Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4630/21.9T8FNC.L1-4
Relator: SÉRGIO ALMEIDA
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
JUNTA MÉDICA
DESPESAS MÉDICAS E MEDICAMENTOSAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/03/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: Não havendo acordo em tentativa de conciliação por a seguradora não estar convencida do grau de IPP atribuída à sinistrada e dos períodos de ITP por esta sofridos, impõe-se que aquela entidade responsável requeira a realização de junta médica nos termos do n.º 2 do art.º 138 do CPT. A isto não obsta o facto de ter declarado que não se pronuncia quanto a despesas médicas e medicamentosas por delas não ter conhecimento e nem quanto a direitos patrimoniais que se prendem com a submissão a consultas periódicas de oftalmologia, uma vez que estas são devidas nos termos dos art.º 23 e 25 da LAT, não carecendo de ser reclamadas, e as ditas despesas realizadas não impedem a prolação de sentença, que simplesmente não as terá em conta caso não hajam sido provadas nos autos.
Neste caso a sinistrada não pode lançar mão do n.º 2 do art.º 138 por estar de acordo com o exame médico, e nem lhe é exigível que interponha ação para ressarcimento de despesas médicas e medicamentosas, não obstando tal omissão à prolação de decisão final.


(Elaborado pelo relator)
Decisão Texto Parcial:Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


A)–Sinistrada: AAA.

Responsável civil (também designada por R. de ré) e recorrente: Generali  Seguros, SA.
Foi realizada tentativa de conciliação na fase conciliatória, a qual se frustrou uma vez que a companhia de seguros não aceitou a IPP de 10%, considerando um sinistrado curado sem desvalorização, e nem os períodos de ITP. 
Decorrido o prazo legal, não foi requerida a realização de junta médica.

O Tribunal a quo proferiu então sentença na qual decidiu:
a)-fixar a sinistrada AAA uma incapacidade permanente parcial de 10%, desde 27/12/2021, a que corresponde ao capital de remição calculado com base numa pensão anual e vitalícia de 1291,48 €, condenando a companhia de seguros no seu pagamento;
b)-condenar a companhia de seguros a pagar à sinistrada 842,05 €a título de incapacidades temporárias;
c)-condenar a companhia de seguros a pagar à sinistrada 20 €.
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A seguradora, inconformada, recorreu, formulando estas conclusões:
(…)
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A sinistrada, patrocinada pelo Ministério Público, contra-alegou pedindo a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, assim concluindo:
(…)
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Foram dispensados os vistos.
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II.–
A)–É sabido e tem sido jurisprudência uniforme a conclusão de que o objecto do recurso se limita em face das conclusões insertas nas alegações do recorrente, pelo que, em princípio, só abrange as questões aí contidas, como resultado aliás do disposto nos artigos 684/3 e 685-A do CPC.
Deste modo o objecto do recurso consiste em saber se havia imediatamente lugar à prolação de sentença, ou se, pelo contrário, se impunha que o sinistrado requeresse a realização de junta médica.
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B)–Factos provados: os acima descritos.

O Tribunal a quo deu por assentes na sentença recorrida os seguintes factos:
1.–A sinistrada nasceu a 04.06.1987.
2.–No dia 16 de Julho de 2021, AAA, enquanto prestava as suas funções de enfermeira, ao manipular um cateter venoso central numa doente, ao limpar, respingou o conteúdo do mesmo para os olhos, o qual era corrosivo.
3.–E em consequência sofreu lesões e apresenta sequelas descritas no exame.
4.–A sinistrada esteve com incapacidades temporárias absoluta de 12.08.2021 a 09.09.2021 e de 22.09.2021 a 07.10.2021.
5.–E incapacidade temporária parcial de 20% de 17.07.2021 a 11.08.2021, de 10.09.2021 a 21.09.2021 e de 08.10.2021 a 27.12.2021.
6.–A alta médica teve lugar em 27.12.2021.
7.–As lesões sofridas pela sinistrada determinaram-lhe um coeficiente global de incapacidade permanente parcial de 10%.
8.–No dia referido, a sinistrada encontrava-se a trabalhar sob as ordens, direcção e fiscalização de Serviço …, EPE,, auferindo um salário de 1.205,08€ x 14 meses + 100,17€ x 11 de subsídio de alimentação + 39,73€x 12 de outras remunerações.
9.–A responsabilidade decorrente de acidentes de trabalho da empresa referida estava integralmente transferida para a Companhia de Seguros.
10.–A companhia de seguros pagou à sinistrada por conta das incapacidades temporárias a quantia de 1.592,31€.
11.–A sinistrada gastou em despesas de deslocação ao GML e ao Tribunal a quantia de 20€.
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*
C)–De direito

