Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1922/12.1TJLSB.L1-6
Relator: REGINA ALMEIDA
Descritores: ACIDENTE DOLOSAMENTE PROVOCADO
SERVIDOR DO ESTADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/22/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - Servindo a viatura de arma de agressão, esse facto não descaracteriza o acidente de viação como dolosamente provocado, ainda que a vítima seja um agente da PSP em exercício de funções.
- Existindo norma que impõe ao Estado o pagamento da remuneração ao seu servidor, sem contrapartida deste, e de despesas hospitalares, em resultado de acidente, tem aquele o direito de ser indemnizado do que despendeu.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Parcial: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA:



I – RELATÓRIO:



I.1- O Estado, representado pelo MºPº, intentou a 31.02.12 acção declarativa com processo comum e forma sumária, contra «L... Companhia de Seguros, SA», pedindo a condenação da Ré a pagar ao A. a quantia de € 15.387,02, acrescida dos juros vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde 3 de Agosto de 2011.

Em síntese, alega que a 6 de Janeiro de 2010, no exercício das suas funções, a Agente da Polícia de Segurança Pública (PSP) C... foi atingida pelo veículo de matrícula 87-DQ-01, conduzido por B..., quando este pretendia pôr-se em fuga. Como consequência, a Agente da PSP sofreu várias lesões, tendo sido assistida em Centro Hospitalar e sujeita a intervenção cirúrgica, determinando-lhe as lesões 215 dias de doença, com incapacidade para o trabalho, e que durante o período que não esteve ao serviço, a PSP pagou-lhe, sem contrapartida, a quantia de € 11.054,80 e suportou despesas com o tratamento médico da Agente, no valor de € 4.332,22.

Mais alega que pela prática dos factos relativos à mesma Agente, foi o referido B... condenado no crime de resistência e coacção sobre funcionário, e que á data dos factos o veículo de matrícula 87-DQ-01, era propriedade do «BANCO BPI, S.A.» e a responsabilidade por danos causados a terceiros com o aludido veículo encontrava-se transferido para a Ré. 

Citada, a ré contestou, alegando, em resumo, que a situação ocorrida não configura um acidente de viação, antes se tratando de um roubo de carro e sequestro do respectivo condutor a que se seguiu a agressão a dois agentes da autoridade, e que a garantia do seguro não abrange danos provocados por carros usados como arma de crimes e muito menos se destina a reforça de verbas do Estado.

Mais alega que a PSP não sofreu qualquer prejuízo por ter pago vencimento aos seus guardas no período de incapacidade laboral, porquanto não admitiu um novo agente para o lugar da sinistrada e não incorreu em despesas com eventual trabalho suplementar por outros agentes para substituição da ferida.

Realizou-se audiência prévia, tendo-se procedido à prolação de despacho saneador, fixada á causa o valor de 15.387,02 €, à identificação do objecto do litígio com fixação dos factos assentes por acordo, e à enunciação dos temas da prova.

Procedeu-se a julgamento, após o que foi proferida sentença datada de 18.02.15, na qual, conhecendo-se de facto e de direito, se concluiu com esta decisão: “…decide-se condenar a Ré «L... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.» no pagamento ao Autor ESTADO PORTUGUÊS (POLÍCIA DE SEGURANÇA PÚBLICA) da quantia de € 15.387,02 acrescida de juros de mora, contados desde 3 de Agosto de 2011, contados à taxa legal de 4% ao ano.”.

I.2- Apelou a ré seguradora, terminando as alegações recursivas com estas conclusões:

1º.-O caso em apreço nestes autos trata de um crime violento por roubo de um automóvel com o dono amordaçado no seu interior e com os ladrões a roubarem-lhe dinheiro de um multibanco;
2º.-Por isso, foram chamados 2 polícias, que não passaram de aprendizes, nem tinham a cabeça no lugar;
3º.-Então, os polícias fizeram qualquer sinalefa aos ladrões;
4º.-Só que, os ladrões, para se verem livres dos polícias, arrancaram com o carro a grande velocidade contra eles, arrastando um umas dezenas de metros e atirando com o outro ao ar;
5º.-Ora, isto é exactamente o que fará ou faria qualquer terrorista ao pegar em qualquer automóvel e entrar com ele dentro de um centro comercial cheio de gente, ou dentro de uma igreja com os fiéis a fazerem as suas orações;
6º.-E será ou poderá ser exactamente o mesmo que faria ou fará qualquer pessoa que queira vingar-se de qualquer acto que tenha como injusto para ele;
7º.-Foi também isso que se verificou com o acto terrorista, praticado por ordem do ditador líbio Kadhafi, contra um avião comercial cheio de centenas de pessoas;
8º.-Assim, em qualquer dos casos, quer a situação concreta do carro utilizado contra polícias que queriam prender os ladrões, tal como um automóvel usado para fazer vinganças ou praticar actos terroristas, tal como na situação do avião destruído, quaisquer máquinas de automóveis ou de aviões são só e apenas armas de guerra;
9º.-Logo, não pode aqui falar-se em “utilização de veículos”, ou “condução de veículos”, nem em contrato de seguro a favor de terceiros ou em natureza de garantia social;
10º.-De qualquer modo, a actuação dos polícias pareceu uma simples brincadeira de crianças, com um a ser arrastado algumas dezenas de metros e o outro a ser atirado ao ar;
11º.-Essa actuação não pode qualificar-se senão como actuação negligente, senão mesmo criminosa;
12º.-Consequentemente, a culpa do sucedido aos polícias recai apenas e só sobre estes e reflexamente sobre o Estado;
13º.-Acresce que o Estado não sofreu e não provou quaisquer prejuízos, pois limitou-se a pagar o que sempre pagou e pagaria, sem acréscimo de despesas, não tendo sequer que pagar subsídios de refeição e similares, nem pagar a si próprio, contratando com o próprio, quaisquer despesas hospitalares.

I.3-Contra-alegou o MºPº defendendo a confirmação da sentença apelada.
Por não haver razões que a tal obstem, impõe-se conhecer do objecto do recurso.

II – FUNDAMENTOS:

            II.1 – de facto:

A 1ª instância deu como provados os seguintes factos, não impugnados:

1.No dia 6 de Janeiro de 2010, pelas 15h40m, nas imediações da Estrada do Paço do Lumiar, em Lisboa, os arguidos J... e B... cercaram-se da viatura automóvel “Volvo V 50”, com a matrícula 87-DQ-01, e conduzida por N..., seu legítimo detentor.
2.Aproveitando-se do facto de N... ter imobilizado a viatura e com o propósito de o forçarem a ir a um multibanco levantar dinheiro, os arguidos introduziram-se na referida viatura, exibindo para o efeito a N... uma navalha com a lâmina aberta, tendo esta cerca de 10/12 cm de comprimento.
3.Uma vez dentro da viatura, o arguido J... ocupou um dos lugares traseiros, e o arguido B... sentou-se no lugar do condutor, enquanto N... permanecia, de mãos atadas com a fita de um dos cintos de segurança da viatura, no lugar do passageiro dianteiro.
4.O arguido B... colocou a viatura em marcha na direcção da Rua Padre Américo, local onde acabou por parar o veículo, defronte de uma dependência do Banco Montepio.
5.O arguido B..., levando consigo dois cartões bancários pertença de N..., saiu da viatura e caminhou até à ATM exterior do Banco Montepio, onde efectuou dois levantamentos, regressando depois à viatura, cujo motor havia deixado ligado, e retomou o lugar do condutor.
6.Quando fechava a porta do lugar do condutor, B... foi surpreendido pela presença de dois agentes da PSP, L... e C..., que haviam sido alertados por um transeunte que havia assistido à abordagem que J... e B... efectuaram a N....
7.A Agente C..., procurando evitar a fuga de J... e B..., acercou-se da viatura.
8.Verificando a sua presença e com o fito de não ser detido, B... acelerou e guinou o volante da viatura, logrando assim direccioná-la contra a Agente C..., vindo a atingi-la na perna esquerda, num primeiro momento, e, seguidamente, a projectá-la para o solo, através do embate imprimido pela porta do condutor, que permanecia aberta.
9.J... e B... saíram do local e acabaram por abandonar a viatura na Praça Rocha Martins, no interior do Bairro Horta Nova, de onde iniciaram fuga apeada, vindo posteriormente a ser detidos por outros agentes da 3.ª Divisão da PSP de Lisboa.
10.A Agente da PSP C... estava devidamente uniformizada com a farda da Polícia de Segurança Pública, que o arguido B... viu, bem sabendo que aquela pertencia a tal corporação e que se encontrava no exercício das respectivas funções de autoridade pública.
11.Como consequência directa e necessária da factualidade acima descrita, sofreu a Agente da PSP C... traumatismos craniano, da coluna cervical, coccígeo e do ombro esquerdo.
12.Lesões pelas quais foi assistida no Centro Hospitalar Lisboa Norte (Hospital de Santa Maria) e, posteriormente, no Hospital da Ordem Terceira, onde foi sujeita a intervenção cirúrgica (Artroscopia, Bursectomia Acromial e Acromioplastia) por Síndrome Conflito Subacromial do ombro esquerdo.
13.As referidas lesões determinaram-lhe ainda 215 dias de doença com incapacidade para o trabalho, e só curaram em 10 de Setembro de 2010, com uma Incapacidade Permanente Parcial de 4,9 %.
14.À data dos factos, o mencionado veículo automóvel “Volvo V 50”, com a matrícula 87-DQ-01, era propriedade do BANCO ..., e a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o aludido veículo encontrava-se transferida para a Ré, através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º 9929317.
15.A Polícia de Segurança Pública pagou à Agente C..., durante o período referido em 13., e sem qualquer contrapartida, a importância de € 11.054,80, discriminada da seguinte forma:
 Vencimento - € 6.111,60;
 S.S.F. Segurança - € 1.200,31;
 Subsídio de refeição - € 918,05;
 Subsídio de fardamento - € 88,35;
 Duodécimos S/Natal - € 600,98;
 Duodécimos S/Férias - € 600,98;
 Subsídio de Turno - € 1.110,76;
 Suplemento de Patrulha - € 423,77.
16.O Estado / PSP suportou as seguintes despesas com o tratamento médico da Agente C...:
 Hospital de Santa Maria - € 147,00;
 Cirurgia ombro esquerdo - € 2.898,58;
 Despesas com Actos Médicos - € 1.121,36;
 Consultas no Posto Clínico / PSP - € 165,28.

