Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1247/21.1T8AMT.L1-2
Relator: LAURINDA GEMAS
Descritores: INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/10/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário: I - É inepta a Petição Inicial em que o Autor, com vagas e confusas alegações de facto e de direito, ainda que complementadas pelos documentos juntos, peticiona a condenação da Ré a indemnizá-lo, alegando, em suma, que um determinado banco, que veio entretanto a ser adquirido e a fundir-se com aquela, intentou contra si, em 2005, uma execução, fundada no incumprimento de contrato de mútuo com hipoteca do veículo cuja aquisição foi financiada,  vindo a ser aí paga a dívida e a exequente a proceder à penhora do veículo, o que configurou um enriquecimento sem causa, tendo aquele sofrido danos, designadamente o da privação do uso do veículo – cf. art. 186.º, n.º 2, al. a), do CPC.
II - Sendo substantivamente irrelevantes os escassos factos alegados, não permitindo compreender, com o mínimo de rigor, o que poderá ter sucedido na ação executiva, é inevitável concluir que se está perante a falta e até ininteligibilidade da causa de pedir, ficando mesmo a dúvida sobre se o Autor pretendia prevalecer-se do instituto do enriquecimento sem causa (ante as normas jurídicas expressamente invocadas) ou da responsabilidade civil (face à invocação de danos e ao pedido de indemnização formulado).
III - Ante esta ineptidão da Petição Inicial, nem há que equacionar da contradição do pedido com a causa de pedir, que se desconhece verdadeiramente qual possa ser, tão só registar que as razões de direito centradas no enriquecimento sem causa não se coadunam com um pedido de indemnização (propriamente dita), já que um hipotético direito a indemnização dos supostos danos invocados haveria de fundar-se na responsabilidade civil e, se existir, não pode haver enriquecimento sem causa, ante a natureza subsidiária deste instituto.
IV - Para que o processo possa prosseguir, dando-se como sanado o vício conducente à nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial nos casos da alínea a) do n.º 2 do art. 186.º do CPC, será sempre indispensável que dos articulados (incluindo a contestação e a resposta ou réplica) resulte percetível para todos (incluindo para o Tribunal) qual é o pedido, bem como, o que pode ser mais difícil, quais são os factos essenciais ou substantivamente relevantes que integram a causa de pedir. Sendo evidente, no presente processo, que a Ré não alcançou qual possa ser a causa de pedir, alegando mesmo o seu desconhecimento a esse respeito, incluindo quanto a um suposto enriquecimento por parte da então exequente, não se pode considerar sanada a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial (cf. art. 186.º, n.º 3, do CPC). Tão pouco tendo cabimento um convite a aperfeiçoar uma petição inicial inepta.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
JR, Autor na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, intentou contra BANCO SANTANDER CONSUMER PORTUGAL, S.A., interpôs o presente recurso de apelação do despacho saneador que julgou verificada a ineptidão da Petição Inicial e a consequente nulidade do processado, absolvendo a Ré da instância.
Na Petição Inicial, apresentada em 02-09-2021, o Autor pediu que a Ré fosse condenada nos seguintes termos:
«1. No pagamento de todos os danos patrimoniais e morais descritos nos artigos 80º e 93º num total de €22.000,00 euros (vinte e dois mil euros);
2. Ainda condenada a R. no complemento do pagamento da “privação do uso do veículo” desde a presente data até integral cumprimento, no montante descrito no artigo 85º de € 6.642,00 euros ainda de valores complementares em execução de sentença».
Alegou, em síntese, os seguintes factos (para melhor compreensão, indica-se os artigos respetivos da PI, acrescentando-se o que consta entre parenteses retos e o sublinhado):
1. A alegação dos factos que importam à presente demanda não prescinde de um breve introito (Palavra Prévia) acerca da legitimidade passiva da ora R.
2. Diga-se, assim e antes de mais, que em 1996 foi fundado o Interbanco S.A., entidade que operava na área do financiamento ao consumo.
3. Posteriormente, no ano de 2004, foi criado o Santander Consumer Finance S.A.
4. Em 2007, porém, foi criado o Banco Santander Consumer Portugal, S.A., o qual resultou da aquisição do Interbanco S.A. e da consequente fusão com o Santander Consumer Finance S.A. em Portugal.
5. Desta forma, o Banco Santander ficou com a totalidade do capital social do Santander Consumer Finance em Portugal.
6. Ora, o Banco Santander Consumer Portugal, S.A., doravante identificado como R. opera na área do financiamento ao sector automóvel, na área dos bens de consumo, cartões de crédito, co-branded e empréstimos pessoais.
7. Destarte, sempre que, ao longo da presente petição, for feita referência a factos praticados pelo Interbanco S.A., devem os mesmos ter-se como imputados à R. (Banco Santander Consumer Portugal, S.A.).
(…) 17. A 13 de maio de 1998, A. e R. celebraram “Contrato de Financiamento para Aquisição a Crédito”,
18. Ao qual foi atribuído o número 1998.009012.01.
19. Tinha esse contrato por objeto o veículo da marca Renault, modelo Clio, com matrícula …-…-… [o Autor juntou como doc. 3 cópia de contrato de financiamento].
20. Acontece, porém, que, a dada altura, e por vicissitudes de que aqui não cabe curar, o A. incumpriu com o pagamento das suas prestações mensais.
21. Consequência desse incumprimento, a R. moveu contra o A. execução destinada a obter o pagamento das quantias em dívida,
22. tendo essa execução dado origem ao Processo Executivo …/….
23. Que correu termos no 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Felgueiras [o Autor juntou como doc. 4 cópia do respetivo requerimento executivo, do qual consta, além do mais, anexo em que foi indicado à penhora o veículo hipotecado de matrícula …-…-…].
24. Por via dessa execução, a R. peticionou do A. o pagamento da quantia de 21.648,00 €, relativa às mensalidades não pagas,
25. a quantia de 10.922,01 €, a título de juros moratórios calculados à taxa legal sobre cada uma das mensalidades até à data da propositura da execução, [perfazendo a quantia exequenda indicada o valor de 32.570,01 €]
26. e, ainda, todos os juros de mora vincendos calculados à taxa legal desde aquela data até efetivo pagamento.
27. Para o efeito, apresentou como título executivo um documento particular.
28. Por via de tal documento, a R. apresentou o Contrato celebrado com o A., de Financiamento para Aquisição a Crédito garantido por hipoteca constituída pelo devedor sobre o veículo ligeiro de passageiros suprarreferido.
29. A hipoteca estava inscrita no registo de automóveis.
30. Sendo que, a R. indicou para penhora o referido automóvel.
31. Aí chegados, o ora A. apresentou, então, os competentes embargos de executado, tendo alegado, tão-somente, a prescrição dos juros moratórios referentes às mensalidades compreendidas entre 25-06-1998 e 25-01-2002 (cfr. doc. n.º 1 [corresponde à cópia da petição de embargos com carimbo de entrada]).
32. O Tribunal, pronunciando-se acerca da invocada prescrição, entendeu julgá-la parcialmente procedente,
33. deixando claro que a Exequente, ora R., apenas poderia reclamar os juros vencidos correspondentes às mensalidades em dívida após 3 de julho de 2000 (cfr. doc. n.º 2 [trata-se de cópia da sentença proferida a 18-12-2007, no apenso de oposição à execução, na qual se identifica a Exequente como Interbanco, S.A.]).