De harmonia com o disposto nos artigos 108 e seguintes do Código de Processo do Trabalho, na fase conciliatória do processo de acidentes de trabalho (artigos 99 e ss. e 108) tem lugar tentativa de conciliação com vista à obtenção de acordo entre as partes no processo, promovida pelo Ministério Público (art.º 109), sendo lavrado um auto do resultado, quer seja de acordo (art.º 111) quer de falta de acordo (art.º 112)

Não havendo acordo, em regra será apresentada a petição inicial em nome do sinistrado (art.º 119).

Dispõe o artigo 138.º do código de processo do trabalho, sob a epígrafe “requerimento de junta médica”:
1–Quando não se conformar com o resultado da perícia realizada na fase conciliatória do processo, a parte requer, na petição inicial ou na contestação, perícia por junta médica.
2–Se na tentativa de conciliação apenas tiver havido discordância quanto à questão da incapacidade, o pedido de junta médica é deduzido em requerimento a apresentar no prazo a que se refere o n.º 1 do artigo 119.º; se não for apresentado, o juiz profere decisão sobre o mérito, fixando a natureza e grau de incapacidade e o valor da causa, observando-se o disposto no n.º 3 do artigo 73.º

Ou seja, se o desacordo se cingir à questão da incapacidade, será apresentado pedido de junta médica pela parte que não se conformar com o grau de incapacidade apurado pela perícia já realizada.

Do auto de tentativa de conciliação resulta que a sinistrada se conformou com o resultado do exame médico.

A seguradora, por seu lado declarou reconhecer o acidente de trabalho, as lesões referidas, o nexo de causalidade entre o acidente e as lesões, a retribuição da segurada, as ITAs e o valor de 20 € de despesas de deslocação da sinistrada ao Tribunal, não se pronunciando quanto às despesas médicas e medicamentosas por delas não ter conhecimento. Porém, não concorda com a IPP de 10%, tendo a sinistrada ficado curada sem desvalorização a seu ver, e nem com os períodos de ITPs a 20%. Mais declarou que iria requerer junta médica.

Tal junta acabou por não ser requerida.

Cumpre, pois, averiguar se no caso a discordância existente se cinge à incapacidade ou se vai para além disto.

Interpretando o auto de tentativa de conciliação e as declarações nele exaradas, verificamos que o dissídio se cinge essencialmente à matéria das incapacidades.

Com efeito, se por parte da sinistrada não foi demonstrada qualquer discordância, do lado da seguradora o que foi dito em contrário foi o seguinte:
5.–Não concorda com a IPP de 10% que foi atribuída ao sinistrado pela perícia médica, uma vez que os seus serviços clínicos consideram no curado sem desvalorização.
6.–Não concorda com os períodos de ter peso a 20% que foram fixadas ao sinistrado, os quais deverão ser discutidos em sede de junta médica que irá requerer.

8.–Não se pronuncia quanto às despesas médicas e medicamentosas reclamadas pelo sinistrado por não ter conhecimento das mesmas.
9.–Quanto aos direitos patrimoniais, resultante do sinistro em causa nos autos, aguardará pelo resultado da junta médica que irá requerer.”