            II – de direito:

A questão essencial que importa resolver tem a ver com o enquadramento do evento descrito do qual resultaram danos - se o mesmo pode ser considerado, como foi na sentença, como acidente de viação doloso, o que a recorrente não admite.

Um acidente de acidente tem necessariamente na sua génese, a circulação / utilização na via pública de um veículo terrestre motorizado, actividade esta potencialmente provocadora de danos pessoais ou materiais.

O regime do sistema de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel (DL nº291/2007, de 21.8 que transpôs parcialmente para a ordem jurídica interna as Directivas nº2005/14/CE, do Parlamento Europeu, e nº2000/26/CE), estabelece no art.15º/2 que “o seguro garante ainda a satisfação das indemnizações devidas pelos autores de furto, roubo, furto de uso de veículo ou de acidentes de viação dolosamente provocados, sem prejuízo do disposto no número seguinte”.

E o art.27º/1-a) estatui o direito de regresso da empresa de seguros “contra o causador do acidente que o tenha provocado dolosamente”.

Entendido no sentido mais geral de fenómeno ou acontecimento anormal decorrente da circulação de um veículo, o acidente tanto pode ocorrer por negligência como pode derivar de uma conduta voluntária, directamente dirigida a evento, isto é, pode ser provocado dolosamente, o que acontecerá, por exemplo, se alguém dirige voluntariamente o veículo que conduz contra outro veículo para lhe provocar danos, ou se quer atropelar e atropela um peão.

O legislador quis, assim, salvaguardar os interesses dos lesados e ao ponto de vista destes, e tanto no caso de acidente estradal negligentemente provocado como naquele causado dolosamente, é idêntico o interesse do lesado em ser indemnizado dos danos sofridos. A seguradora chamada a indemnizar poderá mais tarde exercer o seu direito de regresso contra o causador do acidente.[2]

É esse o interesse que a lei quis proteger, o que já se verificava na legislação anterior (art.6º/2 do DL nº408/79, de 25.09, e art.8º/2 do DL nº522/85, de 31.12).

A situação retratada nos autos enquadra-se perfeitamente num acidente de viação dolosamente provocado. Na realidade, estando provado que J... e B... se introduziram na viatura de matrícula 87-DQ-01 contra a vontade do seu condutor, e ao serem surpreendidos por dois agentes da PSP que se acercaram da viatura, com o fito de não ser detido, B... acelerou e guinou o volante da viatura, logrando assim direccioná-la contra a referida agente, vindo a atingi-la na perna esquerda, num primeiro momento, e, seguidamente, a projectá-la para o solo, através do embate imprimido pela porta do condutor, que permanecia aberta, o que é isto senão um acidente de viação dolosamente provocado?
Utilizando a circulação do veículo automóvel como meio de se pôr em fuga, o B... projectou-o contra a agente policial, atingindo-a, não podendo ignorar que com esta conduta iria provocar ferimentos na pessoa atingida, o que veio a acontecer, agindo, pois, dolosamente.

Como tal, dúvidas não restam de que a descrita conduta voluntária do condutor cai na previsão do citado art.15º/2. 

Argumenta a recorrente que o veículo utilizado serviu apenas como arma de agressão, não enquadrável em casos de “circulação de veículos terrestres a motor”, comparando com situações em que terroristas entram num automóvel lançando-o contra fiéis dentro de uma igreja, ou de um ditador que lançou uma bomba contra um avião de passageiros.

A comparação é exagerada e menos felizes são as considerações tecidas sobre o comportamento dos agentes de autoridade chamados ao local, que no ver da recorrente deveriam ter ficado inactivos, e não reagirem de imediato á situação de sequestro com que se confrontaram, crime pelo qual foram o condutor e o seu companheiro condenados.

O veículo foi instrumento para a prática de crimes de roubo e sequestro (Ac. da Relação de Lisboa a fls.247 a 333), e foi também um instrumento de agressão a agente de autoridade, com o fito de condutor e acompanhante escaparem á detenção. Mesmo servindo a viatura de arma de agressão, esse facto não o descaracteriza como acidente dolosamente provocado, como afirma a recorrente.
A sua utilização ilícita na via pública com essa intenção provocando o condutor ferimentos na agente da PSP, leva-nos, pois, a caracterizar tal conduta voluntária como acidente de viação doloso.

E essa caracterização também não é afastada pelo facto de a vítima ser um agente da PSP em exercício de funções, que naturalmente envolvem risco profissional.

Neste particular, carece de razão a recorrente seguradora, como lhe falece também razão quando diz que o Estado não sofreu prejuízos, limitando-se a pagar o que sempre pagou.

Sobre esta questão, discorreu-se na sentença: “A Ré invoca que a PSP não sofreu qualquer prejuízo por ter pago vencimento aos seus guardas no período de incapacidade laboral.

Dispõe o artigo 15.º do Regime Jurídico dos Acidentes em serviço e das doenças profissionais no âmbito da Administração Pública, aprovado pela Lei n.º 64-A/2008, de 31 de Dezembro (posteriormente alterada pela Lei n.º 11/2014, de 6 de Março e pela Lei n.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro): “No período de faltas ao serviço, em resultado de acidente, o trabalhador mantém o direito à remuneração, incluindo os suplementos de carácter permanente sobre os quais incidam descontos para o respectivo regime de segurança social, e ao subsídio de refeição”.

Da factualidade dada como provada resulta que o lesado sofreu várias lesões que determinaram assistência hospitalar, bem como incapacidade para o seu trabalho, o que motivou que o Autor tivesse procedido ao pagamento das quantias referidas na matéria de facto provada a título de vencimento, subsídios e suplementos, bem como despesas de tratamento médico.

Cabe assim à Ré L... – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. reembolsar o Estado Português das quantias por este pagas em consequência do acidente de viação (e de trabalho) de que aquele é exclusivamente responsável.”.

Também aqui nenhum reparo merece a sentença. Existindo norma que impõe ao Estado o pagamento da remuneração ao seu servidor, sem contrapartida deste, e de despesas hospitalares, em resultado de acidente, tem ele efectivamente o direito de ser indemnizado do que despendeu (item II.1-15 e 16).

Á seguradora recorrente cabe assegurar essa indemnização, em decorrência directa do regime do seguro obrigatório, ainda que ao tomador do seguro nenhuma responsabilidade possa ser imputada.
Deste modo, improcedem na íntegra as conclusões da apelante.
                                              
III – DECISÃO:

Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pela ré apelante.
                                     
                     
Lisboa, 22.10.2015


Regina Almeida
Manuela Gomes
Fátima Galante


[1] Relatora: Regina Almeida – Desembargadoras Adjuntas: Drªs Maria Manuela Gomes e Fátima Galante

[2] Cfr. Ac. STJ de 01.04.93 (BMJ 426/140), Ac.STJ de 18.12.96 (CJstj III/96-211) e Ac.R.P. de 18.01.01 (CJ I/01-188)

Decisão Texto Integral: