Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1269/2002-3
Relator: CARLOS ALMEIDA
Descritores: ACUSAÇÃO
PROCESSO DE QUERELA
DÍVIDA
LIQUIDAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: ANULADA
Sumário: I – A dedução pelo Ministério Público de acusação contra o réu, num processo de querela, a que era aplicável o disposto no artigo 29º e segs. do Código de Processo Penal de 1929 e no artigo 12º do Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro, é um acto de promoção da liquidação da dívida nos termos e com os efeitos previstos no n.º 4 do artigo 306º do Código Civil.
II – As deficiências, obscuridades e contradições da matéria de facto, aliadas à insuficiência da indicação dos elementos de cálculo da indemnização, impõem que se anule a decisão proferida, nos termos previstos no artigo 712º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força dos artigos 649º e 665º do Código então vigente.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa



I – RELATÓRIO
1 – O réu Ant. foi julgado, no âmbito do processo de querela n. ° 103/95.1TCLSB da 4ª Vara Criminal de Lisboa, pela prática de um crime de administração danosa em unidade económica do sector público, conduta p. e p. pelo artigo 333°, n. °s 1 e 3, da redacção original do Código Penal de 1982 (acusação provisória de 20/10/94 – fls. 988 a 993 verso –, convertida em definitiva em 25/1/95 – fls. 1004 –, e pronúncia de 9/2/95 – fls. 1005 a 1008).
Por acórdão de 3 de Março de 1997 (fls. 1129 a 1138), o tribunal decidiu:
· Absolver o réu do crime por que tinha sido acusado e pronunciado;
· Condenar o réu, nos termos do artigo 12° do Decreto-Lei n. ° 605/75, a indemnizar o Instituto do Azeite e Produtos Oleaginosos (IAPO) e o Fundo de Abastecimento pelos prejuízos causados, em montante a apurar em liquidação de sentença, mas não inferior a 3.336.550.000$00, valor acrescido de juros à taxa supletiva legal, contados desde a data da verificação de cada um dos prejuízos parcelares.
Nessa peça processual considerou-se provado que:
1. «O IAPO, Instituto do Azeite e Produtos Oleaginosos, é um organismo de coordenação económica dotado de personalidade jurídica e de autonomia financeira.
2. Tem por objecto a regularização das condições de abastecimento, importação e exportação de azeite, óleos vegetais, gorduras alimentares e animais, oleaginosas, sabões, detergentes, e outras atribuições emanadas do Decreto-Lei n. ° 426/72, de 31 de Outubro.
3. De acordo com os despachos dimanados da Secretaria de Estado de Abastecimento e Preços, datados de 22/1/75 e de 6/2/75, o IAPO passou a deter a exclusividade quanto à importação de sementes de oleaginosas, cujos produtos, a extrair, se destinassem ao abastecimento do mercado interno.
4. O órgão de gestão do IAPO é uma direcção colegial, composta por um presidente e três directores.
5. No lapso de tempo compreendido entre Outubro de 1977 e Maio de 1984, os lugares da direcção eram ocupados por B., também presidente, por L., e pelo réu Ant..
6. Ao presidente da direcção cabia o voto de qualidade, bem como poderes de representação, coordenação, e orientação.
7. O presidente da direcção podia delegar esses três últimos poderes nos directores das respectivas áreas funcionais, de acordo com praxe administrativa.
8. Assim, pela área funcional do "Azeite" era responsável o também presidente B....
9. O pelouro jurídico-administrativo era da responsabilidade de L....
10. E a área das oleaginosas era da exclusiva responsabilidade do réu Ant..
11. De acordo com as praxes administrativas instituídas para o período temporal situado entre Janeiro de 1983 e Maio de 1984, o IAPO procedia à comercialização da semente de soja, que importava, junto das unidades extractoras...
12. O que fazia a preços de cotação internacional sempre que os óleos a extrair se destinassem à exportação...
13. ... Bem como à comercialização, no mercado interno, de bagaços extraídos de semente cujo óleo era exportado.
14. Entre essas unidades extractoras contavam-se as sociedades “T....., SARL” e “I...., SARL”.
15. A semente de soja que se destinava à venda no mercado interno era comercializada a preços fixados por portaria (preços administrativos).
16. Os custos inerentes à importação da mesma semente, cujo óleo era exportado, deviam ser suportados pelas referidas empresas industriais.
17. As diferenças ocorrentes entre os preços administrativos e os custos de aquisição constituíam encargos do Fundo de Abastecimento.
18. Para cobrir as diferenças entre os preços de venda administrativos e os da «cotação acordada» o IAPO emitia notas de débito ou de crédito quando o óleo era exportado.
19. A referida «cotação» era acordada com as sociedades T. e I., e as demais empresas do sector...
20. E consistia na cotação internacional, calculada de acordo com o câmbio em vigor à data da exportação, acrescida de encargos aduaneiros e demais despesas.
21. Contudo, no lapso de tempo ultimamente referido, o réu Ant., como responsável pela área de oleaginosas, adoptou uma cotação de valor inferior ao de custo internacional à referência CIF/Roterdão...
22. Acarretando para o IAPO, desse modo, um prejuízo patrimonial de 2.642.700.000$00 (dois biliões, seiscentos e quarenta e dois milhões, e setecentos mil escudos)...
23. ...Com efeito, a favor da T.  emitiu as seguintes notas de crédito:
a. No dia 7/3/83, de 5.015.000$00, 16.250.000$00, 1.593.000$00, e 4.596.000$00;
b. em 12/5/83, de 728.000$00;
c. em 24/8/83, de 218.367$00;
d. em 13/9/83, de 54.721$00 e 51.007.000$00;
e. em 30/12/83, de 46.368.000$00, 24.025.000$00 e 49.656.000$00;
f. e, em 15/3/84, de 631.000$00, 2.157.000$00 e 1.347.000$00.
24. Ainda a favor da T., emitiu as seguintes notas de débito:
a. Em 7/3/83, de 1.204.000$00 e 1.299.000$00;
b. em 20/4/83, de 2.808.000$00;
c. em 31/5/83, de 9.050.000$00, 8.884.000$00, 21.221.000$00 e 23.699.000$00;
d. em 13/7/83, de 91.274.000$00;
e. em 27/7/83, de 102.590.000$00;
f. em 2/8/83, de 91.170.000$00 e 19.035.000$00;
g. em 30/12/83, de 21.199.000$00;
h. em 8/2/84, de 6.445.000$00, 36.611.000$00, 31.269.000$00 e 55.971.000$00;
i. em 5/3/84, de 19.809.000$00;
j. e, em 7/5/84, de 757.000$00 e 7.373.000$00.
25. A favor da I. emitiu as seguintes notas de crédito:
a. Em 7/3/83, de 12.038.000$00 e de 5.735.000$00;
b. em 25/3/83, de 9.537.000$00;
c. em 1/9/83, de 36.300.000$00, 34.607.000$00, 1.644.000$00, 68.263.000$00 e 13.728.000$00;
d. em 25/11/83, de 87.393.000$00, 38.840.000$00, 2.599.000$00;
e. em 30/12/83, de 9.874.000$00;
f. em 17/2/84, de 2.960.000$00;
g. em 24/2/84, de 865.000$00;
h. em 15/3/84, de 13.570.000$00;
i. e, em 2/5/84, de 6.672.000$00.
26. Emitiu ainda, quanto à mesma I., as seguintes notas de débito:
a. Em 13/5/83, de 463.000$00;
b. em 3/5/83, de 7.196.000$00;
c. em 26/6/83, de 35.624.000$00;
d. e, em 27/7/83, de 3.354.000$00.
27. Por outro lado, o IAPO, sempre representado pelo réu no sector das oleaginosas, adquiriu às referidas clientes, T. e I., bagaço proveniente de sementes de que fora extraído óleo para exportação...
28. E isto porque o réu entendeu que tais aquisições coarctavam exportações daquela produção a efectuar pelas mesmas clientes.
29. O réu atribuiu-lhes uma compensação, que consistiu na diferença registada entre o preço de comercialização do bagaço no mercado interno (preço administrativo), e uma cotação internacional que se baseava em valores superiores ao CIF de Roterdão.
30. Deste modo, acarretou para o IAPO um prejuízo patrimonial que ascende a 693.850.000$00 (seiscentos e noventa e três milhões, oitocentos e cinquenta mil escudos).
31. Na verdade o IAPO, de acordo com a descrita actuação do réu, emitiu as seguintes notas de débito a favor da T.,:
a. No dia 24/8/83, de 55.188.000$00;
b. no dia 13/9/83, de 13.499.000$00;
c. e, no dia 30/12/83, de 9.740.000$00...
32. Bem como as seguintes notas de crédito, a favor da mesma sociedade:
a. Em 7/3/83, de 50.011.000$00, 61.498.000$00, 84.387.000$00, 63.742.000$00, 63.694.000$00 e 58.761.000$00;       
b. em 12/5/83, de 22.504.000$00;
c. em 20/4/83, de 57.047.000$00;
d. em 31/5/83, de 34.418.000$00, 33.788.000$00, 79.100.000$00 e 81.010.000$00;
e. em 13/7/83, de 219.439.000$00;
f. em 27/7/83, de 142.009.0000;
g. em 2/8/83, de 124.621.000$00, e de 25.738.000$00;
h. em 13/9/93, de 31.909.000$00;
i. em 30/12/83, de 14.394.000$00, 32.762.000$00, e 80.475.000$00;
j. em 8/2/84, de 16.768.000$00, 95.720.000$00, 95.720.000$00, 81.753.000$00 e 146.334.000$00;
k. em 5/3/84, de 60.733.000$00;
l. e, em 15/3/84, de 16.324.000$00, 38.981.000$00, e 24.349.000$00.
33. De acordo com a mesma actuação, o IAPO emitiu, ainda, as seguintes notas de crédito a favor da I:
a. em 7/3/83, de 92.213.000$00, e 43.936.000$00;
b. em 25/3/83, de 99.619.000$00;
c. em 13/5/83, de 1.668.000$00;
d. em 3/5/83, de 116.017.000$00;
e. em 23/6/83, de 310.520.000$00;
f. em 27/7/83, de 8.755.000$00;
g. em 1/9/83, de 18.836.000$00, 20.105.000$00. 566.000$00, 49.346.000$00 e 12.131.000$00;
h. em 25/11/83, de 104.654.000$00, 82.282.000$00 e 3.751.000$00;
i. em 30/12/83, de 29.367.000$00;
j. em 17/2/84, de 59.576.004$00;
k. em 24/2/84, de 6.724.000$00;
l. em 15/3/84, de 50.970.000$00;
m. e, em 2/5/84, de 60.926.000$00.
34. Com toda a actuação acima descrita, o réu provocou ao IAPO/Fundo de Abastecimento um prejuízo global de 3.336.550.000$00 (três biliões, trezentos e trinta e seis milhões, quinhentos e cinquenta mil escudos), prejuízo esse que se traduziu em débitos insuficientes lançados pelo IAPO, em virtude da semente de soja ter sido vendida a preços inferiores aos da cotação internacional CIF/Roterdão e aos dos custos CIF do último fornecimento, e em créditos excessivos, em virtude das compensações de preços do bagaço de soja terem tomado por referencial cotações substancialmente superiores às vigentes no mercado internacional.
35. Por outro lado, ainda no desempenho das aludidas funções, no dia 10/5/84, o réu determinou que o IAPO distribuísse à Fábrica M., SA, 4.063 toneladas de semente de girassol, pelo preço de 40.126$00 a tonelada...
36. ...Tendo excedido em 613 toneladas as necessidades atendíveis, fixadas de acordo com os gastos médios da empresa.
37. Deste modo, deu origem ao pagamento, por parte do Fundo de Abastecimento, de encargos de montante não exactamente apurado.
38. Estes prejuízos (§§ 34 e 37) apenas se verificaram porque o réu não observou as regras fixadas em praxes administrativas (portarias) para a comercialização dos produtos em causa...
39. ... Ao invés, adoptou regras próprias, o que lhe não competia...
40. Acarretando para o IAPO/Fundo de Abastecimento os aludidos prejuízos.
41. O réu agiu deliberada, livre e conscientemente.
42. Sabia que toda a sua descrita actuação lhe não era permitida por lei.
43. A política seguida pelo réu possibilitou a retenção e poupança de divisas, quanto à opção de compra de bagaços excedentes aos produtores nacionais.
44. A "cotação acordada" tinha como referenciais algumas cotações internacionais ...
45. ... Mas apenas como referenciais.
46. As cotações internacionais são variáveis».

2 – O Réu interpôs recurso desse acórdão para o Tribunal da Relação de Lisboa.
As alegações apresentadas terminavam com a formulação das seguintes conclusões:
a) «As notas de crédito e de débito apresentadas pela I.G.F., e que constam dos quesitos 23, 24, 25, 26, 31, 32 e 33 não representam nem traduzem prejuízos para o IAPO.
b) Com efeito esses lançamentos representam apenas o acerto de contas pelas diferenças resultantes do ajustamento entre os preços administrativos, pelos quais as matérias-primas foram inicialmente fornecidas aos industriais, e os preços das cotações acordadas.
c) As cotações acordadas procuravam representar os preços de mercado, tendo como referenciais, mas apenas referenciais, as cotações internacionais das matérias-primas nos principais mercados.
d) As cotações eram acordadas no momento do fornecimento pelo IAPO aos industriais das matérias-primas (sementes de soja) a transformar em óleo e farinha.
e) Essas cotações podiam ser diferentes das que se verificavam no momento da exportação da farinha e do óleo.
f) Nunca foram, porém, inferiores ao preço porque o IAPO havia adquirido as matérias-primas.
g) E só neste caso é que existiria prejuízo efectivo para o IAPO.
h) A prática de fixar as cotações acordadas no momento dos fornecimentos das matérias-primas pelo IAPO aos industriais era indispensável para que a indústria pudesse trabalhar.
i) Pois que não é possível a uma empresa industrial comprar a matéria-prima por um preço que não conheça e que só no momento da venda venha a ser conhecido.
j) 0 recorrente sempre deu conhecimento do seu procedimento ao órgão de tutela (Secretaria de Estado do Comércio) que com ele concordou.
k) O IAPO, não sendo uma empresa comercial, mas sim um organismo de coordenação económica, não funciona em função de critérios estritamente economicistas, ou seja, por critérios que visem exclusivamente proporcionar o lucro máximo.
l) Tendo sido absolvido da prática do crime de que vinha acusado, não é legítimo que o recorrente seja condenado no pagamento de uma indemnização.
m) Nos termos do antigo C.P.P., artigo 34°, só era legítima a condenação em indemnização civil, sem pedido do ofendido, no caso de condenação.
n) Para se aplicar o artigo 12° do Decreto-Lei 605/75 era necessário que tivesse havido pedido de indemnização, o que não aconteceu.
o) A condenação em indemnização, sem pedido, era uma consequência necessária e directa da condenação penal do réu.
p) Tal situação desapareceu do actual ordenamento penal, e a lei aplicável tem de ser sempre a mais favorável ao acusado.
q) A responsabilidade do recorrente está prescrita, prescrição que ainda não teve oportunidade de invocar por não haver pedido cível, mas que para todos os efeitos invoca.
r) A sentença recorrida viola, além de fazer errada interpretação de factos, por errada aplicação, o artigo 12° do Decreto-Lei 605/75.
s) Viola igualmente o artigo 2°, n.° 1 do C. Penal.
t) Viola também o artigo 498° do Código Civil.
Nos termos expostos:
Pede-se a revogação da decisão recorrida e a consequente absolvição do recorrente da condenação de pagar a indemnização».

3 – O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 1/10/97 (fls. 1178 a 1186), decidiu anular o acórdão recorrido para ser repetido o julgamento a fim de se esclarecer como é que se obtiveram os montantes de 2.642.700.000$00 e de 693.850.000$00, recorrendo-se, se necessário, à ampliação da matéria de facto ou procedendo-se a um melhor esclarecimento e correcção das respostas dadas aos quesitos a que se reportam aqueles pontos de facto.

4 – Na sequência da interposição de novo recurso (fls. 1188), desta vez para o Supremo Tribunal de Justiça, veio aquele tribunal, através de acórdão proferido em 3 de Junho de 1998 (fls. 1230 a 1235), a anular a decisão anterior determinando que o Tribunal da Relação de Lisboa se pronunciasse sobre a questão prévia da aplicabilidade ao caso do artigo 12° do Decreto-Lei n.° 605/75, de 3 de Novembro.

5 – Em cumprimento dessa decisão, o Tribunal da Relação de Lisboa veio, em 4 de Novembro de 1998, a proferir novo acórdão (fls. 1241 a 1247) em que considerou ser aplicável ao caso o disposto no artigo 12° do Decreto-Lei n.° 605/75, de 3 de Novembro, e, consequentemente, decidiu manter a sua anterior decisão.

6 – Após novo recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 1249), veio este tribunal, por acórdão de 27 de Maio de 1999, a negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida (fls. 1278 a 1283).

7 – Interposto recurso para o Tribunal Constitucional (fls. 1286), veio, em 12 de Janeiro de 2000, a ser proferida decisão sumária, nos termos do n.° 1 do artigo 78°-A da Lei n.° 28/82, de 15 de Novembro (fls. 1292 a 1298), em que se negou provimento ao recurso, não se julgando inconstitucional a norma constante do artigo 12° do Decreto-Lei n.° 605/75, de 3 de Novembro, na parte em que prevê que a indemnização cível por perdas e danos em processo penal possa ser arbitrada oficiosamente independentemente de requerimento do lesado.
Apresentada reclamação para a conferência (fls. 1300 a 1306) veio, em 25 de Outubro de 2000, a ser proferido acórdão que indeferiu a reclamação e confirmou a decisão sumária anteriormente proferida (fls. 1312 a 1321).

8 – Devolvido o processo à 1ª instância e na sequência de uma notificação que foi feita para o Ministério Público e o réu, querendo, se pronunciarem sobre os meios de prova a produzir em audiência, este último requereu que o tribunal esclarecesse quem era o autor e quais os factos que deveria o réu contestar e provar (fls. 1331).
Sobre esse requerimento, veio a ser proferido o seguinte despacho (fls. 1332):
«O Exm° Sr. advogado requerente vem pedir que se “esclareça”, nomeadamente, quem é autor nos presentes autos. Presume-se que saiba, porém – e que bem o saiba, como decorre, além do mais, do fruste recurso para o Tribunal Constitucional – que, nos presentes autos, nenhum pedido cível foi formulado, decorrendo a condenação cível da previsão especial do artigo 12° do Decreto-Lei n.° 605/75, aplicável à forma de processo de querela. Nada a esclarecer, pois.
Quanto aos factos probandos, não podem ser outros que não os que, tendo sido objecto do processo, sejam susceptíveis de configurar ilícito cível indemnizável – o que também decorre daquele artigo».
O réu interpôs recurso desse despacho (fls. 1333), o qual foi admitido a fls. 1387, determinando-se que subisse a final, com o recurso que fosse interposto da decisão de mérito, em separado e com efeito meramente devolutivo.
O modo de subida estabelecido foi alterado por despacho do relator, que determinou que o recurso subisse nos próprios autos, nos termos do artigo 653° do Código de Processo Penal de 1929.

9 – Através de requerimento apresentado em 26 de Janeiro de 2001 (fls. 1335 a 1340), posteriormente esclarecido a fls. 1344, o réu requereu a realização de uma perícia contabilística, nos termos do artigo 569° do Código de Processo Civil.
Sobre esse requerimento, veio a ser proferido, em 2 de Fevereiro de 2001, o seguinte despacho (fls. 1348):
«Quanto à perícia, a que se reporta o artigo 569° (no seguimento do artigo 568°) do Código de Processo Civil, na redacção aplicável, ou seja, a que vigorou até 31/12/96 – artigo 6° do Decreto-Lei n.° 329-A/95, na redacção do Decreto-Lei n.° 180/96:
A diligência requerida afigura-se de todo desnecessária, senão dilatória: não está em causa a avaliação de quaisquer bens ou direitos, mas tão só, a correcta quantificação de valores certos estabelecidos ou estabelecer com recurso aos meios de prova documental e/ou testemunhal.
Indefere-se, pois, tal “perícia”».
 O réu interpôs recurso desse despacho (fls. 1349), o qual foi admitido a fls. 1387, determinando-se que subisse a final, com o recurso que fosse interposto da decisão de mérito, em separado e com efeito meramente devolutivo.
O modo de subida estabelecido foi alterado por despacho do relator, que determinou que o recurso subisse nos próprios autos, nos termos do artigo 653° do Código de Processo Penal de 1929.

10 – No dia 30 de Maio de 2001, o réu apresentou um requerimento, dirigido ao juiz da 4ª Vara Criminal de Lisboa, no qual pedia que fossem considerados impedidos os juízes que tinham participado no 1° julgamento (fls. 1406).
Relativamente a esse requerimento, o sr. juiz titular do processo proferiu o seguinte despacho (fls. 1408):
«O réu vem alegar aquilo que entende ser uma causa de impedimento dos Mm°s. juízes-adjuntos. Invoca, para tanto, o disposto nos artigos 122°, n.° 1, alínea e), e 123°, n.° 1, do Código de Processo Civil, e 40° e 41° do Código de Processo Penal.
Salvo o devido respeito, uma leitura, ainda que ligeira, daquelas disposições da lei processual civil, mostra que a primeira delas – e é esta que basicamente interessa – se reporta ao(s) juiz(es) do tribunal “ad quem” e pressupõem a pendência de um recurso perante esse tribunal.
Não é esse obviamente o caso nos presentes autos, uma vez que o tribunal da repetição – artigo 712°, n.° 2, do Código de Processo Civil aplicável – não é uma instância de recurso, nem lhe cabe decidir a impugnação da decisão de qualquer outra instância.
 A mesma ordem de considerações será de aplicar aos artigos referidos do Código de Processo Penal – sendo certo que, aparentemente, se referem a um complexo normativo inaplicável nos presentes autos (o Código de Processo Penal/1987), que se regem pelo Código de Processo Penal de 1929 e legislação complementar, onde nenhum sentido faria citar os artigos 40° e 41°.
Pelo que indefiro a requerida declaração de impedimento.
E porque, a não se ter como expediente meramente dilatório, tal questão sempre terá de ser havida como ocorrência estranha ao normal desenvolvimento do processo (artigos 84°, n.° 2, e 16° do Código das Custas Judiciais), vai o requerente tributado em duas UCs pelo incidente a que deu causa».
O réu interpôs recurso desse despacho (fls. 1413),o qual foi admitido com subida imediata e em separado (fls. 1440).
Por despacho do relator, proferido em 26 de Outubro de 2005, este recurso foi julgado deserto (artigo 291°, n.°s 2 e 4, do Código de Processo Civil).

11 – Realizada a audiência ordenada pelo Tribunal da Relação de Lisboa vieram a ser aditados novos quesitos e proferido, em 30 de Agosto de 2001, novo acórdão (fls. 1456 e 1457) em que se manteve a decisão anteriormente proferida.
Nessa decisão, para além da matéria de facto antes considerada assente, o tribunal julgou ainda provados os seguintes factos:
«34-A. Os prejuízos referidos nos pontos 22, 30 e 34 resultaram das diferenças de preços que, no caso da venda de semente de soja, o IAPO teve de suportar, ao longo do período de tempo supra referido, e, no caso da venda do bagaço de soja, o IAPO teve de compensar em excesso, ao longo do mesmo período de tempo ...
34-B. Diferenças essas calculadas, tanto num caso como noutro, tendo em conta que a boa prática aconselhava a observância, no mínimo, das cotações a preços CIF de Roterdão, e não aqueles que foram efectivamente praticados, sendo que as notas de débito e de crédito referidas nos pontos 23 a 26 e 31 a 33 são irrelevantes para a fixação dos prejuízos efectivamente sofridos (compensações suportadas ou pagas pelo IAPO em excesso)».

9 – O réu interpôs recurso desse novo acórdão, o qual foi admitido a fls. 1475.

10 – As alegações apresentadas pelo réu terminam com a formulação das seguintes conclusões:
I - Recorre-se do despacho de fls. 1332 porque:
1) Nos termos do art. 264 n.° 1 e 2 do Código de Processo Civil, não cabe ao Réu alegar ou provar os factos constitutivos do direito do autor a uma indemnização e seu montante.
2) E é ao Tribunal que incumbe organizar a base instrutória e dela notificar o Recorrente para indicar os seus meios de prova como impõem os artigos 511 n.° 1, 2 e 3 e 512° do Código de Processo Civil.
3) Na verdade foram aditados quesitos mas já findo o julgamento, no momento da leitura do acórdão Recorrido.
4) Pelo que foi violado o art. 650 n.° 2 f) e ultrapassadas as garantias de defesa do Recorrente, nomeadamente as constantes do n.° 3 da mesma norma.
5) Tais atropelos do processo constituem demonstração inequívoca da perversidade da condenação que o art. 12° do Decreto-Lei n.° 605/75 possibilita pois transforma o Tribunal em Autor e impossibilita o contraditório.
6) Os direitos de defesa do Recorrente neste processo foram esquecidos pelo Tribunal “a quo”, não houve igualdade de armas nem possibilidade de, verdadeiramente, exercer o contraditório violando-se estruturais normas processuais (art. 3°, 3°A do CPC e artigo 20º CRP e artigos 511º n.º 1, 2 e 3 e 512° do CPC).
II - Recorre-se do despacho de fls. 1348 porque:
7) Os números apresentados pela IGF são inaceitáveis, ininteligíveis e obscuros.
8) Porque a matéria é de ordem contabilística e o Recorrente foi notificado para apresentar meios de prova, requereu a realização de perícia.
9) Na verdade a dificuldade da matéria não deve constituir qualquer obstáculo à descoberta da verdade material.
10) O indeferimento da perícia constituiu, pois, sintoma de que a repetição do julgamento não iria lograr sanar os vícios do acórdão anulado.
III - Recorre-se do despacho de Fls. 1408
11) Por não se admitir que o colectivo que julgou o Recorrente em 1997, intervenha, julgando novamente, em sede de repetição.
12) Por tal não se harmonizar com princípio da imparcialidade de que o art. 122 n.° 1 alínea f) constitui corolário.
13)E não se diga que o facto de o tribunal de primeira instância não constituir tribunal de recurso o subtrai a este regime.
14)E que o que está a ele subjacente é o fundamental princípio da imparcialidade do Tribunal.
Recorre-se do acórdão de 03/08/01:
15)O Tribunal da Relação anulou o Acórdão de 03/03/97 no que respeita à parte cível.
16)Havia que verificar se existem a ilicitude, a culpa, o dano e o nexo de causalidade.
17) Pede-se a este Venerando Tribunal que altere a matéria de facto nos termos do art. 712° n.° 1 a) e b) e 2 do C.P.C. pois constam do processo os elementos que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto em causa, nomeadamente a transcrição dos depoimentos produzidos em audiência.
18)E que foram erradamente dados como assentes factos, em clara contradição com a prova que o colectivo tinha à sua disposição.
19)Desde logo porque não se pode afirmar que tenha ficado provado que o Recorrente tenha causado prejuízos ao IAPO no montante de 3.336.550.000$00.
20) Efectivamente não se obtém aquele número através de qualquer operação aritmética, soma ou subtracção, com as notas de crédito e de débito enumeradas no questionário.
21)Como o acórdão recorrido reconheceu, afirmando que as "notas de crédito e de débito são irrelevantes para a fixação dos prejuízos causados".
22)Ficou assim por esclarecer como se procedeu ao seu cálculo e consequentemente por determinar qualquer montante.
23)Ora para haver obrigação de indemnizar é condição essencial que haja dano.
24) Não podia o colectivo aceitar como provados os pontos 21 e seguintes do questionário.
25) Na verdade as testemunhas arroladas pelo Recorrente forneceram ao Tribunal elementos que permitiam ultrapassar o relatório da IGF.
26) É que o relatório assenta sobre premissas erradas que conduziram a valores absurdos.
27) A primeira diz respeito ao preço da semente, no caso de óleo ser exportado, que o relatório da IGF associa à cotação CIF Roterdão à data da exportação do óleo.
28) Quando na verdade o preço da semente traduzia antes o preço da sua importação num momento que necessariamente antecedia o do embarque do produto transformado, o óleo.
29) A designação "cotação acordada" mais não é do que o preço do contrato de importação (repete-se, em momento que necessariamente antecedia a do embarque do produto transformado), as despesas de desembarque alfandegário e a taxa de prestação de serviço em vigor.
30) E a segunda no que respeita à aquisição de farinha, na medida em que partem, como referencial, das cotações (ou preços) que um industrial praticou.
31) Quando na verdade o IAPO apenas tinha a faculdade de optar pela compra do bagaço (e não a prerrogativa para estabelecer preços às fábricas) a preços internacionais, pelo critério da importação, servindo-se como ponto de referência do custo que suportaria caso importasse o bagaço.
32) Permitindo assim evitar a saída de divisas do país e a liquidação das compras pelo IAPO em escudos.
33) A forma como eram processadas as compras no IAPO, nomeadamente no que se refere à semente de soja e ao bagaço, foi exaustivamente explicada pelo Recorrente, e testemunhas – ....., ..... e ..... - cujos depoimentos se encontram desgravados em transcrição anexa nas passagens supra referenciadas.
34) Por terem ficado por demonstrar qualquer dos pressupostos da responsabilidade civil não é possível movimentar o artigo 12° do Decreto-Lei n.° 605/75.
35) Mas mesmo que responsabilidade civil existisse, já estaria prescrita nos termos do art. 498° do Código Civil.
36) É que o lesado não provou que tivesse tido conhecimento da lesão há menos de três anos, nem tão pouco, em tempo algum, requereu qualquer indemnização.
37) A obrigação de indemnizar nasceu do acórdão proferido em 03/03/97, ao abrigo do art. 12° do Decreto-Lei n.° 605/75.
38) O Recorrente não teve oportunidade lógica, temporal e muito menos processual de, em articulado próprio, vir arguir tal excepção.
39) Efectivamente nunca foi citado para contestar e assim invocar a excepção da prescrição.
39) Contudo como ensina o Prof. Antunes Varela e Pires de Lima - Código Civil Anotado – Anotação 2 ao art. 303°, nada o impede de fazer por outra forma.
40) Não pode também o Recorrente deixar de arguir a nulidade da sentença porque omitiu a pronúncia sobre os quesitos 53°A, 53°B e 53°C do questionário e bem assim o dever de fundamentar de facto e de direito a decisão caindo, assim, na previsão do art. 668 alíneas d) e b) respectivamente.
41) Os despachos recorridos violam os artigos 264 n.°s 1 e 2, 511 n.°s 1 e 2, 512°, 650° n.° 2 f) e n.° 3, 3°. 3°-A, 122 n.° 1 e) todos do Código de Processo Civil e 20° n.° 4 da CRP.
42) O Acórdão Recorrido viola os artigos 483°, 498°, 342° C.C., 12° Decreto-Lei 605/75, 668° n.° 1 d) e b) do Código de Processo Civil e 20° n.° 4 da CRP.
Nos termos expostos:
a) Pede-se a alteração da matéria de facto no sentido de considerar não provados os quesitos 21 e seguintes, exceptuando o 43, revogando a decisão recorrida e consequentemente absolver o Recorrente da condenação de pagar a indemnização – art. 712 n.°s 1) a e b).
b) Se assim não se entender sempre o Acórdão recorrido será nulo por se manter a deficiência, obscuridade e bem assim faltar ao dever de fundamentação, obrigando à sua anulação e repetição do julgamento, nos termos dos números 4 e 5 do art. 712° do Código de Processo Civil, respectivamente».

11 – O Ministério Público contra-alegou defendendo a improcedência de todos os recursos (fls. 1714 a 1723).

12 – Neste tribunal, o sr. procurador-geral-adjunto, quando o processo lhe foi apresentado, apôs nele o seu visto.

II – FUNDAMENTAÇÃO
13 – Começando por apreciar o recurso interposto do despacho de fls. 1332 não podemos deixar de dizer, antes de mais, que ele pouco tem a ver com o requerimento apreciado pelo tribunal e com o despacho que sobre o mesmo foi proferido.
Assinalado este facto, importa também frisar que a questão da aplicabilidade a estes autos do disposto no artigo 12º do Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro, já foi apreciada por este Tribunal da Relação no acórdão proferido em 4 de Novembro de 1998, o qual foi confirmado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 1999. O Tribunal Constitucional, chamado a pronunciar-se, negou provimento ao recurso interposto pelo réu não julgando inconstitucional a norma constante do artigo 12º atrás citado, na parte em que ela previa que a indemnização cível por perdas e danos em processo penal pudesse ser arbitrada oficiosamente independentemente de requerimento do lesado.
Por isso, não há que retomar agora a discussão dessa questão, que, como se viu, se encontra já decidida por acórdão transitado em julgado.
Esclarecida esta questão, resta-os dizer sobre este recurso que, embora o réu tenha sido absolvido da prática do crime que lhe era imputado pelo Ministério Público, tendo apenas sido condenado no pagamento de uma indemnização civil, o presente processo não alterou a sua natureza, passando a reger-se pelas normas do processo civil. Ele continuou a ser um processo de querela regido pelo Código de Processo Penal de 1929. O Código de Processo Civil apenas é aplicável nos casos previstos no § único do seu artigo 1º ou quando exista remissão expressa para o seu normativo.
Daí que toda a restante argumentação desenvolvida pelo recorrente quanto a este recurso, que se estriba no pressuposto da aplicabilidade do Código de Processo Civil, caia pela base.
Ao contrário do que prevê este diploma, no Código de Processo Penal de 1929 o questionário apenas era organizado depois de encerrada a discussão da causa, sendo então lido publicamente para permitir que, quer o Ministério Público, quer os mandatários dos réus, dos assistentes e das partes civis, pudessem reclamar dos quesitos formulados (artigos 468º e 502º).
Por isso, o recurso interposto pelo réu não pode deixar de ser julgado improcedente.

14 – Passemos agora a apreciar o recurso interposto do despacho de fls. 1348.
O réu, manifestando discordância do teor do relatório da IGF junto a fls. 510 a 543, veio requerer a realização de uma nova perícia, requerimento esse que veio a ser indeferido pelo sr. Juiz.
Ora, embora o artigo 197º do Código de Processo Penal de 1929 preveja a possibilidade de realização de uma nova perícia ela só se justificaria se a anteriormente realizada padecesse de algum vício ou insuficiência que, nem mesmo com o recurso ao esclarecimentos dos peritos, pudessem ser ultrapassados.
Ora, se lermos atentamente o relatório pericial elaborado pela Inspecção-Geral de Finanças e os seus apensos (fls. 544 a 620), facilmente verificamos que ele reflecte um estudo aprofundado da actividade do IAPO no sector das oleaginosas, com recurso prévio a outras diligências (ver relatório de fls. 221 e segs.), e que não padece de qualquer vício ou insuficiência.
Ao contrário do que o réu sugere, nesse relatório os Srs. peritos não se limitaram a indicar o valor dos prejuízos mas demonstraram de forma cabal o percurso efectuado para determinar o seu montante.
Daí que, de modo nenhum, se justifique a realização de uma outra perícia.
Por isso, este tribunal não pode deixar de julgar improcedente este recurso.

15 – Passemos agora a analisar o recurso interposto do acórdão proferido em 30 de Agosto de 2001.
Antes de mais imporá verificar se, como sustenta o réu, a responsabilidade civil se encontra extinta por prescrição.
Para dar resposta a esse problema bastará invocar o disposto nos artigos 306º, n.º 4, 323º, n.º 1, e 327º, n.º 1, do Código Civil.
De facto, antes do termo do prazo respectivo o Ministério Público promoveu a liquidação da dívida ao deduzir acusação contra o réu num processo de querela a que era aplicável o disposto no artigo 29º e segs. do Código de Processo Penal de 1929 e no artigo 12º do Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro.
Daí que só após a determinação do valor líquido da indemnização devida por sentença transitada em julgado volte a correr o prazo de prescrição (artigo 306º, n.º 4).
Mas, mesmo que assim não fosse, a extinção da responsabilidade civil não se tinha verificado porque antes do termo do prazo estabelecido ocorreu a sua interrupção (artigo 323º, n.º 1), não tendo esse prazo voltado a correr porque o presente processo ainda se encontra pendente (artigo 327º, n.º 1).

16 – Decidida esta questão, debrucemo-nos agora sobre o teor do acórdão da 1ª instância que foi proferido em resultado da decisão deste Tribunal de anular o julgamento anteriormente realizado e a sentença que dele resultou.
Para fundamentar essa anulação, disse-se, nomeadamente, o seguinte:
«Se bem atentarmos nos pontos factuais descritos na sentença sob os n°s 22 a 34, havemos de convir que patenteiam certas deficiências e obscuridades que não permitem ao comum dos cidadãos acompanhar o raciocínio lógico-silogístico através do qual o Colectivo chegou à conclusão de que o réu provocou ao IAPO/Fundo de Abastecimento um prejuízo global de 3.336.550.000$00 - no mínimo.
Não é de ânimo leve - e por certo não foi assim que o Colectivo agiu - que se condena alguém a pagar uma indemnização superior a três milhões de contos, para além do que se liquidar em execução de sentença.
Se bem se percebe o "modus operandi" do réu (pontos 34 e segs.) que emitia notas de débito insuficientes e notas de crédito excessivas, já de todo não entendemos (talvez por deficiência nossa) a "demonstração dos resultados" que se explanou nos pontos: 23, 24, 25 e 26, relativamente à verba de 2.642.700.000$00 referenciada a 22; e nos pontos: 31, 32 e 33, no que toca à verba de 693.850.000$00 apontados em 30.
É certo que, somando aquelas verbas: 2.642.700.000$00 + 693.850.000$00 se obtém o total de 3.336.550.000$00, montante da condenação mínima.
Todavia, sejam quais forem as operações a que se submetam (soma ou subtracção) as verbas parcelares/demonstrativas (notas de débito e notas de crédito) não conseguimos chegar àquele resultado.
A sentença deve ser transparente de modo a que facilmente se percebam as premissas e a respectiva conclusão.
Está bem de ver que a acusação se baseou essencialmente no relatório da I.G. Finanças integrado no processo; não tendo provavelmente retirado daí todos os elementos esclarecedores.
De todo o modo, em processo penal vigora o princípio do amplo conhecimento dos factos, não estando o tribunal vinculado ao que é alegado pela acusação e pela defesa, mas norteado pela descoberta da verdade material. Há-de ser na discussão da causa que se têm de encontrar elementos mais esclarecedores.
No rigor contabilístico, é evidente que as notas de crédito funcionavam a favor de alguém ou de alguma empresa, mas já as notas de débito, porque de sinal inverso, funcionarão, em princípio, contra essa empresa.
Poderão as notas de débito, eventualmente, funcionar também em benefício da empresa - mas então haveria de especificar-se qual a diferença entre o débito que realmente devia ter sido lançado de harmonia com a cotação internacional na data referenciada e o que efectivamente foi lançado, resultando então aquela diferença em prejuízo para o I.A.P.O. e no correspectivo benefício para a empresa.
Tal explicação não consta da sentença e, assim, enumeram-se indistintamente notas de crédito e notas de débito, emitidas sempre a favor da T. e da I..
De todo o modo e somando todas as verbas constantes de 23, 24, 25 e 26 obtem-se o resultado de 1.146.576.080$00, muito inferior ao montante de 2.642.7000.000$00 referido em 22; sendo certo que se separarem os créditos (548.271.000$00) dos débitos (598.305.000$00) a nenhum resultado útil chegaremos.
A disparidade dos resultados é ainda maior no que concerne às verbas constantes de 31 , 32  e 33, quando confrontados com a importância referida em 30.
E se somarmos todas as verbas mencionadas na sentença (23, 24, 25, 26, 31, 32 e 33) então encontraremos o total de 4.334.954.000$00, de longe superior ao montante da condenação: 3.336.550.000$00.
Depois disto, perguntamos, como é que se obteve este resultado? Como é que se encontraram os dois montantes referidos: 2.642.700.000$00 e 693.850.000$00? É isto que a sentença deve esclarecer, quer recorrendo à ampliação da matéria de facto, quer procedendo a um melhor esclarecimento e correcção das respostas dadas aos quesitos a que se reportam aqueles pontos de facto, atrás descriminados.
Não será ainda descabido averiguar até que ponto (vide n.° 43) a retenção e poupança de divisas a que conduziu a política seguida pelo réu redundou em benefício do Estado e, consequentemente, em diminuição dos prejuízos apontados.
Pelo que vem exposto é-nos impossível entrar na apreciação do objecto do recurso, devendo antes ser alterada a sentença e repetido o julgamento, tendo em vista apenas a parte referente à "matéria cível"».
O tribunal de 1ª instânca, depois de reaberta a audiência e de aí ter sido produzida a prova que entendeu ser necessária, considerou provada a matéria de facto já antes assente, acrescentando-lhe apenas os dois novos factos que resultaram da resposta aos quesitos 34º-A e 34º-B então formulados.
A narração da situação, mantida, no essencial, pelo tribunal, para além de reproduzir, de uma forma nem sempre exacta[1], o regime legal então vigente no sector de actividade a que nos reportamos[2] (artigos 1º a 7º), de indicar a distribuição dos pelouros entre os membros da direcção do IAPO (artigos 8º a 10º), de fazer a relação das notas de crédito e das notas de débito emitidas por este organismo, que agora se considera serem irrelevantes para a determinação dos prejuízos verificados (artigos 23º a 26º e 31º a 33º[3]), descreve os factos que pretendem fundamentar a responsabilização civil do réu nos seguintes termos:
11. De acordo com as praxes administrativas[4] instituídas para o período temporal situado entre Janeiro de 1983 e Maio de 1984, o IAPO procedia à comercialização da semente de soja, que importava, junto das unidades extractoras...
12. O que fazia a preços de cotação internacional sempre que os óleos a extrair se destinassem à exportação ...
13. ... Bem como à comercialização, no mercado interno, de bagaços extraídos de semente cujo óleo era exportado.
14. Entre essas unidades extractoras contavam-se as sociedades “T..., SARL” e “I......, SARL”.
15. A semente de soja que se destinava à venda no mercado interno era comercializada a preços fixados por portaria (preços administrativos).
16. Os custos inerentes à importação da mesma semente, cujo óleo era exportado, deviam ser suportados pelas referidas empresas industriais.
17. As diferenças ocorrentes entre os preços administrativos e os custos de aquisição constituíam encargos do Fundo de Abastecimento.
18. Para cobrir as diferenças entre os preços de venda administrativos e os da «cotação acordada» o IAPO emitia notas de débito ou de crédito quando o óleo era exportado.
19. A referida «cotação» era acordada com as sociedades T. e I., e as demais empresas do sector...
20. E consistia na cotação internacional, calculada de acordo com o câmbio em vigor à data da exportação, acrescida de encargos aduaneiros e demais despesas.
21. Contudo, no lapso de tempo ultimamente referido, o réu Ant., como responsável pela área de oleaginosas, adoptou [relativamente à semente de soja] uma cotação de valor inferior ao de custo internacional à referência CIF/Roterdão...
22. Acarretando para o IAPO, desse modo, um prejuízo patrimonial de 2.642.700.000$00 (dois biliões, seiscentos e quarenta e dois milhões, e setecentos mil escudos)...
27. Por outro lado, o IAPO, sempre representado pelo réu no sector das oleaginosas, adquiriu às referidas clientes, T. e I., bagaço proveniente de sementes de que fora extraído óleo para exportação...
28. E isto porque o réu entendeu que tais aquisições coarctavam exportações daquela produção a efectuar pelas mesmas clientes.
29. O réu atribuiu-lhes uma compensação, que consistiu na diferença registada entre o preço de comercialização do bagaço no mercado interno (preço administrativo), e uma cotação internacional que se baseava em valores superiores ao CIF de Roterdão.
30. Deste modo, acarretou para o IAPO um prejuízo patrimonial que ascende a 693.850.000$00 (seiscentos e noventa e três milhões, oitocentos e cinquenta mil escudos).
34. Com toda a actuação acima descrita, o réu provocou ao IAPO/Fundo de Abastecimento um prejuízo global de 3.336.550.000$00 (três biliões, trezentos e trinta e seis milhões, quinhentos e cinquenta mil escudos), prejuízo esse que se traduziu em débitos insuficientes lançados pelo IAPO, em virtude da semente de soja ter sido vendida a preços inferiores aos da cotação internacional CIF/Roterdão e aos dos custos CIF do último fornecimento, e em créditos excessivos, em virtude das compensações de preços do bagaço de soja terem tomado por referencial cotações substancialmente superiores às vigentes no mercado internacional.
34-A. Os prejuízos referidos nos pontos 22, 30 e 34 resultaram das diferenças de preços que, no caso da venda de semente de soja, o IAPO teve de suportar, ao longo do período de tempo supra referido, e, no caso da venda do bagaço de soja, o IAPO teve de compensar em excesso, ao longo do mesmo período de tempo ...
34-B. Diferenças essas calculadas, tanto num caso como noutro, tendo em conta que a boa prática aconselhava a observância, no mínimo, das cotações a preços CIF de Roterdão, e não aqueles que foram efectivamente praticados, sendo que as notas de débito e de crédito referidas nos pontos 23 a 26 e 31 a 33 são irrelevantes para a fixação dos prejuízos efectivamente sofridos (compensações suportadas ou pagas pelo IAPO em excesso).
35. Por outro lado, ainda no desempenho das aludidas funções, no dia 10/5/84, o réu determinou que o IAPO distribuísse à F..., SA, 4.063 toneladas de semente de girassol, pelo preço de 40.126$00 a tonelada...
36. ...Tendo excedido em 613 toneladas as necessidades atendíveis, fixadas de acordo com os gastos médios da empresa.
37. Deste modo, deu origem ao pagamento, por parte do Fundo de Abastecimento, de encargos de montante não exactamente apurado.
38. Estes prejuízos (§§ 34 e 37) apenas se verificaram porque o réu não observou as regras fixadas em praxes administrativas (portarias) para a comercialização dos produtos em causa...
39. ... Ao invés, adoptou regras próprias, o que lhe não competia...
40. Acarretando para o IAPO/Fundo de Abastecimento os aludidos prejuízos.
41. O réu agiu deliberada, livre e conscientemente.
42. Sabia que toda a sua descrita actuação lhe não era permitida por lei.
43. A política seguida pelo réu possibilitou a retenção e poupança de divisas, quanto à opção de compra de bagaços excedentes aos produtores nacionais.
44. A "cotação acordada" tinha como referenciais algumas cotações internacionais ...
45. ... Mas apenas como referenciais.
46. As cotações internacionais são variáveis».
No novo acórdão elaborado, o tribunal fundamentou essa decisão de facto dizendo que:
«As respostas supra referidas fundaram-se no exame exaustivo e detalhado dos relatórios de fls. 221-229 e 509-543, e ainda nas tabelas de fls. 591-593 e 354-356, coonestadas, esclarecidas e precisadas pelos depoimentos convergentes dos seus autores e ao tempo quadros superiores da Inspecção-Geral de Finanças, a saber, ....., ...., e ....., que depuseram de forma cabal, clara, credível, coerente e convincente; os depoimentos e declarações de Ant., ...., ....., e ....., se bem que igualmente válidos e com razão de ciência bastante (por conhecerem os meandros do sector e do próprio IAPO, ao tempo dos factos), revelaram-se inidóneos a afastar tal convicção, objectivamente formulada)».
Ora, se analisarmos atentamente a matéria de facto assente verificamos que:
Quanto à comercialização da semente de soja
- de acordo com o narrado nos pontos n.ºs 11, 12 e 16 da matéria de facto provada, o IAPO procedia à comercialização da semente de soja, que importava, a preços de cotação internacional sempre que os óleos a extrair se destinassem à exportação, devendo os respectivos custos de importação ser suportados pelas empresas extractoras.
- porém, nos pontos 18 a 20, descrevem-se essas mesmas operações de forma diferente e incompatível com aquela, sugerindo-se que as referidas sementes eram inicialmente comercializadas, independentemente da sua utilização futura, aos preços indicados nas Portarias, operando-se depois, na altura da exportação do óleo, um acerto de contas tendo como referência uma «cotação acordada», acerto esse que dava origem à emissão de notas de crédito ou de débito consoante essa «cotação acordada» fosse inferior ou superior ao preço administrativamente fixado que havia sido pago pelos industriais.
- mas, independentemente da fidedignidade da descrição do procedimento normalmente adoptado, no ponto 21 da matéria de facto provada imputa-se ao réu a adopção de uma cotação para a semente de soja de valor inferior ao do custo internacional à referência CIF/Roterdão[5] sem que, simultaneamente, se forneça qualquer explicação que permita perceber a razão pela qual devia ser adoptada uma tal referência (a não ser a da boa prática, constante agora do art. 34º-B), o que é de extrema importância porque, no que diz respeito à comercialização da semente de soja utilizada para a extracção de óleo que se destinava à exportação, a responsabilização do réu pelo pagamento de 2.642.700.000$00 assenta precisamente na diferença entre o «preço acordado» e essa cotação.
- para além disso, não se indicam os elementos concretos que conduziram à determinação daquele valor, ou seja, a quantidade de semente de soja vendida àquelas empresas no período indicado para ser extraído óleo destinado à exportação, o preço que foi cobrado por cada um dos fornecimentos parcelares efectuados e a cotação da semente segundo a referência considerada.
Quanto à comercialização do bagaço proveniente das sementes
- de acordo com a matéria de facto provada, o facto descrito sob o n.º 28 relaciona-se com o antecedente, ou seja, com o descrito sob o n.º 27, e não com o seguinte, o constante do n.º 29, o que torna incompreensível a explicação fornecida para o comportamento adoptado pelo réu[6].
- por outro lado, nos artigos 29º, 30º e 34º, imputa-se a produção do prejuízo de 693.850.000$00 ao facto de o réu ter adoptado para a compensação estabelecida para a compra a preços administrativos do bagaço de soja uma cotação superior ao CIF de Roterdão (artigo 29º) ou substancialmente superiores às vigentes no mercado internacional[7] (artigo 34º) sem que, tal como acontece com a semente de soja, se tenha fornecido qualquer explicação para a adopção dessa cotação que não seja a da «boa prática» e sem que se tenham indicado os concretos elementos que conduziram à determinação daquele valor.
Quanto à comercialização da semente de girassol
- nos termos dos artigos 35º a 37º da matéria de facto provada o IAPO forneceu à «Fábrica .. S.A.» 4.063 toneladas de semente de girassol, o que excederia em 613 toneladas «as necessidades atendíveis», facto manifestamente insuficiente para se qualificar como ilícito esse comportamento e para fundar a responsabilidade do réu que, simultaneamente, se afirma.
Ora, as deficiências, obscuridades e contradições apontadas à matéria de facto, aliadas à insuficiência da indicação dos elementos de cálculo de uma indemnização que, sem juros, supera, em muito, os 3 milhões de contos, vícios esses que, não obstante a anulação determinada por este tribunal, continuam a existir, impõem que de novo se anule a decisão proferida, nos termos previstos no artigo 712º, n.º 4, do Código de Processo Civil, aplicável ao processo penal por força dos artigos 649º e 665º do Código de Processo Penal de 1929.
Tal como se dizia no acórdão anteriormente proferido por esta Relação, «pelo que vem exposto é-nos impossível entrar na apreciação do objecto do recurso, devendo antes ser alterada a sentença e repetido o julgamento, tendo em vista apenas a parte referente à "matéria cível"».

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3ª secção deste Tribunal da Relação em anular o acórdão proferido em 30 de Agosto de 2001 e determinar a repetição do julgamento quanto aos pontos indicados, nos termos do n.º 4 do artigo 712º do Código de Processo Civil.
Sem custas.
²
Lisboa, 7 de Dezembro de 2005


(Carlos Rodrigues de Almeida)

(Horácio Telo Lucas)

(António Rodrigues Simão)

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[1] Uma vez que os poderes de representação do IAPO não eram delegáveis, ao contrário do que se afirma no ponto 7 (ver artigo 7º do Decreto-Lei n.º 426/72, de 31 e Outubro).
[2] Constante, no que respeita ao IAPO, do Decreto-Lei n.º 426/72, de 31 de Outubro, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 315/75, de 27 de Junho.
[3] Não obstante, a redacção do corpo dos pontos n.ºs 23 e 31 da matéria de facto provada ainda sugere a existência dessa relação.
[4] A maior parte das quais reproduzem o regime jurídico resultante dos diplomas legais então vigentes, sobretudo o das Portarias n.ºs 1136/81, de 31 de Dezembro, e 714-B/83, de 23 de Junho.
[5] Ou, segundo o artigo 34º, ao dos custos CIF do último fornecimento, o que, de acordo com o relatório da IGF, conduzia a valores ligeiramente diferentes (ver fls. 517 e 518).
[6] Ao contrário do que sucedia na acusação (artigos 46º a 48º, a fls. 991) e no despacho de pronúncia (artigos 46º a 48º, a fls. 1007), em que o acto descrito sob o n.º 47 (que correspondia, no essencial, ao artigo 28º) se relacionava com o n.º seguinte e não com o antecedente.
[7] Quando é certo que o Relatório da IGF a que se atendeu para responder aos quesitos indica esse valor como sendo o correspondente ao privilegiamento da Iberol em relação à Tagol e não como sendo o da diferença entre as cotações acordadas e as cotações CIF/Roterdão (fls. 52 e 525).