E rematou afirmando que iria requerer junta médica nos termos do art.º 138, n.º 2, do CPT.

Defende agora a recorrente que não houve acordo quanto à incapacidade e nem quanto aos períodos de ITA; e ainda que também no houve quanto às despesas médicas e medicamentosas e consultas de oftalmologia.

Os períodos de ITA, porém, reconduzem-se a incapacidades.

No que toca às despesas médicas e medicamentosas, como defende a sinistrada que não carecem de ser requeridas ou peticionadas porquanto são devidas durante toda a vida do sinistrado, nos termos dos art.º 1º, 23 e 25 da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro (LAT). Assim é, nos termos desses preceitos, como aliás, resulta necessariamente da ideia de reparação que subjaz ao ressarcimento dos acidentes laborais. De resto, dificilmente se pode exigir a concretização de elementos deste tipo, que frequentemente não são conhecidos à partida, dependendo da evolução da situação clínica do sinistrado.

E quanto às despesas já efetuadas, o seu cerne prende-se com a demonstração das mesmas, coisa que a sinistrada não fez. 
 
O dissídio circunscreve-se, pois, à questão das incapacidades.

Neste caso, deve lançar-se mão do requerimento previsto no n.º 2 do art.º 138 do Código de Processo do Trabalho, circunscrito à questão das incapacidades.

Convergindo, decidiu o Acórdão Relação de Lisboa de 13.10.2021, proc 15771/20.0T8SNT-A.L1:I– O processo especial emergente de acidente de trabalho tem como escopo definir com celeridade e em termos completos – tudo deve ser averiguado e discutido, quer na fase conciliatória, quer na fase contenciosa –, com a maior aproximação possível à verdade material, os direitos que assistem ao sinistrado de infortúnio laboral, sendo composto por etapas sucessivas em que as anteriores determinam o conteúdo das subsequentes, até à decisão final da acção. II– Não é processualmente admissível a formulação pelo sinistrado de uma petição inicial contra a seguradora e a empregadora, na qual fez incluir um pedido de indemnização por danos não patrimoniais, depois de na fase conciliatória, em tentativa de conciliação presidida pelo Ministério Público em que interveio como entidade responsável a seguradora, não ter aceitado o acordo proposto pelo respectivo Magistrado e não se ter conciliado apenas por discordar do grau de incapacidade de que ficou afectado. III– Neste caso deve formular o requerimento a que alude o artigo 138.º, n.º 2 do Código de Processo do Trabalho”, mais acrescentando, em sede de fundamentação:
"(...) Quando do auto de não conciliação resulta claro (...) que é apenas por virtude da discordância de uma das partes quanto à incapacidade que o acordo proposto pelo Ministério Público não é aceite, a fase contenciosa tem uma tramitação processual simplificada e o seu âmbito é limitado, por força da lei, à questão da “fixação da incapacidade para o trabalho” [artigos 117.º, alíneas a) e b) e 138.º, n.º 2, do CPT]. Este entendimento é ainda confortado pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores. Assim, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Outubro de 2003, Recurso n.º 2055/03 afirmou quea tentativa de conciliação realizada perante o Ministério Público na acção emergente de acidente de trabalho destina-se, em primeira linha, a obter um acordo das partes que ponha termo ao processo; não sendo possível o acordo total, destina-se, numa segunda linha, a circunscrever o litígio por forma a que na fase contenciosa só se discutam as questões acerca das quais não houve acordo na fase conciliatória”. Dentro da mesma linha, vejam-se os Acórdãos da Relação de Lisboa de Lisboa de 13 de Julho de 2016, Processo n.º  244/12.2TBVPV-AL1-4 (no qual se decidiu que “Tendo as partes, na tentativa de conciliação, aceitado o acordo promovido pelo Ministério Público, que foi homologado pelo Juiz e já transitou em julgado, tal implica que ficaram definitivamente fixados os direitos e obrigações de cada uma, o que impede que o sinistrado, posteriormente, proponha acção a invocar que o acidente ocorreu por culpa exclusiva da empregadora e reclame indemnização por danos não patrimoniais, sem alegar a existência de fundamentos de anulação do acordo ou o conhecimento superveniente dos factos integradores da culpa da empregadora”) e de 03 de Maio de 2017, Processo n.º 21837/16.3T8LSB.L1-4 (ao decidir que “Não tendo o sinistrado alegado, em sede da tentativa de conciliação levada a efeito em processo emergente de acidente de trabalho, a culpa da sua entidade empregadora na produção do sinistro, mormente por violação de regras de segurança no trabalho, nem reclamado aí o que quer que fosse a título de indemnização por danos não patrimoniais, limitando-se a aceitar o acordo que, com base no art. 48º e não no art. 18º da Lei n.º 98/2009 de 04-09, fora propostos pelo Ministério Público, leva a que fique precludido o eventual direito a reparação por danos não patrimoniais, já que após trânsito em julgado da decisão homologatória de tal acordo, esta questão não pode mais ser suscitada” e que “Para que tal pudesse ser possível, necessário seria que, antes disso, o sinistrado obtivesse a anulação judicial daquele acordo e a revisão da sentença homologatória do mesmo nos termos do art. 291º n.º 2 do Código de Processo Civil aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho"), bem como o Acórdão da Relação de Évora de 4 de Abril de 2018, processo n.º 1713/15.8T8STR.1 (no qual se decidiu que “As partes ao tomarem posição concreta e definida sobre cada um destes factos [referidos no artigo 112.º do CPT] circunscrevem o litígio na fase contenciosa às questões acerca das quais não foi possível obter acordo, o mesmo é dizer que é essa posição assumida sobre cada um dos factos que delimita o princípio da vinculação temática”)".  
         