34. Decidiu, assim, o Tribunal Judicial de Felgueiras da seguinte forma: “em face do exposto, julgamos parcialmente procedente a excepção da prescrição dos juros invocada pelo oponente e, em consequência, a exequente só pode reclamar os juros moratórios vencidos e vincendos relativos às mensalidades reclamadas e em dívida após 3 de Julho de 2000” (cfr. doc. n.º 2).
35. Aos valores referentes aos juros moratórios acima referenciados acresce, ainda, naturalmente, a quantia de 21.648,00 €, relativa às mensalidades não pagas.
36. Ora, na sequência das diligências de penhora efetuadas no âmbito daquele processo executivo, aquela quantia ficou integralmente satisfeita. [o Autor juntou, como doc. 5, a notificação do Banco Comercial Português, S.A., efetuada pelo Agente de Execução, no âmbito do referido processo executivo, a 01-04-2008, para penhora dos saldos de depósitos e valores mobiliários de que o Executado seja titular até ao montante de 36.804,24 €, estando identificado como exequente o Interbanco, S.A.; e o resultado de pesquisa efetuada, em 29-08-2008, pelo Agente de Execução, no âmbito referido processo executivo, na base de dados da Conservatória do Registo Automóvel de Lisboa relativa ao veículo automóvel hipotecado e indicado à penhora no requerimento executivo, da qual consta, além do registo da hipoteca, o registo de penhora efetuada numa outra execução intentada por terceiro]
37. Sucede, porém, que, não obstante ter sido satisfeita a dívida exequenda, a R. procedeu, ainda, à penhora do veículo que constituía o objeto do contrato de financiamento a que acima se aludiu.
38. A instância não serviu, então, apenas para satisfazer a dívida exequenda, como seria suposto.
39. Serviu, outrossim, para enriquecer a R. a expensas do A., ali Executado.
40. Não satisfeita com o cumprimento (coercivo) do contrato, a Ré entendeu, abusivamente e em manifestação de clara má-fé, privar o ora A. do veículo que, a muito custo, adquiriu e que constituía o objeto do contrato de financiamento.
41. Foi executada a garantia como ainda, foi paga integralmente a dívida.
42. Enriqueceu, assim, a R. e empobreceu, correlativamente, o A.
43. Assim, do ponto de vista do processo executivo, esta não deixou de ser uma execução injusta.
44. Alcançou-se com o processo executivo mais do que aquilo que resultava estabelecido no título executivo.
(…) 46. Tanto mais que, essa deslocação patrimonial, só se concretizou no momento em que ao Exequente foi facultada a disponibilidade das quantias obtidas na execução, ou quando muito quando tais quantias foram disponibilizadas na execução, sendo que, penhorou o automóvel do A. indicado à penhora no processo executivo além das quantias referidas.
(…) 50. Assim, o que pretende o A. é a restituição do valor obtido na execução, pois, não existe causa justificativa que validasse o recebimento da quantia que logrou receber a R. naqueles autos.
(…) 51. Os factos supra descritos são, com toda a evidência, reconduzíveis à norma contida no artigo 473.º do Código Civil, que dispõe, quanto ao enriquecimento sem causa, o seguinte (…)
(…) 54. No caso em apreço, temos como certo que houve excesso de penhora e que esse excesso de penhora redundou no enriquecimento, sem causa justificativa, da R.
55. Temos, também, como evidente que esse enriquecimento foi obtido à custa do ora A., que empobreceu na exata proporção em que enriqueceu a R.
(…) 57. No caso dos autos, a obrigação de restituir terá, então, por objeto o veículo da marca Renault, modelo Clio, com matrícula …-…-….
58. Sucede, porém, que a restituição do veículo não se afigura adequada a satisfazer as legítimas pretensões do A.
59. E isto porque já decorreu um considerável período temporal desde que o A. se viu privado do veículo que adquiriu,
60. sendo, portanto, de prever que este se haja deteriorado substancialmente.
61. Efetivamente, ainda que o veículo tenha sido zelosamente conservado,
62. realidade que o A. não conhece, nem tem a obrigação de conhecer,
63. há a considerar que se está na presença de um bem móvel facilmente deteriorável.
64. Atenta essa (mais do que previsível) desvalorização, julga o A. que a restituição deverá ser feita por referência ao valor de mercado do veículo à data em que foi penhorado pelo senhor Agente de Execução.
65. Sendo que, o valor de mercado do automóvel àquela data era de cerca de 10.000,00 €.
66. A viatura permanece até à data no património da R., sendo que dela continua a retirar, sem causa que o justifique, o correspondente proveito.
67. Estipula o artigo 473.º do Código Civil que aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou.
70. Assim, tem a R. a obrigação de restituir à A. tudo quanto obteve à custa desta.
(…) 72. No caso, inexiste a obrigação jurídica de pagar e a intenção de cumprir tal obrigação, por parte do devedor. Tanto mais que, o A. se viu privado da viatura e das quantias entregues no processo executivo.
73. Por parte do credor, inexiste qualquer causa justificativa para o recebimento do pagamento mantendo-se, desde logo, quer a obrigação de restituir o indevidamente recebido ou daquilo que foi recebido em vista de um efeito que não se verificou, quer a possibilidade de repetição do indevido.
(…) 76. Pois, no momento em que se efetivou o pagamento da dívida exequenda, ficou o A. desonerado de ficar privado da viatura.
77. Deveria ter ocorrido restituição do título da obrigação após a extinção da dívida (art.º 788.º do Cód. Civil).
  78. Assim, é devido ao A., a título de restituição do indevido, o valor de mercado da viatura que lhe foi penhora nos autos do processo executivo, ao valor naquela data.
79. Ademais, em virtude do sucedido, o A., desde então, já teve de adquirir uma viatura, mesmo que estivesse a passar por grandes dificuldades económicas advindas, essencialmente do processo executivo suprarreferido.
80. Sendo que, gastou nessa viatura o valor de 15.000.00 €, (quinze mil euros), gastos que não eram previsíveis e que indubitavelmente aconteceram em virtude do sucedido. (compra de outra viatura)
81. Pelo que, devem ser ressarcidos ao A., o valor despendido na compra desta viatura usada, tanto mais que, serviu o propósito a que se destinava a outra viatura indevidamente penhorada ao A.
82. Ademais, entre a compra da "nova" viatura e a penhora da anterior o A. esteve privado do uso de automóvel, num período de tempo não inferior a 300 dias.
83. Tendo nesse hiato temporal, circulado de táxis e transportes públicos no percurso casa-trabalho e trabalho-casa, bem como para todas as demais deslocações pessoais e familiares.
(…) 85. Assim sendo, tendo em conta a experiência de vida e a factualidade descrita e documentada na presente ação, entendemos que a média de 22,14 € por dia, por cada um dos 300 dias passados (desde o acidente até à propositura da presente ação), será justa para compensar a privação do uso do veículo, perfazendo a quantia total de 6.642,00 € (seis mil seiscentos e quarenta e dois euros).
86. Pois, certo é que o A. usava/usa a viatura (seja qual for) para se deslocar para o seu local de trabalho, necessita da viatura para dar apoio à família, bem como, para todo o tipo de atividade lúdicas e desportivas que usualmente se praticam.
(…) 88.  Assim, quanto aos danos morais, importa realçar que o A., desde a penhora da viatura se viu privado de circular, por um período de tempo, mesmo que a tivesse pago integralmente. Viu-se privado do dinheiro da execução e da viatura.
89. As canseiras só aumentaram. As constantes deslocações, a procura incessante de meios de transporte para acautelar a sua presença nos locais necessários e os constantes telefonemas e cartas dirigidas à R. sem sucesso, causaram ao A um sofrimento atroz de injustiça.
90. A procura de novo carro, o medo de passar por tudo novamente e a descrença nas instituições bancárias e na justiça causaram um sofrimento atroz na qualidade de vida deste.
91. Ademais, toda a situação criou um quadro depressivo no A. que, inclusive lhe acarretou problemas familiares.
92. Certo é também que, o A. tinha e tem uma ligação efetiva muito forte com o seu veículo, sempre cuidou da sua manutenção, com o maior dos cuidados, na marca, mantendo a mesma sempre em perfeitas condições.
93. Sendo que, pela sua gravidade, os danos morais invocados pelo A., devem merecer a tutela do direito, nos termos do artigo 496.º do Cód. Civil que se provam com o consequente relatório médico, e que se cifram no montante de 7.000,00 € (sete mil euros).
94. Pelo exposto, entende o A., estarem verificados os pressupostos do enriquecimento injustificado da R., do qual depende a obrigação de indemnizar, pelo que, no essencial, deve proceder a presente ação.
A Ré foi citada e apresentou Contestação, na qual se defendeu por exceção e por impugnação, de facto e de direito, requerendo que fosse:
i) Julgada procedente a exceção dilatória de incompetência territorial ordenando a remessa dos autos para o Tribunal competente, cf. artigos 102.º, 103.º, 576.º n.º 2 e 577.º alínea a), todos do CPC, e;
ii) Julgada inepta a petição inicial, devendo ser nulo todo o processado, e absolvido o R. da instância, conforme os artigos 186.º, 576.º, n.º 2 e 577.º, alínea b), todos do CPC, ou se assim não considerar;
iii) Absolvido o R. do pedido por ser parte ilegítima nos termos do artigo 576.º n.º 2 do CPC, ou se caso assim não se entender;
iv) Julgada a presente ação improcedente por não provada e consequentemente absolver o R. do pedido;
v) Condenado o A. em litigância de má fé;
No tocante à ineptidão da Petição Inicial, a Ré defendeu, em síntese, que, sendo formulado na Petição Inicial um pedido de indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, onde se inclui um pedido de indemnização por dano de privação do uso do veículo, não se compreende a invocação do enriquecimento sem causa, que implica o pedido de restituição do valor do empobrecimento e não um pedido de indemnização, como é próprio da responsabilidade civil, existindo uma contradição intrínseca entre a causa de pedir e o pedido, que os torna ininteligíveis.
A Ré invocou ainda a sua ilegitimidade, alegando, em suma, que nada recebeu na ação executiva, como até resulta da Petição Inicial, e que, entretanto, por contrato celebrado com a Fénix Cartera SARL em 22-12-2007, foi objeto de cessão o crédito relativo ao contrato de financiamento em apreço.
Mais invocou a prescrição do suposto crédito (por força do disposto no art. 482.º do CC), salientando também que o Autor não indicou em momento algum da Petição Inicial quais os valores que em concreto considera terem sido penhorados em excesso na execução, nem alegou factos dos quais resulte que a Ré recebeu determinadas quantias e em que datas, não tendo a Ré conhecimento de quaisquer valores possam ter sido efetivamente recebidos após a cessão de créditos (conforme doc. 1), que incluiu o referido contrato (de financiamento), operada em 22-12-2007.
Por impugnação motivada, alegou designadamente ter apurado que, quando foi tentada a apreensão do veículo hipotecado, em procedimento cautelar, se verificou que o mesmo se encontrava parcialmente destruído por ter sido interveniente em acidente de viação ocorrido no dia 06-02-1999, nunca tendo sido efetuada a recuperação da viatura, a qual não chegou a ser penhorada no processo executivo, continuando a estar registada em nome do Autor (conforme doc. 2 que junta).
Convidado a pronunciar-se (cf. despacho de 07-01-2022), o Autor respondeu alegando, no que ora importa, que compulsada a Contestação da Ré, se verifica ter sido interpretada convenientemente a Petição Inicial, pelo que o vício se deverá considerar suprido, nos termos do art. 186.º, n.º 3 do CPC.
Em 29-04-2022 foi proferido o despacho saneador recorrido cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Pelo supra exposto, nos termos do art. 186.º, n.º 2, alínea a) e b) e art. 278.º, n.º 1, alínea b) CPC, julgo verificada a ineptidão da petição inicial e em consequência, anulo todo o processo de determino a absolvição da Ré da instância.
Custas pelo Autor, sem prejuízo do apoio judiciário.
Registe e notifique.”
Inconformado com esta decisão, veio o Autor interpor recurso de apelação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões (sublinhado nosso):
I. No dia 2 de maio de 2022 foi o Autor notificado do despacho saneador proferido no âmbito do processo supra referenciado no qual foi julgada verificada a ineptidão da petição inicial e em consequência, foi anulado todo o processo e determinada a absolvição da Ré da instância.
II. O Autor, inconformado com a decisão acima transcrita e com a fundamentação que a sustenta, dela vem pelo presente recorrer, o que o faz com os seguintes termos:
III. O pensamento do autor é perfeitamente inteligível, pretende a restituição/indemnização fundada no instituto do enriquecimento sem causa, sendo o pedido, na sua óptica, consequência daquela pretensão que decorre da causa de pedir. Ser ressarcido, na justa medida, pelo indevido recebimento por parte da Ré dos valores que recebeu na execução n.º 47673/05.4YYLB e que empobreceu o Autor na mesma proporção.
IV. Não se verificando uma falta de nexo lógico entre tal pedido e a causa de pedir, que os mesmos não se negam reciprocamente, nem que tal pedido tem uma premissa oposta. Tal contradição só ocorre quando se verifique uma contradição ou incompatibilidade formal entre o pedido e a causa de pedir reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico entre os dois termos da pretensão que nem sequer permita formular um juízo de mérito positivo ou negativo sobre a mesma. O que no caso concreto não ocorre.
V. Não obstante, segundo a doutrina e jurisprudência tradicional, nos termos do artigo 186.º n.º 3 do C.P.C., a ineptidão por falta ou ininteligibilidade do pedido e causa de pedir consubstancia nulidade sanável. Nunca leva imediatamente à ineptidão da PI. Na pior das hipóteses deveria o douto Tribunal ter convidado o Autor ao aperfeiçoamento da petição inicial, nos termos do artigo 6.º, n.º 2 do CPC - Nessa esteia, sumariou o TRE a 12 de junho de 2021, processo 112/20.4T8TNV-E1.
VI. Mesmo que esta contradição existisse, jamais poderia o Tribunal recorrido julgar verificada a ineptidão da petição por ininteligibilidade sem convidar o Autor ao aperfeiçoamento. Pelo que, mal andou o despacho recorrido ao decidir-se pela ineptidão.
VII. Ademais, o excesso de penhora foi alegado na petição inicial, diferentemente do que consta no despacho recorrido, salvo melhor opinião. Veja-se o que consta dos n.ºs 37, 41., 57., 58., 64., 65. e 78.
VIII. Também foram alegados factos relacionando o excesso de penhora e o empobrecimento do Autor, daí se ter alegado a compra necessária e inadiável de unia nova viatura e os custos com a mesma, vejam-se os n.ºs 79, 80. e 81. da PI.
IX. Como ainda, a compensação pela privação do uso do automóvel, diretamente relacionado com o empobrecimento do Autor, vejam-se os n.ºs 85., e 86. da PI.
X. Foi essa relação entre o empobrecimento e o excesso de penhora alegado na PI que levou ao pedido feito, o que demonstra ainda mais que, não existe uma incompatibilidade entre a causa de pedir e o pedido feito, muito menos, será uma incompatibilidade reveladora de uma absoluta falta de nexo lógico, quando o pedido e a causa de pedir se neguem reciprocamente. A única capaz de gerar ineptidão da petição inicial.
XI. Reconduziu-se a petição inicial ao instituto do enriquecimento sem causa, alegando-se para o efeito, o excesso de penhora e que esse excesso de penhora redundou no enriquecimento sem causa justificativa para a recorrida e que culminou no empobrecimento do Autor, porquanto estar impossibilitada a responsabilidade pelos danos causados pela Exequente ao Executado prevista no artigo 866.° do CPC, porquanto não ter havido oposição à execução que funda a presente pretensão e, inevitavelmente, a sua procedência.
XII. Bastando para o efeito a verificação cumulativa de quatro requisitos como se alegou no n.º 53 da PI — “... a) a existência de um enriquecimento; b) que ele careça de causa justificativa; c) que o mesmo tenha sido obtido à custa do empobrecimento daquele que pede a restituição; d) que a lei não faculte ao empobrecido outro meio de ser restituído/indemnizado.”. Alegou-se nos n.ºs 66, 70, 72, 73, 76 e 77 da PI o enriquecimento indevido da Recorrida.
XIII. O ónus da alegação foi cumprido pelo Autor, porquanto se alegou um enriquecimento injustificado da Ré à custa do Autor. Não sendo necessário alegar a “a conduta que lhe é concretamente imputada”.
XIV. Ademais, a deslocação patrimonial invocada que sustenta o enriquecimento sem causa, só se concretizou quando à exequente foi facultada a disponibilidade das quantias obtidas na execução e ainda a viatura que foi alvo de penhora. Só nesse momento pode aferir da subsidiariedade do enriquecimento sem causa, e nesse momento não tinha qualquer outro meio para desfazer aquela deslocação patrimonial. E nesse sentido aponta o Acórdão do TRL de 16 de janeiro de 2018, processo 1301/12.0TVLSB.L1-1. Pelo que, não se pode impedir o recurso à acção de enriquecimento sem causa com fundamento na violação do carácter subsidiário da mesma.
XV. De resto, face ao alegado, a Ré compreendeu toda a causa de pedir, como os pedidos são consequência dessa causa de pedir sustentada no enriquecimento sem causa. Nomeadamente, a sua relação com a medida de empobrecimento e o seu enriquecimento injustificado.
XVI. Não se pode concluir que, in casu, se alegou uma causa de pedir incompatível com os pedidos formulados e que a Ré não a compreendeu adequadamente.
XVII. O pedido indemnizatório foi equitativo e baseou-se na medida do empobrecimento do Autor alegada na PI, pelo que nunca seriam incompatíveis a causa de pedir e os pedidos.
XVIII. Pelo que, deve a decisão recorrida ser revogada e ser ordenado o prosseguimento dos autos com a prolação do despacho de identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova e termos subsequentes.
Termina o Apelante pugnando pela revogação da decisão recorrida, ordenando-se o prosseguimento dos autos com a prolação do despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova e termos subsequentes.
Foi apresentada alegação de resposta, em que a Ré defende que seja negado provimento ao recurso, concluindo nos seguintes termos (sublinhado nosso):
A - O Tribunal “a quo”, em consequência da contradição existente entre o pedido e causa de pedir, entendeu que a petição inicial é inepta tendo em consequência anulado todo o processado e absolvido o réu da instância.
B - A petição inicial tem de respeitar todos os requisitos constantes do artigo 552º e seguintes do CPC.
C - Ora, o objeto do processo é delimitado pelo Autor na petição inicial.
D - Porquanto é com base no pedido e causa de pedir que o Réu compõe toda a sua defesa.
E - Pelo que o artigo 186º do CPC constituí um mecanismo de defesa do Réu, evitando situações de anarquia processual e impondo requisitos mínimos para a continuação da demanda.
F - A ineptidão da petição inicial constitui exceção dilatória nominada cuja consequência passa pela anulação de todo o processado e absolvição do Réu da instância.
G - Dúvidas não podem existir de que o Tribunal “a quo” andou bem quando decidiu pela ineptidão da petição inicial.
H - Sendo que existe uma clara contradição entre o pedido e a causa de pedir.
I - Ora, ao longo de toda a petição inicial o Autor pugna pelo enriquecimento sem causa, no entanto, termina com pedidos indemnizatórios por danos causados.
J - É evidente a contradição existente, sendo que a causa de pedir para o enriquecimento sem causa é completamente distinta da causa de pedir da responsabilidade civil.
K - Veja-se que a causa de pedir na responsabilidade civil é o facto lesivo enquanto no enriquecimento sem causa será o contrato que lhe deu origem.
L - Dispõe o artigo 474º do código civil que “(…)”
M - Pelo que, da redação do artigo, apenas se pode concluir que o instituto do enriquecimento sem causa é subsidiário.
N - Saliente-se que a ineptidão da petição inicial é por regra insuprível, ou seja, o convite ao aperfeiçoamento apenas ocorre em situações de mero lapso e ou pequenas deficiências.
O - Veja-se que no presente caso não estamos perante um mero lapso e ou pequena deficiência.
P - O autor alega factos no sentido de um instituto – o enriquecimento sem causa.
Q - Embora, ainda assim de forma muito deficitária dado que se limita a alegações sem concretização dos factos constitutivos do direito a que se arroga.
R - E termina a petição com pedidos de indemnização.
S - Sendo que ao longo da petição inicial não alega factos suficientes e que possam ser apreciados com vista a determina se lhe assiste o direito a ser indemnizado.
T - Pelo que o ora Recorrido não pode concordar com o alegação do Recorrente.
U - Quando alega que o Tribunal “a quo” deveria ter convidado ao aperfeiçoamento nos termos e para os efeitos do artigo 6º do CPC.
V - Ademais, é unânime na jurisprudência que em casos de intangibilidade do pedido ou da causa de pedir a consequência seja a ineptidão da petição inicial.
W - Situação que se verifica no presente caso conforme decisão proferida pelo Tribunal “a quo”.
X - Estando a douta decisão recorrida em conformidade com as normas legais aplicáveis ao caso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
A única questão a decidir é a de saber se a Petição Inicial é inepta.
No despacho saneador recorrido, teceram-se, na fundamentação, as seguintes considerações (sublinhado nosso):
“Procurando apreciar a questão suscitada, cumpre salientar que ineptidão é um vício de conteúdo da petição inicial, que impede a função conformadora do objeto do processo.
