hipotecário”, leia-se, como o único mutuário/devedor, no mesmo contrato, vd. art.ºs 8º e 9º do requerimento inicial).

Pelo contrário – e como visto já – consignou-se naquele documento autêntico mais terem declarado os outorgantes, “Que, uma vez que a responsabilidade pelo pagamento das dívidas descritas nas verbas do passivo assumidas por cada um deles, nos termos referidos, só produz efeitos perante o credor hipotecário com o consentimento deste, na falta do qual continuam ambos responsáveis, nos termos em que o eram (…)”.

E, ainda, a expressa advertência feita pelo notário respetivo, no acto, “de que a assunção das dívidas pelos outorgantes, aqui tituladas, é ineficaz em relação ao credor hipotecário enquanto não for por ele(s) ratificada, nos termos do art. 595º, n° 1 - al. a) do Código Civil.”.

O que tudo, iniludivelmente, afasta qualquer temeridade hermenêutica no sentido do assumir, por um dos outorgantes na referida escritura, da obrigação de alterar o contrato de mútuo, de modo a passar a figurar nele como único mutuário/ devedor, o outro outorgante.

Diga-se ainda, e a propósito, que uma tal, descartada, obrigação – implicando a imposição ao credor, da exoneração liberatória da co-mutuária, aqui Requerente, melhor do que a “transmissão” a título singular de uma dívida, e posto que sendo aquela e o Requerido originais devedores solidários, no confronto do credor – redundaria em negócio com objeto contrário à lei, cujos princípios fundamentais repudiam essa unilateral desvinculação no confronto do credor, do originário devedor ou codevedor, como resulta do disposto no art.º 406º, n.º 1 do Código Civil, e aflora, no citado art.º 595º, n.º 2, mas também no art.º 424º, igualmente daquele compêndio normativo.

Posto o que a correspondente convenção sempre seria nula, cfr. art.º 280º, n.º 1, do Código Civil.

4. Mas, o que assim apenas marginalmente se assinala, ainda quando tal obrigação tivesse sido estipulada, ponto é que os outorgantes na escritura de partilha do património do dissolvido casal mais expressamente acordaram “que se algum deles deixar de pagar as responsabilidades aqui assumidas, ficando o outro obrigado a substituir-se-lhe nesse pagamento, ou se qualquer um deles, tiver, por esse facto imputável ao outro, o seu nome na lista de incumpridores do Banco de Portugal, fica o outorgante não cumpridor obrigado ao pagamento de uma indemnização correspondente ao dobro do valor pago pelo outro.”.

Ou seja – e em articulação, de resto, com o já assinalado reconhecimento da impossibilidade de impor ao banco credor a desoneração de um dos codevedores – estabeleceram as partes uma cláusula penal para a hipótese de incumprimento relativo ao pagamento das dívidas para com o ..., S.A., da assumida responsabilidade de cada um deles.

Com o que afastada estaria a necessidade do estabelecimento de prazo, relativamente à invocada, e logo verificada como inexistente, obrigação de “alteração do contrato de mútuo junto do ...”.

5. Do que se vem de expender, logo resulta a improcedência das conclusões da Recorrente.

Ainda assim, e focalizando-nos na argumentária com que aquela “sem prescindir”, sucessivamente se alonga, observar-se-á:

Desde que inexiste a invocada obrigação, face aos próprios termos do requerimento inicial, resulta absolutamente inconsequente apelar ao “resultado inadmissível” a que supostamente conduziria essa julgada inexistência.

Sendo, quanto a conter “a decisão sob censura (…) elementos de injustiça e de violação do sentimento jurídico prevalente na comunidade social”, que chocante seria, desde logo, que um codevedor pudesse ficar obrigado a exonerar o outro codevedor, no contrato respetivo, afetando a garantia pessoal do credor, independentemente da vontade deste último.

Sem que se logre acompanhar a linha de raciocínio da Requerente, quando afirma que “pelo facto de a realização de tal obrigação não estar na disponibilidade das partes, estando também dependente da vontade do credor hipotecário, é essa natureza da prestação e as circunstâncias que a determinaram que permitem que a Apelante recorra ao Tribunal para a fixação do prazo, nos termos do artigo 777.º, n.º 1 do Código Civil;”…

Estará aquela a pensar na imposição do prazo também à instituição bancária credora?!...

Não se concebendo também como a possibilidade de os comproprietários fazerem cessar a compropriedade – quando tal seja possível, acrescente-se – evidencie qualquer “horror” do ordenamento jurídico “ao perpetuar de obrigações duradouras”...

Nem sendo verdade que “a Requerente não se amparou apenas no teor da escritura pública junta ao requerimento inicial (…) como também (…) referiu que o Requerido se obrigou a alterar o contrato de mútuo junto do ..., em prazo razoável, passando o mesmo a figurar como único titular do sobredito crédito hipotecário;”.

O que a Requerente alegou, reitera-se, foi que:

“E, necessariamente, atento o declarado na escritura de "Partilha por Divórcio" em causa, era suposto que o aqui Requerido procedesse à alteração do contrato de mútuo junto do ..., em prazo razoável, que se estimava em 90 (noventa) dias.

 Passando o Requerido, como lhe incumbe nos termos da escritura de partilha, a figurar como único titular do sobredito crédito hipotecário.”.

Posto o que se não impunha “a produção da prova testemunhal indicada.”.

Finalmente, e pelo respeita à “responsabilização patrimonial” da Requerente “em resultado da eventual inadimplência do Apelado”, foi a própria Requerente a, juntamente com aquele, prever tal situação na escritura de partilha, acordando com o ora Requerido a já abordada cláusula penal.

***

Em suma, improcedem totalmente as conclusões da Recorrente.

III - Nestes termos, acordam em julgar a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida.

Custas pela Recorrente, que assim decaiu totalmente.

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Lisboa, 2014-12-11

(Ezagüy Martins)

(Maria José Mouro)

(Maria Teresa Albuquerque)
[1] In “Das obrigações em geral”, Vol. II, Reimpressão da 7ª ed., 2001, pág. 43.
[2] Cfr. Antunes Varela, in op. cit., pág. 42.
[3] Assim, A. Varela, in op. cit., págs. 42, 43, e Almeida Costa, in “Direito das Obrigações”, 9ª Ed., Almedina, 2001, pág. 943.
[4] Proc. 06B3880, Relator: OLIVEIRA BARROS, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[5] Proc. 01A4297, Relator: Garcia Marques, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[6] Proc. 06B3435, Relator: NUNO CAMEIRA, in www.dgsi.pt/jstj.nsf.
[7] Proc. 1307/06.9TBPRD.S1, Relator: FONSECA RAMOS, no mesmo sítio da internet.