Na verdade, e estando a sinistrada de acordo com o resultado do exame médico singular, não poderia agora lançar mão desse mecanismo previsto no n.º 2 do art.º 138, que pressupõe desacordo, nem, de algum modo, afastar-se do resultado do exame médico singular (como é pacífico; neste sentido veja-se ainda por todos o acórdão de 8/11/2005 da Relação de Évora: “se um sinistrado, nas declarações feitas na tentativa de conciliação, aceitou a natureza e grau de desvalorização atribuídos no exame médico singular, não pode depois discordar do resultado do exame por junta médica requerido pela seguradora, confirmativo do primeiro, pretextando ser portador de incapacidade permanente para o trabalho habitual).

E também não poderia, ao contrário do que pretende a recorrente, porquanto afinal nenhum desacordo mantém quanto ao exame singular, nada carecendo de provar para - salvo quanto às ditas despesas medicamentosas - obter vencimento.

De resto, a própria ré não se pode queixar, não apenas face ao exposto mas ainda considerando que da sua parte houve claramente a percepção de que está em causa uma mera diferença de entendimento quanto às incapacidades sofridas pela sinistrada, de tal modo que se manifestou reiteradamente no sentido de que deveria (ela própria) lançar mão do mecanismo previsto no n.º 2 do art.º 138.
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Assim, e em suma, radicando o desacordo relativamente ao exame singular em questões de incapacidade, visto que as alegadas despesas médicas e medicamentosas não impedem a prolação de decisão, tratando-se de uma simples questão prova (tendo a própria responsável declarado não se pronunciar quanto às mesmas por não ter conhecimento), cumpria à parte não convencida - no caso da seguradora - lançar mão do n.º 2 do art.º 138.

Não o tendo feito foi proferida decisão nos termos do n.º 2, segunda parte, do art.º 138, não merecendo censura esse procedimento.

O que acarreta a improcedência do recurso.
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III.–
Pelo exposto o Tribunal julga improcedente o recurso e confirma a sentença recorrida
Custas pela recorrente.


Lisboa, 3 de maio de 2023


Sérgio Almeida
Francisca Mendes
Celina Nóbrega


Decisão Texto Integral: