Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
409/20.3T8SCR.L1-7
Relator: ANA RODRIGUES DA SILVA
Descritores: DESPACHO DE CONSERVADOR DO REGISTO
IMPUGNAÇÃO JUDICIAL
PRAZO
SUSPENSÃO
COVID 19
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/23/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. Toda a sequência de actos que se dirija a um certo fim assume-se como um procedimento, seja ele judicial ou não;
2. Quer a justificação que corre termos junto das Conservatórias do Registo Predial (sucessora da justificação judicial), quer a justificação notarial, são procedimentos no sentido processual do termo;
3. A publicação do extracto da escritura de justificação notarial assume-se como uma formalidade essencial no âmbito de uma sequência de actos e, nessa medida, como parte de um procedimento;
4. Por esse motivo, a emissão de certidão prevista no art. 101º, nº 2 do Cód. do Notariado está abrangida pela suspensão de prazos decretada pela Lei 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção dada pela Lei 4-A/2020, de 6 de Abril.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. A, Notário, com domicílio profissional no Largo do Pelourinho, freguesia e concelho da Ponta do Sol, veio intentar impugnação judicial do despacho da Conservadora do Registo Predial de Santa Cruz que recusou o registo solicitado pela apresentação nº 177, de 2020-04-27, por se tratar de facto não titulado nos documentos apresentados, alegando, para tanto, que o prazo a que se refere o artigo 101º do Código do Notariado não foi suspenso por efeito da Lei 7-A/2020, de 19 de Março, por não ser prazo de prescrição ou de caducidade, mas antes um prazo ordenador do próprio notário.
2. A Srª Conservadora do Registo Predial sustentou a decisão recorrida.
3. O Ministério Público emitiu parecer favorável à decisão da Srª Conservadora.
4. Foi proferida decisão, julgando o recurso improcedente e confirmando a decisão recorrida.
5. É desta decisão que o apelante recorre, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“1) O que está em causa neste recurso é saber se os prazos do artigo 101º do Código do Notariado se suspenderam com a vigência do artigo 7º da Lei nº 1-A/2020.
2) Ora, essa Lei, especificamente no seu artigo 7º, suspendeu os prazos judiciais ou para judiciais e os procedimentos em Cartórios Notariais.
3) Resta saber se o artigo 101º faz parte de um procedimento que corra em Cartório Notarial ou se o prazo em si se suspendeu.
4) Uma escritura, qualquer que ela seja, não é, na nossa opinião, um procedimento nos termos e para os efeitos do artigo 7º, nº 6 al. a) da Lei nº 1-A/2020.
5) Procedimento é uma sequência de atos. Um procedimento não é um ato só. Um procedimento é necessariamente uma sucessão de atos, seguidos, encadeados, com uma sequência lógica e tendente a um resultado final, juridicamente relevante. Num procedimento temos várias partes com interesses que podem não ser coincidentes e cujos direitos podem não ser compatíveis.
6) Uma escritura é um ato único, de realização imediata. Por vezes é um contrato, por vezes é um negócio jurídico unilateral. Mas um procedimento não é.
7) Importa sublinhar que os Inventários que correm em Cartórios Notariais estiveram claramente com os seus prazos suspensos ao abrigo do dito artigo 7º e ninguém tem ou teve dúvidas disso mesmo.
8) Uma escritura, mesmo de justificação, não é um procedimento.
9) Para nós, é também muito relevante o facto do procedimento conceder direitos a outras partes que não presentes ou participantes do ato jurídico.
10) Vamos dar um exemplo para se tornar mais clara a distinção entre procedimento e escritura. Usemos a escritura de justificação notarial e o procedimento de justificação registral. São dois atos, que à partida diríamos muito semelhantes. Será? Vejamos. A escritura de justificação sempre existiu no Código do Notariado e o procedimento de justificação registral sempre existiu no Código do Notariado e o procedimento de justificação registral é o sucedâneo das Justificações Judiciais, o que se pode ver pelos artigos que regulam a matéria terem sido incluídos com o DL n° 273/2001, que transferiu competências judiciais para as Conservatórias. Este procedimento é um verdadeiro mini processo de apreciação objetiva e subjetiva da bondade da justificação, pois de acordo com o nº 7 do artigo 117º-F do Código do Registo Predial: Sendo apresentada oposição ao pedido de justificação, o processo é declarado !findo nos termos do n.º 2 do artigo 117.º-H. Os eventuais direitos de terceiros são aptos a findar o processo de justificação na Conservatória. Se o Legislador quisesse fazer o mesmo com as escrituras de justificação tê-lo-ia feito. Não fez porque efetivamente os atos são diferentes: a justificação na Conservatória é um procedimento e no Cartório não.
