Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
699/17.9T8STR-A.L1-1
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: ÓNUS DA ALEGAÇÃO
INADMISSIBILIDADE
SUSPENSÃO DA INSTÂNCIA
CARTA REGISTADA
TAXA SANCIONATÓRIA EXCEPCIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/19/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.–O recurso não é uma apreciação ‘ex novo’ do litígio mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse, pelo que não basta ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir decisão de sentido diverso, impondo-se-lhe, antes, o ónus de alegar, ou seja, de indicar as razões porque entende que a decisão deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece; não o fazendo o recurso deve ser rejeitado (ainda que parcialmente).
II.O procedimento cautelar para entrega judicial de bem que foi dado em locação financeira entretanto resolvida, previsto no art.º 21º do DL 149/95, de 24JUL, não é uma ‘acção para cobrança de dívida’ ou ‘com idêntica finalidade’ na acepção do art.º 17º-E do CIRE, não havendo lugar à inadmissibilidade ou suspensão da instância nesse normativo decretada.
III.O processo probatório é um processo dialéctico, em que a iniciativa vai passando de uma parte para a outra, entre prova e contra-prova, vinculado aos princípios da colaboração e boa-fé.
IV.As regras da repartição do ónus da prova não eximem as partes de participar activamente no processo probatório.
V.Regra geral não há prova directa do conteúdo dos objectos postais enviados sob registo.
VI.A prova desse conteúdo é circunstancial, em face das características e circunstâncias do talão de registo, mas também, e de uma forma muito relevante, da atitude do destinatário aquando da recepção do objecto postal registado.
VII. A impugnação de partes da decisão judicial omitindo por completo a indicação das razões porque se discorda bem como a pretensão de juntar documentos com o recurso sem invocar qualquer dos motivos legais estabelecidos para o efeito constitui falta de prudência ou diligência devida justificando-se a aplicação de taxa sancionatória excepcional.

(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa.

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NESTES AUTOS DE PROVIDÊNCIA CAUTELAR
            
ENTRE:

... INVESTIMENTO, S.A. Requerente/Apelada

CONTRA:

J.R. ... – GESTÃO ... DE NEGÓCIOS, S.A. Requerente/Apelada

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I–Relatório:


A Requerente intentou, em 07MAR2017, a presente providência cautelar pedindo a entrega do U- 4452 de Alpiarça de que a Requerida foi locatária financeira, e que mantém na sua posse, uma vez que a Requerente, enquanto locadora financeira, resolveu em OUT2014 o respectivo contrato em virtude do não pagamento de rendas desde MAI2010, não obstante a interpelação admonitória de AGO2014.

A Requerida contestou por impugnação e invocou, ainda, a suspensão do processo por pendência de PER, a ilegitimidade da Requerente e a prescrição da dívida.

A final foi proferido despacho que julgou improcedentes as excepções invocadas e decretou a requerida entrega do imóvel.
Inconformada, apelou a Requerida concluindo, em síntese, pela ilegitimidade da Requerente, pela suspensão da instância, pela prescrição, por erro na decisão de facto e pela inexistência de fundamento para a resolução.

Juntou dois documentos: contrato de arrendamento do imóvel em causa celebrado entre si e um terceiro e recibo da renda do contrato de locação financeira vencida em 05JUL2014.
Houve contra-alegação onde se propugnou pela inadmissibilidade dos documentos e pela manutenção do decidido.

II–Questões a Resolver.

Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece; sob pena de indeferimento do recurso.

Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

A Requerida invocou na sua contestação a ilegitimidade da Requerente uma vez que a mesma, em função de um contrato de trespasse que invoca, não se lhe teria transmitido a posição de locadora financeira.

Na sentença recorrida foi tal excepção julgada improcedente na medida em que do referido contrato de trespasse se encontravam expressamente excluídos os contrato de locação financeira e porque a legitimidade se afere em função da relação controvertida tal como configurada pelo autor.

A Requerida insurge-se contra essa parte decisória limitando-se a repetir o que a propósito alegou na sua contestação, sem apontar qualquer crítica aos fundamentos da decisão impugnada, desconsiderando mesmo esses fundamentos.

Ou seja, manifestamente não cumpriu o seu ónus de alegação, pelo que nessa parte o recurso vai indeferido.

A Requerida invocou na sua contestação a prescrição de cinco anos das rendas, cuja falta de pagamento foi invocada como fundamento da resolução.

Na sentença recorrida foi tal excepção julgada improcedente por se entender que as rendas de locação financeira, por serem mera fracção de prestação única, não estão sujeitas ao prazo prescricional de cinco anos, mas ao prazo geral de 20 anos.

A Requerida insurge-se contra esta parte decisória limitando-se a repetir o que a propósito alegou na sua contestação, sem apontar qualquer crítica aos fundamentos da decisão impugnada, desconsiderando mesmo esses fundamentos.

Ou seja, manifestamente não cumpriu o seu ónus de alegação, pelo que nessa parte o recurso vai indeferido.

Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são apenas as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
– da admissibilidade dos documentos juntos com o recurso;
– da suspensão da instância[1];
– do erro na decisão de facto (e suas eventuais repercussões na decisão da causa).

III–Da junção de Documentos.

O art,º 651º, nº 1, do CPC é preceptivo na afirmação de que com as alegações apenas podem ser juntos documentos cuja apresentação não tenha sido possível antes do encerramento da discussão da causa ou cuja noção se tenha tornado necessária em virtude do julgamento proferido em primeira instância.

Os documentos em causa são datados de 2012 e 2014, datas bem anteriores à data da discussão da causa, não referindo sequer a apresentante qualquer dificuldade na sua obtenção.

Por outro lado os factos cuja demonstração com eles se intenta – a cedência do imóvel a terceiros e o pagamento de rendas da locação financeira – são factos que já se discutiam na acção, não tendo a necessidade da sua demonstração surgido apenas em virtude do julgamento proferido em 1ª instância.

É, pois, manifesta, a sua inadmissibilidade em face da citada disposição legal.

IV–Da Suspensão da Instância[2]

A Requerida invocou na sua contestação que deveria ser suspensa a instância da providência cautelar por estar pendente PER, conforme o disposto no art.º 17º-E do CIRE.

Apreciando a questão o Mmº juiz a quo deu conta de divergência jurisprudencial sobre a matéria e tomou posição pela que considera que os procedimentos judiciais com vista à entrega de bens locados, como o dos autos, não integram o conceito de “acção para cobrança de dívidas” ou “com idêntica finalidade” a
que se reporta aquele artigo do CIRE, uma vez que o que está em causa é a entrega de um bem da propriedade da Requerente relativamente ao qual a Requerida não possui qualquer título que lhe permitia continuar a usar.

A Requerida impugna tal decisão limitando-se a invocar a corrente jurisprudencial que defende solução adversa.

O PER está concebido como um instrumento de prossecução do interesse geral de defesa da economia (em tempo de crise económico-financeira) tendo em vista potenciar a salvaguarda do frágil tecido empresarial do país. Através dele concede-se à empresa em dificuldades económicas ou em iminência de insolvência mas suceptível de ser recuperada a possibilidade de iniciar um processo negocial com os seus credores com vista a determinar a possibilidade e os termos dessa recuperação.

Para o progresso e sucesso dessa negociação, atribui-se ao devedor que tenta recuperar a empresa a possibilidade de o fazer liberto de todas as tentativas dos credores para se fazerem pagar e da pressão do mercado no sentido da insolvência, concedendo-lhe um período de alívio (um ‘breathing space’), um período (necessariamente limitado ao curto período de duração do PER) durante o qual os credores não possam reclamar os seus créditos para que as tentativas de recuperação sejam mais bem recebidas.

E de acordo com essa concepção do PER vêm alguns defendendo que essa limitação da actividade reivindicativa dos credores tanto deve abranger o pedido de satisfação de créditos pecuniários como aqueles que consistem na entrega de bens, alegando a dificuldade de aceitar/compreender que qualquer procedimento judicial para cobrança de um montante pecuniário, por mais irrisório que seja, seja impedido ou suspenso, mas, ao invés, qualquer procedimento tendente à entrega de um bem, susceptível de afectar de forma imediata, significativa e drástica – senão mesmo de forma irremediável – a actividade da empresa, fique imune a esse impedimento ou suspensão.

Assim tendo sido decidido nos acórdãos da Relação de Lisboa de 31DEZ2013 (Proc. 761/13.7TVLSB.L1) e 22JAN2015 (proc. 197/14.2TNLSB.L1) e da Relação de Guimarães de 11FEV2016 (Proc. 1355/15.8T8VRL.G1).

Outros há, no entanto, que, não pondo em causa aquela natureza do PER, entendem que a limitação dos direitos dos credores na recuperação dos seus créditos só tem fundamento, porque respeitadora da proporcionalidade entre os interesses envolvidos, relativamente a procedimentos que determinem a agressão do património (não litigioso) do devedor (maxime, a cobrança coerciva ou o arresto); não sendo extensível às situações em que tal agressão não ocorre por não implicar qualquer afectação desse património mas apenas o reassumir por inteiro do seu domínio por banda do credor (maxime, nos casos de locação entretanto resolvida).

Assim tendo sido decido nos acórdãos da Relação do Porto de 09JUL2014 (proc. 834/14.9TBMTS-B.P1) e 21JAN2016 (proc. 288/15.2T8PVZ.P1), da Relação de Lisboa de 22OUT2015 (proc. 2924/14.9TBVFX.L1) e da Relação de Évora de 22OUT2015 (proc. 2068/15.6T8LLE.E1).

Pela nossa parte alinhamos com esta última jurisprudência, entendendo que o art.º 17º - E do CIRE não tem aplicação no caso porquanto o alívio proporcionado pelo PER não pode ser levado tão longe ao ponto de se transmutar em expropriação, ainda que temporária, sem indemnização, o que redundaria em ofensa do direito fundamental de propriedade. Nem, tão pouco, essa situação se poderia considerar legitimidade pela defesa do interesse geral de defesa da economia, pois que não se vislumbra como se possa justificar como tal uma situação em que a revitalização das empresas ineficientes é levada a cabo à custa da utilização gratuita dos bens (canibalização) das empresas (pelo menos, mais) eficientes.

Nenhuma censura há, pois, a fazer ao decidido na 1ª instância quanto a esta questão.

V–Fundamentos de Facto.

A Apelante impugna a decisão da matéria de facto relativamente aos factos provados 6, 7 e 9 e aos factos não provados a) e b):

6–A requerida não procedeu ao pagamento da renda vencida em 05.05.2010, nem das que se venceram posteriormente.
7–Em 27 de Agosto de 2014, a requerente enviou à requerida a carta registada com aviso de recepção cuja cópia consta de fls 35, na qual declarou que, face à falta de pagamento das rendas e juros vencidos, se encontrava em dívida, naquela data, o montante de € 118,507,82, o qual deveria ser pago no prazo de 30 dias a contar da recepção daquela carta, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo.
9–Em 20 de Outubro de 2014, a requerente enviou à requerida a carta registada com aviso de recepção cuja cópia consta de fls 38, na qual se declarou que, no seguimento do incumprimento definitivo do Contrato, o mesmo se encontrava resolvido e que esta devia proceder à entrega do imóvel em 15 dias.

a)-O prédio aludido em 4 dos factos provados se encontre há vários anos na posse de terceiros, com o consentimento da requerente;
b)-A requerente tenha retirado do imóvel bens da propriedade da requerida, com o objectivo de os fazer seus.

Relativamente ao facto provado 6 não foi apresentada qualquer prova documental do pagamento das prestações e dos depoimentos referidos pela recorrente resulta que havia negociações quanto ao mesmo contrato, que se vieram a mostrar inconclusivas. Ora se havia negociações é porque o contrato não estava ser cumprido e, por outro lado até prova do pagamento a obrigação deve ser considerada como não paga. Não se encontra razão para alterar o juízo de facto formulado na 1ª instância quanto a este facto.

Relativamente aos factos 7 e 9 eles apresentam um redacção elusiva (talvez porque o Mmº juiz a quo pretendesse contornar as dificuldades postas pelas questões envolventes), aspecto esse que, desde já, se afigura justificar alterações, no sentido de deixar claramente expressa a realidade apurada.

Os factos em causa abrangem duas questões individualizadas: a elaboração e envio das declarações admonitória e resolutiva a e a sua recepção pelo destinatário.

Antes de entrarmos na apreciação concreta desses aspectos importa desde já precisar que o ónus da prova, mais do que uma regra de produção de prova ou de direito material probatório, é uma regra para o insucesso da prova; pelo que só é convocável se, depois da actividade probatória, não for possível formular um juízo de certeza, caso em que a situação se resolverá em desfavor do onerado com tal ónus.

Na procura da verdade dos factos o tribunal analisa o material probatório (directo ou circunstancial), segundo critérios de razoabilidade e de experiência comum de vida, e num processo dialéctico, em que a ‘bola’ vai passando de uma parte para a outra, entre prova e contra-prova, vinculado aos princípios da colaboração e boa-fé.

Nos factos agora em apreço a prova testemunhal mostra-se, como a própria Apelante reconhece (cf. pg. 18 da sua alegação), de pouca valia, relevando sobremaneira a prova documental.

Atentando nesta temos que de fls. 35 e 38 da versão física do processo principal consta a versão escrita das declarações admonitória e resolutiva, assinadas por responsável identificado da Requerente, dirigida à morada convencionada no contrato, datadas, respectivamente de, 27AGO2014 e 20OUT2014.

A Requerente alega ter procedido ao envio de tais missivas por correio registado, conforme os talões, afirmação que Requerida impugna, desde logo invocando o desconhecimento do conteúdo dos objectos postais a que tais talões dizem respeito e deles constar como destinatário do aviso de recepção não a Requerente mas ... Recuperação de Crédito ACE.

Esta última observação é de insignificante relevância uma vez que a indicação do destinatário do aviso de recepção não implica necessariamente que este seja o remetente. Foi, aliás, explicada a situação por ser o ... Recuperação de Crédito ACE que se encontrava mandatado para diligenciar pela cobrança dos créditos da Requerente.

É certo que não há prova directa de que o conteúdo do objecto postal remetido sobre correio registado correspondesse às referidas declarações (no limite até se pode congeminar que o envelope vá vazio). Para que tal ocorresse era necessário que ao ser elaborada a missiva lhe fosse desde logo aposta, e de forma fiável, o correspondente número de registo (como, por exemplo, ocorre nas notificações elaboradas no Citius).

Mas esses talões não deixam de apresentar circunstâncias que se coadunam com o facto afirmado: os registos foram efectuados no dia imediato à data constante das missivas e em ambos os talões se encontra inscrito o número do processo inscrito nas referidas missivas – 279425.

Para que tais circunstâncias tenham a virtualidade de sustentar um juízo de certeza quanto ao envio das respectivas missivas, importa, no entanto, que de tenha por demonstrado que o seu destinatário foi posto em condições de aceder ao conteúdo do objecto postal enviado a coberto dos registos em causa. Só nessa circunstância se pode extrair da não reacção do destinatário que o conteúdo dos objectos postais era o alegado. Com efeito, havendo alguma divergência, impunha-se, por via do princípio da boa-fé, ao destinatário que de pronto reagisse contra ela, denunciando a irregularidade.

E foi isso que aconteceu porquanto, não obstante a negação da Requerente, os objectos postais registados, foram recebidos na morada fornecida pela Requerente por pessoas identificadas e que se disponibilizaram a entregá-las ao seu destinatário.

A Requerida enquanto sociedade deve estar munida de organização adequada a receber a correspondência de que é destinatária, e na falta de alegação e prova de circunstâncias excepcionais, pelo que as eventuais falhas nessa organização redundam em culpa do destinatário tornando a declaração eficaz (art.º 224º, nº 2, do CCiv).

Quanto ao facto não provado a), uma vez não admitida a junção do invocado contrato de arrendamento, é manifesta a ausência de prova quanto a ele; e, ademais, ainda que tal junção tivesse sido admitida não se vislumbra como desse documento ou do conhecimento da situação de sub-arrendamento se pudesse extrair qualquer consentimento das Requerente.

Face ao que se fixa a seguinte matéria de facto (assinalando a negrito as alterações introduzidas):

A)– Encontram-se provados os seguintes factos:

1–A requerente teve anteriormente a denominação de ...banco, SA
2–A requerente tem por objecto o exercício, entre outras, da actividade de locação financeira.
3–No exercício da sua actividade, a requerente celebrou com a requerida, em 23.11.2009, o Contrato de Locação Financeira Imobiliária, formalizado com o n.º 101057, contrato esse cuja cópia se encontra junta de fls 8 a 32, dando-se o seu teor por integralmente reproduzido.
4–Tal contrato teve por objecto o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial de Alpiarça sob o n.º 4452 e inscrito na matriz sob o artigo 6472 da freguesia de Alpiarça, adquirido pela requerente a Hugo Miguel ... ..., Joaquim José ...... e mulher Catarina Sofia ... ..., pelo preço de € 185.000,00 (cento e oitenta e cinco mil), IVA incluído.
5–Nos termos do Contrato celebrado, a requerida obrigou-se a pagar à requerente 120 (cento e vinte) rendas mensais, no valor de € 1.885,77 (mil, oitocentos e oitenta e cinco euros e setenta e sete cêntimos) cada uma, com IVA incluído à taxa legal em vigor na data dos respectivos vencimentos
6–A requerida não procedeu ao pagamento da renda vencida em 05.05.2010, nem das que se venceram posteriormente.
7–Em 28 de Agosto de 2014, a requerente enviou para a morada indicada no contrato de locação financeira, por carta registada com aviso de recepção, o escrito que consta de fls. 35 do processo principal (suporte físico), datado de 27AGO2014, no qual declarou que, face à falta de pagamento das rendas e juros vencidos, se encontrava em dívida, naquela data, o montante de € 118.507,82, o qual deveria ser pago no prazo de 30 dias a contar da recepção daquela carta, sob pena de a mora se converter em incumprimento definitivo, tendo tal carta sido entregue na morada indicada a pessoa que se dispôs a recebê-la em 29AGO2014.
8–A requerida não procedeu ao pagamento de qualquer montante relativo à quantia referida em 7- no prazo estipulado, nem posteriormente.
9–Em 21 de Outubro de 2014, a requerente enviou para a morada indicada no contrato de locação financeira, por carta registada com aviso de recepção, o escrito que consta de fls. 38 do processo principal (suporte físico), datado de 20 de Outubro de 2014, no qual declarou que, no seguimento do incumprimento definitivo do Contrato, o mesmo se encontrava resolvido e que esta devia proceder à entrega do imóvel no prazo de 15 dias a contar da recepção daquela carta, tendo tal carta sido entregue na morada indicada a pessoa que se dispôs a recebê-la em 22 de Outubro de 2014.
10–A requerida não procedeu à entrega do imóvel à requerente.
11–Após o envio da carta referida em 9-, a requerente realizou diligências com vista à recuperação da posse do imóvel.
12–A requerente requereu o cancelamento do registo da locação financeira que incidia sobre o imóvel aludido em 4- na Conservatória do Registo Predial.
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B)– Não resultou provado qualquer outro facto com relevo para a decisão dos autos, não tendo ficado demonstrado que:

a)- o prédio aludido em 4- dos Factos Provados se encontre há vários anos na posse de terceiros, com o consentimento da requerente;
b)- a requerente tenha retirado do imóvel bens da propriedade da requerida, com o objectivo de os fazer seus.

V– Fundamentos de Direito.

Tendo a Requerente enviado para a morada contratualmente fixada no contrato as declarações admonitória e resolutiva, nos termos contratualmente estabelecidos, e tendo as mesmas aí sido recepcionadas, não pode deixar de se considerar tais declarações eficazes, porque conhecidas do seu destinatário ou por o eventual desconhecimento redundar de negligência sua, como já acima referido a propósito da discussão da matéria de facto, e consequentemente, encontrar-se o contrato de locação financeira resolvido, assistindo à Requerente (ademais indemonstrada que foi a detenção consentida por terceiro) o direito de reaver o imóvel de sua propriedade, mostrando-se acertado o despacho recorrido na parte em que deferiu a providência requerida.

VI– Da Taxa Sancionatória Excepcional.

Litigar em Juízo é um acto de enorme significado ético e de grande relevância social.

O direito de litigar em juízo, quer como demandante quer como demandado, deve ser exercido dentro de determinados limites circunscritos por deveres de conduta, em particular os deveres de cooperação, boa-fé processual e correcção (cf. artigos 7º, 8º e 9º do CPC - anteriormente artigos 266º, 266º-A e 266º-B). Limites esses impostos pela natureza pública do processo civil, pois que para além dos interesses privados (individuais, egoísticos e antagónicos) das partes na estratégia processual e na resolução do litígio prevalece o interesse público da pacificação social e correcta administração da justiça, com equitativa e igualitária alocação dos parcos recursos disponíveis e adequada celeridade.

O acesso à justiça enquanto direito constitucionalmente consagrado tem fundamentalmente a ver com a não discriminação nesse acesso e a inexistência de áreas imunes à jurisdição, e já não tanto com a possibilidade de introdução em juízo; no que a esta possibilidade respeita ela deve ser exercida com parcimónia, sob pena de a pretexto do generalizado exercício individualizado de um direito se estar no fundo a aniquilar colectivamente a eficácia e utilidade desse mesmo direito.

A utilização do aparelho judiciário deve ser reservada, por um lado, a matérias de relevo social e não a minudências ou meras questiúnculas, para cuja resolução se mostram mais adequadas outras formas de controlo e regulação social. Por outro lado, porque no encadeado de actos lógica e cronologicamente organizados que constitui o processo judicial se exige que os intervenientes se limitem à prática de actos inteligentes e não impertinentes e/ou dilatórios e ainda que esses actos sejam praticados de boa-fé, com sentido de cooperação institucional para com a descoberta de verdade e a proporcionada e segura celeridade na administração da Justiça, nele devem ser apenas levantadas questões com fundamento sério e não caprichosas.

Na esteira, aliás, do vetusto princípio geral de direito segundo o qual ‘de minimis non curat praetor’.

E tal parcimónia deve ser tanto maior quanto maior for o grau de hierarquia dos tribunais utilizados, porque igualmente maior é o custo e a escassez dos recursos. Com efeito, tendo em vista a eficiência do sistema de recursos, com os meios humanos e materiais de que o país dispõe e pode suportar, os tribunais superiores não podem ser chamados a reapreciar as decisões da primeira instância só porque elas não satisfazem os interesses da parte vencida, por ‘dá cá aquela palha’, ‘a torto e a direito’, para protelar o trânsito da decisão, ou, simplesmente, tentar a sorte de uma decisão mais favorável.

Ao direito ao recurso corresponde um dever de diligência no uso desse meio processual sendo exigível às partes que se abstenham da interposição de recurso para os quais não tenham fundamento sério. Devendo, em princípio, considerar-se que um recurso não apresenta fundamento sério, conduzindo à sua manifesta improcedência quando:
a)-é meramente dilatório ou baseado em distorção factual;
b)-as posições expressas são contrárias à jurisprudência estabilizada;
c)-as posições expressas não têm suporte nas posições jurisprudenciais ou doutrinárias ou nos conceitos ou princípios consolidados ou se baseiam em argumentos patentemente ilógicos e contraditórios ou em raciocínios objectivamente carentes de sustentabilidade;
d)-as posições expressas, ainda que se não possam dizer manifestamente infundadas, se referem as questões menores, a verdadeira minudências sem relevância substancial para a solução do litígio.
Quem não respeita esse dever de parcimónia deve ser sancionado.

E não se argumente que esse dever de parcimónia constitui uma ilegítima restrição do direito de acesso à justiça ou da defesa intransigente dos direitos ou expectativas das partes, pois que o próprio Tribunal Europeu dos Direitos do Homem faz apelo a esse dever aquando da apreciação da admissibilidade das queixas a ele dirigidas (cf. Bock v. Alemanha, 19JAN2010, Aplicação 22051/07 e Korolev v. Russia, 1JUL2010, Aplicação 25551/05).

No caso da legislação portuguesa essa sanção está configurada como um pagamento adicional, correspondendo ao custo da sobrecarga do sistema a que deu azo através de uma taxa sancionatória excepcional (artº 531º do NCPC).

O presente recurso afigura-se-nos como um dos casos em que a parte não agiu com a prudência ou diligência devidas na medida em que o recurso se afigura parcialmente (na parte atinente à ilegitimidade, à prescrição e à junção de documentos) baseado, conforme o acima exposto, na ausência de fundamentos e sem qualquer suporte nas posições jurisprudenciais ou doutrinárias ou nos conceitos ou princípios, e por isso nessa parte manifestamente infundado; estando, assim, preenchidos os pressupostos legais para a aplicação de taxa sancionatória excepcional.

Tratando-se, porém, de uma sanção importa, antes da sua aplicação que se ofereça à parte possibilidade de defesa.

VII–Decisão.

Termos em que se decide:

– não admitir o recurso quanto ao decidido relativamente às excepções de ilegitimidade processual da Requerente e de prescrição das rendas, declarando, nessa parte, o trânsito em julgado do despacho recorrido;
– não admitir a junção dos documentos apresentados pela Apelante com a sua alegação;
– confirmar o despacho recorrido na parte em que decidiu não haver lugar à suspensão da instância;
– alterar a matéria de facto nos termos acima descritos;
– confirmar o despacho recorrido na parte em que deferiu a providência requerida;
– conceder à Apelante o prazo de 10 dias para se pronunciar quanto à aplicação de taxa sancionatória excepcional.

Custas, da apelação, pela Requerida.


Lisboa, 19DEZ2017


                                                                                  
(Rijo Ferreira)                                                                                 
(Afonso Henrique)
(Rui Vouga)   

                                                                               

[1]–porquanto se entende que satisfaz minimamente o ónus de alegação a simples indicação de jurisprudência que consagre solução diversa da que foi seguida na decisão recorrida.
[2]–salvo outra indicação, toda a jurisprudência dos tribunais nacionais referida, pode ser consultada em www.dgsi.pt.