No caso da causa de pedir, no dizer de Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em Código de Processo Civil Anotado, Volume, 1.º, 4.º edição, Almedina, pág. 373 e seguintes, a ininteligibilidade verifica-se sempre que o pedido não seja a consequência do instituto jurídico alegado na causa de pedir, isto é, que haja oposição entre o pedido e causa de pedir.
Ora, no caso vertente o excesso de penhora no âmbito de uma execução é manifestamente um caso de responsabilidade civil, a qual poderá ser simultaneamente do exequente (art. 819.º do CPC 2013), do agente de execução, ou até do Estado, por falta de controlo da execução, neste sentido, Ac. TRC de 13.05.2014, relatado por Inês Moura, Ac. RL de 09.07.2015, relatado por Ezaguy Martins, disponíveis em http://www.dgsi.pt.
O tribunal competente será o do lugar onde o processo de execução teve lugar e não o da sede da antiga exequente, carecendo de ser alegados os requisitos da responsabilidade civil previstos no art. 483.º do Cód. Civil.
Ora, caso vertente foram deduzidos pedidos próprios de uma obrigação de indemnização (art. 562.º do Cód. Civil), quando no âmbito do instituto do enriquecimento sem causa, o único pedido admissível é o da restituição do valor do empobrecimento, nos termos dos art. 473.º, n. 2 e art. 479.º, ambos do Cód. Civil, vg. Ac. TRC de 20.10.2015, relatado por Maria João Areias e disponível em http://www.dgsi.pt.
Logo, existe uma incompatibilidade entre a causa de pedir invocada (enriquecimento sem causa), e os pedidos invocados, pelo que se verifica uma ininteligibilidade da causa de pedir e uma contradição entre o pedido e a causa de pedir, que impede a definição do objeto do processo e o prosseguimento da causa.
Neste conspecto, note-se que apesar de o Autor considerar que a Ré compreendeu a petição inicial, é notório a dificuldade da mesma em compreender o valor do excesso de penhora (não alegado), a sua relação com a medida do empobrecimento, e qual a conduta que lhe é concretamente imputada a si ou aos seus representantes na execução (não alegada), pelo que não poderemos deixar de considerar que o Autor alegou uma causa de pedir incompatível com os pedidos formulados, e que o Réu não a compreendeu adequadamente.
Afigura-se deste modo, que ocorre uma ineptidão da petição inicial por ininteligibilidade e contradição entre a causa de pedir e o pedido, a qual é geradora de nulidade de todo o processo.
Neste conspecto, afigura-se-nos que o Autor deverá aproveitar o despacho como uma oportunidade, para estruturar novamente a sua causa de pedir, propondo a ação no tribunal competente e concretizando precisamente os fundamentos da causa de pedir, enquadrando os requisitos da responsabilidade civil, as datas e valores das penhoras, onde existiu excesso, alegando o motivo pelo qual o direito não se encontra prescrito (art. 482.º e 498.º, n.º 1 e 4 CPC), entre outros formulando os pedidos agora apresentados, e deduzindo subsidiariamente, o pedido de enriquecimento sem causa, pelo valor do empobrecimento, sob pena de improcedência por se demonstrar que poderia ter obtido a sua pretensão de outro modo, atento a natureza subsidiária do instituto invocado, nos termos do art. 474.º do Cód. Civil.”
Vejamos.
A nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial constitui uma exceção dilatória nominada, de conhecimento oficioso, conducente à absolvição dos réus da instância - cf. artigos 186.º, 196.º, 278.º, n.º 1, al. b), 576.º, n.ºs 1 e 2, e 577.º, al. b), todos do CPC.
Nos termos do art. 186.º, n.ºs 1 e 2, do CPC da petição, é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial, sendo inepta a petição “a) Quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”; b) Quando o pedido esteja em contradição com a causa de pedir; c) Quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis”.
De forma sintética, e tendo presente o disposto nos artigos 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, al. d), e 581.º, n.º 3 e 4, do CPC, podemos dizer que o pedido corresponde ao efeito jurídico que o autor pretende obter e a causa de pedir corresponde ao conjunto de factos jurídicos/factos essenciais ou factos substantivamente relevantes em que se fundamenta tal pretensão, o que significa que o autor deve concretizar os factos em que baseia a sua pretensão, em termos inteligíveis, não sendo suficiente o apelo a conclusões jurídicas, conceitos legais ou a invocação do direito sem indicação da sua origem. De referir que o conceito de causa de pedir acolhido no art. 186.º do CPC se reporta a um conjunto de factos essenciais, nucleares ou principais, não abrangendo os factos que, embora essenciais (em sentido amplo), são complementares ou concretizadores daqueles.
No tocante à falta ou ininteligibilidade da causa de pedir, lembramos, pela sua notável clareza, as palavras de Alberto dos Reis, no seu “Comentário ao Código de Processo Civil”, Vol. 2.º, Coimbra Editora, 1945, págs. 371-372 (anotação ao art. 193.º do Código então vigente), obra que, nesta parte, mantém plena atualidade. Explicava este autor que, tal como sucedia quanto à nulidade por “desconhecimento do pedido”, esta outra nulidade “pode cometer-se:
1) Por omissão;
2) Por obscuridade.
Com efeito, podem dar-se dois casos distintos: a) a petição ser inteiramente omissa quanto ao acto ou facto de que o pedido procede; b) expor o acto ou facto, fonte do pedido, em termos de tal modo confusos, ambíguos ou ininteligíveis, que não seja possível apreender com segurança a causa de pedir. Num e noutro caso a petição é inepta, porque não pode saber-se qual a causa de pedir.
Importa, porém, não confundir petição inepta com petição simplesmente deficiente. Claro que a deficiência pode implicar ineptidão: é o caso de a petição omissa quanto ao pedido ou à causa de pedir; mas aparte esta espécie, daí para cima são figuras diferentes a ineptidão e a insuficiência da petição. Quando a petição, sendo clara e suficiente quanto ao pedido e à causa de pedir, omite factos ou circunstâncias necessários para o reconhecimento do direito do autor, não pode taxar-se de inepta; o que então sucedeu é que a acção naufraga.
(…) Por vezes torna-se difícil distinguir a deficiência que envolve ineptidão da que deve importar improcedência do pedido. Há uma zona fronteiriça, cuja linha divisória nem sempre se descobre com precisão. São os casos em que o autor faz, na petição, afirmações mais ou menos vagas e abstractas, que umas vezes descabam na ineptidão por omissão da causa de pedir, outras na improcedência por falta de material de facto sobre que haja de assentar o reconhecimento do direito”.
Efetivamente, nem sempre é fácil distinguir uma petição inepta, por falta de causa de pedir, de uma petição deficiente, por insuficiência na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, somente no primeiro caso sendo aplicável o disposto no art. 186.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPC, com a consequente nulidade de todo o processo.
