Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
42/17.7PDSXL.L1-5
Relator: ALDA TOMÉ CASIMIRO
Descritores: INJUNÇÃO
ADMOESTAÇÃO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/06/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: – Não se pode afirmar que o cumprimento de uma injunção, no âmbito de uma suspensão provisória do processo, impeça a aplicação e cumprimento de uma pena no mesmo processo por violação do princípio ne bis in idem.

– Significa a norma da alínea a) do nº 4 do art. 282º do Cód. Proc. Penal que o que foi pago, entregue ou feito, enquanto obrigação assumida pelo arguido no âmbito da suspensão provisória do processo, não pode ser “descontado” em pena que posteriormente venha a ser aplicada em processo que prosseguiu por falta de cumprimento de uma das injunções impostas.

– Ou seja, o que foi pago não pode ser descontado em multa que o arguido venha a ser condenado, tal como horas de trabalho voluntariamente prestado também não podem ser descontadas em eventual condenação em prestação de trabalho a favor da comunidade – recentemente foi ainda decidido em Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (nº 4/2017 de 27.04.2017) que a injunção de proibição de conduzir veículos com motor não pode ser descontada em posterior condenação da pena acessória com idêntico conteúdo.

– O citado nº 4 do art. 282º do Cód. Proc. Penal funda a respectiva estatuição na circunstância de a natureza da injunção não ser assimilável a uma pena.

– As expectativas comunitárias no que à prevenção geral respeita são elevadas. Com efeito, a necessidade de assegurar a segurança rodoviária é premente, considerando a existência de um sentimento de intranquilidade decorrente do incumprimento das normas estradais, visto como vulgar, por um significativo número de condutores. Também a consciência de que a condução automóvel é uma actividade perigosa para a vida e integridade física dos cidadãos, como se comprova pela elevada sinistralidade rodoviária verificada nas estradas portuguesas, aponta para a necessidade de assegurar a segurança rodoviária.
– A admoestação mostra-se insuficiente por defraudar as expectativas comunitárias, que são elevadas, no que à prevenção geral respeita, no tocante aos crimes que visam assegurar a segurança rodoviária, que geram sentimento de intranquilidade decorrente do incumprimento das normas estradais, visto como vulgar, por um significativo número de condutores e uma vez que a condução automóvel é uma actividade perigosa para a vida e integridade física dos cidadãos, mormente se o arguido agiu com dolo directo, a forma mais intensa de dolo.

- É entendimento geralmente aceite que com a admoestação, pelo seu carácter meramente simbólico, não se atingem os limiares mínimos de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa.

Relatório:

No âmbito do processo comum (em Tribunal Singular) com o nº 42/17.7PDSXL que corre termos no Juízo Local Criminal do Seixal (Juiz 2), do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi o arguido,
G. ,
condenado, como autor material de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do D.L. 2/98 de 3.01, na pena de admoestação.

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Sem se conformar com a decisão, o Ministério Público interpôs o presente recurso onde pede a revogação da sentença recorrida no que tange à medida concreta da pena.

Para tanto, formula as conclusões que se transcrevem:

1Impugna-se apenas a medida concreta da pena fixada pela Mma Juiz "a quo".

2Para a aferição da medida concreta da pena considera-se: a delimitação rigorosa da moldura penal abstractamente aplicável ao caso concreto, a fixação do grau de culpa do agente e a equação das exigências de prevenção social e especial que auxiliarão o julgador no âmbito da qualificação penal.

3O percurso conducente à fixação da pena concreta é ditado por regras e comandos normativos precisos e previstos no Código Penal.

4Partindo da factualidade apurada, o grau de ilicitude dos factos, a intensidade do dolo do agente, o grau de violação dos deveres impostos, as consequências graves da conduta do arguido e a sua situação pessoal e social, bem como as exigências de prevenção geral e especial, entende-se que o Tribunal "a quo" não doseou equilibradamente a medida concreta da pena aplicada (vd. art. 77º do Código Penal).

5Ainda que se concorde com o tipo de pena a aplicar (pena de multa), já não se concorda que a mesma possa ser substituída por admoestação, afigurando-se ser demasiado benévola a pena concretamente aplicada.

6Por outro lado não estão reunidos os pressupostos legais subjacentes à aplicação da admoestação in casu, já que, atendendo ao índice de criminalidade associada ao ilícito criminal rodoviário em Portugal e ainda à taxa de sinistralidade existente nas estradas portuguesas, afigura-se que a pena de admoestação não protege cabalmente o bem jurídico segurança rodoviária, para a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, nem acautela suficientemente as necessidades preventivas gerais.

7Com efeito, por um lado, os factos cometidos pelo arguido não são, de forma alguma, de escassa ou diminuta gravidade e, por outro lado, o tipo de crime em causa, atentas as necessidades de travar a acentuada sinistralidade que se verifica e para a qual a condução sem habilitação legal contribui em larga medida, hodiernamente tem vindo a gerar na sociedade um sentimento generalizado de repúdio; a aplicação da pena de admoestação, in casu, colocaria precisamente em causa as exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico e feriria inapelavelmente o sentimento jurídico da comunidade, tendo, consequentemente, havido, por erro de interpretação, uma errada aplicação do disposto no art. 60º, nº 2, do C. Penal.

8Por outro lado, o facto de o arguido ter cumprido uma das injunções impostas (entrega da quantia de € 400. a instituição de solidariedade social e por, em face da sua situação irregular em território nacional, não lhe ter sido possível o cumprimento do outro dever (inscrição em escola de condução), não permite concluir que tenha havido reparação do dano; no que tange ao cumprimento do primeiro dever, há que atender à jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2017, publicado no Diário da República nº 115/2017, Série I de 2017-06-16, onde se estipula que «Tendo sido acordada a suspensão provisória do processo, nos termos do art. 281º do Código de Processo Penal, com a injunção da proibição da condução de veículo automóvel, prevista no nº 3 do preceito, caso aquela suspensão termine, prosseguindo o processo, ao abrigo do nº 4, do art. 282º, do mesmo Código, o tempo em que o arguido esteve privado da carta de condução não deve ser descontado, no tempo da pena acessória de inibição da faculdade de conduzir, aplicada na sentença condenatória que venha a ter lugar.»

9 Se assim é para o caso de cumprimento de injunção análoga ao cumprimento de pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor, também raciocínio semelhante se deverá operar para o cumprimento de outros deveres no âmbito da suspensão provisória do processo, nomeadamente de entregas de valores monetários, os quais não deverão por qualquer forma ser considerados, em caso de prosseguimento dos autos para a realização de audiência de discussão e julgamento, na determinação das penas principais, nomeadamente de multa.

10A circunstância de o arguido não se ter inscrito em escola de condução, e ao invés do entendido pela Mma Juiz "a quo" apenas ao mesmo é naturalmente imputável, porquanto das duas uma ou está ilegal em território nacional e sem possibilidade de resolução no seu processo de legalização e, assim sendo, não deveria ter aceite a suspensão provisória do processo, porquanto já tinha previamente conhecimento de que não poderia cumprir essa mesma injunção; ou então teria que fazer todos os esforços para obter a sua legalização e assim conseguir a inscrição em escola de condução; o arguido não pode é aproveitar as duas circunstâncias: suspensão provisória do processo e não cumprindo uma injunção, ver-lhe atenuada a pena, descontando-se o valor pecuniário entregue e considerando-se com isso reparado o dano do seu acto ilícito.

11Este tipo de entendimento não viola os princípios "ne bis idem" nem da igualdade, porquanto, quanto ao primeiro havendo uma suspensão provisória de processo e, por força do não cumprimento de um dever, não é violado o principio "ne bis idem", já que inexistem dois julgamentos, com a suspensão provisória do processo é facultada ao arguido a composição consensual do litígio, que sempre o beneficiará nomeadamente em termos de registo criminal e custas que, e após não cumprimento de deveres, há que ultrapassar e seguir para uma fase litigiosa; quanto ao princípio da igualdade com a suspensão provisória do processo primordialmente até existirá uma desigualdade mas a seu benefício, se o mesmo não cumpre com o judicialmente determinado, por incúria sua, como ocorreu nestes autos (não se inscreveu em escola de condução porque não realizou as diligências necessárias à sua legalização em território nacional, ou então, sabendo que não poderia cumprir tal dever, não deveria ter aceite a suspensão provisória, e correndo o risco, só a si próprio se pode atribuir tal responsabilidade e, assim sendo, deve ser tratado, prosseguindo os autos, como qualquer outro arguido sujeito a julgamento.

12Não lhe poderá ser concedida qualquer atenuante por ter cumprido parcialmente os deveres.

13Ao entender como o fez a Mma Juiz "a quo" pela aplicação da pena de admoestação, violou a mesma os seguintes preceitos legais 40º, 60º, 70º, 71º todos do Cód. Penal.

14A decisão recorrida deve ser revogada nesta sede.
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Não houve contra-alegações.

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Nesta Relação, a Digna Procuradora-Geral Adjunta aderiu à posição expressa pelo Ministério Público junto da primeira instância quando apresentou o recurso.                         

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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Fundamentação.

Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos:
1. No dia 5 de Março de 2017 pelas 23h45m, na Rua F...A..., nesta cidade e comarca, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matricula 41… sem estar habilitado para tanto com carta de condução;
2.O arguido agiu de modo livre, deliberado e consciente, com conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida por lei

Mais se provou que:
3. O arguido não tem antecedentes criminais registados;
4.Vive com a mulher, despende EUR. 100,00 com a renda da habitação; ganham ambos cerca de EUR. 600,00;
5.No âmbito da suspensão provisória decidida nos presentes autos o arguido pagou EUR. 400,00 a favor da instituição de solidariedade social;
6.Confessou os factos de forma livre, integral e sem reservas;
7.Reside em Portugal há 3 anos e aguarda regularização da permanência em território nacional.

O Tribunal recorrido fundamentou a medida e substituição da pena como segue:
O crime de condução sem habilitação legal de automóvel é punido com pena de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.
No que concerne à escolha da pena, em concreto, dispõe o art. 70º do Código Penal que, se ao crime forem aplicadas em alternativa pena privativa e pena não privativa da liberdade, como é o caso dos autos, o tribunal dá preferência à pena não privativa da liberdade sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, previstas no art. 40º, já referido.
Tendo por base os princípios plasmados no art. 70º do Código Penal, pode concluir-se que a escolha da pena depende unicamente de considerações de prevenção geral e especial, nada relevando nesta sede a culpa do agente. A prevenção geral é entendida como prevenção positiva ou de integração, como reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; a prevenção especial de socialização no sentido de evitar o cometimento de futuros crimes pelo agente.
No caso dos autos, há que atender ao facto de o arguido não ter antecedentes criminais na data da prática dos factos pelo que se afigura suficiente a aplicação de uma pena de multa.
No que respeita à medida concreta da pena, o tribunal, nos termos do art. 71º/1 tem como limites, como já referido, a culpa do agente e as exigências de prevenção (geral e especial). Por outro lado, tem o tribunal que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo crime estejam a favor do arguido ou contra ele e que respeitam, genericamente, ao modo de execução do facto ilícito e suas consequências, à personalidade do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto e à falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
Verifica-se que o grau de ilicitude da conduta do arguido é médio/alto, atendendo à gravidade objectiva dos factos, devendo assinalar-se que o arguido conduzia na via pública um automóvel. É também média/alta a culpa do arguido, o que se retira do facto de saber que não podia conduzir sem para tal estar habilitado e no entanto ter persistido na intenção de praticar a conduta (dolo directo).
São médias as necessidades de prevenção geral no que ao crime em apreço respeita.
Quanto à prevenção especial, a mesma não se revela de grau especialmente elevado, face à ausência de antecedentes criminais na data em que os factos foram praticados.
Para a determinação do quantitativo diário da pena de multa atende-se á situação económico-financeira do arguido cujos elementos apurados são escassos apesar das diligências efectuadas. Por todo o exposto, considera-se adequada ao caso a aplicação ao arguido da pena de 50 dias de multa à taxa diária de EUR. 9,00.

Da admoestação
Dispõe o art. 60º do Código Penal (actual redacção) que se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação (nº 1).
A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que por aquele meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição (nº 2).
Assim, constituem pressupostos de aplicação da pena de admoestação: a) pressuposto formal - o tribunal em concreto, tenha fixado pena de multa em medida não inferior a 240 dias; b) pressuposto material - reparação do dano e entender o tribunal que por aquele meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
No que toca ao pressuposto material, é necessário que o tribunal possa concluir, consideradas as circunstâncias concretas do facto e do agente, "que a admoestação se revela um meio adequado e suficiente de realização das finalidades da punição. O que vale por exigir que o tribunal se convença, através da emissão de um juízo de prognose favorável, que o delinquente alcançará por tal via a sua (re)socialização; e ainda que a aplicação da mera admoestação não porá em causa os limiares mínimos de expectativas comunitárias ou de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico". - Figueiredo Dias, Direito Penal, As Consequências Jurídicas do Crime - Reimpressão, Coimbra Editora, 2005, p. 385;
Ora, entendeu o tribunal aplicar no caso pena de multa inferior a 240 dias. Não se verificaram danos para além daqueles que a norma pretende proteger com a incriminação, entendendo o tribunal que - tendo em conta a idade do arguido à data dos factos, o seu comportamento em audiência de julgamento, e a ausência de antecedentes criminais, - os factos objecto dos presentes autos integram um episódio ocasional na vida do arguido que não pretende repetir a prática de ilícitos criminais desta natureza, pelo que estão acauteladas as necessidades de prevenção especial e não são defraudadas as expectativas comunitárias no que à prevenção geral respeita.
Acresce que decorre da tramitação dos autos que o arguido no âmbito da suspensão provisória que foi decidida pelo Ministério Público, procedeu ao pagamento da quantia de EUR. 400,00 a favor de instituição particular de solidariedade social, como decorre de fls. 35 e o processo apenas prosseguiu pelo facto de o arguido não ter cumprido uma das injunções determinadas, no caso, inscrever-se em escola de condução.
Ora, o arguido tem nacionalidade brasileira, está em Portugal há 3 anos mas não tem ainda a sua situação de permanência em Portugal regularizada pelo que não pode cumprir a obrigação de se inscrever em escola de condução o que decorre desde logo do art. 18º/1 al. i) do RHLC (Regulamento da habilitação legal para conduzir previsto no DL nº 138/2012, de 05 de Julho), logo, apesar de ter aceite tal injunção, o incumprimento não lhe é materialmente imputável, porquanto o andamento do processo administrativo de regularização de permanência em território corre termos no SEF e não é totalmente controlado pelo arguido.
Em qualquer caso, não cabe a este tribunal nesta fase de julgamento ajuizar da regularidade da injunção aplicada porquanto tal juízo foi feito pelo despacho do JIC que deu a concordância à aplicação da referida suspensão provisória do processo.
No entanto, entende o tribunal ser relevante para avaliação das exigências de prevenção que no caso se fazem sentir apreciar a relevância do pagamento efectuado em sede de suspensão provisória do processo.
Diga-se, em abstracto, que no caso concreto, o facto de o arguido ter aceite a suspensão provisória do processo - caso tal pagamento não seja tido em conta nas exigências de prevenção para efeitos de aplicação a pena de admoestação - o coloca numa situação de desigualdade relativamente a outro arguido que não tivesse beneficiado de suspensão provisória do processo e que fosse submetido a julgamento, porquanto poder-lhe-ia em abstracto também ser aplicada uma pena de admoestação ma ainda que não fosse, a pena e multa não estaria associada ao cumprimento de qualquer outra obrigação (e certamente nenhuma que não pudesse cumprir).
Ou seja, globalmente o arguido é duplamente penalizado no caso concreto - caso não se atenda ao pagamento efectuado - e com referência aos mesmos factos.
Tal colide com principio ne bis in idem como melhor se explica num contexto similar no AUJ 4/2017 - Voto de vencido do Conselheiro Pires da Graça cujos fundamentos se acompanham na íntegra (naturalmente que a situação não é a mesma dos presentes autos - pelo que não se decide aqui contra jurisprudência fixada - mas a matéria tratada permite o recurso aos referidos argumentos).
Em suma, entende-se que se deve analisar o caso dos autos numa perspectiva de justiça material e desde logo referir que as injunções e regras de conduta são norteadas por exigências de prevenção. Em relação à pena aplicada a final no julgamento elas incidem sobre o mesmo objecto. Na axiologia do sistema deve considerar-se que se o legislador não se pronunciou em concreto sobre o desconto (ou no caso a compensação) a fazer na pena aplicada a final é porque tal matéria deve ser integrada pelos princípios gerais do processo penal.
Como se refere no art. 4º do Código de Processo Penal, nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas de processo civil que se harmonizem com o processo penal e na falta delas aplicam-se os princípios gerais do processo penal.
Neste âmbito, concorda-se com a ideia de que a atenção prioritária deve ser concedida a considerações de concreta justiça material no seio do sistema político criminal dirigido não a ilações tiradas dos dados pré-jurídicos ou do sistema formal legal.
A estes princípios vai beber o instituto jurídico do desconto previsto pelos artigos 80º e 81º do Código Penal. Aqui, a adopção e critérios de compensação de sacrifícios de natureza mais aritmética fará prevalecer as exigências de justiça material, ao passo que a adopção de critérios mais equitativos será mais própria de uma ideia de satisfação de exigência de prevenção, que se fazem prevalecer. Em alguns casos haverá coincidência entre exigências de justiça material e necessidades de prevenção e o sacrifício total da justiça material nunca favorece as últimas.
Como refere Maria da Conceição Ferreira da Cunha, citada no referido aresto (voto de vencido), o sacrifício implicado pelo cumprimento de uma medida processual é muito mais custoso para o agente do que o cumprimento de pena, devido à presunção de inocência nesta fase processual, à incerteza da situação e à possível convicção da injustiça do caso. Refere ainda: como se poderia entender que num estado de direito material que um agente fosse submetido pelos mesmos factos a uma duplicação e sacrifícios? E como se poderia justificar em termos de justiça relativa que um agente cujo processo tivesse um desenrolar mais lento ficasse prejudicado relativamente a outro cujo processo fosse mais rapidamente resolvido.
No caso, a compensação da injunção na pena deve atender ainda ao facto de a mesma ter sido cumprida e a suspensão provisória não ter sido revogado por motivos atinentes a essa mesma injunção. Foi precisamente este o caso dos autos. O arguido cumpriu uma das injunções, sendo que o incumprimento da segunda não está relacionado com um comportamento ou inércia do arguido.
Assim, entende-se que fazer tábua rasa desse cumprimento constituiria uma dupla penalização do arguido que o sistema jurídico-penal em que prevalece a justiça material não pode tolerar porque a dupla execução sancionatória da mesma conduta colide com os princípios constitucionais de adequação e da proibição de excesso agravando a responsabilidade do agente pelos mesmos factos dessa única conduta, no mesmo processo.
Por esse motivo, entendendo que pelo referido cumprimento estão asseguradas as exigências de prevenção nos presentes autos e deve aplicar-se no caso a pena de admoestação.
Face ao exposto, entende-se que a pena de admoestação realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição pelo que opta pela aplicação ao arguido da referida pena.

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Apreciando…

De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.

Assim, o Recorrente alega erro na substituição da pena de multa pela admoestação.

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O arguido foi condenado, como autor material de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art. 3º, nºs 1 e 2 do D.L. 2/98 de 3.01, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 9,00 €, substituída por admoestação.
Para tanto, considerou o Tribunal recorrido estarem verificados os pressupostos para a aplicação de pena de admoestação previstos no art. 60º do Cód. Penal: o pressuposto formal (que ao caso caiba pena de multa em medida não superior a 240 dias) e o pressuposto material (que o dano tenha sido reparado e que o Tribunal considere que por aquele meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição).
O pressuposto formal verifica-se de forma evidente e, relativamente à verificação de danos, tal como refere a sentença, não se verificaram outros que não aqueles que a norma pretende proteger com a incriminação.

Decidiu o Tribunal a quo que uma admoestação realizava de forma adequada e suficiente as finalidades da punição por duas ordens de razões:
- a idade do arguido à data dos factos, o seu comportamento em audiência e a ausência de antecedentes criminais, que levam à conclusão de que se tratou de um episódio ocasional, estando acauteladas as necessidades de prevenção especial e não se mostrando defraudadas as expectativas comunitárias no que à prevenção geral respeita;
- no âmbito da suspensão provisória decidida nos autos, o arguido cumpriu uma das injunções determinadas (doou 400,00 € a uma instituição particular de solidariedade social ) e não cumpriu a outra injunção por impossibilidade legal, pois que sendo um cidadão estrangeiro sem a sua situação legalizada no país não pode inscrever-se em escola de condução.
Relativamente à última razão, considerou o Tribunal a quo que aquele pagamento de 400,00 € tem que ser agora tido em conta sob pena de se ofender o princípio da igualdade (o arguido ficaria prejudicado relativamente a um outro que em igualdade de circunstâncias não tivesse sido alvo de uma suspensão provisória do processo) e o princípio ne bis in idem, por ser duplamente penalizado com referência aos mesmos factos. Refere o Tribunal a quo que tem que fazer-se justiça material, devendo por isso a injunção ser compensada na pena, sob pena de ofensa dos princípios constitucionais de adequação e de proibição do excesso.
Começando pela última razão apontada pelo Tribunal recorrido, não podemos deixar de afirmar que a mesma, de forma clara, afronta o direito constituído e a chamada “justiça material” não pode ser feita quando contraria a lei – isso sim, é verdadeiramente violador de princípios constitucionais.
Nos termos da alínea a) do nº 4 do art. 282º do Cód. Proc. Penal “se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta”, “o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas”, ou seja, as prestações feitas não podem ser devolvidas, restituídas.
Significa a norma que o que foi pago, entregue ou feito, enquanto obrigação assumida pelo arguido no âmbito da suspensão provisória do processo, não pode ser “descontado” em pena que posteriormente venha a ser aplicada em processo que prosseguiu. Ou seja, o que foi pago não pode ser descontado em multa que o arguido venha a ser condenado, tal como horas de trabalho voluntariamente prestado também não podem ser descontadas em eventual condenação em prestação de trabalho a favor da comunidade – recentemente foi ainda decidido em Acórdão Uniformizador de Jurisprudência (nº 4/2017 de 27.04.2017) que a injunção de proibição de conduzir veículos com motor não pode ser descontada em posterior condenação da pena acessória com idêntico conteúdo.
O citado nº 4 do art. 282º do Cód. Proc. Penal funda a respectiva estatuição na circunstância da natureza da injunção não ser assimilável a uma pena. Com efeito, enquanto a injunção tem que ser aceite pelo arguido, a pena é-lhe imposta.
Desta forma não se pode afirmar que o cumprimento de uma injunção no âmbito de uma suspensão provisória do processo impede o cumprimento de uma pena no mesmo processo por violação do princípio ne bis in idem.
O nº 5 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa consagra o princípio “ne bis in idem”.
Nos termos deste preceito, “ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”, ou seja, não pode haver novo julgamento da mesma questão (é o chamado “efeito negativo do caso julgado”).
Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, 2ª edição, 1º vol., p. 207 e 208) que este princípio comporta duas dimensões: enquanto “direito subjectivo fundamental, garante ao cidadão o direito de não ser julgado mais do que uma vez pelo mesmo facto, conferindo-lhe, ao mesmo tempo, a possibilidade de se defender contra actos estaduais violadores deste direito” e “como princípio constitucional objectivo… obriga fundamentalmente o legislador à conformação do direito processual e à definição do caso julgado material de modo a impedir a existência de vários julgamentos pelo mesmo facto”.
Realçam ainda aqueles Professores (ob. e local citado) que “a Constituição proíbe rigorosamente o duplo julgamento e não a dupla penalização, mas parece óbvio que a proibição do duplo julgamento pretende evitar a aplicação renovada de sanções jurídico-penais pela prática do mesmo crime”. De facto, é evidente que sendo a pena a consequência do julgamento (desde que haja condenação), o referido princípio pretende precisamente evitar a possibilidade de dupla condenação.
Todavia, como se afirma no já mencionado AUJ nº 4/2017 “Ora, não só as fases preliminares do processo, em que se inclui o inquérito, não se confundem com a de julgamento, na sua conformação e razão de ser, como o despacho de suspensão, enquanto encerramento do inquérito, não tem que ver com a sentença, seja ela condenatória ou absolutória. Tudo isto se nos afigura claro.

A imposição, com o correlativo acatamento, de injunções e regras de conduta, surge pois como manifestação de anuência, sendo indiferente, na perspectiva do arguido, que a fonte da injunção seja uma escolha do MP ou a lei. Em qualquer dos casos estamos perante condições "sine qua non" da suspensão, que podem ou não ser aceites pelo arguido e, naquele caso, se lhe impõem.

Diferentemente se passam as coisas com a condenação surgida na sequência de um julgamento, por ser algo a que o arguido não pode fugir. Tal como, já não tinha dependido de si, a detenção ou a escolha da medida de coacção privativa de liberdade antes aplicada”.
Ou seja, não só a fase de inquérito (em que ocorre a suspensão provisória do processo) não se confunde com a de julgamento, como uma injunção não se confunde com uma pena.
Pelo que a imposição de uma pena em julgamento, não obstante o cumprimento de alguma injunção em sede de suspensão provisória do processo, não viola o princípio “ne bis in idem”.
O que se deixou dito é também o fundamento para não se poder dizer que a aplicação de uma pena, depois do processo prosseguir, viola o princípio da igualdade.
A suspensão provisória do processo aposta na pacificação da ordem social, dos bens jurídico-penais, sem recurso a julgamento. O prosseguimento do processo significa que o arguido falhou no compromisso que assumiu. E este falhanço é sempre culpa sua. Mais, se de todo não conseguir cumprir por algo que não lhe é imputável, é em sede de inquérito que terá que justificar esse incumprimento e pedir que ainda assim se considere cumprida a injunção. Prosseguindo o processo para julgamento, o que cumpriu, ou não, deixa de ter relevo. Não há, por isso, violação do princípio da igualdade.
E, por tudo o que se disse, também não se pode considerar haver violação dos princípios constitucionais da adequação e da proibição do excesso – lembramos de novo que não só a fase de inquérito (em que ocorre a suspensão provisória do processo) não se confunde com a de julgamento, como uma injunção não se confunde com uma pena.

Mas o Tribunal a quo decidiu que uma admoestação realizava de forma adequada e suficiente as finalidades da punição por um outro motivo: a idade do arguido à data dos factos, o seu comportamento em audiência e a ausência de antecedentes criminais (levando à conclusão de que se tratou de um episódio ocasional), demonstram estarem acauteladas as necessidades de prevenção especial e não se mostrarem defraudadas as expectativas comunitárias no que à prevenção geral respeita.
Em causa está a prática de um crime de condução sem habilitação legal.
Diga-se, desde já, que as expectativas comunitárias no que à prevenção geral respeita são elevadas. Com efeito, a necessidade de assegurar a segurança rodoviária é premente, considerando a existência de um sentimento de intranquilidade decorrente do incumprimento das normas estradais, visto como vulgar, por um significativo número de condutores. Também a consciência de que a condução automóvel é uma actividade perigosa para a vida e integridade física dos cidadãos, como se comprova pela elevada sinistralidade rodoviária verificada nas estradas portuguesas, aponta para a necessidade de assegurar a segurança rodoviária.
Assim sendo, a aplicação de uma admoestação é destituída de razão, desde logo porque defraudada as expectativas comunitárias no que à prevenção geral respeita. Acresce que o arguido agiu com dolo directo, a forma mais intensa de dolo.

É entendimento geralmente aceite que com a admoestação, pelo seu carácter meramente simbólico, não se atingem os limiares mínimos de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico. Como refere Figueiredo Dias (“Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, págs. 388/389) “qualquer pena simbólica, que se esgota na mera aplicação judicial, sem possuir ao menos o conteúdo aflitivo potencial que caracteriza todas as outras penas de substituição (mesmo a suspensão da execução da prisão sem condições!) é irremediavelmente afectada na sua eficácia preventiva, não atingindo sequer o nível mínimo da verdadeira advertência penal, por destituída de qualquer consequência efectiva para o futuro” – também assim tem entendido a jurisprudência, como se pode verificar, entre outros, pelos Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.12.2006 e de 26.06.2003, do Tribunal da Relação de Coimbra de 04.03.2009 e do Tribunal da Relação do Porto de 25.09.2002, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

Nestes termos, sob pena de o arguido não entender a gravidade da conduta cometida, a aplicação de uma admoestação mostra-se desadequada e insuficiente para promover as finalidades da punição.

E, não havendo motivo para substituir a pena de multa fixada, pela admoestação, deverá manter-se aquela pena de multa, ficando o arguido condenado na pena de cinquenta (50) dias de multa, computada à taxa diária de nove euros (9,00 €), num total de quatrocentos e cinquenta euros (450,00 €).

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Decisão.

Pelo exposto, acordam em conceder provimento ao recurso e revogam a sentença recorrida no que tange à aplicação ao arguido da pena de admoestação, que substituem pela aplicação da pena de cinquenta (50) dias de multa, computada à taxa diária de nove euros (9,00 €), num total de quatrocentos e cinquenta euros (450,00 €).

Sem custas.

Lisboa, 6.11.2018                  

(Alda Tomé Casimiro) (processado e revisto pela relatora)

(Anabela Simões Cardoso)