Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
351/13.4GALNH.L1-5
Relator: FILIPA MACEDO
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INCUMPRIMENTO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/17/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: SUMÁRIO elaborado pelo/a Relator/a
- Necessidade de cumprimento do art.º 495.º n.º 1 do CPP;

- Incumprimento de obrigação decorrente do Plano de Inserção Social;

- Alteração do referido preceito pela Lei n.º 48/07, de 29/08;

- A falta de audição pessoal do arguido constitui nulidade insanável do art.º 119.º al.ª c) do CPP.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA

            I – RELATÓRIO:

1.– No processo supra referido do Tribunal Judicial da Lourinhã foi proferido Despacho pelo Mm.º Juiz, em 18/11/2014, a fls 454, que indeferiu a promoção constante de fls 453 e que propunha se procedesse à audição do condenado, nos termos e para os efeitos do art.º 495.º n.º 1 do CPP.

É do seguinte teor, tal despacho:

( … )  Dado que é do meu conhecimento funcional que o condenado se encontra em prisão preventiva pela prática de factos que, a provarem-se, configurarão a prática do mesmo tipo de crime durante o prazo de suspensão, bem como o incumprimento das condições da suspensão, sempre configuraria um acto inútil e inclusivamente violador da presunção de inocência no âmbito dos autos de inquérito em que o condenado está em prisão preventiva a sua audição e eventual revogação da suspensão da execução da pena. Termos em que se indefere a promoção que antecede. Notifique. ( … )

2. - Deste Despacho, recorreu a Magistrada do M.ºP.º, tendo apresentado motivações, das quais extraiu as seguintes “conclusões”:

( … )

1.Por sentença proferida em 8 de Abril de 2014, transitada em julgado, foi o arguido, Filipe, condenando pela prática, em concurso efectivo, autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.°, n.°s 1, ais. b), c) e d) e 2, do Código Penal e de um crime de injúria agravada, p. e p. pelo artigo 181.° com referência aos artigos 184.° e 132.°, n.° 2, al. I) do Código Penal, nas penas, respectivamente, de dois anos e seis meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período, embora com sujeição a regime de prova, que deverá versar essencialmente na vertente de educação cívica do arguido (e incluindo, se necessário e mediante o consentimento, o tratamento da dependência do álcool ou de qualquer outra adição de que o arguido padeça), e de noventa dias de multa, à taxa diária de seis euros, o que perfaz um total de quinhentos e quarenta euros e a que correspondem, subsidiariamente, sessenta dias de prisão.

2.Nos termos do plano de reinserção social do condenado, devidamente homologado, ficou o mesmo vinculado, entre o mais, a "comparecer nas consultas dos serviços do IDT - equipa de tratamento de Torres Vedras, comparecendo nas consultas que lhe forem agendadas e manter o tratamento".

3.No relatório de incumprimento, datado de 6 de Novembro de 2014, refere-se, entre o mais, que o condenado "Compareceu apenas a uma consulta em Julho de 2014, nos serviços do IDT -Equipa de Tratamento de Torres vedras, tendo faltado à seguinte, em Setembro. Mantinha um elevado padrão de consumo de bebidas alcoólicas, que condicionavam a adoção de um comportamento ajustado, nomeadamente com a ofendida".

4.Face ao teor de tal relatório, pelo Ministério Público foi promovido que, tomando em consideração que o condenado não compareceu a uma consulta no mês de Setembro, nos serviços do IDT -Equipa de Tratamento de Torres Vedras e não justificou tal falta, a que acresce o facto de manter um elevado padrão de consumo de bebidas alcoólicas   -   em   momento   anterior   a   ser preso preventivamente -, fosse designada data para a audição do condenando, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 495.° do Código de Processo Penal.

5.Pelo Mmo. Juiz a quo foi proferido o seguinte despacho: "Dado que é do meu conhecimento funcional que o condenado se encontra em prisão preventiva pela prática de factos que, a provarem-se, configurarão a prática do mesmo tipo de crime durante o prazo de suspensão, bem como o incumprimento das condições da suspensão, sempre configuraria um acto inútil e inclusivamente violador da presunção de inocência no âmbito dos autos de inquérito em que o condenado está em prisão preventiva a sua audição e eventual revogação da suspensão da execução da pena. Termos em que se indefere a promoção que antecede".

6.Nos termos do artigo 56.°, n.° 1, al. a) do Código Penal: "A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social"

7.A referida promoção do Ministério Público para a designação de data para a audição do condenado, foi fundada, apenas e só, no incumprimento de uma obrigação decorrente do plano de reinserção social.

8.Ao proferir o despacho recorrido, em nossa opinião, o Mmo. Juiz do Tribunal a quo, a coberto de que a audição do aqui condenado configuraria "um acto inútil" (o que, desde logo, não se vislumbra em que fundamento se pode invocar tal) e, bem assim, que seria violador do princípio da presunção da inocência do arguido no âmbito do processo de inquérito, efectua, ele próprio, um juízo de prognose antevendo a condenação de Filipe no processo de inquérito à ordem do qual se encontra preso preventivamente!

9.Como é bom de ver, pelo Ministério Público não foi efectuada qualquer consideração relativamente aos factos que se encontram em investigação, nem o poderia ser, na medida em que o artigo 56.°, n.° 1, al. b) do Código Penal, refere-se a crime pelo qual venha a ser condenado, o que não sucedeu.

10.Assim, tudo visto e ponderado, somos de opinião que o despacho recorrido deverá ser substituído por outro que designe data para a audição do condenado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 495.°, n.° 1 do Código de Processo Penal.

  Pelo exposto, deve ser concedido provimento ao recurso. ( …)

3. – O arguido Filipe nada respondeu.

4. – Neste Tribunal, o Digno P.G.A. emitiu “ parecer”, concordando com a posição da sua Colega da 1ª instância.

5. – Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.

6. – O objecto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respectivas “conclusões”, é o seguinte:

- pretende a Magistrada do M.ºP.º, que seja dado cumprimento ao disposto no art.º 495.º n.º 1 do CPP.

II – CUMPRE APRECIAR: 

        Por sentença proferida em 8 de Abril de 2014, transitada em julgado, foi o arguido, Filipe, condenado:

- pela prática, em concurso efectivo, autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica agravada, p. e p. pelo artigo 152.°, n.°s 1, als. b), c) e d) e 2, do Código Penal,

- e de um crime de injúria agravada, p. e p. pelo artigo 181.° com referência aos artigos 184.° e 132.°, n.° 2, al. l) do Código Penal,

- nas penas, respectivamente, de dois anos e seis meses de prisão, cuja execução se suspende por igual período, embora com sujeição a regime de prova, que deverá versar essencialmente na vertente de educação cívica do arguido (e incluindo, se necessário e mediante o consentimento, o tratamento da dependência do álcool ou de qualquer outra adição de que o arguido padeça), e de noventa dias de multa, à taxa diária de seis euros, o que perfaz um total de quinhentos e quarenta euros e a que correspondem, subsidiariamente, sessenta dias de prisão.

        De acordo com o plano de reinserção social do condenado, devidamente, homologado, ficou o mesmo vinculado, entre o mais:

"a comparecer nas consultas dos serviços do IDT - equipa de tratamento de Torres Vedras, comparecendo nas consultas que lhe forem agendadas e manter o tratamento", o que sucederia ao longo da execução da medida.

         No relatório de incumprimento, datado de 6 de Novembro de 2014, é referido que o condenado:

 "Compareceu apenas a uma consulta em Julho de 2014, nos serviços do IDT - Equipa de Tratamento de Torres vedras, tendo faltado à seguinte, em Setembro. Mantinha um elevado padrão de consumo de bebidas alcoólicas, que condicionavam a adoção de um comportamento ajustado, nomeadamente com a ofendida.

( … )

Na sequência da não comparência daquele em entrevista com os nossos serviços a 29 de Outubro, contactámos a ofendida que nos informou que Filipe se encontra preso preventivamente desde 25 de Outubro.

Confirmámos esta informação junto do Estabelecimento Prisional de Leiria, que confirmou a situação de reclusão de Filipe à ordem do processo n.° 234/14.OGALNH, indiciado da prática de crime de violência doméstica".

       Face ao teor de tal relatório, pelo Ministério Público foi promovido que, tendo em consideração, que o condenado não compareceu a uma consulta no mês de Setembro, nos serviços do IDT - Equipa de Tratamento de Torres Vedras e não justificou tal falta, a que acresce o facto de manter um elevado padrão de consumo de bebidas alcoólicas - em momento anterior a ser preso preventivamente - fosse designada data para a audição do condenando, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 495.° do Código de Processo Penal.

    Porém, pelo Mm.º Juiz “a quo” foi proferido o seguinte despacho: "Dado que é do meu conhecimento funcional que o condenado se encontra em prisão preventiva pela prática de factos que, a provarem-se, configurarão a prática do mesmo tipo de crime durante o prazo de suspensão, bem como o incumprimento das condições da suspensão, sempre configuraria um acto inútil e inclusivamente violador da presunção de inocência no âmbito dos autos de inquérito em que o condenado está em prisão preventiva a sua audição e eventual revogação da suspensão da execução da pena. Termos em que se indefere a promoção que antecede".

     Ora, o regime substantivo da revogação da suspensão da prisão é definido pelo artigo 56.° do Código Penal, nos seguintes termos:

"1 - A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado:

"a) Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de reinserção social; ou

"b) Cometer crime pelo qual venha a ser condenado, e revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas.

"2 - A revogação determina o cumprimento da pena de prisão fixada na sentença, sem que o condenado possa exigir a restituição de prestações que haja efectuado".

     Por outro lado, o caminho processual para a aplicação do aludido regime substantivo da suspensão é definido no artigo 492° e segs do Código de Processo Penal.

     Verifica-se, que a promoção do Ministério Público para a designação de data para a audição do condenado, funda-se no incumprimento de uma obrigação decorrente do plano de reinserção social e não, pelo facto de, durante o período de suspensão da execução da pena de prisão, o condenando ter, eventualmente, incorrido na prática de crime.

     Quanto a este último aspecto, o relatório de incumprimento é claro ao referir que a averiguação da responsabilidade criminal do aqui condenado se encontra a ser averiguada em sede de inquérito, daí não se mostra verificado o circunstancialismo previsto na alínea b) do artigo 56.°, n.° 1 do Código Penal.

      Assim, ao proferir o Despacho recorrido, o Mm.º Juiz do Tribunal “a quo”, a coberto de que a audição do aqui condenado configuraria "um acto inútil", o que, desde logo, não se apura em que fundamento se pode invocar tal e, bem assim, de que tal seria violador do princípio da presunção da inocência do arguido, no âmbito do processo de inquérito, no qual o condenado se mostra preso preventivamente, efectua um juízo de prognose de condenação de Filipepela prática dos factos, que se encontram em investigação no processo de inquérito à ordem do qual se mostra preso preventivamente.

     Realmente, na promoção do M.ºP.º não é feita qualquer consideração aos factos, que se encontram em investigação, nem o poderia ser, na medida em que o artigo 56.° n.° 1 al. b) do Código Penal, refere-se a crime pelo qual venha a ser condenado, o que não sucedeu.

                                                   ***

O princípio do contraditório, consagrado no nº 5, do artigo 32º, da CRP, garante ao arguido (e bem assim aos demais intervenientes) o direito de aduzir as suas razões e juntar provas sobre todas as questões, quer de facto, quer de direito, que lhe digam respeito e se mostrem relevantes para a decisão.

         Dispunha o nº 2, do artigo 495º, do CPP, na redacção anterior à alteração introduzida pela Lei nº 48/07, de 29/08, que depois de recolhida a prova e antecedendo parecer do Ministério Público e audição do condenado o tribunal decidia sobre a falta de cumprimento dos deveres, regras de conduta ou outras obrigações impostos como condição da suspensão da execução da pena de prisão.

         Após a alteração mencionada, com efeitos a partir de 15 de Setembro de 2007, esta norma mantém a exigência da recolha da prova, emissão de parecer pelo Ministério Público e audição do condenado, introduzindo a novidade de esta audição ser agora efectuada na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão.

       Da conjugação do preceito constitucional com o estabelecido no nº 2, do artigo 495º referido (em ambas as versões) tem forçosamente de se concluir que importa assegurar o direito de audição ao arguido, bem como o princípio do contraditório, sob cominação de violação dos direitos de defesa constitucionalmente consagrados.

        Tem sido constante a jurisprudência no sentido da imperatividade da audição do arguido antes da decisão sobre a revogação da suspensão da execução da pena (ainda que o fundamento seja a prática de crimes durante o período da suspensão) seja por directa observância do estabelecido no artigo 495º, nº 2, do CPP, ou por força do preceito constitucional retro mencionado, com o escopo de dar cumprimento ao princípio do contraditório – vd., designadamente, Ac. R. Coimbra de 30/04/2003, CJ, 2003, 2, pág. 50; Ac. R. de Lisboa de 01/03/2005, CJ 2005, 2, pág. 123 e bem assim Ac. R. de Coimbra de 07/05/2003, Proc. nº 612/03, Ac. R. de Évora de 06/07/2004, Proc. nº 1270/04-1; Ac. R. do Porto de 31/05/2006, Proc. nº 0640033, Ac. R. de Coimbra de 16/01/2008, Proc. nº 21/03.1GTGRD-A.C1, Ac. R. de Coimbra de 05/11/2008, Proc. nº 335/01.5TBTNV-D.C1 e Ac. R. de Lisboa de 30/06/2009, Proc. nº 2782/03.9TDLSB-5, in www.dgsi.pt. e deste entendimento partilhamos.

        E, ao enunciar que o condenado tem de ser ouvido na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, a disposição legal mencionada impõe a necessidade de o condenado se encontrar pessoalmente perante o julgador, consagrando uma regra geral aplicável ainda que inexista acompanhamento por técnico, sendo que a referência a este é, tão só, no sentido de que, quando o acompanhamento existe, o técnico também tem de estar presente na audição presencial e não que, quando não existe o acompanhamento a audição não se exige presencial - neste sentido da imposição da audição pessoal e presencial, vd. Ac. R. Coimbra de 16/01/2008, supra referenciado.

A falta de audição pessoal e presencial do arguido constitui nulidade insanável, nos termos do artigo 119º, alínea c), do CPP.

       Deste modo, importa declarar nulo o Despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que designe data para a audição do condenado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 495.° n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.

III – DECISÃO:

   Pelo exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

a) conceder provimento ao recurso, declarando nulo o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que designe data para a audição do condenado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 495.° n.°s 1 e 2 do Código de Processo Penal.

b) sem custas. 

              Lisboa, ______________________________

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                                     Filipa de Frias Macedo;

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                                          Artur Vargues.