Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1249/09.6TBPDL.L1-9
Relator: MARIA DO CARMO FERREIRA
Descritores: EXTRADIÇÃO
PRINCÍPIO DA ESPECIALIDADE
TRATADOS
ACORDO INTERNACIONAL
PRESCRIÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04/14/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - O princípio ou regra da especialidade, mormente, como previsto no Tratado de Extradiçãoentre Portugal e Brasil restringe o poder do Estado requerente de deter ou julgar, ou sujeitar a pessoa extraditada a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal.

II - Os actos praticados no processo, após a extradição do arguido e antes do deferimento da ampliação do pedido de extradição que não envolvam a perda da sua liberdade, não diminuam ou cerceiem de algum modo os seus direitos de defesa, nem o submetam a julgamento,não violam o princípio da especialidade.

III - A mera notificação da acusação não implica a obrigação de comparência do interessado em qualquer ato processual, nem envolve para ele qualquer restrição da sua liberdade pessoal, tanto assim que o Estado português poderia tê-la tornado efetiva, independentemente da extradição, nomeadamente através de uma carta rogatória.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência na 9ª.Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO.

O arguido P... interpôs recurso do despacho proferido a 15/6/2015 que lhe indeferiu o pedido de declaração da prescrição do procedimento criminal relativo aos presentes autos.

Na motivação que juntou, de fls.1769 a 1774, conclui:

1ª. A acusação foi deduzida sem ter em conta a ampliação do pedido de extradição.

2ª. Daí que, todos os actos processuais cometidos, anteriormente a 15/08/2013 nos termos das disposições conjugadas nos artºs 120°. n°. 2 d) do CPP. e artº. 16°. n°. 1 da Lei n°. 144/94 de 31/08 devem ser declarados nulos.

3a  Declarada a nulidade de tais actos processuais decorreram mais de 10 anos, desde a data da conduta (5/09/2003) até à notificação da acusação a qual deve ser declarada nula porque processada com alheamento da ampliação do pedido de extradição. Daí estar o procedimento criminal extinto por prescrição.

4a  O processo relativo à ampliação da extradição é ou constitui questão prejudicial precisamente a referenciada no artº. 7°. do CPP.:, sem que se tenha marcado período de suspensão

 Termos em que se deve determinar pela revogação do despacho recorrido e  nessa medida, dever-se-á determinar pela prescrição do procedimentocriminal.

O Mº. Pº responde conforme consta de fls.1832 a 1834, concluindo:

- Inexiste qualquer nulidade;

- O procedimento não se encontra prescrito.

- Inexiste a violação de qualquer disposição legal.

Pelo exposto, deve o acórdão recorrido confirmar-se «in totum».

O recurso subiu de imediato a este Tribunal da Relação, que, por Acórdão de 25/11/2015, ordenou a subida diferida nos próprios autos, com o recurso que ponha termo à causa e remeteu os autos de novo à 1ª.Instância.

            Desse despacho recorrido consta o que vai transcrito, na parte que importa ao objecto do recurso.

(sic):

“(…) Aceitando-se a necessidade de se ponderar o argumentário avançado pelo arguido, decidindo-se de vez as questões que suscitou, deu-se oportunidade ao M°P° e à assistente para de pronunciar.

O M°P° pronunciou-se quanto à prescrição – fis.1629 e ss. – apontando no sentido da não ocorrência.

A assistente nada veio dizer quanto a tal questão.

Voltou o arguido P... aos autos – fls.1643 e ss. – insistindo na nulidade processual que já havia desenhado em peça anterior, pedindo o adiamento do julgamento, o que foi deferido.

Quanto à nulidade processual avançada pelo arguido manifestou-se o M°P° - fls.1656 – no sentido da sua improcedência - a assistente nada disse.

Aqui chegados...temos duas questões que carecem de ser apreciadas. A primeira atinente às nulidades avançadas pelo arguido e a segunda respeitante à prescrição que invoca.

Assim, no que toca à primeira – que já foi parcialmente abordada e decida através do despacho de fls.1138 -, deve desde já adiantar-se que não procede.

A lei – 144/99, de 31.8 – no seu art°.16°, n°.1 diz que qualquer pessoa. "não pode ser perseguida, julgada, detida ou sujeita a qualquer outra restrição da liberdade por facto (...) diferente do que origina o pedido de cooperação formulado por autoridade portuguesa", ou, como decorre do n°.2 do mesmo artigo, "por facto ou condenação anteriores à sua saída do território português diferentes dos determinados no pedido de cooperação".

Nas relações bilaterais entre Portugal e o Brasil no que respeita à extradição rege o art°.6°, n°.1, do Tratado de Extradição entre Portugal e o Brasil (aprovado para ratificação pela Resolução da AR 5/94, de 4.11.93, e ratificado por decreto do PR 3/94, de 3.2) segundo o qual "uma pessoa extraditada ao abrigo do presente tratado não pode ser detida ou julgada, nem sujeita a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal no território da Parte requerente, por qualquer facto distinto do que motivou a extradição e que seja anterior ou contemporânea".

Ora, como claramente resulta dos autos as diligências de inquérito foram realizadas...o arguido acompanhou-as, foi interrogado no decurso delas e, o mais importante, não foi detido ou julgado, nem sujeito a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal em território português em razão dos factos aqui em apreço que não estavam...mas já estão...cobertos pela ampliação da extradição levada a cabo.

Assim, pelas razões apontadas não há qualquer nulidade a declarar ao nível das diligências ou processado levado a cabo e, consequentemente, porque o M°P° promoveu o inquérito, realizou as respetivas diligências que necessariamente o devem integrar, tendo no devido tempo deduzido a respetiva acusação e que, no âmbito da instrução, decorreram as diligências que a lei entende imperativas, culminando com a respetiva pronúncia, com a qual o arguido se conformou, não se vislumbra qualquer nulidade, nomeadamente as dos art°s.118°, 119° e 120° do Código de Processo Penal.

Aqui chegados...verificando-se a legalidade e validade de todos os atos processuais que integram o processo... resta perceber se colhe a invocada prescrição.

Para o efeito temos que os factos são de 5.9.2003, os quais integram o crime do art°.375°, n°.1 com referência ao art°.386°, n°.1, al. c), todos do Código Penal que é cominado com uma pena de 1 a 8 anos e prisão, pena que para o caso não releva para efeitos de determinação do prazo prescricional porque, este tipo de crime, tem norma específica a isso atinente. Efetivamente atendendo à expressa previsão da al. a) do art° 118° do Código Penal, verificamos que, in caso, o prazo prescricional é o de 15 anos.

Tendo em conta a data dos factos logo verificamos com clareza que o prazo da prescrição não se completou por reporte àquela data o qual apenas é atingido em 5.9.2018...e muito menos se atentarmos no facto do arguido ter sido notificado da pronúncia em 8.4.2008...altura em que a prescrição se interrompeu em razão do disposto no art°.121°, n°s.1, al.b) e 2 do Código Penal, aí se reiniciando novo prazo de 15 anos.

Mesmo que equacionemos o limite máximo da prescrição a que se reporta o n°.3 do art°.121 do Código de Processo Penal...haveremos de acrescentar aos 15 anos mais 7 anos e 6 meses atendendo a que não há períodos de suspensão a atender....o que nos atira para o limite máximo de 22 anos e 6 meses que apenas são atingidos em 5.3.2026.

Face ao exposto improcede a exceção de prescrição avançada pelo arguido. Notifique.”.

***

Não se conformando, agora com a decisão final proferida nos autos supra referenciados, da 1ª. secção cível e criminal- J2 da Inst.Central de Ponta Delgada, comarca dos Açores, que em acórdão proferido em 15/12/2015 decidiu condenar o arguido/recorrente P..., pela prática de um crime de peculato p.p. pelo artigo 375 nº. 1 e 386 nº. 1 c) do C.Penal, na pena de 5 anos e 3 meses de prisão, veio o mesmo interpor recurso desta, cuja motivação se encontra vertida em fls. 1990 a 2024 dos autos, manifestando também interesse na apreciação do recurso anteriormente interposto e que acima se referenciou.

Conclui como vai transcrito:

I. Vem o presente recurso interposto do acórdão que condenou o arguido P... como autor material de um crime de peculato, p. e p. no art.º 375º, nº. 1 do CP, por referência ao art.º 386, nº. 1, al.c) do mesmo diploma legal, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.

II. O recurso tem por fundamento, em primeiro lugar, a ilegalidade e a inconstitucionalidade decorrentes da não declaração da prescrição do procedimento criminal;

III. A este propósito foi oportunamente interposto recurso do despacho proferido na sequência da conclusão de 15-6-2015, que se determinou subisse com o que viesse a ser interposto da decisão final e relativamente ao qual e em cumprimento do disposto no nº. 5 do art.º 412º do C.P.P, o arguido desde já declara manter interesse na respectiva apreciação;

IV. Nos presentes autos o Recorrente foi constituído arguido, ouvido em declarações em 24-4-2008 e acusado em quando se encontrava detido à ordem do proc. n°. 12831/03.5 TDLSB, da 9ª Secção do DIAP
de Lisboa à ordem do qual foi extraditado do Brasil para Portugal, sem ter renunciado ao principio da especialidade.

V. Como não renunciara ao princípio da especialidade nos presentes autos foi pedida a ampliação da extradição, a coberto do n°. 5 do art.º 162 da Lei nº. 144/99 de 31/8, ampliação essa que só foi admitida em 15 de Agosto de 2013 por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa;

VI. Donde, os actos praticados nos presentes autos — constituição de arguido, tomada de declarações e dedução de acusação — até 15-8-2013 constituem actos que integram o conceito de "perseguição" contido no n°. 1 do art.° 162 da Lei n°. 144/99 de 31/8 pelo que, tendo sido praticados antes da ampliação da extradição foram-no sem base legal e em violação do disposto no art.° 162 nº. 1 e nº. 5 da Lei n°. 144/99 de 31/8;

VII. A ampliação da extradição não produz efeitos retroactivos pois que tal efeito, para além de não ter cabimento legal violaria inequivocamente o disposto no n°. 5 do art.º 162 da Lei nº. 144/99 de 31/8 e no n°. 1 do art.° 32º. da C.R.P..

VIII. Pelo que tais actos são nulos e de nenhum efeito por violação das disposições conjugadas dos arts. 162 n°.s 1 e 5 da Lei nº. 144/99 de 31/8, 120º nº 2 al. d) do C.P.P, o que significa que a não declaração de tal vício faz incorrer o acórdão recorrido na violação, não só das mencionadas normas como também do n°. 2 do art.º 32° da C.R.P.;

IX. A declaração de nulidade de tais actos é decisiva para a tramitação dos presentes autos porquanto o cometimento dos factos, segundo a acusação remonta a 5-9-2003 e o crime que é imputado ao arguido é o de peculato, p. e p. pelos arts °s 375º e 386º nº. 1 c) do C.P.

X. A esta moldura penal corresponde um prazo de prescrição do procedimento criminal de 10 anos atento o disposto no art.° 118º nº. 1 b) na redacção anterior à entrada em vigor da lei nº. 32/2010 de 2/9, lei esta que veio incluir o crime de peculato na alínea a) do citado normativo fazendo-lhe corresponder um prazo prescricional de 15 anos.

XI. Atendendo à data dos factos (5-9-2003) e ao início da tramitação dos presentes autos resulta claro que este agravamento do prazo prescricional cujos efeitos começaram a produzir-se em 1 de Março de 2011 não se aplica retroactivamente uma vez que corresponde a um agravamento da situação processual do arguido e a uma clara limitação do seu direito de defesa.

XII. Por isso, e em face do estatuído na al. a) do nº. 2 do art.º 52 do C.P.P., o prazo prescricional a atender nos presentes autos é o de 10 anos, atrás referido.

XIII. Tendo em conta que os factos remontam a 5-9-2003, que a ampliação da extradição só sobreveio em 15-8-2013, que, por isso, os actos praticados até 15 de agosto de 2013 (entre os quais se conta a dedução da acusação) são nulos e que só na sequência da expedição de carta datada de 16-4-2015 é que o arguido foi notificado da acusação, então o prazo prescricional de 10 anos há muito que decorreu sem que qualquer facto interruptivo tivesse tido lugar.

XIV. Por essa razão ao não declarar a prescrição o acórdão recorrido padece de ilegalidade por erro na determinação das normas a aplicar e consequente violação do preceituado nos artigos 16º nº. 1 da Lei nº. 144/99 de 31 de Agosto, 120º nº. 2 d) do C.P.P., 118º. nº. 1 a) do C.P.5º nº. 2 a) do C.P.P. e 32º nº. 1 da C.R.P.

XV. Improcedendo neste ponto sempre o acórdão recorrido não poderá manter-se por enfermar do vício contido na al. a) do nº. 2 do art.º 410º do C.P.P..

XVI. Dos pontos 16,17 e 19 da matéria de facto provada consta a referência a dois titulares da conta bancária existente no Banco Millennium referindo-se no ponto 19 que o saldo dessa conta e "o produto da venda do património da assistente era usado e utilizado indistintamente por ambos os titulares".

XVII. Com base nesta factualidade não pode o tribunal a quo condenar o arguido P... como faz porque a matéria de facto provada é insuficiente para fazê-lo.

XVIII. O tribunal a quo presumiu a culpa do arguido e ao fazê-lo violou, para além do mais o disposto nos arts. 349º e 351º do C. Civil pois que o facto conhecido (a circunstância de existir movimentação da referida conta bancária por dois titulares) impunha-lhe, à luz da experiência comum, conclusão oposta.

XIX. Pelo que, entre o facto conhecido e a conclusão existe uma clara contradição que faz incorrer o acórdão recorrido também no vício previsto na al. b) do nº. 2 do art.º 410º do C.P.P.

XX. Por último, improcedendo o atrás alegado invoca-se o erro na determinação da norma aplicável porquanto o arguido não poderia ser acusado do crime de peculato por faltarem os requisitos típicos deste crime;

XXI. Falta-lhe, desde logo, a condição de funcionário.

XXII. Mas mesmo que a detivesse, da matéria de facto provada resulta que o arguido teria agido, lê-se no acórdão, "por meios próprios e extravasando o âmbito da sua função";

XXIII. Ou seja, o Tribunal a quo entendeu que o arguido teria acedido ao produto da venda por meios próprios e não por via do exercício do conteúdo funcional das suas funções.

XXIV. Tal significa que, de acordo, por exemplo com o Ac. do tribunal da Relação de Coimbra de 23-1-2013 cuja cópia se junta não existe crime de peculato porque falta essa relação causal que é traço definidor desse tipo legal.

XXV. E nos presentes autos essa relação também não existe conforme no próprio acórdão recorrido se refere e resulta da matéria provada.

XXVI. Pelo que a equacionar-se um tipo legal de crime - no que não se concede pois que o arguido não praticou nenhum dos factos de que foi acusado - tendo em conta a matéria provada esse tipo legal seria eventualmente o do art.º 205º do C. Penal.

XXVII. Também com este fundamento, na hipótese de improceder tudo quanto atrás se alegou, no que não se concede porquanto os presentes autos estão prescritos, sempre o acórdão recorrido deveria ser revogado e substituído por outro que afastasse o tipo legal do art.º 375º e enquadrasse normativamente matéria provada no tipo legal do art.º 205º. do C.P..

***

O Mº. Pº. na 1ª. Instância, apresentou as suas alegações de resposta ao segundo recurso, que constam de fls. 2070 a 2073 dos autos, concluindo:

“- Não se verifica prescrição do procedimento;

Inexiste insuficiência ou contradição na fundamentação não se verificando os vícios previstos no art° 410°, nº 2, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal.

A qualificação jurídica mostra-se acertada, não existindo qualquer violação do disposto no art° 375°, nº 1, do Código Penal.

Sem conceder, os factos dados como provados, a cair a qualidade de funcionário, sempre poderiam ser convolados no crime de abuso de confiança, p. e p., pelo art° 205°, nº 4, alínea b), do Código Penal.

Pelo exposto, deve o douto acórdão confirmar-se «in totum».”

Admitido o recurso, foi ali ordenada a subida dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa.

Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto, emitiu o visto aludido no artigo 416 do C.P.P.

Colhidos os vistos, em conferência, cumpre decidir.

II. MOTIVAÇÃO.

Cumpre decidir primeiramente a questão prévia suscitada no anterior recurso e também neste, (e a conhecer conjuntamente por este Tribunal – artº. 412 nº. 5 do C.P.P.), pois que o seu conhecimento impede, se procedente, o conhecimento das restantes questões colocadas nos recursos.

Esta questão resume-se à invocação da prescrição do procedimento criminal objecto dos presentes autos e funda-se essencialmente no entendimento sobre o que o recorrente considera ser a violação do princípio da especialidade.

Cumpre, pois, analisar esta questão da eventual violação do princípio da especialidade.

Antes, para melhor compreensão e análise da situação, daremos uma breve nota do histórico processual, no que importa à apreciação da suscitada questão da prescrição do procedimento criminal e da violação do princípio da especialidade.

-- No âmbito do processo com o nº. 12831/03.5TDLSB, foi pedida a extradição do arguido, a qual foi concedida pelo Supremo Tribunal Brasileiro, em 9 de Agosto de 2007, o qual foi entregue às autoridades portuguesas em 15 de Outubro de 2007.

Não houve renúncia ao princípio da especialidade.

-- Relativamente a factos ocorridos em 5 de Setembro de 2003, corriam em Portugal, desde 2004, os presentes autos- 1249/09.6TBPDL

Nestes, a constituição de arguido verifica-se em 24/4/2008, sofrendo alteração em 5/11/2013.

Foi deduzida acusação contra o arguido, em 30/4/2008, imputando-lhe o Mº.Pº a prática do crime de peculato p.p. pelo artigo 375-1 e 386-1 c) todos do C.P., notificada ao arguido que permanecia detido à ordem do processo que originou a extradição.

Foi pronunciado neste processo a 3/4/2009.

Desde a fase da instrução que o arguido vem invocando a violação do princípio da especialidade nestes autos. A pronúncia tomou posição considerando improcedente o pedido do arguido, notificando-o em 8/4/2009.

Os autos prosseguiram para julgamento, tendo de novo o arguido suscitado a questão da violação do princípio da especialidade nos presentes autos e a não realização do julgamento.

Foi então decidido não realizar o julgamento e requerer a ampliação da extradição às autoridades brasileiras.

Em 18/12/2012 é proferida pelo Supremo Tribunal Federal do Brasil, a decisão que autoriza a ampliação da extradição do arguido ( fls. 109 a 116 destes autos), a qual vem a ser comunicada pelo ofício datado de 19/2/2015 (fls. 108 destes autos).

No que respeita ao invocado princípio da especialidade encontramos, na tramitação da extradição o que se estabelece o artº 16º da Lei 144/99, de 31 de Agosto:

“ 1 - A pessoa que, em consequência de um acto de cooperação, comparecer em Portugal para intervir em processo penal como suspeito, arguido ou condenado não pode ser perseguida, julgada, detida ou sujeita a qualquer outra restrição da liberdade por facto anterior à sua presença em território nacional, diferente do que origina o pedido de cooperação formulado por autoridade portuguesa.

2- A pessoa que, nos termos do número anterior, comparecer perante uma autoridade estrangeira não pode ser perseguida, detida, julgada ou sujeita a qualquer outra restrição da liberdade por facto ou condenação anteriores à sua saída do território português diferentes dos determinados no pedido de cooperação.

3 - Antes de autorizada a transferência a que se refere o número anterior, o Estado que formula o pedido deve prestar as garantias necessárias ao cumprimento da regra da especialidade.

4 - A imunidade a que se refere este artigo cessa quando:

a) A pessoa em causa, tendo a possibilidade de abandonar o território português ou estrangeiro, o não faz dentro de 45 dias ou regressa voluntariamente a um desses territórios;

b) O Estado que autoriza a transferência, ouvido previamente o suspeito, o arguido ou o condenado, consentir na derrogação da regra da especialidade.

5 - O disposto nos nºs 1 e 2 não exclui a possibilidade de solicitar a extensão da cooperação a factos diferentes dos que fundamentaram o pedido, mediante novo pedido apresentado e instruído nos termos do presente diploma.

6 - No caso referido no número anterior, é obrigatória a apresentação de auto donde constem as declarações da pessoa que beneficia da regra da especialidade.

7 - No caso de o pedido ser apresentado a um Estado estrangeiro, o auto a que se refere o número anterior é lavrado perante o tribunal da Relação da área onde residir ou se encontrar a pessoa que beneficia da regra da especialidade.”

Também,

O art. 7.º da Lei n.º 65/2003, de 23 de agosto (lei interna de implementação da Decisão Quadro do Mandado de Detenção Europeu), consagra o princípio da especialidade, nos seguintes termos:

“1 - A pessoa entregue em cumprimento de um mandado de detenção europeu não pode ser sujeita a procedimento penal, condenada ou privada de liberdade por uma infracção praticada em momento anterior à sua entrega e diferente daquela que motivou a emissão do mandado de detenção europeu.

2 - O disposto no número anterior não se aplica quando:

a) A pessoa entregue, tendo a possibilidade de abandonar o território do Estado membro de emissão não o fizer num prazo de 45 dias a contar da extinção definitiva da sua responsabilidade penal, ou regressar a esse território após o ter abandonado;

b) A infracção não for punível com pena ou medida de segurança privativas da liberdade;
c) O procedimento penal não der lugar à aplicação de uma medida restritiva da liberdade individual;

d) A pessoa entregue seja sujeita a pena ou medida não privativas da liberdade, nomeadamente uma sanção pecuniária ou uma medida alternativa, mesmo se esta pena ou medida forem susceptíveis de restringir a sua liberdade individual;

e) A pessoa tenha consentido na sua entrega e renunciado também à regra da especialidade, nos termos do disposto nos n.ºs 5 e 6 do artigo 18.º;

f) A pessoa, após ter sido entregue, tenha renunciado expressamente ao benefício da regra da especialidade no que diz respeito a determinados factos praticados em data anterior à sua entrega;

g) Exista consentimento da autoridade judiciária de execução que proferiu a decisão de entrega, nos termos do disposto no n.º 4.

3 - A renúncia prevista na alínea f) do número anterior deve:

a) Ser feita perante as autoridades judiciárias competentes do Estado membro de emissão e registada em conformidade com o direito desse Estado;

b) Ser redigida por forma a demonstrar que a pessoa expressou a sua renúncia voluntariamente e em plena consciência das suas consequências;

c) Ser prestada com a assistência de um defensor.

4 - Se o Estado membro de emissão for o Estado Português, o consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2:

a) É prestado perante o tribunal da relação da área do seu domicílio ou, se não o tiver, da área onde se encontrar a pessoa em causa, observando-se as formalidades previstas no artigo 18.º, com as necessárias adaptações;

b) É apresentado à autoridade judiciária de execução acompanhado das informações referidas no n.º 1 do artigo 3.º e de uma tradução, nos termos do n.º 2 do artigo 3.º;

c) Deve ser prestado sempre que esteja em causa infracção que permita a entrega, por aplicação do regime jurídico do mandado de detenção europeu;

d) Deve ser recusado pelos motivos previstos no artigo 11.º, podendo ainda ser recusado apenas com os fundamentos previstos no artigo 12.º;

e) Deve ser prestado ou recusado no prazo de 30 dias a contar da data da recepção do pedido.

5 - É competente para solicitar o consentimento a que se refere a alínea g) do n.º 2 a Procuradoria-Geral da República.”

E, também.

Os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa- entre os quais Portugal e Brasil- subscreveram em 23/11/2005, uma Convenção sobre matéria de Extradição, que foi aprovada entre nós pela Resolução da AR nº. 49/2008 de 18/7- DR Is, nº. 178 de 15/9/2008, que entrou em vigor em 1/3/2010 (vigorando por força do disposto no artº. 8º. 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa) e no Brasil em 1/5/2009.
No caso em concreto, para além dos apontados “regimes”, actuais, há a considerar que esta matéria, no campo particular das relações bilaterais entre Portugal e o Brasil, e, à data da extradição em causa, vigorava o Tratado de Extradição assinado em 7 de Maio de 1991, em Brasília. Este tratado, ratificado por Decreto do Presidente da República nº. 3/94 e aprovado pela Resolução da Assembleia da República nº. 5/94, foi publicado no D.R.I-A, nº. 28, de 3/2/1994, vigorando a partir de 1/12/1994.

Neste tratado, o artigo 6º dispõe sobre o princípio da especialidade:

 «1- Uma pessoa extraditada ao abrigo do presente tratado não pode ser detida ou julgada, nem sujeita a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal no território da parte requerente, por qualquer facto distinto do que motivou a extradição e lhe seja anterior ou contemporâneo.»

E, decorre da Lei 144/99 de 31/1- Lei regulamentadora da cooperação judiciária internacional em matéria penal, que:

Artigo3.º

Prevalência dos tratados, convenções e acordos internacionais

1 - As formas de cooperação a que se refere o artigo 1.º regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma.

2 - São subsidiariamente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal.

                           

                  

 Artigo 4.º

Princípio da reciprocidade

1 - A cooperação internacional em matéria penal regulada no presente diploma releva do princípio da reciprocidade.

2 - O Ministério da Justiça solicita uma garantia de reciprocidade se as circunstâncias o exigirem e pode prestá-la a outros Estados, nos limites deste diploma.

3 - A falta de reciprocidade não impede a satisfação de um pedido de cooperação desde que essa cooperação:

a) Se mostre aconselhável em razão da natureza do facto ou da necessidade de lutar contra certas formas graves de criminalidade;

b) Possa contribuir para melhorar a situação do arguido ou para a sua reinserção social;

c) Sirva para esclarecer factos imputados a um cidadão português.

Por seu turno, a constituição da República Portuguesa dispõe:

Artigo 8.º (Direito internacional)

1. As normas e os princípios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito português.

2. As normas constantes de convenções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na ordem interna após a sua publicação oficial e enquanto vincularem internacionalmente o Estado Português.

 3. As normas emanadas dos órgãos competentes das organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram directamente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados constitutivos.

 4. As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respectivas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático.

Desde logo, conforme se vem explicando, no que respeita ao relacionamento internacional entre os dois Países, Portugal e Brasil, e, reportado à data da extradição, vigorava nesta matéria o Tratado de extradição assinado em Brasília, em 7 de Maio de 1991 e, supletivamente a Lei sobre cooperação internacional- Lei 144/99.

Assim se entendendo, da sua aplicação ao caso, resulta que o extraditado não podia ser detido nem julgado ou sujeito a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal, em razão de facto distinto daquele que motivou a extradição. Ou seja, é nesta amplitude que o princípio da especialidade concede “imunidade” ao arguido.[1]

É certo que esta amplitude é aparentemente mais restritiva que aquela que consta de outros diplomas (como referimos acima) que regulam a cooperação europeia, mas a verdade é que na cooperação bilateral entre os dois Países (Portugal e Brasil) as convenções aceites e ratificadas por ambos vigoram em pleno nas suas relações bilaterais e recíprocas. Aliás, a redacção daquele artigo 6º da Convenção é praticamente idêntico ao que veio a ser consagrado na Convenção de Extradição entre os Estados Membros da Comunidade dos Países da Língua Portuguesa, assinado na Cidade da Praia em 23 de Novembro de 2005, que acima referimos e que foi também assinado pela República Federativa do Brasil.[2]

No caso, os actos praticados no processo, após a extradição do arguido e antes do deferimento da ampliação do pedido de extradição foram actos que não envolveram a perda da sua liberdade, não diminuíram ou cercearam de algum modo os seus direitos de defesa, nem o submeteram a julgamento, já que este, sustado, só foi realizado após a concessão da ampliação do pedido de extradição, que veio a abranger os factos objecto dos presentes autos.

Não se coloca assim a questão da invocada aplicação retroactiva da ampliação da extradição e, seguramente que não foi violado o princípio da especialidade, como se fundamentou antes. Não existe nenhuma nulidade ou invalidade dos actos praticados no processo.

Neste sentido foi também a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 22 de Fevereiro de 2016, [3]Acórdão, do qual citamos:

(…) “O caso dos autos

No caso em causa nos autos a extradição concedida tem como Estado requerente, Portugal, e Estado requerido, o Brasil.

Posto isto, afigura-se-nos que o enquadramento legal de que se deve lançar mão é diferente do convocado pelo despacho em recurso e mesmo pelo recorrente, pois, no campo da extradição, há dois instrumentos sucessivos, um bilateral - entre Portugal e o Brasil – e, outro entre os Estados membros da Comunidade de Países de Língua Portuguesa, que têm de ser convocados ao caso, por ambos regularem expressamente o princípio da especialidade.

Com efeito, em 23 de Novembro de 2005 foi celebrada, na cidade da Praia, entre os Estados Membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, uma Convenção sobre Extradição em que foram subscritores, além do mais, Portugal e o Brasil.

Em Portugal, a convenção de extradição foi aprovada pela resolução da Assembleia da República n.º 49/2008 de 18.7.2008; ratificada pelo Decreto do Presidente da República 67/2008, sendo publicada no DR Iª Série, n.º 178, de 15/9/2008, para vigorar na nossa ordem jurídica a partir de 1 de março de 2010.
Na República Federativa do Brasil, a convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional por meio do Decreto Legislativo 45, de 30 de março de 2009, sendo promulgada pelo Decreto Presidencial 7.935, de 19 de Fevereiro de 2013, considerando que o acordo entrou em vigor para a República Federativa do Brasil no plano jurídico externo em 01 de Junho de 2009.

Porém, já antes da entrada em vigor da referida Convenção Multilateral, vigorava o antigo Tratado de Extradição firmado entre os governos da República Federativa do Brasil e da República Portuguesa, que foi assinado em Brasília em 7 de maio de 1991.

A cooperação entre Portugal e os demais Estados rege-se, neste domínio, pelos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições da Lei 144/99, para além das do C.P.P. (art. 3ºda referida lei).

Com efeito, decorre expressamente do disposto no artigo 3º, n.º1 da referida Lei (144/99 de 31.01) que: «As formas de cooperação a que se refere o artigo 1.º [a) Extradição; b) Transmissão de processos penais; c) Execução de sentenças penais; d) Transferência de pessoas condenadas a penas e medidas de segurança privativas da liberdade; e) Vigilância de pessoas condenadas ou libertadas condicionalmente; f) Auxílio judiciário mútuo em matéria penal.] regem-se pelas normas dos tratados, convenções e acordos internacionais que vinculem o Estado Português e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições deste diploma.»

Posto isto, concluímos que no que respeita à extradição de um indivíduo que tem como Estado Requerente, Portugal e, Estado requerido, o Brasil, regulam, em primeiro lugar, uma ou outra das convenções supra referidas.

Conforme decorre de fls. 619 e 719 dos autos o pedido de extradição originário, relativamente ao arguido, foi deferido pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro em 11 de Setembro de 2007, ao abrigo do Tratado de Extradição assinado em Brasília em 07 de maio de 1991, aprovado para ratificação pela resolução da assembleia da república n.º 5/94, tendo a entrega ao Estado Português ocorrido em 15 de Outubro desse ano, e foi concedida relativamente aos factos objeto do processo de inquérito 12831/03.5TDLSB que corria termos no DIAP de Lisboa, tendo o arguido sido extraditado para Portugal sem renunciar à regra da especialidade.

Porque a extradição foi deferida pelo Supremo Tribunal Federal Brasileiro em 11 de Setembro de 2007, ao abrigo do Tratado de Extradição assinado em Brasília em 07 de maio de 1991 rege no presente caso o referido Tratado de Extradição.
Nos termos do artigo 6º daquele Tratado a “regra da especialidade” foi assim enunciada:
«1- Uma pessoa extraditada ao abrigo do presente tratado
não pode ser detida ou julgada, nem sujeita a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal no território da parte requerente, por qualquer facto distinto do que motivou a extradição e lhe seja anterior ou contemporâneo.»

Ora se é verdade que o princípio ou regra da especialidade, mormente, como previsto neste artigo do Tratado de Extradiçãorestringe o poder do Estado requerente de deter ou julgar, ou sujeitar a pessoa extraditada a qualquer outra restrição da sua liberdade pessoal, também é verdade que a simples notificação da acusação ao arguido, em 17.11.2008, quando o arguido se encontrava no EP por lhe ter sido aplicada a medida de coacção de prisão preventiva no âmbito do processo de inquérito 12831/03.5TDLSB [repete-se processo para o qual fora concedia da Extradição], não sujeitou, para tal efeito, o arguido a qualquer restrição da sua liberdade pessoal.

A mera notificação da acusação não implica a obrigação de comparência do interessado em qualquer ato processual, nem envolve para ele qualquer restrição da sua liberdade pessoal, tanto assim que o Estado português poderia tê-la tornado efetiva, independentemente da extradição, nomeadamente através de uma carta rogatória.
Assim, verificamos que nada impedia o Estado Português de através das suas autoridades judiciárias, na pendência da entrega do arguido para outro processo, notificar o arguido da acusação destes autos, não tendo havido para o efeito qualquer restrição da sua liberdade.

Tal notificação não equivale a uma extensão não autorizada dos limites abrangidos pela decisão da autoridade brasileira que concedeu a extradição.

Concluindo não foi violada a regra ou princípio da especialidade.”

Assim se entendendo e concluindo, vejamos agora a questão da prescrição, muito embora a argumentação do arguido/recorrente suponha na sua génese a existência da violação do princípio da especialidade e a invalidade dos actos praticados nestes autos até à data da concessão da ampliação do pedido de extradição, que, conforme resulta do anteriormente exposto se não considerou verificado.

Ainda assim.

Os factos objecto dos presentes autos tiveram lugar em 5/9/2003, integrando a conduta tipificada no artigo 375-1 e 386-1 c) do Código Penal, cominado com uma pena de prisão de 1 a 8 anos. Atenta a redacção do diploma vigente à data dos factos, o prazo prescricional previsto no artigo 118 nº. 1 b) do C.P.era de 10 anos[4], mais favorável que o actual.

Decorrendo de forma simples e ininterrupta, completar-se-iam os 10 anos em 5/9/2013. Porém, a constituição de arguido, de 24/4/2008, a notificação da acusação, em 30/4/2008 interrompem o decurso do prazo da prescrição (artº. 1211 a) b) do C.P.), operando ainda o prazo de suspensão a partir da notificação da acusação (artº. 120 nº. 1 b) do C.P. Considerando que a suspensão não poderá ultrapassar 3 anos (nº. 2 do artigo 120 citado) e que depois de cada interrupção começa a correr novo prazo (nº. 2 do artigo 121) sempre se verificaria a prescrição após o decurso temporal estabelecido no artigo 121 nº. 3 do C.P.- 10 anos+5+3= 18, anos após a prática dos factos- 5 de Setembro de 2021.

Daqui, concluirmos que se não verifia o decurso do prazo prescricional, improcedendo também nesta vertente, o recurso.

***

O Recurso principal, interposto do Acórdão que condenou o arguido/recorrente P..., na pena de 5 anos e 3 meses de prisão pela prática do crime de peculato p.p. pelo artigo 375-1 do C.P. com referência ao artigo 386 nº. 1 c) do C.P.

Já acima transcrevemos as conclusões do recurso.

Cumpre agora transcrever a matéria de facto fixada no Acórdão e a sua fundamentação, com vista à apreciação das questões colocadas em recurso.

A - Factos provados.

AA - Da prova produzida resultou assente a seguinte fatualidade:

1.  No âmbito do processo de falência nº.607/1996 que correu termos no 1° Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, foi a sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada "C...,Lda.", vulgo "C…", declarada falida por sentença proferida em 2 de Outubro de 1998;

2. Na sentença declarativa da falência foi nomeada H... para o exercício das funções de liquidatário judicial da massa falida;

3. No dia 12 de Junho de 1998 a Liquidatária H... apreendeu a favor do património da "massa falida" os seguintes bens a que também foram atribuídos os seguintes valores base:

“ …”;

A totalidade de todos estes bens apreendidos pela Liquidatária a favor do património da assistente, à referida data, 12.6.1998, perfez de valor base a quantia de €1.448.165, 18 (um milhão, quatrocentos e quarenta e oito mil, cento e sessenta e cinco euros e dezoito cêntimos);

4. No exercício dessas funções e com o intuito de obter o melhor preço na venda dos bens pertença da massa falida, foi designada a leiloeira "B..., Lda." da qual eram sócios P... e J... para coadjuvar a liquidatária judicial;

5. A sociedade "B..., Lda." era uma leiloeira na forma jurídica de sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada com sede social na … Lisboa e na persecução o seu objecto social dedicava-se à promoção de vendas em leilão;

6. A sociedade "B..., Lda." foi encarregada de proceder à venda, em leilão de:

“ …”;

 7. Naquelas funções da "B..., Lda." compreendiam-se os atos de publicitação da venda, abertura de leilão, e recolha de propostas; 8. Por ser costume no meio, com base na confiança existente entre a liquidatária e a leiloaria, recebia pagamentos por conta do liquidatário judicial da massa falida, emitia os respectivos documentos de venda e celebrava com autorização prévia, a escritura pública de compra e venda; 9. No dia 23 de Outubro de 2002, nesta cidade de Ponta Delgada, P...  procedeu ao leilão do imóvel acima descrito, que foi comprado pela sociedade "Supermercados …, SA.", com sede na Rua …;

10. Nesse mesmo dia procedeu-se à venda dos bens móveis por valor não concretamente apurado;

11. Essa venda, nesse dia, foi organizada, promovida, dirigida e efetuada pela sociedade, "B..., l.da.", através do seu sócio gerente P... ;

12. Em data não apurada o arguido P... obteve, do 1 ° Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, certidão que usou para celebrar a escritura pública de compra e venda do imóvel acima descrito;

13. No dia 5 de Setembro de 2003 foi celebrada a escritura, sem a presença da liquidatária judicial, que não tinha sido avisada do ato, tendo o arguido P... recebido do comprador do imóvel o valor de quinhentos e cinquenta mil euros;

14. O arguido P... recebeu o produto dessas vendas que gastou em despesas e conveniências relativas à sua vida privada;

15. O arguido não restituiu aquelas quantias, até a data, à massa falida, apesar de todas as insistências formais e informais nesse sentido no processo de falência, e fora dele pela liquidatária judicial;

16. O arguido era co-titular da conta bancária nº.7…0 no Banco Millennium;

17. A dita e supra mencionada conta bancária do Banco BCP Millennium, com o nº.7…0, era titulada em exclusivo e utilizada com igual exclusividade por ambos os titulares, um deles o P... em seu benefício pessoal;

18. Era nessa conta bancária que eram depositados os cheques recebidos do produto, quer da venda dos bens que compunham o património da assistente, quer o produto da venda dos bens de todas as outras inúmeras "massa falidas" em que optaram por igualou semelhante actuação;

19. O saldo dessa conta bancária e, consequentemente, o produto da venda do património da assistente, era ainda usado e utilizado, indistintamente, por ambos os titulares, da forma que entendiam e estabeleciam entre si;

20. P... e J... eram os únicos sócios gerentes desta sociedade comercial "B..., Lda. sendo também eles as únicas pessoas que de facto e de direito actuavam em nome dessa  sociedade e conformavam os seus destinos;

21. Era intenção do arguido de se apropriar das quantias que lhe foram entregues a título de pagamento de preço de venda deste património da assistente e de lhe oferecer outro destino que não a sua devolução à esfera patrimonial da assistente, propósito que pensou, que colocou em prática e que conseguiu plenamente;

22. Assim se apoderando o arguido abusivamente de, pelo menos, a quantia de

€550.000,00, que não mais devolveu, causando aos credores do processo de falência em causa prejuízo patrimonial de valor equivalente ao montante pecuniário que fez seu;

23. O arguido sabia que agia contra os deveres profissionais e de serviço público a que estava vinculado na qualidade de encarregado da venda, e também sabia que no exercício de tais funções lhe competia zelar pela guarda e depósito à ordem do respectivo processo judicial de falência do produto da venda dos bens, imóvel e imóveis bem sabendo que fazendo sua a quantia referida causava prejuízo aos credores da massa falida, que assim se viram impossibilitados de receber os créditos que lhes eram devidos;

24.  Não obstante, não se inibiu da prática de tais factos;

25. O arguido actuou de forma livre e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei e estando plenamente consciente que esses actos lhe estavam vedados.

Extrai-se do relatório social do arguido e do CRC:

26. P... é filho único e cresceu no seio de uma família de condição socioeconómica média, assegurada pela atividade profissional do pai que trabalhava como informático. Dispondo de um enquadramento familiar estável, o arguido frequentou os estudos até à conclusão do antigo 7° ano. O seu percurso profissional foi iniciado aos dezanove anos, como empregado de escritório numa agência de viagens. Com cerca de vinte e três anos, o arguido passou a trabalhar com um tio, numa agência de leilões, onde permaneceu aproximadamente sete anos e adquiriu experiência e conhecimentos nessa área de trabalho que lhe permitiram constituir a sua própria empresa, no mesmo ramo de atividade, conjuntamente com dois sócios, a sociedade "B..., Lda.", em 1989. No plano afetivo-familiar, P... celebrou três casamentos. O primeiro foi apenas mantido por sete meses. Do segundo, realizado com cerca de vinte e três anos, tem dois filhos, no presente com 28 e 30 anos de idade - ambos licenciados _ e divorciou-se aos quarenta e três anos. Do terceiro, teve um filho, na atualidade com nove anos de idade. As circunstâncias que enquadraram os processos judiciais em que o arguido se viu envolvido motivaram o surgir de várias ameaças que lhe foram dirigidas por parte dos alegados ofendidos. Essa situação, porquanto causadora de um clima constante de tensão junto do arguido, terá afetado a sua dinâmica familiar, motivando a separação da sua família constituída - na altura composta por cônjuge e dois filhos - e, alegadamente, desencadeado a sua viagem para o Brasil, a 25.1.2004. Decorridos sensivelmente dois anos, na sequência da emissão de mandatos de captura internacional, foi pedida a extradição do arguido para Portugal, para cumprir oito anos de prisão pela prática de quatro crimes de peculato, no âmbito do processo nº12831/03.5TDLSB, da 6ª Vara Criminal de Lisboa. P... esteve ininterruptamente preso desde 4.12.2006 e 20.6.2012, altura em que lhe foi concedida a liberdade condicional (pouco depois dos dois terços da pena) e cujo termo ocorreu em 4.12.2014. No decurso da medida de liberdade condicional, acompanhada pela DGRSP, o arguido compareceu de forma pontual e regular às entrevistas, bem como denotou interesse em colaborar com os Serviços. Numa primeira fase, o arguido exibiu a celebração de um contrato de trabalho com a empresa "O…, Lda.", pertença de uma amiga, o qual vigorava de Agosto de 2012 a Fevereiro de 2013. Em Novembro de 2012 o arguido entregou novo contrato de trabalho, celebrado com a sociedade "S…, Lda.", a termo certo - até Maio de 2013, na categoria de administrativo, podendo no entanto, exercer funções não compreendidas na atividade contratada. O contrato foi-lhe renovado e o arguido mantém-se ainda na referida empresa, onde desempenha funções administrativas relacionadas com a compra e venda de imóveis, reforçando que o desempenho da sua atividade, atualmente, nada tem a ver com leilões e que a própria empresa não tem tido, nos últimos tempos, essa atividade, o que nos foi corroborado pela sua superior hierárquica, sócia-gerente da empresa. O salário que o arguido aufere é de €547,89 euros. Ao nível económico, a esse quantitativo, o seu agregado conta também com o valor aproximado de €700,00, respeitante à reforma e pensão de sobrevivência recebida pela progenitora do arguido, com quem o arguido vive desde que foi restituído à liberdade, dispondo do apoio daquela. Com os filhos mais velhos, o arguido mantém contactos regulares, mas com o filho mais novo os contactos ficaram comprometidos desde o cumprimento da sua pena de prisão. O relacionamento do arguido com a mãe deste seu filho foi iniciado no Brasil, quando aí residiu, mas apesar de todos terem vindo para Portugal, aquando da extradição do arguido, a dinâmica familiar até então assumida sofreu alterações e, em Maio de 2013, o então casal separou-se. Mais tarde, sensivelmente no final de 2013 a ex-mulher do arguido ter-se-à ausentado para o Brasil, de onde é natural, levando o filho de ambos, alegadamente sem a autorização e o consentimento do arguido. Porém, e como foi feita a regulação das responsabilidades parentais, o arguido refere que está a cumprir, desde a respetiva decisão, reportada a Julho de 2014, o pagamento de 100 euros a título de pensão de alimentos, que no entanto são depositados numa conta, pertença do filho mais velho do arguido, com o objetivo de ser entregue ao filho mais novo. Em termos afetivos, o arguido mantém um relacionamento de namoro, desde há sensivelmente dois anos e meio. É com algum sentimento de inconformismo/injustiça que o arguido transmite que o seu sócio se mantém ileso de qualquer condenação, por ter saído de Portugal e fixado residência noutro país, assim se instalando a perceção de alguma impunidade seletiva. Em caso de condenação, o arguido verbalizou disponibilidade para colaborar com o Sistema da Justiça. Pese embora entenda que uma pena de cariz pecuniário/indemnização possa responder aos interesses judiciais, será difícil o seu cumprimento, porquanto aufere o salário mínimo nacional e porque todos os seus bens pessoais foram judicialmente apreendidos. O percurso laboral de P... foi sobretudo marcado pelo exercício de funções em leiloeiras. Apesar de o arguido já ter sido condenado em oito anos de prisão, pela prática de crimes de peculato, pouco depois de obtida a liberdade condicional - decorrida entre junho de 2012 e dezembro de 2014 - assumiu funções numa agência imobiliária que também pode desenvolver atividade de leilões, enquadramento laboral que pode representar risco de reincidência, caso o arguido venha a participar em trabalhos desenvolvidos na atividade de leiloeira. P... comparece regularmente às entrevistas agendadas no âmbito da sua medida de acompanhamento de liberdade condicional, disponibilizando a informação solicitada, contudo, a informação policial rececionada, dando conta que o arguido é suspeito da prática de crimes, no decurso da mesma, surge como um indicador que o mesmo pode eventualmente não estar a adotar uma conduta conforme com a lei, pese embora por tipologias de crime distintas da sua anterior condenação e da atual acusação. Salienta-se como positivo o seu sentido crítico face à matéria jurídica em apreço e destaca-se que o arguido beneficia de apoio materno e por parte da sua atual namorada, o que se constitui como fator de proteção:

O arguido já foi condenado:

• Por sentença de 19.9.2008, relativamente a factos consubstanciadores dos crimes de peculato (7) praticados em 18.10.2007, na pena única de 8 anos de prisão.

*

AB - Factos não provados:

27. Em data não apurada o arguido P... compareceu no 1º Juízo do Tribunal Judicial de Ponta Delgada, onde, dizendo que estava autorizado pela liquidatária judicial, obteve certidão que o autorizava a celebrar a escritura pública de compra e venda do imóvel acima descrito;

28. Que o arguido atuou de acordo com um plano previamente delineado entre si e J...; que o montante aqui em causa foi repartido entre ambos que assim o fizeram seu, de acordo com decisão tomada em conjunto por mútuo acordo e em combinação de esforços e da foram descrita;

29. Que o arguido na venda referida em 11. atuou com pleno conhecimento, colaboração, assentimento quanto respeita a todos os aspectos deste ato do outro sócio gerente, J...;

30. Que o arguido P... era um mero prestador de serviços da B...;

31. Que os valores das vendas eram depositados na Conta B...;

32. Que o arguido P... não se apropriou de nada; que não se locupletou com as quantias aqui em causa e que foi o sócio da B... – J… - que fez suas tais quantias conta a sua vontade e sem a sua autorização.

*

AC - Motivação da matéria de facto:

O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, como preceitua o art°.127° do Código de Processo Penal.

Assim:

Os factos que estão nos pontos 1., 2. e 3. resultam de forma clara do teor dos documentos de fls.5 a 10.

Os que temos nos pontos 4.,6.,7.,9.,10. e 11. nos documentos de fls.155 e 156.

Também nos depoimentos das testemunhas (…).

Os que encontramos em 5. resultam da certidão de fls.1 04 a 108 e 130 a 145.

O que está em 8. resulta dos depoimentos das testemunhas (…). Todas foram claras ao referirem que a B... trataria de todas as questões relacionadas com a promoção da venda; venda e recebimento das quantias envolvidas e, as contas com a liquidatária, seriam feitas a final.

O que temos em 12. resulta de forma clara do teor dos documentos de fls.15 a 17; de fls.585 a 588 e ainda do depoimento da testemunha (…). Esta referiu que se recorda de ter visto o arguido P... no juízo onde trabalhava, segundo julga no dia da leilão, a conversar com a escrivã e a solicitar uma certidão que aquela passou, contudo, sem saber o seu teor e para que efeito. Compaginando o depoimento desta testemunha e o teor dos documentos apontados logo vemos que o arguido P..., contornando o pedido que haveria de fazer à liquidatária obteve, por meios próprios e extravasando o âmbito da sua função, uma certidão do tribunal que lhe foi enviada pelo correio e que atestava a qualidade da B... nos autos, instrumento determinante para poder outorgar a escritura e receber o correspetivo preço.

O que está em 13. resulta da certidão de fls.179 a 195.

O que está em 14. foi confirmado pelo adquirente Edgardo Sousa que disse de forma clara e escorreita ter entregue ao P... o valor total da venda.

O que temos em 15. resulta de forma clara dos documentos de fls.18 a 21,27 a 30, 166, 168 a 171 e ainda no depoimento das testemunhas (…).

O que está em 16., 17., 18. e 19. resulta dos documentos de fls.882 a 917 e 918 a 983 e 989 a 991 e ainda do depoimento das testemunhas (…), foram claras em referir que a empresa B... tinha várias contas e os sócios também. Nas contas da empresa eram depositados os valores que provinham das suas funções, nomeadamente os que resultavam das vendas executivas ... e nas contas dos sócios eram depositados os valores que, sendo recebidos por eles, não correspondiam a valores devidos à empresa, entre estes contavam-se os montantes que recebiam das vendas feitas nas insolvências, onde intervinham como meros promotores e dinamizadores da venda, e que mais tarde, no acerto de contas com os respetivos liquidatários lhes davam o respetivo destino.

O que se encontra em 20. da certidão de fls.1 04 a 108 e 130 a 145.

O que está em 21. a 25. resulta de forma clara do artifício que o arguido criou para obter o documento que pudesse escudar a sua intervenção na escritura de venda, receber o montante, não o depositar na conta da empresa e dar-lhe o destino que bem entendesse.

O que está em 26. resulta do relatório social e do CRC que estão nos autos.

O que não se provou e está de 27. a 32. assentou na falta de prova que importasse

decisão distinta ou na prova de outros factos com eles necessariamente incompatíveis.

Analisando a prova de forma crítica, não restam dúvidas que foi declarada a insolvência da empresa "C...,Lda.", aí se nomeou como liquidatária H... que arrolou para a massa os bens que encontrou (neste sentido convergiram os depoimentos das testemunhas(…) , os quais são, também, sustentados pelos documentos de fls.5 a 10). Chegado o momento da liquidação da massa insolvente, por sugestão da liquidatária, como ela própria o declarou, foi nomeada a B..., empresa de leilões sobejamente conhecida no meio, para proceder à promoção da venda e realizá-Ia, o que a mesma fez (ns.iss e 156 e ainda os depoimentos de todas as testemunhas ouvidas). Realizada a venda, na qual interveio pessoalmente o arguido P... (como atestado pelo adquirente e testemunha (…) e ainda por (x) , funcionário da B... que acompanhou para esse propósito o P... a POL) e como combinado com a liquidatária (relevantes nesta matéria os depoimentos das testemunhas (…)). O adquirente pagou o sinal àquele que o arrecadou para que a final fossem feitas as contas com a liquidatária. O pagamento foi feito em cheque que o P... não depositou na conta da B..., já que tal percebimento não se integrava, legalmente, nas funções de promotor da venda que detinha, pelo que foi depositado na conta pessoal dos sócios (neste sentido depoimento claro e escorreito de (x)). Faltava o remanescente do preço que havia de ser pago na escritura ... contudo, a presença da liquidatária em tal ato importaria o não percebimento pelo arguido P... desse montante ... problema que ele próprio se encarregaria de resolver. Para isso dirigiu um pedido à liquidatária (ns.is e 16), através do qual lhe dava nota do leilão, da venda e do preço, solicitando-lhe que providenciasse junto do tribunal pela emissão do documento que lhe permitisse outorgar a escritura e, concomitantemente, receber o preço (atente-se que foi o próprio P... que subscreveu o pedido, sendo certo que, como referido por (…) a burocracia relacionada com a obtenção do documento para as escrituras era da responsabilidade do outro sócio, sendo esse outro sócio que, com a autorização dos liquidatários, comparecia às escrituras que ele próprio estava encarregado de marcar). Contudo a liquidatária, querendo ela própria outorgar a escritura, o que pediu ao tribunal (fls.) foi que o título fosse passado em seu nome. Perante este dilema o arguido P... dirigiu-se diretamente ao tribunal (como o atestou a testemunha(x)) e logrou que lhe enviassem, pelo correio, o documento que usou para outorgar na escritura (fls.585 a 588) e cuja emissão havia sido pedida pela liquidatária. O ardil preconizado pelo P... deu resultado ... ainda que inexplicavelmente já que não se percebe a razão do notário não ter levantado qualquer questão quanto a esse facto ... e acabou ele, contra o que era norma na empresa (pois era tarefa entregue ao outro sócio), por outorgar, sem a presença da liquidatária a escritura que lhe permitiu receber €550.000,00 que usou em seu proveito próprio. Tudo isto nos permite concluir que a liquidatária não soube da escritura ... tendo ficado à espera da certidão que havia solicitado ao tribunal para a outorgar e que nunca recebeu. Cai aqui por terra a afirmação da testemunha (x) no sentido de ter presenciado uma chamada telefónica do outro sócio do P... para a liquidatária a dar-lhe conta da data da escritura ... ela própria referiu que quem intervinha nas escrituras era esse sócio e na realidade ... neste caso, tudo, aparentemente, se terá passado sem a intervenção daquele outro sócio. A liquidatária quando se apercebeu de que a venda já tinha sido feita e o valor dela recebido pelo P... solicitou à B...o montantes respetivos ... sem sucesso, pois por ele já lhe havia sido dado outro destino.

Foram estas as razões que levaram à fixação da matéria de facto nos moldes acima expostos.

***

Conhecendo.

O arguido imputa à decisão final os vícios a que se reportam as al. a) e b) do nº. 2 do artigo 410 do C.P.P.

   Embora o faça de forma genérica na motivação, o arguido suscita a questão da insuficiência das provas produzidas para a matéria fixada.

Conforme escreveu Tolda Pinto, -A Tramitação Processual Penal, 2.ª edição, pg. 1035, quanto à “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, “a mesma existe quando, através dos factos dados como provados, não sejam logicamente admissíveis as ilações do tribunal a quo, não estando, porém, definitivamente excluída a possibilidade de as tirar”.

Assim, o julgamento da matéria de facto deverá ser exaustivo, sendo certo que ao tribunal é imposto realizar todas as diligências tendentes à descoberta da verdade e à boa decisão da causa, como resulta do art.º 340.º do C.P.P., do mesmo modo que esse poder/dever, à luz do art.º 371.º, exercer-se-á até ao momento da leitura da sentença.

“Para se verificar esse fundamento é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão proferida, por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito” (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III,p. 325)

Existe pois insuficiência para a decisão quando o tribunal não investigou na totalidade, podendo tê-lo feito, quando a partir dos factos apurados não é legalmente admissível extrair as ilações que o tribunal “a quo” extraiu, mas não está definitivamente excluída a possibilidade de as tirar, havendo necessidade de melhor averiguação dos factos com esse objectivo.

No caso.

O arguido refere que, sendo a conta existente no Banco Millennium titulada por duas pessoas, sendo o arguido uma delas (pontos 16,17 e 19 da matéria de facto) e que o produto da venda do património da assistente era utilizado, indistintamente, por ambos os titulares (ponto 19 da matéria de facto) o Tribunal não poderia sem mais ter presumido a culpa do arguido e daí que tenha praticado contradição entre o facto conhecido e a conclusão- al. b) do artigo 410-2 do C.P.P.- para além da insuficiente prova produzida- artº. 410-2 a) do C.P.P.

Vejamos.

Primeiramente há que notar que o Tribunal no ponto 19 da matéria provada disse algo mais do que aquilo que é referido pelo recorrente em abono da sua tese, ou seja, “… o produto da venda do património da assistente, era ainda usado e utilizado, indistintamente, por ambos os titulares, da forma que entendiam e estabeleciam entre si.” . O arguido não foi coarctado na sua defesa durante o processo, pelo que teve oportunidade de demonstrar que teria sido o outro titular a apropriar-se dos depósitos e a dissipa-los em seu exclusivo proveito, como parece agora pretender, e, não o fez; por outro lado a documentação junta aos autos e constante da fundamentação também não foi contrariada pelo recorrente e, a mesma não abona a sua tese. Donde resulta desde logo que se não verifica a insuficiência aludida na al. a) do artigo 410-2 do C.P.P., tanto mais que, conforme sublinhámos, a forma acordada entre os titulares certamente não era a partilha “a meias” ou outra, já que nos pontos 22, 23 e 24 da matéria fixada resulta inequívoco que foi o arguido/recorrente quem se apropriou das quantias depositadas (matéria esta que não foi especificamente impugnada pelo arguido).

E, assim, como não existe nenhuma insuficiência da matéria neste segmento, também não existe qualquer violação dos critérios das presunções legais utilizados pelo tribunal.

É que é preciso ter em conta que as provas válidas não são apenas as provas que resultam do conhecimento directo dos factos pelas testemunhas. Muitas vezes o julgador, alicerçando-se em factos certos, pode fazer apelo às denominadas presunções materiais ligadas à normalidade da vida e às regras da experiência ([5]), para daí retirar um outro facto “desconhecido”. Assim, não sendo as presunções judiciais um meio de prova proibido por lei, pode o julgador, à luz das regras da experiência e da sua livre convicção, retirar dos factos conhecidos as ilações que se ofereçam como evidentes ou como razoáveis e firmá-las como factos provados. E, exemplo comum deste meio ocorre precisamente com a prova da intenção criminosa (o chamado elemento subjectivo do tipo) que, enquanto acontecimento da vida psicológica, não permite prova directa, podendo no entanto ser inferido a partir de outros factos que tenham sido directamente provados. Desde que os parâmetros da experiência (a chamada “experiência comum”, assente na razoabilidade e na normalidade das situações da vida), não sejam postos em causa, desde que através de um raciocínio lógico e motivável seja possível compreender a opção do julgador, nada obsta ao funcionamento da presunção judicial como meio de prova, observadas que sejam as necessárias cautelas.

      E foi este iter que o Tribunal seguiu e vem devidamente explicado na fundamentação que consta da sentença e que acima deixamos transcrita. E, desta análise nada inculca a existência de eventual falta do cumprimento dos critérios lógicos, do senso, da inteligência e da experiência comum, plasmados no artigo 127 do C.P.P. como já afirmámos acima.

Ora, não só se não verifica qualquer omissão ou insuficiência da matéria de facto fixada para a conclusão vertida na condenação, como, de igual modo se não verifica qualquer contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nem, como pretende o arguido entre os factos provados e a culpa do arguido.

E também não ocorre o vício de erro notório na apreciação da prova que é, segundo a doutrina e jurisprudência mais generalizadas, o que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença conjugado com as regras da experiência comum.

Para além disso, a sua essência, consiste em que para existir como tal, terá de se retirar de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O vício de erro notório na apreciação da prova, só pode verificar-se relativamente aos factos tidos como provados e não provados e não às interpretações ou conclusões de direito com base nesses factos.

Quanto à qualificação jurídica que o Tribunal fez dos factos também nada aponta para erro pois muito embora o arguido entenda que o acórdão quando refere “por meios próprios e extravasando o âmbito da sua função” se reporta ao produto da venda dos bens (pontos XXII e XXIII) não tem razão, bastando a leitura do que se escreveu no acórdão: “Compaginando o depoimento desta testemunha e o teor dos documentos apontados logo vemos que o arguido P..., contornando o pedido que haveria de fazer à liquidatária obteve, por meios próprios e extravasando o âmbito da sua função, uma certidão do tribunal que lhe foi enviada pelo correio e que atestava a qualidade da B... nos autos, instrumento determinante para poder outorgar a escritura e receber o correspetivo preço.”

Cabe aqui, a propósito da questão, citar o que se escreveu no Ac. do S.T.J de 12/7/2006: «O tipo legal do crime de peculato, p. e p. pelo art. 375.º do CP, configura uma dupla proteção: por um lado, tutela bens jurídicos patrimoniais, na medida em que criminaliza a apropriação ou oneração ilegítima de bens alheios; por outro, tutela a probidade e fidelidade dos funcionários para se garantir o bom andamento e a imparcialidade da administração pública, ou, por outras palavras, a "intangibilidade da legalidade material da administração pública".».

E, no sumário do Ac. TRC de 20-06-2012 :

1.O conceito de funcionário, definido pelo artigo 386 do CP, é um conceito amplo, diferente do conceito de funcionário para efeitos administrativos e, cada vez mais amplo como resulta das sucessivas alterações legislativas;

2.O conceito, para o direito penal, consagra qualquer atividade realizada com fins próprios do Estado e, a atividade relacionada com a liquidação de patrimónios em processo de falência ou a venda em ação executiva é fim próprio do Estado levada a efeitos através do órgão de soberania Tribunais;
3.Aquele que desempenha atividade compreendida na função pública administrativa ou jurisdicional, de forma temporária, mediante remuneração, recebendo e executando ordens emanadas da autoridade, tem a qualidade de funcionário para efeitos do disposto nos artigos 386º CP.

Assim, aderindo ao entendimento acabado de expôr e à fundamentação jurídica exposta da decisão recorrida, nada mais se nos oferecer dizer que não seja, a confirmação de que a matéria de facto vertida na decisão recorrida preenche os requisitos objectivos e subjectivos típicos do ilícito pelo qual o arguido foi condenado, nomeadamente quanto ao conceito de funcionário.

Conclui-se assim de todo o exposto que improcedendo os recursos do arguido, mantemos a decisão recorrida  nos seus termos.

III. DECISÃO.

  Em face do exposto, decide-se, negar provimento aos recursos do arguido, mantendo-se integralmente as decisões recorridas.

  Fixa-se em 4 Ucs. a taxa de justiça devida.

            Notifique-se.

 (Texto elaborado e integralmente revisto pela relatora – artº 94º, nº 2 do C.P.Penal)

Lisboa, 14/04/2016                        

Maria do Carmo Ferreira

Cristina Branco      

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[1] Como diz Monteiro Guedes, na sua obra temática: (…) A regra da especialidade funciona como uma espécie de imunidade por crimes que tenham sido praticados antes da entrega e diferentes do que a motivou, cuja quebra não depende em exclusivo da volição da Autoridade Judiciária do Estado-Membro da execução – alin. g) do n.º2 do art. 7.º da Lei n.º 65/2003 -, pois, tendo em conta a liberdade como direito fundamental pessoal, depende da volição da pessoa a deter e a entregar.Todavia, o legislador português – imbuído no espírito de eficácia e celeridade processual e na ideia da descoberta da verdade e de realização da justiça como factores determinantes para a edificação do espaço penal europeu, cujo elemento segurança se sobrepõe à liberdade individual e colectiva, e no desiderato da economia de meios materiais e de recursos jurídicos – estabeleceu, na esteira das Convenções de Bruxelas de 1995 e de Dublin de 1996, limites ao princípio da especialidade, podendo este ser desterrado por factores de localização da pessoa, de direito material e de volição (subjectiva) da pessoa entregue ou a entregar”

Do Mandado de Detenção Europeu, ed. Almedina, pag.276.
[2] “Artº 6º. Princípio da Especialidade.
1- A pessoa entregue não será detida, julgada ou condenada, no território do Estado requerente, por outros crimes cometidos em data anterior à solicitação da extradição, e não constantes do pedido…”
[3] Acórdão que decidiu do recurso do despacho proferido no processo nº. 131/03.5TCACMN da sec.Criminal-J3 da Inst.Central de Viana do Castelo, no qual o aqui arguido/recorrente também invocara a violação do princípio da especialidade e que lhe deferira essa pretensão.

[4] Actualmente é de 15 anos, atenta a redacção do artigo 118 1- a) do C.P.introduzida pela Lei 32/2010 de 2 de Setembro e Lei 30/2015 de 22.4
[5] – cfr. Eduardo Correia, “Revista de Direito e Estudos Sociais”, XIV, pág. 24 e Cavaleiro Ferreira, “Curso de Processo Penal”, pág. 314.