Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10403/17.6T8LSB.L1-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO
DESCARACTERIZAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
MÁ-FÉ
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 06/12/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I - Incumbia à Ré o ónus de alegar e provar os factos que permitissem valorar a conduta do sinistrado como violadora, sem causa justificativa, das regras de segurança implantadas pela entidade patronal, ou como negligência grosseira (cfr. art. 342º nº2 do C.Civil)
II – Age de má-fé a entidade patronal que afirma desconhecer a que título um seu trabalhador está a trabalhar para si quando bem o sabe.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
I – Relatório
AAA, nascido a (…), instaurou a presente acção declarativa de condenação, emergente de acidente de trabalho, a seguir a forma de processo especial, contra BBB, Lda, pedindo a sua condenação a pagar-lhe uma indemnização pelos períodos de incapacidade temporária sofridos, no valor de 1.137,66€, uma pensão anual e vitalícia, no valor de 328,91€, com início no dia seguinte ao do acidente de trabalho, a qual é obrigatoriamente remível, no montante de 6.132,30€ (factor 16.015), uma compensação no valor de 30,00€, referente aos gastos que teve com transporte e deslocação ao Tribunal para actos no processo, bem como de outros que, por esta mesma razão, venha a ter no decurso da fase contenciosa. Pede ainda  seja a Ré condenada como litigante de má-fé, e em juros de mora, vencidos e vincendos sobre todas as antecedentes prestações, à taxa anual legal , desde a data dos respectivos vencimentos, até integral pagamento.
Para tanto alegou, em síntese, que no dia 02 de Fevereiro de 2017, encontrava-se a efectuar umas pinturas numas obras de remodelação, sob as ordens, direcção e fiscalização da Ré, que o havia contratado para exercer as funções de ajudante de pintor; no local e tempo de trabalho. Estava a pegar nuns baldes, desequilibrou-se e caiu na direcção de uma varanda que não tinha vidro, embatendo na respectiva vedação, que naquele momento não estava presa ao chão, e caindo para fora do edifício de uma altura de cerca de 6 a 7 metros. Em consequência da queda descrita e do embate no solo, o sinistrado sofreu traumatismo crânio-encefálico sem perda de conhecimento, traumatismo do maciço facial com fracturas do malar com afundamento da arcada zigomática, uma fractura do antebraço direito e da mão direita com lesão do nervo colateral digital radial de dedo 1, de que resultaram dormência da face direita, sem problemas de oclusão dentária ou mastigação, cicatrizes do terço inferior da face dorsal do antebraço direito, quelóide com 10 cm e cicatriz do terço inferior da face dorsal do antebraço direito, quelóide com 10 cm e cicatriz da face violar do MF do dedo 1 da mão direita que apresenta rigidez.
Tais lesões determinaram ao sinistrado períodos de incapacidades temporárias, sendo-lhe dada alta no dia 17 de Maio de 2017, com uma incapacidade permanente parcial avaliada em 5,92%.
A Ré não tinha a responsabilidade emergente de acidente de trabalho transferida para qualquer companhia de seguros, mas não procedeu a qualquer indemnização ao Autor, nem lhe prestou assistência médica ou medicamentosa.
A Ré não reconhece o Autor como seu empregado.
Devidamente citada, a Ré, BBB, Lda, contestou, alegando que, nunca o seu gerente celebrou, verbalmente ou por escrito, qualquer contrato de trabalho com o Autor, nem nunca AAA desempenhou funções de encarregado para a Ré, sendo este tão só um seu trabalhador com a categoria de carpinteiro da construção civil, pelo que a presença do Autor na obra apenas se poderá dever a algum tipo de acordo estabelecido entre aquele e CCC ou com qualquer empresa subempreiteira. Mais alegou que, ao que apurou, o único responsável pelo sinistro foi o próprio Autor, que, inexistindo motivo para se deslocar à varanda do 3º piso do edifício, e que sem que tivesse recebido ordens ou instruções da Ré ou de um seu representante para tal, aí se deslocou, tendo para o fazer que transpor as portas em alumínio que se encontravam bem fixadas e fechadas.
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Foi elaborado despacho saneador, o qual conheceu da validade e regularidade da instância.

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Foi seleccionada a matéria de facto, com interesse para a decisão da causa, que estava assente e aquela que constituiu a base instrutória.

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Foi determinada a intervenção de CCC.
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Foi realizado julgamento, com observância do legal formalismo, tendo o tribunal respondido à matéria de facto e sem reclamações.
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A sentença proferida julgou “a presente ação parcialmente procedente e, em consequência:
1. fixo a IPP de que padece o Autor AAA em consequência do acidente de trabalho dos autos, ocorrido em 02 de fevereiro de 2017, em 5,92%;
2. Condeno a Ré BBB, Lda a pagar ao Autor AAA o capital de remição de uma pensão anual e vitalícia de €382,91 (trezentos e oitenta e dois Euros e noventa e um cêntimos), com início em 18 de maio de 2017, acrescido de juros de mora, à taxa legal, desde o respetivo vencimento até integral e efetivo pagamento;
3. Condeno a Ré BBB, Lda a pagar ao Autor AAA a quantia de €1.137,66 (mil cento e trinta e sete Euros e sessenta e seis cêntimos) a título de indemnização por ITA 03 de fevereiro de 2017 e 27 de março de 2017 e de ITP de 20% de 28 de março de 2017 a 17 de maio de 2017, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data em que cada parcela deveria ter sido liquidada e até efetivo e integral pagamento;
4. Condeno a Ré BBB, Lda, como litigante de má fé, em multa, que se fixa em 3 (três) UCs;
5. Absolvendo a Ré BBB, Lda do mais peticionado nos autos pelo Autor;
6. Absolvendo o Réu CCC de tudo o peticionado nos autos.
Custas a cargo da Ré BBB, Lda, que a estas deu causa (art. 527º do Código do Processo Civil, ex vi art. 1º, nº2, al. A) do Código de Processo do Trabalho).”
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Inconformada, a Ré interpôs recurso, concluindo que;
(…)
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O Autor contra alegou, concluindo pela improcedência do recurso.
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Os autos foram aos vistos aos Exmos Desembargadores Adjuntos
Cumpre apreciar e decidir.
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II - Objecto do Recurso
Considerando as conclusões do recurso, cumpre a este Tribunal decidir se o acidente de trabalho a que se reportam os autos está descaracterizado e se a Ré litigou de má-fé.
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III – Fundamentação de Facto
São os seguintes os factos considerados provados pela primeira instância
1) No dia 02 de Fevereiro de 2017 AAA, nascido em (…), caiu do edifício sito no n.º (…) da Rua do Ouro, em Lisboa.
 2) Em consequência da aludida queda e do embate no solo o Autor sofreu traumatismo crânio-encefálico sem perda de conhecimento, traumatismo do maciço facial com fracturas do malar com afundamento da arcada zigomática, uma fractura do antebraço direito e da mão direita com lesão do nervo colateral digital radial do dedo 1, de que resultaram dormência da face direita, sem problemas de oclusão dentária ou mastigação, cicatrizes do terço inferir da face dorsal do antebraço direito, queloide com 10 cm e cicatriz da face volar ao nível do MF do dedo 1 da mão direita que apresenta rigidez.
3) Tais lesões determinaram ao Autor os seguintes períodos de incapacidades temporárias:
a. absoluta entre 03 de fevereiro de 2017 e 27 de março de 2017;
b. parcial de 20% de 28 de março de 2017 a 17 de maio de 2017.
4) Tendo tido alta no dia 17 de maio de 2017 e ficado acometido de uma incapacidade parcial permanente de 5,92%.
5) Encontra-se registado, por apresentação datada de 29 de Março de 2016, a nomeação de (…) como gerente da Ré BBB, Lda.
6) Em hora não concretamente apurada, mas próxima das 16:00 horas, do dia 02 de Fevereiro de 2017, o Autor encontrava-se no edifício sito no n.º (…) da Rua do Ouro em Lisboa a executar tarefas não concretamente apuradas no âmbito da obra de remodelação que aí estava a ser levada a cabo.
7) Na referida ocasião o Autor encontrava-se a executar tarefas não concretamente apuradas por determinação do encarregado da Ré na obra, de nome CCC, que o havia contratado para exercer funções para a Ré BBB, Lda, como ajudante, e mediante o pagamento por esta ao mesmo da quantia diária de €30,00, o qual era feito em numerário, por esse mesmo encarregado.
 8) Na ocasião descrita em 1), em circunstâncias não concretamente apuradas, quando o Autor se encontrava na varanda do terceiro andar do edifício, a grade da varanda, que não se encontrava presa ao chão, soltou-se e o Autor caiu para o piso 1.
9) Após o evento descrito em 1) a Ré enviou o encarregado da obra, CCC, junto do Autor para que este assinasse consigo o acordo cuja cópia se mostra junta a fls. 62 a 67 dos presentes autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, denominado “CONTRATO DE TRABALHO A TERMO INCERTO”, nos termos do qual a Ré admite o Autor ao seu serviço a partir do dia 02 de Fevereiro de 2017 e este obriga-se a prestar a sua actividade profissional de servente de obra para o primeiro, mediante a retribuição mensal de €530,00.
10)E assim poder apresentar a documentação descrita no ponto antecedente junto da Autoridade Para As Condições do Trabalho na sequência do procedimento de averiguações que foi por esta desencadeado.
11) Pese embora CCC tenha sido inicialmente contratado pela Ré como carpinteiro da construção civil, a partir de data não concretamente apurada, mas seguramente anterior a 02 de Fevereiro de 2017, passou a exercer igualmente as funções de encarregado da Ré na obra.
12) No momento antecedente ao descrito em 1) CCC encontrava-se no 5º piso do edifício.
13)Momentos antes da queda do Autor CCC pediu ao Autor para lhe ir buscar ao piso zero (rés do chão) um rolo de fita de pintar.
 14)Nessa altura já não decorriam quaisquer tipos de trabalho no exterior do edifício, já não estando montados andaimes de exterior
15)A varanda de onde o Autor caiu tinha guarda/grade, em forma de “L”, montada em ferro, fixa em dois pontos, com buchas metálicas, nas paredes exteriores.
16)Todo o edifício já tinha montadas todas as janelas e portas de alumínio exteriores, com manípulo de fecho e sem que lhes faltasse algum vidro ou qualquer outro tipo de peça, incluindo no piso de onde caiu o Autor.
17)Para ter acesso à varanda do 3º piso, de onde caiu a partir do interior do edifício, o Autor tinha que transpor a porta de alumínio que aí estava fixada.
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IV – Fundamentação Jurídica
1. A recorrente, ao contrário do que defendeu na primeira instância, não contesta, em sede recursiva, manter com o Autor um contrato de trabalho, embora refira “sem conceder quanto à inexistência de uma relação laboral entre a Ré e o Autor  …” e, nas conclusões “4-;mesmo que se admitisse a existência de uma relação laboral entre o Recorrido e a Recorrente …”, mas, na verdade, nada argumenta, nesta sede, que leve este Tribunal a voltar a debruçar-se acerca desta questão, não arvorada aliás, como tal, e, diga-se, correctamente decidida pela primeira instância.
2. Da Descaracterização do Acidente
Seja como for, o que verdadeiramente interessa à Ré com o presente recurso, é averiguar acerca da sua responsabilidade infortunística perante o Autor face à inexistência de um contrato de seguro, analisando-se acerca da alegada descaracterização do acidente, pois a Ré defende a exclusão da sua responsabilidade, afirmando que o Autor não recebeu nenhuma ordem para ir ao piso 3 e muito menos à varanda, dado que já não decorriam trabalhos de exterior, pelo contrário, recebeu ordem do CCC para ir ao piso 0 (R/C) buscar um rolo de fita de pintar, ordem que contrariou, indo por sua única e exclusiva iniciativa ao piso 3, ao invés de ir ao piso 0, e, além disso, foi à varanda do quarto, transpondo, para tal, uma porta em alumínio, estando provado que a grade em ferro em forma de L se encontrava fixada com buchas metálicas à parede, e que só com recurso a bastante força é que se poderá ter solto da dita. Conclui pela existência de um comportamento negligente do Autor.
A primeira instância decidiu da seguinte forma
Assim, tendo o Autor logrado demonstrar que no local e período temporal em que havia sido contratado para executar tarefas de remodelação do edifício sito no n.º (…) da Rua do Ouro, em Lisboa, para a Ré, em circunstâncias não concretamente apuradas, quando o Autor se encontrava na varanda do terceiro andar do edifício, a grade da varanda, que não se encontrava presa ao chão, soltou-se e o Autor caiu para o piso 1, dúvidas não há quanto ao facto do Autor ter sofrido um acidente de trabalho, pois o evento descrito ocorreu no local e tempo de trabalho do Autor, sendo o traumatismo crânio-encefálico sem perda de conhecimento, traumatismo do maciço facial com fraturas do malar com afundamento da arcada zigomática, uma fratura do antebraço direito e da mão direita com lesão do nervo colateral digital radial do dedo 1, de que resultaram dormência da face direita, sem problemas de oclusão dentária ou mastigação, cicatrizes do terço inferir da face dorsal do antebraço direito, queloide com 10 cm e cicatriz da face volar ao nível do MF do dedo 1 da mão direita que apresenta rigidez consequência da aludida queda e do embate no solo.
Na contestação apresentada, sustentou a Ré BBB, Lda que o único responsável pelo sinistro foi o próprio Autor, que inexistindo motivo para se deslocar à varanda do 3º piso do edifício, e que sem que tivesse recebido ordens ou instruções da Ré ou de um seu representante aí se deslocou, tendo para o fazer que transpor as portas em alumínio que se encontravam bem fixadas e fechadas.
Atento o alegado pela Ré BBB, Lda cumprirá, assim, aquilatar da eventual descaracterização do acidente.
(…)
Por último, o ato descaracterizador do acidente tem de ter “resultado exclusivamente, isto é, sem concurso de qualquer outra ação, de negligência grosseira” - Carlos Alegre, in Ob. e Loc. Cit. Assim, para que se verifique a apontada exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho, é necessária a prova de que ocorreu um ato ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos e costumes da profissão e, além disso, que o acidente tenha resultado exclusivamente desse comportamento. Por outro lado, para que a situação em apreço nos autos seja subsumível àquela prevista na al. a) do n.º 1 do citado art.º 14º têm que ficar demonstrados os requisitos cumulativos ali enunciados. Ou seja, tem de ser demonstrado que o Sinistrado com um comportamento concreto por si adotado violou voluntariamente e sem causa justificativa condições de segurança estabelecidas pela Empregadora e que haja nexo de causalidade entre a referida violação e o acidente. Não tendo sido apuradas as circunstâncias em que o Sinistrado caiu do 3º piso, nem o que desencadeou a referida queda, sendo certo que era à Ré que competia provar tal matéria, o que esta manifestamente não logrou fazer, o acidente objeto destes autos não é subsumível no regime legal previsto no n.º 1 do art.º 14º da Lei n.º 98/2009, de 04.09, improcedendo, por conseguinte, a alegação de descaracterização do acidente dos autos.
Desde já se esclarece que concordamos com a primeira instância.
Nos termos do art. 14º nº1 da LAT, “o empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier do seu acto ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Que provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado …” (sic).
Como salienta Pedro Romano Martinez[1] , no caso da alínea a), “O legislador exige somente que a violação careça de “causa justificativa”, pelo que está fora de questão o requisito da negligência grosseira da vítima; a exigência dessa culpa grave encontra-se na alínea seguinte do mesmo preceito. A diferença de formulação constante das alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º da LAT (correspondentes às mesmas alíneas do n.º 1 do artigo 290.º do Código do Trabalho) tem de acarretar uma interpretação distinta. Por outro lado, há motivos para que o legislador tenha estabelecido regras diversas. Na alínea a) só se exige a falta de causa justificativa, porque atende-se à violação das condições de segurança específicas daquela empresa; por isso, basta que o trabalhador conscientemente viole essas regras.”
Relativamente à alegada negligência grosseira, o nº3 do art. 14º dispõe que “Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança profissional ou dos usos e costumes da profissão” (sic).
Para que o acidente possa considerar-se descaracterizado, nos termos deste normativo legal, é necessário que se verifique uma conduta temerária e inútil, até do ponto de vista da sua conexão com o trabalho que se desempenha, uma falta grave e indesculpável da vítima e que o acidente provenha exclusivamente dessa falta grave e indesculpável. Tal falta não pode ser uma simples imprudência, uma mera negligência ou uma distracção[2]. Tem de se tratar de um comportamento “ … ostensivamente indesculpável, reprovado por um elementar sentido de prudência …”[3]A lei quis “ … acentuar o elevado grau de reprovabilidade e censurabilidade do comportamento objectivador dessa falta[4]
Como se afirma no Acórdão desta secção de 18 de Outubro de 2000 – Recurso nº 5327/4/00, “Se para o resultado do evento naturalístico interceder um comportamento da vítima que se desenhe como gravemente censurável, que se apresente como merecedor de forte reprovação, quer pela omissão de elementares cautelas e de regras de prudência comummente observadas, indesculpável à luz da normalidade dos comportamentos, quer por acções temerárias, inúteis e gratuitas, normalmente associadas a situações de elevado risco, não vemos como desprezar esta realidade e ignorá-la como causa do dano produzido, e causa exclusiva, se para o acidente não concorreu culpa da entidade patronal ou de terceiro, caso fortuito ou força maior” (sic)
A culpa grosseira ou grave “consiste em não fazer o que faz a generalidade das pessoas, em não observar os cuidados que todos, em princípio, adoptam. A culpa leve seria a omissão da diligência normal (podendo o padrão de normalidade ser dado em termos subjectivos concretos, ou em termos objectivos, abstractos). A culpa levíssima será a omissão dos cuidados especiais que só as pessoas muito prudentes e escrupulosas observam[5]
Se para o resultado do evento naturalístico interceder um comportamento da vítima que se desenhe como gravemente censurável, que se apresente como merecedor de forte reprovação, quer pela omissão de elementares cautelas e de regras de prudência comummente observadas, indesculpável à luz da normalidade dos comportamentos, quer por acções temerárias, inúteis e gratuitas, normalmente associadas a situações de elevado risco, não vemos como desprezar esta realidade e ignorá-la como causa do dano produzido, e causa exclusiva, se para o acidente não concorreu culpa da entidade patronal ou de terceiro, caso fortuito ou de força maior.”[6]
Portanto, a lei não se basta, para a descaracterização do acidente, com uma simples distracção, imprudência ou uma negligência, exigindo que o sinistrado proceda como uma pessoa extremamente desleixada, que viole o mais elementar sentido de prudência e “… que não se consubstancie em acto ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos e costumes da profissão[7]
A culpa grave pressupõe três requisitos: (i) uma acção especialmente perigosa (traduzida, v.g., na infracção de um dever de cuidado especialmente importante ou de vários deveres menos significativos); aliada a um (ii) resultado de verificação altamente provável (à luz da conduta adoptada); e, nessa medida, (iii) uma atitude especialmente censurável de leviandade ou de descuido, reveladora de “qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez.[8]
Para o que nos interessa, a culpa grosseira deve ser apreciada em concreto, tendo em conta o caso particular e as condições do próprio sinistrado.
Por outro lado, por se tratar de factos impeditivos do direito à reparação, incumbia à Ré o ónus de alegar e provar os que permitissem valorar a conduta do sinistrado como violadora, sem causa justificativa, das regras de segurança implantadas pela entidade patronal, ou como negligência grosseira (cfr. art. 342º nº2 do C.Civil e cfr., entre outros, Ac. Rel. Lisboa de 13-04-2005 e Ac. STJ de 13-07-2004 e de 16-06-2004 in www.dgsi).
Feitos estes considerandos, analisemos agora o presente caso, tendo em consideração o tipo de trabalho que o sinistrado estava a realizar, o equipamento usado e os dispositivos de segurança existentes.
Segundo resulta da matéria de facto, o Autor foi contratado pela Ré como ajudante, não sendo possível apurar exactamente quais as funções que exercia, mas seria com certeza um pouco de tudo, no que fosse necessário auxiliar os demais que ali trabalhavam, sendo certo que o contrato emitido em 2 de Fevereiro de 2017, após a queda, refere que fora contratado como servente de pedreiro.
O encarregado da obra, momentos antes de o Autor cair da varanda, encontrava-se no piso 5º do edifício e pediu ao Autor para se deslocar ao piso 0 para ir buscar um  rolo  de fita de pintar.
Já não decorriam obras no exterior do edifício e, portanto, as guardas exteriores já não estavam colocadas.
Para o Autor cair teve de transpor a porta de alumínio do quarto respectivo do 3º andar. Desconhece-se por que razão o fez. E resulta também apurado que a varanda de onde resulta que caiu estava fixa em dois pontos nas paredes exteriores.
Ocorreu, sem dúvida um acidente de trabalho, à luz do disposto no artigo 10º nº1 da LAT.
E não se descortina como possa estar descaracterizado.
Por um lado, nada resulta dos factos, que nos leve a concluir que foi dolosamente provocado pelo sinistrado, ou seja, que ele se deslocou ao 3º andar, abriu a porta e, por alguma forma, violou as condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal, que, aliás, se desconhece quais fossem. Por outro lado, não se vislumbra em que medida o Autor agiu com negligência grosseira, que não é assim um qualquer tipo de negligência. É certo que o mandaram ir ao piso 0 buscar fita , mas para chegar ao piso 0 ele teria de passar pelo piso 3. O que o levou a parar neste piso e a abrir a janela desconhecemos em absoluto, e incumbia à Ré esclarecer este ponto por se tratar de um facto impeditivo do direito do Autor. O mero incumprimento da ordem de descer ao piso 0 para buscar fita – sem desvios, presumimos nós – não é suficiente para configurar qualquer tipo de negligência, apenas porque o trabalhador resolveu parar no piso 3 e abrir uma janela. Não explica a Ré, nem está provado, qual o dever de cuidado grosseiramente violado pelo Autor.
Em face do exposto, não merece censura a douta sentença recorrida, a qual procedeu a uma correcta subsunção dos factos ao Direito aplicável, donde se conclui pela improcedência do recurso.
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2. Vejamos agora se a Ré litigou de má-fé
O Tribunal a quo fundamentou tal condenação nos seguintes termos. “E atenta a factualidade apurada e de resto apreciada supra, dúvidas não temos que a Ré BBB, Lda litigou com má-fé, porquanto veio deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, através da alegação de factos que bem sabia não corresponderem à verdade.
Com efeito, pese embora esta soubesse perfeitamente que CCC era seu encarregado e que tinha sido nessa qualidade que este tinha sido intermediário na contratação do Autor para exercer funções para a Ré, mediante o pagamento de quantia certa por parte desta, e que o Autor se encontrava a exercer funções para a mesma na obra de remodelação do edifício sito no n.º (…) da Rua do Ouro em Lisboa, tendo inclusive determinado que lhe fosse apresentado, em momento posterior ao do acidente, acordo escrito de trabalho, para assinar, com efeitos reportados à data do acidente dos autos, veio a Ré invocar desconhecer a que título é que o Autor aí se encontrava a laborar, chegando mesmo a afirmar que a presença do Autor na obra apenas se poderia dever a algum tipo de acordo estabelecido entre aquele e CCC (que alegava era um seu mero trabalhador com a categoria de carpinteiro da construção civil), ou com qualquer empresa subempreiteira (factualidade que sabia não corresponder à verdade), o que, de resto, determinou que o Tribunal determinasse a intervenção nos autos de CCC.
Pelo exposto, por ter litigado de má- fé, e ao abrigo do disposto no art.º art.º 542º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil e 27º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais, condeno a Ré BBB Lda no pagamento de multa, que se fixa em 3 (três) Ucs.”
Esta condenação é de inteira justiça.
Alega a Ré, em defesa, que
-é uma sociedade comercial por quotas que apenas tem um gerente;
- os gerentes não podem fazer-se representar no exercício do seu cargo, sem prejuízo do disposto no artigo 261ºnº2 do CSC (delegação expressa e específica);
- os gerentes vinculam-se em actos escritos apondo a sua assinatura com indicação dessa qualidade;
- o pretenso contrato de trabalho apresentado ao recorrido não foi assinado pelo gerente da recorrente e, ao que se sabe, também não foi assinado pelo recorrido;
- o gerente da recorrente nunca deu nenhuma ordem ou instrução ao recorrido;
- o gerente da recorrente nunca pagou directamente qualquer valor ao recorrido;
 - o recorrido também não alegou, na sua petição inicial, factos concretos que permitissem aferir da existência de uma relação laboral,
- a recorrente alegou em sua defesa que nunca celebrou , verbalmente ou por escrito, qualquer contrato de trabalho com o recorrido.
O Autor, nos artigos 2º e 3º da p.i., invoca claramente a existência e um contrato de trabalho com a Ré. É esta quem impugna especificadamente os artigos 2º e 3º da p.i, recusando que tenha celebrado qualquer contrato verbal ou escrito com o Autor e responsabilizando o CCC por essa contratação, ele que era apenas, na sua perspectiva, empregado da Ré.
A lei impõe que, litigando de má-fé, a parte seja condenada em multa e indemnização, se a parte contrária peticionar (art. 542º nº1 do CPC).
 “Diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave:
a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar;
b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;
c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação;
d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.” (sic)
A má-fé traduz-se na sanção imposta à parte pela violação do dever de correcção processual que fluí do Código de Processo Civil, e, como outras sanções processuais, é cominada para ilícitos praticados no processo, visando impor aos litigantes uma conduta que não prejudique a acção da justiça e assegure o respeito pelos Tribunais, sendo certo que aos litigantes não é permitido todo e qualquer comportamento com vista a atingir o seu escopo.
Conforme refere o STJ em Acórdão de 2-7-2002, proferido nos autos de recurso n.º 0059021 “resultando dos autos que a parte alterou a verdade dos factos que eram do seu conhecimento pessoal para deduzir pretensão cuja falta de fundamento não podia ignorar, essa atitude constitui uma actuação dolosa, levando à sua condenação como litigante de má fé.”.
Ora, face ao exposto, não podemos deixar de corroborar inteiramente a fundamentação da primeira instância: “E atenta a factualidade apurada e de resto apreciada supra, dúvidas não temos que a Ré BBB Lda litigou com má fé, porquanto veio deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar, através da alegação de factos que bem sabia não corresponder à verdade.
Com efeito, pese embora esta soubesse perfeitamente que CCC era seu encarregado e que tinha sido nessa qualidade que este tinha sido intermediário na contratação do Autor para exercer funções para a Ré, mediante o pagamento de quantia certa pela Ré ao mesmo, e que o Autor se encontrava a exercer funções para a mesma na obra de remodelação do edifício sito no n.º (…) da Rua do Ouro em Lisboa, tendo inclusive determinado que fosse a este apresentado em momento posterior ao do acidente acordo escrito de trabalho para assinar com efeitos reportados à data do acidente dos autos, veio esta invocar desconhecer a que título é que o Autor aí se encontrava a laborar, chegando mesmo a afirmar que a presença do Autor na obra apenas se poderá dever a algum tipo de acordo estabelecido entre aquele e João Carneiro (que era um seu mero trabalhador com a categoria de carpinteiro da construção civil) ou com qualquer empresa subempreiteira (factualidade que sabia não corresponder à verdade), o que, de resto, determinou que o Tribunal determinasse a intervenção nos autos de CCC.”
É exactamente o que se passa nos autos, embora a Ré pretenda agora argumentar com o regime aplicável aos gerentes, que não tem aplicação ao caso, porquanto, como se sabe, no âmbito das obras, são os encarregados, com poderes de facto delegados, quem contrata trabalhadores. Mais, o que a Ré fez foi negar a existência do Autor como seu trabalhador, apesar de lhe ter apresentado com contrato de trabalho, apenas após o acidente. Tudo a demonstrar uma conduta de gritante má –fé.
Bem andou a primeira instância em perpetrar a correspondente sanção.
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V – Decisão
Face a todo o exposto, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar totalmente improcedente o presente recurso de apelação interposto pelo BBB, Lda, mantendo a sentença recorrida.
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Custas a cargo da Apelante.

Registe e notifique.

Lisboa, 2019-06-12

Paula de Jesus Jorge dos Santos
1º adjunto – José Feteira
2ª adjunta – Filomena Manso

[1] Direito do Trabalho, 3.ª edição, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 851-852.
[2] Ac. Rel. Coimbra de 04-05-2005 in CJ t.III, 55.
[3] Ac. Rel Lisboa de 13-04-2005.
[4] Ac. Rel. Lisboa de 09-05-07 – Proc 1034/2007.4.
[5] A. Varela – Das Obrigações em Geral, Vol. I, 10º edição, pág. 577 – nota de rodapé nº2, citando Diez-Picazo.
[6] Supra citado Ac. Rel Lisboa de 13-04-2005, Proc 9978/2004-8.
[7] Ac Rel Lisboa de 13-04-2005, já supra referido.
[8] Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Coimbra Editora, I, 1999, pág. 113.