Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
9553/20.6T8LSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
JUÍZO DO COMÉRCIO
DIREITOS SOCIAIS
ANULAÇÃO DE CESSÃO DE QUOTAS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I)– Aos Tribunais/juízos de Comércio , tendo presente o disposto no art. 128º nº 1 c) da Lei nº 62/2013 de 26/08, compete preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais;

II)– Os direitos sociais são aqueles que estão previstos na Lei das Sociedades Comerciais ou no contrato de sociedade

III)– Visando o autor na acção intentada que seja decretada a anulação de um contrato de cessão de quota, sendo a relação materialmente controvertida composta, objectivamente, pelos vícios conducentes a essa nulidade e que não visam o exercício de um direito social do Autor – apesar de ser evidente que o negócio em causa o prejudicou patrimonialmente enquanto participante no capital da 1ª Ré – então de acção se trata cuja preparação e julgamento não incumbe aos Tribunais/juízos de Comércio.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa


Veio nos presentes autos A [ Rodrigo.....]  deduzir acção declarativa de condenação contra B [ ..... Gomes Limitada ] , C [ Miguel.....] e D [ Maria.....], em que termina pedindo que seja declarado nulo o contrato de cessão de quotas, nos seguintes termos:
a)-Nulo, pelo facto de as assembleias das sociedades envolvidas e que tinham de prestar o seu consentimento, terem sido realizadas sem que nas mesmas estivessem presentes os sócios que representavam a totalidade do capital social, e sem terem sido precedidas do envío aos sócios de carta contendo a convocatória;
b)-Nulo porquanto, constituindo pressuposto da validade da cessão de quotas o consentimento da sociedade,  é, por sua vez, nula a assembleia geral de 02.05.2018, por violação dos arts. 56.°, nº 1, a) e 243.°, nº 3 do CSC, uma vez que não foi precedida de aviso convocatório nem na mesma se encontravam presentes ou representados os sócios titulares de 100% do capital social;
c)-Nulo, nos termos do disposto no artigo 397.°/2 do CSC, por se tratar de contratos celebrados entre a sociedade e o seu gerente, por pessoa interposta;
d)-Nulo, nos termos do disposto no artigo 240.° do CC, por se tratar de um negócio simulado;
e)-Nulo, nos termos e para efeitos do artigo 280.° do CC, por se tratar de um negócio jurídico concretizado em clara situação de abuso de direito, sendo o mesmo contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes; Ou, caso assim não se entenda,
f)-Anulável, por violação do disposto no artigo no artigo 261.° do CC, por se tratar de um negócio consigo mesmo,
g)-Ou, caso assim não se entenda, sempre deverá ser declarado que o suposto Contrato de Cessão de Quotas é ineficaz, por abuso de representação, nos termos do disposto no artigo 269.° do CC.

Foi proferido despacho liminar com o seguinte teor:
A [ Rodrigo.....] intentou contra A [ Rodrigo.....]  B [ ..... Gomes Limitada ] , C [ Miguel.....] e D ação declarativa de condenação sob a forma comum, pedindo seja declarado nulo ou anulável o Contrato de Cessão de  Quotas da sociedade Matos & ...., Lda. pela sociedade ré, gerida pelo segundo réu, à terceira ré.
Invoca, para o efeito, que as assembleias das sociedades envolvidas não foram precedidas de aviso convocatório nem reuniram o quorum deliberativo exigível para a deliberação em causa; que os réus procederam à adulteração das contas da sociedade ré para vender a quota por um preço inferior ao seu valor comercial; que a sociedade ré cedeu a sua participação ao cônjuge do seu gerente, o que lhe está vedado; que a cessão se trata de um negócio simulado, não tendo a terceira ré pago o respetivo preço; o negócio foi concretizado em abuso de direito, em abuso de representação e é contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes.
Tendo o processo sido concluso, importa, conhecer, antes de mais, da competência deste tribunal.
Ora, nos termos do artigo 128,°, nº 1, alínea c) da Lei 62/2013, de 26.08, compete aos Juízos de Comércio, preparar e julgar as ações relativas ao exercício de direitos sociais.
Os direitos sociais, para o efeito de fixação da competência dos Juízos de Comércio, são os inerentes à qualidade de sócio de determinada sociedade, decorrentes do contrato de sociedade e tendentes à proteção do sócio no âmbito dos seus interesses sociais.
ln casu,  apreciando os pedidos formulados e a causa de pedir alegada, conclui-se que, com a presente ação, pretende o autor que o tribunal conheça da validade de deliberações sociais, da verdade contabilística de duas sociedades, uma delas aqui ré, bem como da legalidade da atividade do gerente da sociedade e do seu sócio, para concluir pela nulidade de um negócio de cessão de uma quota social que pertencia à sociedade ré.
Pois bem, tendo em conta as matérias invocadas, sempre se dirá que o que está em causa é precisamente o exercício de direitos sociais, que apenas podem ser exercidos pelo autor atenta a sua qualidade de sócio da sociedade ré e que exigem especial preparação técnica e sensibilidade que só o Tribunal de Comércio está habilitado para solucionar.
Em face do exposto, conclui-se, assim, que a presente ação é da competência dos juízos de comércio, não sendo, portanto, materialmente competente para a sua apreciação o juízo local cível.
Ora, a infração das regras de competência em razão da matéria constitui um caso de incompetência absoluta, que é uma exceção dilatória nominada e insanável, de conhecimento oficioso, e que implica a absolvição do réu da instância ou o indeferimento em despacho liminar, quando o processo o comportar (cfr. artigos 96.°, alínea a), 97º, 99.°, 576.°, n.o 2, 577.°, alínea a) e 578.° do CPC).
Assim é manifesto que este Tribunal é incompetente, em razão da matéria, para conhecer da presente ação.
Pelo exposto, nos termos e ao abrigo das disposições normativas supra referidas, declaro a incompetência deste Tribunal em razão da matéria e, em consequência, absolvo os réus da instância”.

Inconformado recorre o Autor, concluindo que:
- O ora Recorrente vem recorrer da douta sentença de fls ... , onde o Tribunal a quo se declarou incompetente em razão da matéria, tendo em consequência absolvido os Réus da instância;
- Considerou o Tribunal a quo que o conhecimento e decisão sobre a matéria vertida na ação seria, toda ela, da competência do Juízo de Comércio e não do Juízo Local Cível, por estar em causa o exercício de direitos sociais;
- A decisão proferida pelo Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 117.°, 130.° e 128.° da LOSJ e nos artigos 65.° e 96.° do CPC;
- A determinação do tribunal materialmente competente deve partir da análise da estrutura da relação jurídica material submetida à apreciação e julgamento do Tribunal, sempre segundo a versão apresentada em juízo pelo Autor, ou seja, tendo em conta a pretensão concretamente formulada e os respetivos fundamentos.
- Assim, a competência em razão da matéria prende-se com a natureza da relação substancial em litígio;
- Importa ter em consideração o efeito jurídico que o Recorrente pretende obter com a ação e o ato ou facto (causa de pedir) de que, no seu entender, o direito potestativo procede;
- Os direitos reclamados na presente ação relacionam-se unicamente com a nulidade/anulabilidade do "Contrato de Cessão de Quotas e Assunção de Dívida", celebrado no dia 4 de Março de 2019, sendo que para tal foi cucial descrever os factos que levaram à celebração do referido contrato, mormente as assembleias gerais realizadas e a atitude subjacente ao comportamento do segundo e terceiro Recorridos;
- Esses factos visam apenas esclarecer o Tribunal dos contornos da celebração do negócio jurídico em causa, permitindo assim que se concilia no sentido de que o negócio é simulado, contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes, não havendo lugar para outra interpretação que não a sua nulidade.

Independentemente dos factos que levaram à celebração do regócio jurídico, e que originaram a causa de pedir, estes tinham de ser alegados pelo Recorrente para justificar a consequência jurídica pretendida: a anulação do negócio jurídico;
No entanto, a alegação desses factos não faz com que a natureza da relação substancial em litígio seja societária, nem faz com que no caso sub judice estejamos perante o exercício de direitos sociais;
Para que a ação em apreço seja da competência dos Juízes de Comércio, seria necessário que esta se subsumisse a alguma das ações descritas nas alíneas do artigo 128.° da LOSJ, o que não é o caso;
Também não se insere na al. c) do artigo 128.° da LOSJ concernente às ações relativas ao exercício de direitos sociais, conforme entendeu o Tribunal a quo;
Os direitos sociais são os direitos cuja matriz, direta e imediatamente, se funda na lei societária e/ou no contrato de sociedade e no caso em apreço não é o que está em causa;
Neste sentido e quanto à previsão legal referente a direitos sociais, a ação em apreço não se subsume a nenhum dos processos de jurisdição voluntária previstos no Capítulo XIV do CPC, nem se subsume a nenhum dos casos em que CSC estabelece uma série de direitos concedidos aos sócios, mormente nos seus artigos 21.°,59.°,67.°,77.°,266.°, 458.° e 156.°;
Ao contrário do que o Tribunal a quo  referiu, o Recorrente não pretende que o tribunal conheça da validade de deliberações sociais, da verdade contabilística de duas sociedades ou da legalidade da atividade do gerente da sociedade e do seu sócio;
Nesta ação não se visa a proteção do Recorrente por força da qualidade de sócio, estando, ao invés, perante o exercício de direitos extra-sociais;
Assim, o objeto da ação diz respeito à verificação da existência de vícios no contrato celebrado, vícios esses que determinam a sua nulidade/anulabilidade, tratando-se de matéria de direito civil, e não de direito comercial ou do exercício de quaisquer direitos sociais;
Não restando dúvidas que no caso sub judice o Recorrente não pretendeu exercer direitos sociais, mas sim que fossem reconhecidos direitos decorrentes da lei civil, sendo por essa razão o Tribunal a quo materialmente competente para julgar a ação.

A decisão objeto do presente recurso, pela forma como foi proferida, sem conhecimento prévio das partes, constitui uma decisão surpresa, violando, deste modo o princípio do contraditório, consagrado no nº 3 do artigo 3.° do CPC;
- A omissão de uma formalidade de cumprimento obrigatório, como ocorre com o respeito pelo principio do contraditório destinado a evitar "decisões-surpresa", configura a nulidade da sentença/despacho, por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 615.°/1/ d) CPC.

Incumbia, pois, ao Juiz determinar a notificação do ora Recorrente manifestando o propósito de conhecer oficiosamente da exceção dilatória da incompetência material do tribunal relativamente aos pedidos formulados, devendo aquele, no exercício do direito contraditório, tecer as considerações que entendesse conveniente face a essa intenção.

Termos em que, deve ser revogada a sentença recorrida, sendo substituída por outra que julgue o Tribunal a quo materialmente competente para preparar e julgar a presente ação.

Caso assim não se entenda,
Deve a sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que ordene a notificação do Autor, aqui recorrente, para que se pronuncie sobre a questão da competência do tribunal recorrido.

Cumpre apreciar.
Está em causa saber se a competência material para conhecer do pleito incumbe ao tribunal cível ou se, ao invés, é da competência dos tribunais de comércio.

O Tribunal a quo entendeu que a competência pertencia aos Tribunais de Comércio com base no disposto no art. 128º nº 1 c) da Lei nº 62/2013 de 26/08, nos termos do qual compete aos Juízos de Comércio preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.

No caso dos autos a 1ª Ré é uma sociedade comercial, o Autor é sócio da mesma, o 2º Réu é o gerente da sociedade Ré e a 3ª Ré é casada com este sob o regime de comunhão de adquiridos.

Como tem sido entendido maioritariamente, a competência em razão da matéria afere-se pelo pedido efectuado e pela causa de pedir, sendo que a relação jurídica que devemos ter em conta será a que é configurada pelo autor, seja quanto aos seus elementos objectivos (causa de pedir e pedido), seja quanto aos elementos subjectivos (as partes) – ver acórdão do STJ 29/05/2014), disponível no endereço da dgsi.

Se observarmos a petição inicial, vemos que o Autor pede a anulação de uma cessão de quotas mediante a qual a sociedade Ré cedeu a sua participação no capital social da sociedade Matos e .... Lda, no valor nominal de € 39.903,83, à 3ª Ré D – cônjuge do gerente da sociedade Ré – pelo preço correspondente ao valor contabilístico da mesma, e que no respectivo contrato, a fls. 44, foi fixado em € 48.603,12.

Apresenta como fundamentos de tal nulidade o factos de as assembleias onde a cessão foi deliberada terem sido realizadas sem que nas mesmas estivessem presentes os sócios que representavam a totalidade do capital social e sem terem sido precedidas de carta contendo a convocatória. Acresce que, na tese do Autor, tratou-se de um contrato celebrado entre a sociedade e o seu gerente por pessoa interposta, configurando-se um negócio simulado.

Finalmente, entende o Autor que o negócio concretiza um caso de abuso de direito, sendo contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes.

Sublinhe-se que o Autor não pede a anulação da deliberação social, um inquérito judicial à sociedade ou uma acção para destituição do gerente com justa causa. Pede a nulidade do negócio jurídico da cessão de quota e entre os motivos para tal nulidade – mas que não são os únicos – invoca a não presença na assembleia que aprovou o negócio de todos os participantes no capital da sociedade Ré e a sua não convocação para a mesma.

O que está em causa é assim a anulação de um contrato de cessão de quota, sendo a relação materialmente controvertida composta, objectivamente, pelos vícios conducentes a essa nulidade e que não visam o exercício de um direito social do Autor – apesar de ser evidente que o negócio em causa o prejudicou patrimonialmente enquanto participante no capital da 1ª Ré. Quanto muito, esta última circunstância poderá conferir-lhe o interesse em agir numa acção cujo elemento essencial da causa de pedir é manifestamente a invocada simulação do negócio. Sendo por isso mesmo a acção dirigida contra os intervenientes no dito contrato de cessão de quota, sendo que a Ré D não é sócia da 1ª Ré, antes cessionária da quota desta na sociedade Matos e .... Lda.
Os direitos sociais são aqueles que estão previstos na Lei das Sociedades Comerciais ou no contrato de sociedade. Ora, o que o Autor pretende não é exercer os direitos a receber carta convocatória da assembleia mas sim obter a nulidade do negócio jurídico que essa assembleia viabilizou.

Mas as causas intrínsecas da nulidade do negócio consistem no facto de, na perspectiva do Autor, se tratar de um contrato simulado, pelo qual a Ré sociedade cede aparentemente uma quota sobre o capital de uma outra sociedade a uma terceira pessoa, quando na verdade é ao gerente, 2º Réu, que tal cessão se destina, uma vez que a 3ª Ré é sua mulher. Isto, para lá de o valor da quota cedida ser, na tese do mesmo Autor, muito superior ao declarado.

Como se sublinha no acórdão do STJ de 05/07/2018, “considerando quer o pedido quer a respectiva fundamentação, estamos perante uma acção em que o Autor ocupa uma posição semelhante àquela em que porventura estaria qualquer outro interessado, sendo que apenas de modo reflexo dela podem emergir efeitos que reflitam na sua esfera jurídica”.

Assim e pelo exposto revoga-se o despacho recorrido, julgando-se materialmente competente para conhecer dos termos da causa o tribunal a quo.
Sem custas.

  

LISBOA,11/11/2021



António Valente
Teresa Prazeres Pais
Rui Vouga