Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa | |||
Processo: |
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Relator: | JORGE GONÇALVES | ||
Descritores: | CRIME SEMI-PÚBLICO QUEIXA DO OFENDIDO AGENTE DA AUTORIDADE | ||
Nº do Documento: | RL | ||
Data do Acordão: | 06/20/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Sumário: | - Tratando-se de crime cujo procedimento dependa de queixa, a detenção só se mantém quando, em acto a ela seguido, o titular do direito de queixa o exercer, pelo que, nesse caso, a autoridade ou a entidade policial levantam ou mandam levantar auto em que a queixa fique registada, partindo, aqui, o legislador do princípio de que a entidade que procede à detenção é diferente do titular do direito de queixa (cfr. artigo 255.º, n.º3, do C.P.P.). - Porém, quando o agente de autoridade que presencia a infracção é, ele mesmo, o ofendido e, precisamente por causa dos factos que presenciou e ouviu, procede à detenção do agente e elabora o respectivo auto de notícia, não nos parece indispensável que consigne formalmente uma queixa uma vez que, ao deter os arguidos e ao elaborar o auto de notícia, o agente autuante manifestou a sua intenção inequívoca de que fosse exercida a acção penal contra os arguidos, o que equivale ao exercício do seu direito de queixa | ||
Decisão Texto Parcial: | |||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório 1. No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 1/16.7PBSXL, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos R.e C., melhor identificados nos autos, pela imputada prática, por cada um, de um crime de injúria agravada, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea 1) do Código Penal. A Mm.ª Juíza, no despacho a que se reporta o artigo 311.º do C.P.P., rejeitou a acusação, considerando não ter sido exercido atempadamente o direito de queixa pelo ofendido.
2. Recorreu o Ministério Público, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): 1. O crime de injúria agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 181°, n°.1 e 184° do Código Penal com referência ao artigo 132°, n°.2, alínea 1) do mesmo diploma legal, reveste natureza semipública conforme resulta do artigo 188° do Código Penal. 2. No crime de injúria agravada p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 181°, n°.1 e 184° do Código Penal com referência ao artigo 132°, n°.2, alínea 1) do mesmo diploma legal, a legitimidade do Ministério Público para a promoção e o exercício da acção penal depende apenas do conhecimento da notícia do crime, noticia esta que lhe advém a qualquer titulo nos termos dos artigos 53°, n°.2, alíneas a) a e) e 246°, n.º1 do Código de Processo Penal, sendo suficiente (contrariamente ao que sucedia no artigo 174° do Código Penal de 1982) a simples participação; 3. No caso vertente não era exigível que constasse «de forma sacramental» a habitual formula «desejo procedimento criminal contra os arguidos» bastando a mera participação a qual de forma inequívoca traduz o desejo do agente da P.S.P. ofendido em ver os arguidos perseguidos e punidos pelos factos por si denunciados; 4. O douto despacho violou o disposto nos artigos 181°, n°.1 e 184° do Código Penal (com referência ao artigo 132°, n°.2, alínea 1) do mesmo diploma legal) e o disposto nos artigos 188°, n°.1; 48°; 49°, n°.1 e 311°, todos do Cód. Proc. Penal, devendo, em consequência, ser revogado e substituído por outro em que se receba a acusação deduzida nos autos e se designe, nos termos do art. 312°, n°.1 do Cód. Proc. Penal, data e hora para a realização da audiência de discussão e julgamento.
3. Não foi apresentada resposta ao recurso.
4. Subiram os autos a este Tribunal da Relação, onde o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), pronunciou-se no sentido de que o recurso merece provimento, fazendo seus os fundamentos da motivação apresentada pelo Ministério Público/recorrente.
5. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.
II – Fundamentação 1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196). No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, a questão que se suscita consiste em saber se, estando em causa crimes de natureza semipública, o levantamento do auto de notícia por detenção configura, para os legais efeitos, o exercício do direito de queixa.
2. Do despacho recorrido É o seguinte o teor do despacho recorrido, na parte que importa: (…) Questão prévia: da legitimidade para prossecução da acção penal: Os arguidos R.e C. vêm acusados da prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelo artigo 181.°, n.° 1 e 184.°, por referência ao artigo 132.°, n.° 2, alínea 1) do Código Penal, em virtude de se terem dirigido ao agente CL, em 1/1/2016, nos seguintes termos, designadamente: [arguido R.] "não vales um caralho, és um filho da puta e eu vou-te foder"; [arguido C.]: "então põe-a no cu, cabrão, filho da puta". Tal crime reveste natureza semipública, por força do disposto no artigo 188.° do Código Penal. No caso concreto, dos autos consta o auto de notícia, do qual não resulta que o ofendido pretenda prosseguir criminalmente contra os arguidos, pelo que a este propósito importa ter presente os ensinamentos do Prof. Figueiredo Dias acerca da forma da queixa. Refere o Professor Figueiredo Dias: "no que toca à forma da queixa, tanto o Código Penal como o Código de Processo Penal são omissos, devendo por isso entender-se que ela pode ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por certo facto. O que só é reforçado pelo disposto no art. 49°-3 do CPP, já acima referido. Não se torna necessário, por outro lado, que a queixa seja como tal designada; e é mesmo irrelevante que seja qualificada de outra forma pelo seu autor, v.g., como denúncia, acusação, etc. Tão-pouco é relevante que os factos nela referidos sejam correctamente qualificados do ponto de vista jurídico-penal. Indispensável é só que o queixoso revele indubitavelmente a sua vontade de que tenha lugar procedimento criminal contra os agentes (eventuais) pelo substrato fáctico que descreve ou menciona". Ora, do auto de notícia não resulta a vontade inequívoca de responsabilização criminal do agente a quem se imputa um facto criminoso. Questão semelhante foi tratada e apreciada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5/12/2007, aí se referindo que a denúncia é obrigatória, para as entidades policiais, quanto a todos os crimes de que tomarem conhecimento, ainda que os agentes do crime não sejam conhecidos. Tendo o auto de notícia natureza obrigatória, tal auto de notícia já não vale, porém, como denúncia de procedimento criminal, se não incluir manifestação inequívoca da vontade do(s) ofendido(s) de procedimento criminal por tal crime, ainda que ofendido seja também o agente que elaborou e assinou esse auto. Ora, no caso concreto, não é possível considerar o auto de notícia como manifestação de vontade de prosseguir criminalmente contra o arguido. Por outro lado, dispõe o artigo 115.º do Código Penal que o direito de queixa se extingue no prazo de seis meses a contar da data em que o titular do direito tiver conhecimento do facto e dos seus autores. O artigo 49.°, n.° 1 do Código de Processo Penal estabelece que quando o procedimento depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que estas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo. Nos termos do n° 2 do mesmo preceito, para efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação de a transmitir àquele. Por força do n° 4 do mesmo preceito, o disposto nos números anteriores, é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender da participação de qualquer autoridade. A queixa funciona nos crimes de natureza semipública (ou particular) como condição objectiva de procedibilidade. Assim, verifica-se que o ofendido não manifestou vontade de prosseguir criminalmente contra os arguidos, tendo já decorrido mais de seis meses sobre a data em que teve conhecimento do facto criminoso [1/1/2016], pelo que importa concluir que falta um pressuposto objectivo de procedibilidade. Nestes termos, a acusação mostra-se manifestamente infundada, o que ora se declara, rejeitando-se a mesma, nos termos do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal. Notifique.
*** 3. Apreciando
1. Antes de mais, não podemos deixar de observar que o conceito legal de “acusação manifestamente infundada” circunscreve-se às situações descritas no n.º3 do artigo 311.º do C.P.P. No caso, o que ocorreu foi o conhecimento de uma questão prévia – a ilegitimidade do Ministério Público por falta de exercício do direito de queixa pelo respectivo titular -, obstativa do prosseguimento dos autos, e não, em rigor, uma situação que se enquadre no invocado (no despacho recorrido) artigo 311.º, n.º3.
2. Estabelece o artigo 262.º, n.º 1, do C.P. Penal: “O inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação”. Inquérito cuja direcção, por força do disposto no subsequente artigo 263.º, n.º 1, cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal, decorrendo a legitimidade do Ministério Público do artigo 48.º, do mesmo diploma, que prescreve: “O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49.º a 52.º”. Referem-se os artigos 49.º e 50.º aos crimes semipúblicos e particulares, ou seja, aos crimes em que a legitimidade do Ministério Público para exercer a acção penal necessita de ser integrada ou só com uma queixa (os primeiros), ou, para além dela, de uma acusação particular (os segundos). Estabelece o artigo 49.º, n.º1: “Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”. A queixa é o acto pelo qual se dá conhecimento do facto ilícito à autoridade competente para que seja desencadeado o respectivo processo, constituindo uma manifestação de vontade de perseguição criminal. Quer isto dizer que o instituto do direito de queixa integra duas componentes: a transmissão da notícia de um crime (o que também sucede com a denúncia) e a manifestação de vontade de que contra o agente ou agentes seja instaurado o respectivo procedimento criminal. Tratando-se de crime particular, além da queixa é necessário, para que o procedimento possa prosseguir, que o denunciante se constitua assistente e que seja deduzida acusação particular na respectiva oportunidade (artigo 285.º, do C.P.P.). A efectivação da queixa não está sujeita a quaisquer formalidades legalmente impostas e, muito menos, a fórmulas sacramentais, podendo ser feita por toda e qualquer forma que dê a perceber a intenção inequívoca do titular de que tenha lugar procedimento criminal por um certo facto, não se tornando necessário, sequer, que a queixa seja como tal designada (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas – Editorial Notícias, 1993, pág. 675; no mesmo sentido, Ac. R. de Lisboa de 18/02/2003, Proc. n.º 0084955; Ac. R. do Porto de 27/10/2010, Proc. n.º 989/05.3TASTS.P1 e Acs. R. de Coimbra de 18/01/2012, Proc. n.º 45/10.2GDCVL.C1 e de 06/03/2013, Proc. n.º 763/09.8T3AVR-A.C2; Ac. R. de Lisboa de 23/04/2013, Proc. n.º 1034/10.2TAALM-5; Ac. R. de Guimarães, de 10/07/2014, Proc. n.º 525/12.5GAAMR.G1, disponíveis em www.dgsi.pt, como todos os que sejam citados sem outra indicação).
Dispõe o artigo 188.º do Código Penal: Procedimento criminal 1 - O procedimento criminal pelos crimes previstos no presente capítulo depende de acusação particular, ressalvados os casos: a) Do artigo 184.º; e b) Do artigo 187.º, sempre que o ofendido exerça autoridade pública; em que é suficiente a queixa ou a participação. 2 - O direito de acusação particular pelo crime previsto no artigo 185.º cabe às pessoas mencionadas no n.º 2 do artigo 113.º, pela ordem neste estabelecida.
É inequívoco que os crimes imputados aos arguidos têm natureza semipública. Admite-se que a redacção da norma do n.º 1 do artigo 188.º, ao estabelecer, em fórmula que abrange os casos do artigo 184.º e do artigo 187º (quanto a este, “sempre que o ofendido exerça autoridade pública”), que para o procedimento criminal “é suficiente a queixa ou a participação”, possa gerar algumas perplexidades. Como esclarece Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, I, 5.ª edição, 2008, pp. 258-259), o artigo 115.º do Código Penal, na sua redacção originária, previa uma categoria de crimes cujo procedimento dependida de participação de autoridade pública, em que, salvo disposição em contrário, a participação apresentada pela dita autoridade não podia ser objecto de renúncia nem retirada. Este artigo não foi reproduzido no Código Penal após a reforma de 1995, mas a exigência de participação como condição de procedibilidade continua a ser exigida em alguns crimes (ex.: artigos 188.º, n.º l, 198º, 319.º e 324.º). Em que consiste a participação e quem é que tem legitimidade para participar? Diz Germano Marques da Silva: «O art. 49.º, n.º 4, do CPP equipara à queixa a participação de qualquer autoridade. Por isso deve entender-se que os trâmites e efeitos da participação são os mesmos da queixa, mas falta determinar qual a autoridade que tem legitimidade para apresentar a participação. Nos exemplos acima referidos, os arts. 319.º e 324.º expressamente referem que relativamente aos crimes de «infidelidade diplomática» e «contra Estados estrangeiros e organizações internacionais» o procedimento criminal depende, salvo tratado ou convenção em contrário, de participação do Governo português. Já assim não sucede nos arts. 188.º e 198.º em que a lei não indica quem tem legitimidade para participar o crime, devendo entender-se que se trata da autoridade ofendida. A participação, de modo análogo à queixa, é a manifestação de vontade de que seja instaurado o procedimento e distingue-se da queixa simplesmente pela qualidade da entidade que condiciona o procedimento. Esta é a entidade ofendida pelo crime, o titular do interesse que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, salvo disposição expressa em contrário. A diferença é simplesmente formal, atendendo à qualidade do ofendido. Neste entendimento o regime geral da participação equipara-se à queixa e, por isso, diferentemente do que sucedia no regime anterior admite também a renúncia e a desistência.»
Neste sentido, o acórdão da Relação de Évora, de 14/10/2014, proferido no processo 203/13.8TAFAR.E1, assinalando que a conservação da referência à participação na norma do n.º 1 do artigo 188.º teve subjacente o propósito de manutenção de coerência com eventuais normas extravagantes que ainda utilizassem a expressão. No contexto, ela apenas se distingue da queixa no que concerne à qualidade do ofendido e que, quanto a tudo o mais, mormente à exigência de expressão de um desejo inequívoco de procedimento criminal, ela equivale à queixa, tratando-se, em qualquer dos casos, de crimes de natureza semipública. O despacho recorrido cita a seu favor o acórdão do S.T.J., de 05/12/2007 (processo 07P3758), referente a um caso em que um agente da P.S.P. procedera ao levantamento de auto de notícia por detenção, descrevendo factos integrantes de crime de ofensa à integridade física de agentes da P.S.P., bem como factos integrantes de crime de injúria agravada, de que também era ofendido o participante, no exercício de funções e por causa delas. Entendeu o S.T.J. que o levantamento do auto de notícia e a sua posterior remessa ao Ministério Público era legalmente obrigatório, por se referir a factos (ofensas à integridade física dos agentes policiais, em exercício de funções e por causa delas) integrantes de crime público, portanto de denúncia obrigatória (artigo 243.º, n.º 1, do C.P.P., e 143.º, n.º 2. do Código Penal). Porém, no mesmo acórdão entendeu-se que o auto de notícia por detenção já não valia como queixa por crime de natureza semipública – o de injúria agravada -, por não incluir manifestação inequívoca da vontade do(s) ofendido(s) de procedimento criminal por tal crime, ainda que ofendido fosse também o agente que elaborou e assinou esse auto. Não se coloca em causa o entendimento perfilhado pelo S.T.J. no dito acórdão, pois no caso que analisou, constando do auto de notícia, simultaneamente, a descrição de factos que constituíam crime de natureza pública – de denúncia obrigatória para o agente da P.S.P. e que por si legitimavam a detenção em flagrante delito –, e de factos que constituíam crimes semipúblicos, era legítimo questionar se o autuante teria querido, efectivamente, exercer o direito de queixa quanto aos crimes semipúblicos de que era ofendido, pelo simples facto de levantar o referido auto de notícia. No supra aludido acórdão da Relação de Évora, de 14/10/2014, foi entendido que o simples relato dos factos no auto elaborado pela P.S.P. e, posteriormente, o teor dos depoimentos dos ofendidos colhidos durante o inquérito, desacompanhados de manifestação inequívoca de vontade no sentido de que o arguido fosse alvo de perseguição criminal pela prática dos factos susceptíveis de integrarem crimes de injúria agravada, não era o bastante para conferir ao Ministério Público legitimidade para a promoção do processo relativamente àqueles ilícitos. Todavia, importa reter que, no caso analisado nesse aresto, o agente da P.S.P. que elaborou o auto de notícia não era um dos ofendidos, e bem assim que, para além de estarem em causa crimes semipúblicos, estava-se também na presença de três crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, al. c), com referência ao disposto no artigo 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, que revestem a natureza de crimes públicos. Ora, no presente processo, é claro que o agente da P.S.P. ofendido pelos dois crimes de injúria agravada imputados na acusação procedeu à detenção dos arguidos, em flagrante delito, após o que elaborou o respectivo auto de notícia que remeteu ao Ministério Público, única e exclusivamente por causa das palavras que lhe foram dirigidas pelos arguidos e que constam da acusação. Ainda que do auto de notícia por detenção conste a narração de outros factos, anteriores e posteriores à detenção, os mesmos surgem a contextualizar aqueles que originaram as duas detenções e que são as palavras e expressões que os arguidos dirigiram ao agente autuante. Basta verificar que pese embora se refira que, em momento anterior, o arguido R.teria agredido e tentado agredir uma bombeira, não lhe foi dada, na altura, voz de detenção, pois a sua detenção, e a do seu irmão, apenas ocorreram no interior do Hospital Garcia da Orta, em Almada, na imediata sequência das suas condutas – palavras e expressões - dirigidas ao agente da P.S.P. autuante. Nos termos do artigo 255.º do C.P.P., em caso de flagrante delito, por crime punível com pena de prisão, qualquer autoridade judiciária ou entidade policial procede à detenção. Tratando-se de crime cujo procedimento dependa de queixa, a detenção só se mantém quando, em acto a ela seguido, o titular do direito de queixa o exercer, pelo que, nesse caso, a autoridade ou a entidade policial levantam ou mandam levantar auto em que a queixa fique registada, partindo, aqui, o legislador do princípio de que a entidade que procede à detenção é diferente do titular do direito de queixa (cfr. artigo 255.º, n.º3, do C.P.P.). Porém, quando o agente de autoridade que presencia a infracção é, ele mesmo, o ofendido e, precisamente pot causa dos factos que presenciou e ouviu, procede à detenção do agente e elabora o respectivo auto de notícia, não nos parece indispensável que consigne formalmente uma queixa. No caso em apreço, as detenções não surgem na sequência e por causa de crimes públicos que o agente autuante tenha presenciado e em relação aos quais tivesse a obrigação de denúncia, mas apenas em função das palavras e expressões ofensivas que os arguidos lhe dirigiram. Se o agente autuante não tivesse querido exercer o direito de queixa, não teria procedido à detenção dos arguidos e não teria elaborado o respectivo auto de notícia, pelo que nos parece como clara e concludente a vontade do dito agente em que fosse movido contra os arguidos procedimento criminal pelos factos descritos de que foi vítima, subsumíveis à tipicidade do crime de injúria agravada, pois, para além desses factos, nada mais justificava, na lógica do auto de notícia, a detenção dos arguidos. Adere-se, pois, inteiramente, ao entendimento há muito perfilhado pela Relação de Coimbra, no seu acórdão de 18 de Janeiro de 1996 (publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXI, tomo I, p. 42 e seguintes), sustentando-se que, in casu, ao deter os arguidos e ao elaborar o auto de notícia, o agente autuante manifestou a sua intenção inequívoca de que fosse exercida a acção penal contra os arguidos, o que equivale ao exercício do seu direito de queixa (neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, p. 640, ao dizer: “Se a entidade policial presencia um crime semipúblico ou particular punível com pena de prisão cometido contra si e quiser exercer o direito de queixa, deve deter o suspeito e elaborar auto de notícia e detenção. Se o fizer, ele vale como queixa.”). O acórdão da Relação de Coimbra, de 18-01-2012, proferido no processo 45/10.2GDCVL.C1, defendeu que, presentemente, após a revisão do C.P.P. de 2007, todos os crimes, independentemente da sua natureza, são de denúncia obrigatória para as entidades policiais que deles tomarem conhecimento. Não conhecemos outros arestos que sigam esse entendimento. Todavia, mesmo que assim se entendesse, a circunstância de o agente autuante proceder à detenção dos arguidos e ao levantamento do auto de notícia por detenção e comunicação à autoridade judiciária, não havendo outros factos a justificar a detenção dos arguidos, constitui, a nosso ver e salvo melhor opinião, manifestação clara e concludente da intenção do referido agente de que aos arguidos fosse movido procedimento criminal por tais factos, pelo que o Ministério Público tem legitimidade para promover a respectiva acção penal. Conclui-se que o recurso merece provimento.
*** III – Dispositivo Pelo exposto, acordam os Juízes da 5.ª Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogam o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que tenha como pressuposto a legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação contra os arguidos pelos factos imputados.
Sem tributação.
Lisboa, 20 de Junho de 2017 (o presente acórdão, integrado por dez páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)
(Jorge Gonçalves)
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