11) Estas palavras pretendem chamar a atenção para o facto de as escrituras de justificação não serem um procedimento em Cartório Notarial. As escrituras de justificação são sim um ato jurídico unilateral, em documento solene e com formalidades anteriores e posteriores que confirmam a solenidade do ato. Mas porque os eventuais direitos de terceiros não influem no ato, não podemos considerar um procedimento.
12) As escrituras de justificação não estão suspensas por não serem consideradas um procedimento.
13) E o prazo do artigo 101º do Cod Not foi suspenso, por si só, nos termos do art. 7º da Lei nº 1-A/2020?
14) Será que decorrido este prazo, o impugnante não mais pode impugnar a escritura de justificação? Decorrido o prazo, o exercício do direito está precludido?
15) O prazo do artigo 101º é um prazo de caducidade do direito de impugnação ou de prescrição desse mesmo direito?
16) Vejamos os Acórdãos da Relação do Porto de 10/01/1994 in CJ, 1, XIX, 234 ou da Relação de Coimbra de 17/03/1998 in CJ, 2, XXIII, 27, que são os primeiros em que se foca com profundidade esta questão.
17) O Acórdão da Relação do Porto diz no seu sumário: II - E, então, para evitar a prática de actos inúteis entendeu o legislador ser conveniente retardar a feitura do registo predial, com base na respectiva escritura, por um período de tempo tido como adequado e suficiente para o surgimento de uma eventual impugnação. III - Este o significado que tem a fixação do referido prazo.
18) Estes Acórdãos dizem-nos de forma bem clara que este prazo do art. 101º do CNot não impõe qualquer prazo para a propositura da ação de impugnação da escritura de justificação notarial. Explicam até qual o sentido e a função do prazo do art. 101º do Código do Notariado.
19) Vamos e para resumir citar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça no processo n° 41/06.4TBCSC.L1.S2, da 6ª SECÇÃO, em que foi Relator o Juiz Conselheiro NUNO CAMEIRA, que diz no primeiro ponto do Sumário: I - O prazo de 30 dias a que alude o art. 101.°, n.° 2, do CN, não é um prazo de caducidade da acção de impugnação da justificação notarial a que se refere o n.° 1 do mesmo normativo, sendo certo, por isso, que esta acção não está sujeita a qualquer prazo de caducidade.
20) Assim, já vimos que o prazo do art. 101º do Cód Not em nada influi nos direitos de eventual impugnante, pelo que está fora da facti species da norma do art. 7º da Lei n° 1-A/2020.”
4. Em contra-alegações, o Ministério Público defendeu a improcedência da apelação.
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II. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que a única questão a decidir é determinar se a justificação notarial é um procedimento e, nessa medida, o prazo constante do art. 101º do Código do Notariado foi ou não suspenso pela Lei 7-A/2020, de 19 de Março.
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como assentes os seguintes factos:
1.º Em 17 de Fevereiro de 2020, o autor lavrou, no Cartório Notarial da Ponta do Sol, escritura de justificação, segundo a qual Maria ...., Maria G....., João .... e Martinho ..... e consorte, diziam ser donos e legítimos possuidores, na proporção de ¼ parte para cada um deles de três imóveis localizados na freguesia e concelho de Câmara de Lobos, os quais vieram à sua posse no ano de 1998, por efeito de partilhas verbais com os demais herdeiros, por óbito de José .... e mulher Maria ....., a qual têm exercido desde então, há mais de 20 anos, de forma pacífica, pública e contínua. 
2.º Tal escritura foi publicada, por extrato, no dia 21 de Fevereiro de 2020, no Jornal da Madeira. 
3.º O autor promoveu o registo predial dos factos a ele obrigatoriamente sujeitos. 
4.º A apresentação do pedido de registo deu entrada a 27 de Abril de 2020 e foi-lhe atribuída o n.º 177. 
5º Sobre o pedido incidiu o seguinte despacho da Conservadora do Registo Predial de Santa Cruz, denominado de qualificação, datado de 2 de Julho de 2020: 
“O registo da ap. 177/2020-04-27 vai recusado, por se tratar de facto não titulado nos documentos apresentados, porque foi passada certidão da escritura de justificação sem estivesse concluído o procedimento, na medida em que, na data da certidão não tinham decorridos os 30 dias sobre a data em que o extracto foi publicado, nº 2 do art. 101º do C.N. e al. b) do nº 1 do art. 69º do CRP. 
E não tinha decorrido o referido prazo de 30 dias porque todos os prazos para a prática de actos processuais e procedimentos que corram termos nos tribunais, cartórios notariais e conservatórias, inclusivamente os prazos de prescrição e caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos, ficaram suspensos desde 9 de março até 3 de junho de 2020, art. 7º, nºs 1 e 3 e al. a) do nº 9 da Lei 1ª/2020, de 19 de março, art. 5º da Lei 4/2020, de 6 de abril e art. 8º da Lei 16/2020 de 29 de maio”.
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou improcedente o recurso interposto da decisão da Srª Conservadora do Registo Predial de Santa Cruz que recusou o registo relativo a escritura de justificação notarial por entender ser aplicável ao caso o disposto na Lei 1-A/2020, de 19 de Março.
Entende o apelante que o prazo constante do art. 101º do Cód. Notariado não se suspendeu nos termos da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, razão pela qual não podia ser recusado o registo em causa nos autos.
Vejamos.
De entre as medidas adoptadas para conter o risco de contágio e de propagação da doença COVID 19, na sequência da situação de pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2, ressalta, para o que ora interessa, a suspensão dos prazos judiciais, a qual foi sendo consagrada em vários diplomas.
Desde logo, o DL 10-A/2020, de 13 de Março estabeleceu “medidas excecionais e temporárias de resposta à epidemia SARS-Cov2”, prevendo apenas a suspensão dos prazos processuais em caso de encerramento e suspensão do atendimento presencial nos tribunais por decisão de autoridade pública, sendo o prazo reiniciado logo que o tribunal fosse reaberto (cfr. art. 15º, nº 1).
Posteriormente surge a Lei 1-A/2020, de 19 de Março, a qual procedeu à “ratificação do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de março”, e à “aprovação de medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, agente causador da doença COVID19”, sendo de salientar o disposto no seu art. 2º, nos termos do qual “o conteúdo do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, é parte integrante da presente lei, produzindo efeitos desde a data de produção de efeitos do referido decreto-lei”.
No âmbito das medidas adoptadas, estabelece o art. 7º, nº 1 deste diploma que “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, aos atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos, que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal, aplica-se o regime das férias judiciais até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública”, mais se referindo no nº 2 que “O regime previsto no presente artigo cessa em data a definir por decreto-lei, no qual se declara o termo da situação excepcional”.
Por seu turno, o nº 9 deste artigo estipula que “O disposto nos números anteriores aplica-se, com as necessárias adaptações, aos prazos para a prática de atos em:
a) Procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias”.
Veio entretanto a ser aprovada a Lei 4-A/2020, de 6 de Abril, alterando a Lei 1-A/2020, e, em concreto, o art. 7º, nº 1, o qual passou a ter a seguinte redacção: “Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, todos os prazos para a prática de atos processuais e procedimentais que devam ser praticados no âmbito dos processos e procedimentos que corram termos nos tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais, Tribunal Constitucional, Tribunal de Contas e demais órgãos jurisdicionais, tribunais arbitrais, Ministério Público, julgados de paz, entidades de resolução alternativa de litígios e órgãos de execução fiscal ficam suspensos até à cessação da situação excecional de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, a decretar nos termos do número seguinte”.
De extrema importância é o art. 5º desta Lei 4-A/2020, quando determina que “O artigo 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, deve ser interpretado no sentido de ser considerada a data de 9 de março de 2020, prevista no artigo 37.º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, para o início da produção de efeitos dos seus artigos 14.º a 16.º, como a data de início de produção de efeitos das disposições do artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março”.
Por seu turno, o art. 6º desta Lei estabelece que “1 - Sem prejuízo do disposto no número seguinte, a presente lei produz efeitos à data de produção de efeitos do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março.
2 - O artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação introduzida pela presente lei, produz os seus efeitos a 9 de março de 2020, com exceção das normas aplicáveis aos processos urgentes e do disposto no seu n.º 12, que só produzem efeitos na data da entrada em vigor da presente lei”.
A cessação do período de suspensão é determinada pela Lei 16/2020, de 29 de Maio, a qual revogou o art. 7º, nº 1 da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção dada pela Lei 4-A/2020, de 6 de Abril, com efeitos a partir de 3 de Junho de 2020, como resulta do seu art. 10º.
Resulta desta sucessão de leis que o regime da suspensão dos prazos consagrado na Lei 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção dada pela Lei 4-A/2020, de 6 de Abril, esteve em vigor desde 9 de Março de 2020 até 3 de Junho de 2020.
Estabelecido que se encontra o período temporal durante o qual os prazos processuais estiveram suspensos (de 9 de Março de 2020 a 3 de Junho de 2020), e não olvidando que a apresentação do pedido de registo da escritura realizada em 17 de Fevereiro de 2020 deu entrada a 27 de Abril de 2020, importa determinar se o prazo constante do art. 101º do Cód. Notariado se encontra abrangido por esta suspensão, nomeadamente face ao teor do citado art. 7º, nº 9, al. a), quando refere os procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias.
Como ensina Luís Menezes Leitão in “Os prazos em tempos de pandemia COVID-19”, in ebook publicado pelo Centro de Estudos Judiciários (ESTADO DE EMERGÊNCIA - COVID-19 – IMPLICAÇÕES NA JUSTIÇA), Junho 2020, pág. 64, disponível em http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/outros/eb_Covid19_2Edicao.pdf, “Relativamente aos procedimentos que corram termos em cartórios notariais e conservatórias, estarão em causa naturalmente situações como processos de inventário, procedimentos simplificados de sucessão hereditária, ou procedimentos especiais de transmissão, oneração e registo de imóveis”.
No caso dos autos, estamos perante uma escritura de justificação notarial para estabelecimento de trato sucessivo no registo predial, outorgada no dia 17 de Fevereiro de 2020, tendo a mesma sido publicada, por extracto, no dia 21 de Fevereiro de 2020.
Mais resulta dos factos assentes que o apelante promoveu o registo predial respectivo no dia a 27 de Abril de 2020.
Donde, considerando que nessa data estava em curso a suspensão de prazos a que se fez referência, impõe-se aferir se a escritura de justificação notarial se integra no conceito de procedimentos que corram termos em Cartórios Notariais e Conservatórias, previsto no citado art. 7º, nº 9, al. a) da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção dada pela Lei 4-A/2020, de 6 de Abril.
Adiantando, desde já se dirá que sim.
Senão, vejamos.
A justificação notarial tem a sua regulamentação prevista nos arts. 89º e ss. do Cód. do Notariado.
Como ensina Borges Araújo (com a colaboração de Albino Matos) in Prática Notarial, 2ª ed. pág. 345 “Na génese do sistema em que assenta a justificação notarial está o princípio do trato sucessivo. Partindo da ideia de que, respeitando este princípio, se poderia criar um documento que substituísse, para efeitos de registo, títulos faltosos, criou-se um sistema em que nos aparece a nova escritura, de natureza excepcional, para apoiar e servir as necessidades do registo obrigatório, que se pretendia estabelecer”.
Estabelece o art. 34º do Cód. Registo Predial, o princípio do trato sucessivo, que garante a legitimidade das sucessivas transmissões de bens ou a constituição dos direitos que os oneram, e nos termos do qual para que se possa lavrar um registo de um facto a favor de uma determinada pessoa é necessário obter a prévia inscrição desse facto a favor da pessoa que o transmita.
Nos casos em que o adquirente não disponha de documento para prova do seu direito pode obter a primeira inscrição no registo através da justificação de direitos, instituto jurídico que remonta ao Decreto-Lei nº 40 603, de 18 de Maio de 1956, daí passando para outros diplomas legais, mormente o actual Cód. Registo Predial.
Nos termos do art. 116º, nº 1 do Cód. Registo Predial, “O adquirente que não disponha de documento para a prova do seu direito pode obter a primeira inscrição mediante escritura de justificação notarial ou decisão proferida no âmbito do processo de justificação previsto neste capítulo”.
Por forma a garantir a excepcionalidade da justificação notarial como forma de aquisição estabelece o Cód. do Notariado a tramitação a efectuar.
Assim, o art. 99º prevê a necessidade de notificações prévias, efectuadas pelo Notário, enquanto que o art. 100º determina a publicação da escritura num dos jornais mais lidos do concelho.
Por seu turno, o art. 101º, nº 2 estabelece que “Só podem ser passadas certidões de escritura de justificação decorridos 30 dias sobre a data em que o extracto for publicado, se dentro desse prazo não for recebida comunicação da pendência da impugnação”.
Tal como se pode ler no Ac. UJ do STJ de 4 de Dezembro de 2007, “… a justificação notarial é um expediente técnico simplificado, um processo anormal de titulação (preâmbulo do dec-lei nº 40.603, de 18-5-56), processo esse que todavia foi sucessivamente ampliado desde o advento do registo predial obrigatório, iniciado com a justificação extrajudicial de direitos prevista na Lei nº 2049, de 6 de Agosto de 1951.
A evolução legislativa foi caracterizada pelo reforço da tutela da fé pública registral, assente no princípio da legitimação de direitos sobre imóveis titulados judicial ou extrajudicialmente”.
Do que se vem de expor decorre que a escritura de justificação notarial se assume como uma sequência de actos, iniciada com o pedido das partes para a sua realização e instrução de todos os documentos necessários cuja junção esteja a cargo das partes, à semelhança, aliás, de qualquer outra escritura, seguida das notificações previstas no art. 99º, as quais são efectuadas pelo Notário.
Refira-se que esta obrigatoriedade de notificações a cargo do Notário transforma, se dúvidas existissem, a justificação notarial num procedimento, entendendo-se este como um encadear de actos para atingir um determinado fim.
Com efeito, importa relembrar que “o processo (em sentido jurídico) é um verdadeiro procedimento, traduzido num encadeamento de actos destinados a desembocar em certo fim” (Manuel A. Domingues de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1956, pág. 6).
Isto é, toda a sequência de actos que se dirija a um certo fim assume-se como um procedimento, seja ele judicial ou não.
Assim, quer a justificação que corre termos junto das Conservatórias do Registo Predial (sucessora da justificação judicial), quer a justificação notarial, são procedimentos no sentido processual do termo.
Recorde-se que a celebração da escritura de justificação notarial pressupõe a realização de determinados actos, a cargo exclusivamente do Notário, e sem os quais não pode a mesma ser efectivada, dos quais é exemplo a notificação prevista no já citado art. 99º e ainda o processo de publicação subsequente aludido no art. 100º do Cód. do Notariado.
Com efeito, a notificação prévia visa conferir à escritura de justificação segurança por forma a evitar futuros litígios, e a publicação da escritura visa dar a conhecer a efectivação desse acto notarial permitindo o conhecimento dos seus contornos jurídicos, assumindo-se ambas as formalidades como partes de um todo.
Por fim, são passadas certidões da escritura de justificação decorridos 30 dias sobre a data em que o extracto for publicado, se dentro desse prazo não for recebida comunicação da pendência da impugnação (cfr. art. 101º, nº 2 do Cód. do Notariado), assim terminando a intervenção do Notário no processo de justificação.
É esta sequência de actos que determina a qualificação da justificação notarial como um procedimento, entendido este nos termos já expostos.
A este propósito, veja-se também o Parecer nº 40/2015 do Conselho Consultivo do IRN disponível em www.irn.mj.pt/IRN, onde se refere que “A função do processo de justificação de direitos – e nem no caso da justificação notarial, quando a essa modalidade se recorra, deixa de com propriedade poder falar-se de processo (ou procedimento) de justificação, de cuja sequência a celebração da escritura e a sua subsequente publicação, de entre outros que pode haver, constituem distintos e indispensáveis momentos – é a de propiciar aos interessados, em ordem à efetivação do(s) registo(s) dos direitos de que c0areçam, seja em nome próprio (como é mais comum), seja em nome de outrem, a obtenção de documentos comprovativos dos correspondentes factos jurídicos aquisitivos”.
Donde, facilmente se constata que não assiste qualquer razão ao apelante quando refere na cls. 11 que “As escrituras de justificação são sim um ato jurídico unilateral, em documento solene e com formalidades anteriores e posteriores que confirmam a solenidade do ato. Mas porque os eventuais direitos de terceiros não influem no ato, não podemos considerar um procedimento”.
Ao invés, as escrituras de justificação notarial são procedimentos que correm termos em Cartórios Notariais.
Por esse motivo, e por estar ciente da existência de vários procedimentos que correm termos em Cartórios Notariais e Conservatórias, é que o legislador estabeleceu expressamente a suspensão dos prazos a eles relativos.
Defende ainda o apelante que o art. 101º do Cód. do Notariado não estabelece qualquer prazo para a propositura da ação de impugnação da escritura de justificação notarial e que o mesmo “… em nada influi nos direitos de eventual impugnante, pelo que está fora da facti species da norma do art. 7º da Lei n° 1-A/2020” (cls. 19 e 20), o que determina a não suspensão do prazo.
Parece-nos que o apelante labora em erro quanto a esta questão, confundindo o prazo de impugnação da escritura com o prazo para emissão de certidão.
Na verdade, não está em causa a natureza do prazo previsto no art. 101º, nº 1 do Cód. do Notariado, dirigido às partes e aos terceiros interessados, mas sim o terminus do procedimento de justificação notarial que permita a passagem de certidão e que apenas pode ocorrer volvidos 30 dias sobre essa publicação.
Com efeito, é entendimento uniforme na Jurisprudência que a acção de impugnação da escritura de justificação notarial não está sujeita a qualquer prazo de caducidade, preclusivo do exercício do direito. Neste sentido, veja-se, a título exemplificativo, Ac. TRG de 17-09-2020, proc. 6145/17.0T8GMR.G1, relator Margarida Sousa.
Quer isto dizer que a escritura de justificação pode ser impugnada independentemente da sua publicação, desde que seja conhecida por quem tem interesse nessa impugnação, mas que o procedimento notarial apenas fica terminado com o decurso dos 30 dias sobre a data da publicação do extracto, momento em que podem ser passadas certidões da escritura, nomeadamente para efeitos registrais.
A este propósito, recorde-se que a publicação visa dar a conhecer os elementos essenciais da justificação, para que os interessados a possam impugnar, tendo o legislador optado por fixar o prazo de 30 dias para a emissão das certidões necessárias por entender que é este o prazo razoável para que surja uma acção de impugnação.
Todavia, mesmo após esse período temporal pode ser interposta a respectiva acção de impugnação da escritura de justificação notarial, sendo certo que apenas após os 30 dias aludidos pode o Notário emitir a certidão respectiva.
Ou seja, o prazo de 30 dias para emissão de certidão não se confunde com o prazo para impugnação da escritura de justificação notarial, porquanto ambos visam objectivos diferenciados: o primeiro, permitir o registo e conferir publicidade à escritura; o segundo, permitir atacar os seus efeitos.
Como se pode ler no Parecer CC já citado, “Importa por outro lado não olvidar a importância crucial que a publicação do extrato da escritura tem na economia do processo de justificação notarial, importância que, aliás, em muito se explica à luz da apontada excecionalidade do meio de titulação em apreço. É através do mecanismo da publicação, na verdade, que se procura “dar a conhecer os elementos essenciais dum ato jurídico, para que os interessados o possam impugnar (cfr. art. 101.º, CN)”; e daí que seja “fundamental que os interessados saibam antecipada e concretamente onde tais atos jurídicos devem ser publicados (…)”.
Do que se vem de expor decorre que, se é certo que a acção de impugnação da escritura de justificação notarial não está sujeita a qualquer prazo de caducidade, não é menos verdade que a publicação do extracto da respectiva escritura se assume como uma formalidade essencial no âmbito de uma sequência de actos e, nessa medida, como parte de um procedimento.
Consequentemente, e tendo em atenção que a publicação da escritura assume particular importância, inserindo-se no processo de justificação notarial, apenas podendo ser emitida certidão da escritura findo esse prazo, tem de se concluir que tal prazo e a possibilidade de emissão de certidão, previsto no art. 101º, nº 2 do Cód. do Notariado ficou suspenso nos termos e para os efeitos da Lei 1-A/2020, de 19 de Março, na redacção dada pela Lei 4-A/2020, de 6 de Abril, tal como sustentado em primeira instância.
Concluindo, e não tendo sido suscitada qualquer outra questão, decide-se pela manutenção da decisão recorrida, assim improcedendo a apelação.
As custas devidas pela presente apelação são da responsabilidade do apelante, cfr. art. 527º do CPC.

V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo apelante.

Lisboa, 23 de Março de 2021
Ana Rodrigues da Silva
Micaela Sousa
Cristina Silva Maximiano