De referir ainda que a exceção dilatória da nulidade do processo por ineptidão da petição inicial é, na maior parte dos casos, insanável. Porém, nos termos do n.º 3 do art. 186.º do CPC, se o réu contestar, apesar de arguir a ineptidão com fundamento na alínea a) do n.º 2 anterior (falta ou ininteligibilidade da indicação do pedido ou da causa de pedir), a arguição não é julgada procedente quando, ouvido o autor, se verificar que o réu interpretou convenientemente a petição inicial. A este propósito, explicam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in “Código de Processo Civil Anotado”, Volume 1.º, 4.ª edição, Almedina, págs. 380-382) que isto dificilmente acontece no caso de falta da causa de pedir, referindo ainda que a possibilidade de aplicação deste normativo legal fica posta em causa pela limitação da réplica à função de resposta à reconvenção (e já não de ampliação da causa de pedir); assim, nas suas palavras, “(N)o novo código, a correção das deficiências da petição inicial só pode ser feita nos termos do art. 590.º, nºs 4 a 6, a convite do juiz ou, não tendo este lugar, por iniciativa do autor, tomada na audiência prévia ou, se esta também não tiver lugar, até ao despacho saneador, com aquiescência judicial (…). Mas esta correção só se pode fazer no âmbito da causa de pedir que a parte haja identificado, pelo que, cobrindo apenas os casos de deficiência, deixa de fora os de total ininteligibilidade da causa de pedir. Nestes casos, impossibilitada a correção na réplica do vício da petição inicial, mediante a alegação fáctica em falta, a consideração da imprescindibilidade do objeto do processo e das garantias da defesa levará, quase sempre, a ter por insanável a falta do pressuposto e à consequente absolvição da instância (…). Mas casos pode haver em que o entendimento expresso pelo réu equivalha à alegação fáctica mínima que o autor não fez na petição inicial, com ela ficando identificada a causa de pedir; o requerimento que o autor faça, dizendo ser esse o sentido dos factos obscuramente alegados na petição inicial, pode ser aproveitado, tal como a réplica, para sanar o vício, introduzindo a possibilidade do convite do juiz ao aperfeiçoamento mediante preenchimento da causa de pedir já identificada. O mesmo se diga, com verificação prática mais difícil, da falta da causa de pedir” (sublinhado nosso).
Também Alberto dos Reis, na obra citada, págs. 379-380, se referia à posição do réu perante uma petição inepta por “desconhecimento da causa de pedir”, referindo que a jurisprudência das cautelas aconselhava a que não se limitasse a arguir a ineptidão, para não correr o risco de ficar sem defesa se a arguição viesse a ser julgada improcedente; afirmava que o juiz não podia deferir a arguição de ineptidão sem ouvir previamente o autor, porque “pode suceder que o réu tenha dado à petição o seu verdadeiro sentido, e em tal caso não há motivo para o tribunal a considerar inepta. Se, apesar da obscuridade ou ambiguidade do pedido ou da causa de pedir, o réu pôde elaborar a sua contestação, isso quer dizer que lhe foi possível interpretar de certa maneira o pedido ou a causa de pedir; tudo está agora em saber se a interpretação dada pelo réu é exacta ou, noutros termos, se o sentido atribuído ao pedido ou à causa de pedir corresponde fielmente àquilo que o autor quis exprimir.
Em caso afirmativo, o juiz deve indeferir a arguição do réu; em caso negativo, deve deferi-la. Na verdade, se, ouvido o autor, este declarar que a sua petição tem o sentido que o réu lhe atribuiu, a obscuridade ou confusão fica desfeita. O pedido ou a causa de pedir passará a ter, por acordo das partes, a significação e o alcance expresso na contestação. Se, pelo contrário, o réu tiver atribuído à petição sentido diferente do que o autor quis exprimir, a ineptidão torna-se inevitável”.
Portanto, para que o processo possa prosseguir, dando-se como sanado o vício conducente à nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial nos casos da alínea a) do n.º 2 do art. 186.º do CPC, será sempre indispensável que dos articulados (incluindo a contestação e a resposta ou réplica) resulte percetível para todos (incluindo para o Tribunal) qual é o pedido, bem como, o que pode ser mais difícil, quais são os factos essenciais ou substantivamente relevantes que integram a causa de pedir. Com efeito, constituiria ato inútil, em ostensiva violação do princípio da limitação dos atos (cf. art. 130.º do CPC), a realização pelo Tribunal de atos de instrução para depois proferir uma decisão de mérito, concluindo pela improcedência da ação em virtude da falta de alegação e prova de factos constitutivos do direito do autor (cf. artigos 5.º, n.º 1, 410.º e 411.º do CPC e art. 342.º do CC).
Quanto à contradição entre o pedido e a causa de pedir, continuamos a recordar as palavras de Alberto dos Reis, na obra citada, págs. 380-381: “a causa de pedir deve estar para com o pedido na mesma relação lógica em que, na sentença, os fundamentos hão-de estar para com a decisão. O pedido tem, como a decisão, o valor e o significado duma conclusão; a causa de pedir, do mesmo modo que os fundamentos de facto da sentença, é a base, o ponto de apoio, uma das premissas em que assenta a conclusão. Isto basta para mostrar que entre a causa de pedir e o pedido deve existir o mesmo nexo lógico que entre as premissas dum silogismo e a sua conclusão.
A petição inicial, para ser uma peça bem elaborada e construída, deve ter a contextura lógica dum silogismo, deve poder reduzir-se, em esquema, a um raciocínio, com a sua premissa maior (razões de direito), a sua premissa menor (fundamentos de facto) e a sua conclusão (pedido). O autor, ao preparar e organizar a petição, há-de raciocinar como raciocinará mais tarde o juiz, na sentença, para julgar procedente a acção. O esqueleto da petição terá de ser forçosamente um silogismo, sob pena de não poder desempenhar convenientemente a função que lhe é própria. Não quer isto dizer, é claro, que o silogismo apareça explicitamente enunciado no articulado; o que pretendemos significar é que, se a petição não puder transformar-se, em substância, num silogismo, se não tiver sido concebida e elaborada sobre a base dum silogismo mentalmente formulado, há-de ser fatalmente uma peça infeliz e comprometedora.
Pois bem. É da essência do silogismo que a conclusão se contenha nas premissas, no sentido de ser o corolário natural e a emanação lógica delas. Se a conclusão, em vez de ser a consequência lógica das premissas, estiver em oposição com elas, teremos, não um silogismo rigorosamente lógico, mas um raciocínio viciado, e portanto uma conclusão errada.
Compreende-se, por isso, que a lei declare inepta a petição cuja conclusão ou pedido briga com a causa de pedir.”
Há agora que transpor estas considerações para o caso dos autos, atentando na Petição Inicial, tendo presente que na sua interpretação, como das demais decisões judiciais, são aplicáveis, por força do disposto no art. 295.º do CC, as regras da interpretação das declarações negociais, valendo, por isso, aquele sentido que, segundo o disposto nos artigos 236.º, n.º 1, do CC, o declaratário normal ou razoável deva retirar das declarações escritas constantes do articulado. De referir ainda a relevância de que se revestem os documentos juntos pelas partes, não apenas no plano probatório, mas também para clarificar o sentido das alegações feitas nos articulados, podendo servir para colmatar algumas insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, conforme vem sendo pacificamente aceite pela jurisprudência – neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão do STJ de 07-11-2019, proferido na Revista n.º 6414/16.7T8VIS.C1.S1 - 2.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt, mormente a seguinte passagem do respetivo sumário: “I - A remissão para o teor de documentos juntos com a petição inicial pode servir para complementar a alegação de factos que sustentam o pedido.”
O Autor, de forma pouco clara, mas ainda assim inteligível, peticiona a condenação da Ré no pagamento de pagamento de indemnização por alegados danos patrimoniais e morais, incluindo o atinente à “privação do uso do veículo” de que é proprietário. Mas, desde já adiantamos, que não logramos descortinar qual possa ser a respetiva causa de pedir (nem identificamos causas de pedir subsidiárias), ou seja, quais os factos essenciais ou factos substantivamente relevantes em que se fundamenta tal pretensão. Aliás, mesmo as razões de direito invocadas como fundamento da ação estão expostas de forma confusa, com a citação de alguns artigos do Código Civil que dizem respeito a diferentes institutos, desde o enriquecimento sem causa (a que é dado maior destaque), ao cumprimento de obrigações e à restituição do respetivo título, e ainda à responsabilidade civil extracontratual.
Parece, é certo, que o Autor se pretende prevalecer daquele instituto, que se encontra consagrado nos artigos 473.º a 482.º do CC. Sendo abundante a doutrina e a jurisprudência a seu respeito, lembramos, quanto aos seus requisitos, as palavras de Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, págs. 454-456 (acrescentámos o sublinhado):
“A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à custa alheia pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos:
a) É necessário, em primeiro lugar, que haja um enriquecimento.
O enriquecimento consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, seja qual for a forma que essa vantagem revista. Umas vezes a vantagem traduzir-se-á num aumento do activo patrimonial (…); outras numa diminuição do passivo (…); outras, no uso ou consumo de coisa alheia ou no exercício de direito alheio, quando estes actos sejam susceptíveis de avaliação pecuniária (…); outras, ainda, na poupança de despesas (…);
b) A obrigação de restituir pressupõe, em segundo lugar, que o enriquecimento, contra o qual se reage, careça de causa justificativa – ou porque nunca a tenha tido ou porque, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido. (…)
c) A obrigação de restituir pressupõe, finalmente, que o enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem requer a restituição.
A correlação exigida por lei entre a situação dos dois sujeitos traduz-se, em regra, no facto de a vantagem patrimonial alcançada por um deles resultar do sacrifício económico correspondente suportado pelo outro. Ao enriquecimento injusto de uma pessoa corresponde o empobrecimento de outra.”
A este propósito, destacamos, na jurisprudência, a título meramente exemplificativo, o acórdão do STJ de 07-11-2017, proferido na revista n.º 2140/12.4TVLSB.L1.S1 - 1.ª Secção, sumário disponível em www.stj.pt, de que citamos a seguinte passagem (sublinhado nosso):
“I - O enriquecimento sem causa pressupõe que ocorra um enriquecimento (i.e. a obtenção de uma vantagem de cariz patrimonial), que este seja desprovido de causa justificativa (porque nunca a teve, por não se ter verificado o escopo pretendido ou, tendo-a inicialmente, entretanto a haja perdido, devido à supressão posterior desse fundamento) e que o mesmo haja sido obtido à custa de quem requer a restituição. O enriquecimento reputa-se sem causa quando o Direito não o aprove ou não consinta por inexistir uma relação ou um facto apto a justificar a deslocação patrimonial.
II - A obrigação de restituir tem como objeto a medida do enriquecimento, a qual corresponderá à diferença entre a situação real e atual do beneficiado e a situação (hipotética) em que ele se encontraria se não fosse a deslocação patrimonial operada.”
Mais lembramos que a natureza subsidiária da obrigação de restituir se encontra expressamente prevista na lei, dispondo o art. 474.º do CC, que “(N)ão há lugar à restituição por enriquecimento, quando a lei facultar ao empobrecido outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à restituição ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento.”
A este respeito, veja-se ainda o sumário do acórdão do STJ de 29-01-2014, proferido na Revista n.º 3354/05.9TBAGD.C2.S1 - 7.ª Secção, disponível em www.dgsi.pt:
“II - Pode formular-se para o caso de improcedência do pedido principal de restituição de uma quantia com fundamento na nulidade do mútuo o subsidiário de restituição de uma dada importância fundamentada no enriquecimento sem causa, instituto de cariz subsidiário. 
(…) IV - O requisito da «ausência de causa no enriquecimento» perfila-se como constitutivo do direito do autor que terá de o alegar e provar, a isto não obstando a circunstância de estarmos perante um facto negativo. 
V - O instituto do «enriquecimento sem causa» não visa reparar o dano sofrido pelo lesado (que é o escopo da responsabilidade civil) mas apenas o de eliminar o enriquecimento que o beneficiado obteve à custa deste; e tal enriquecimento corresponderá à diferença entre a situação real e actual do beneficiado e a situação hipotética em que ele se encontraria se não fosse a deslocação patrimonial operada.”
Atentando no que é alegado na Petição Inicial, não vislumbramos, nem, aliás, a Ré o descortinou, que possa ter existido uma qualquer situação propiciadora do enriquecimento desta, pois que não foi alegado que, na pendência da aludida ação executiva movida pelo Interbanco, S.A., a Ré chegou a assumir a posição de exequente e tivesse recebido qualquer quantia ou que a então exequente tivesse recebido algo mais para além da quantia exequenda. Note-se, que a Ré, na sua Contestação, na parte em que invoca a exceção de ilegitimidade, até alega que o contrato de financiamento foi cedido à Fénix Cartera SARL por contrato celebrado a 22-12-2007, nada tendo sido alegado, por qualquer uma das partes, que permita configurar um enriquecimento injustificado da Ré, designadamente que esta beneficiou de um aumento do ativo patrimonial, de uma diminuição do passivo, do uso ou consumo de coisa alheia ou do exercício de direito alheio, suscetíveis de avaliação pecuniária, de poupança de despesas …
O Autor, porventura para minimizar o risco de ser condenado como litigante de má fé, limitou-se a fazer algumas afirmações vagas e abstratas, alegando, no que ora importa, que o veículo automóvel hipotecado foi indicado à penhora, pela Exequente e que, na sequência das diligências de penhora efetuadas no âmbito daquele processo executivo - sem que tenha alegado que diligências foram essas -, a dívida exequenda ficou satisfeita; mas que, não obstante isso, a Ré “procedeu, ainda, à penhora do veículo que constituía o objeto do contrato de financiamento”.
Ora, esta afirmação é desprovida de sentido e conteúdo útil, não só porque nada foi alegado que permita considerar que a Ré fosse então exequente, mas também porque do próprio requerimento executivo junto pelo Autor resulta ter sido logo nomeado à penhora, como não podia deixar de ser (cf. art. 835.º, n.º 1, do anterior CPC), o veículo hipotecado, pelo que, das duas uma: ou o veículo foi penhorado e vendido e com o produto da venda foi paga (ainda que apenas uma parte) da quantia exequenda - o que não parece ser o caso, já que, se bem se percebe, o Autor continua a considerar-se proprietário do veículo (de cujo uso ficou alegadamente privado); ou o veículo não chegou sequer a ser penhorado.
Seja como for, a penhora nunca podia logicamente, nos termos da lei, ter sido efetuada pela parte, mas apenas pelo Agente de Execução (cf. art. 808.º do anterior CPC), havendo que interpretar o alegado na Petição Inicial (complementada pelos documentos juntos) como querendo significar que a penhora do veículo foi requerida pela então Exequente (que, repete-se, nada indica que seria a ora Ré), mas, na realidade, não chegou a ser efetuada (pelo menos o Autor não alega que o foi e dos documentos que junta nada indica, antes pelo contrário, que tenha sido penhorado o veículo hipotecado).
Assim, a alegação de que a ação executiva serviu para enriquecer a Ré a expensas do Autor constitui uma afirmação puramente conclusiva e genérica, estando a Petição Inicial desprovida de substrato fáctico que nos remeta para a figura do enriquecimento sem causa.
Tão pouco se poderá entender que a pretensão do Autor, a ser indemnizado, esteja fundada em factos subsumíveis à responsabilidade civil, mormente por factos ilícitos.
Efetivamente, conforme se infere do disposto no n.º 1 do art. 483.º do CC (nos termos do qual “(A)quele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”), para que alguém incorra em responsabilidade civil extracontratual, suportando a respetiva obrigação de indemnizar, é necessário que estejam verificados os seguintes pressupostos:
a) o facto voluntário do agente, conduta humana (que pode traduzir-se numa ação ou numa omissão) dominada ou dominável pela vontade;
b) a ilicitude desse facto, que pode revestir a modalidade de violação de direito alheio (direito subjetivo) ou de violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios (como é precisamente o caso das normas de Direito Estradal);
c) o nexo de imputação do facto ao lesante, ou culpa do agente, em sentido amplo, que se traduz num juízo de censura ou reprovação da sua conduta, e que pode revestir a forma de dolo ou de negligência;
d) o dano ou prejuízo;
e) o nexo de causalidade entre o facto praticado pelo agente e o dano sofrido pela vítima - estando consagrada no nosso ordenamento jurídico (cf. art. 563.º do CC) a doutrina da causalidade adequada (segundo a qual, nas palavras de Galvão Telles, “determinada acção ou omissão será causa de certo prejuízo se, tomadas em conta todas as circunstâncias conhecidas do agente e as mais que um homem normal poderia conhecer, essa acção ou omissão se mostrava, à face da experiência comum, como adequada à produção do referido prejuízo, havendo fortes probabilidades de o originar” - citado por Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Volume I, 4.ª edição, Coimbra Editora, pág. 578).
Atentando na Petição Inicial, é verdade que o Autor invocou danos, mas é também evidente que deixou de alegar os factos essenciais atinentes aos demais pressupostos da responsabilidade civil, designadamente o facto ilícito que a Ré possa ter praticado (por ação ou omissão). De referir que, no desenvolvimento hipotético do que o Autor parece afirmar, tal matéria poderia, quanto muito, reportar-se a uma penhora indevida, realizada após integral pagamento da quantia exequenda, o que, conforme bem assinala o Tribunal recorrido, seria passível de configurar um caso de responsabilidade civil, designadamente do exequente, do agente de execução ou até do Estado.
Mas, ante o cariz subsidiário do instituto do enriquecimento sem causa - que o Autor considera ser aplicável à situação que, de forma tão lacunar e confusa, descreve -, seria substancialmente incompatível alegar, do mesmo passo (e não como causa de pedir subsidiária), para fundar a obrigação pecuniária a que se julga com direito, por um lado, a falta de causa de um suposto enriquecimento da Ré e, por outro lado, uma atuação desta que a teria feito incorrer em responsabilidade civil.
Em conclusão, sendo inócuos e substantivamente irrelevantes os escassos factos alegados, não permitindo compreender minimamente o que poderá ter sucedido na ação executiva indicada, é inevitável concluir que se está perante a falta e até ininteligibilidade da causa de pedir. Pelo menos não logramos discernir qual possa ser, ficando-nos mesmo a dúvida sobre se o Autor pretendia prevalecer-se do instituto do enriquecimento sem causa (ante as normas jurídicas expressamente invocadas) ou da responsabilidade civil (face à invocação de danos e ao pedido de indemnização formulado). Por outras palavras, o Autor não alegou, de forma inteligível, os factos essenciais integrantes da causa de pedir, isto é, os factos substantivamente relevantes constitutivos do direito que se arroga, não tendo carreado para os autos matéria fáctica passível de ser subsumida na previsão das normas que enformam o instituto do enriquecimento sem causa ou do regime da responsabilidade civil.
Ante esta ineptidão da Petição Inicial, nem há que equacionar da contradição do pedido com a causa de pedir, que se desconhece verdadeiramente qual possa ser, tão só registar que as razões de direito centradas no enriquecimento sem causa não se coadunam com um pedido de indemnização (propriamente dita), já que um hipotético direito a indemnização dos supostos danos invocados haveria de fundar-se na responsabilidade civil e, se existir, não pode haver enriquecimento sem causa, o que o Autor/Apelante continua sem perceber, face às afirmações confusas feitas na sua alegação recursória (designadamente quando afirma que “pretende a restituição/indemnização fundada no instituto do enriquecimento sem causa” e que o “pedido indemnizatório foi equitativo e baseou-se na medida do empobrecimento do Autor alegada na PI”).
E não se diga que a Ré percebeu qual é a causa de pedir, sendo caso para aplicar o disposto no art. 186.º, n.º 3, do CPC. Pelo contrário, é evidente que a Ré não o alcançou, alegando mesmo o seu desconhecimento a esse respeito, designadamente quanto a um suposto enriquecimento por parte da então exequente, pelo que, na esteira das considerações supra, para as quais remetemos, não se pode considerar sanada a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial.
Finalmente, esclareça-se que nenhuma razão assiste ao Apelante quando aventa a possibilidade de um convite ao aperfeiçoamento da Petição Inicial. Com efeito, resulta claro da lei que não tem cabimento um convite a aperfeiçoar uma petição inicial inepta, conforme vem sendo afirmado pacificamente pela doutrina e na jurisprudência. Neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação de Coimbra de 18-10-2016, no processo n.º 203848/14.2YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt, cujo sumário, pelo seu interesse, se passa a citar: “Não é de convidar à correcção da petição inicial (nos termos do art. 590º, nºs 2, al .b), 3 e 4 do nCPC) quando a petição seja inepta nos termos do art. 186º do mesmo diploma, uma vez que só um articulado que não padeça dos vícios mencionados neste último preceito pode ser objecto desse convite à correcção e isto porque se a parte declinar tal convite tal comportamento de inércia não obsta a que a acção prossiga os seus termos, contrariamente à consequência para a ineptidão que é a de determinar a nulidade de todo o processo.” Portanto, apesar do carácter vinculado do despacho atinente ao aperfeiçoamento fáctico dos articulados, o mesmo não tem lugar quando o vício da petição inicial seja insanável, sob pena de violação do princípio dispositivo consagrado designadamente nos artigos 5.º, n.º 1, e 552.º, n.º 1, al. d), do CPC.
Assim, improcedem as conclusões da alegação de recurso, ao qual não pode deixar de ser negado provimento.
Vencido o Autor-Apelante, é responsável pelo pagamento das custas do presente recurso (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC). Porém, como beneficia do apoio judiciário, na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo (cf. decisão junta com a PI), não vai ser condenado a efetuar o respetivo pagamento (cf. artigos 1.º e 16.º da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, e artigos 20.º, 26.º e 29.º do RCP).
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III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Não se condena o Autor-Apelante no pagamento das custas do recurso, que são da sua responsabilidade, atento o apoio judiciário de que beneficia.
D.N.

Lisboa, 10-11-2022
Laurinda Gemas
Arlindo Crua
António Moreira