Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1340/14.7TTLSB.L1-4
Relator: MARIA JOÃO ROMBA
Descritores: ACÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTENCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
INTERESSE EM AGIR
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/17/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO PARA A CONFERENCIA
Decisão: DESATENDIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário: Na acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, a declaração apresentada pela “trabalhadora” de não pretender aderir aos factos apresentados pelo M.P., nem apresentar articulado próprio ou constituir mandatário é irrelevante para ajuizar sobre o interesse em agir do M.P..

         (Elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial:Acordam em conferência na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa

A R. veio reclamar para a conferência da decisão sumária proferida pela relatora, requerendo que sobre a mesma recaia acórdão. É o seguinte o teor de tal decisão:

            «O Ministério Público, na sequência de participação que lhe foi apresentada pela ACT, intentou contra AA, CRL a presente acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho pedindo que, relativamente à relação estabelecida entre a R. e BB, seja declarada a existência de um contrato de trabalho.

A Ré contestou excepcionando erro na forma de processo, por falta de alegação da existência de indícios de contrato de trabalho e falta de legitimidade ou interesse em agir por parte do Ministério Público, por inexistência de divergência entre as partes da relação contratual e consequente falta de interesses a salvaguardar, defendendo-se também por impugnação.

O Ministério Público pronunciou-se, a fls. 381/383, no sentido da improcedência das excepções deduzidas.

Pelo despacho de fls. 379 foi ordenada a citação da trabalhadora, com o envio de duplicados da petição e da contestação e a advertência de que podia, no prazo de 10 dias, aderir aos factos apresentados pelo M.P., apresentar articulado próprio e constituir mandatário, e ainda com a solicitação de que, face ao teor da contestação, no mesmo prazo, informasse expressamente se pretendia continuar com a relação contratual com a AA no âmbito de um contrato de prestação de serviços ou se pretendia o reconhecimento da existência de um contrato de trabalho.

Pelo requerimento de fls. 387, subscrito pela própria, veio a alegada trabalhadora, BB, dizer o seguinte:

- “…venho declarar que não pretendo aderir aos factos apresentados na petição inicial, nem apresentar articulado próprio, ou sequer constituir mandatário.

Mais declaro que estou totalmente de acordo com todos os factos constantes da contestação apresentada pela AA por serem verdadeiros, bem como com as respectivas conclusões.

Declaro finalmente que o vínculo estabelecido entre mim e a AA é um Contrato de Prestação de Serviços de Docência, o qual pretendo manter nos mesmos termos, não pretendendo qualquer reconhecimento de vínculo de trabalho, por não existir”.

  Foi então proferido o despacho saneador de fls. 401/407 que se debruçou sobre a questão, suscitada pela R., da falta de interesse em agir do Ministério Público, uma vez que, apesar de lhe caber o impulso processual para a presente acção, estão em causa direitos disponíveis atinentes à relação contratual que vigora entre a alegada trabalhadora e a AA, CRL, havendo, pois, que ter em conta a vontade da titular do interesse que se pretende proteger com a propositura da acção, o que implica avaliar se o Ministério Público tem interesse em agir ou interesse processual no prosseguimento da presente acção.

Depois de tecer diversas considerações sobre o tema, quando reverteu para o caso concreto conclui o Sr. Juiz: “No caso presente, a titular do interesse que se pretende proteger nunca manifestou pretender o reconhecimento de qualquer contrato de trabalho com a ré, mas declara que pretende o contrato de docência com a ré nos termos em que tal vínculo vigora e se mantém.

Nesta conformidade, não existe incerteza objectiva sobre a sua situação jurídica em causa, nem está demonstrada a necessidade de lançar mão da acção para acautelar os interesses que alegadamente se pretendiam proteger, pelo que carece o Ministério Público de interesse em agir.

Acresce que estamos perante direitos disponíveis, pelo que, primordialmente, não pode deixar de se atender à vontade do titular do interesse que se pretende proteger com a propositura da acção, pois, no âmbito da sua liberdade contratual, a alegada trabalhadora deve poder optar pelo contrato que quer celebrar com a ré, sem que o mesmo seja imposto pelo Estado em desacordo com a vontade das partes”.

Julgou assim verificada a excepção dilatória inominada da falta de interesse em agir por parte do Ministério Público, e, em consequência, absolveu a ré AA, CRL da instância.

O M.P. interpôs recurso, cujas alegações culminam nas seguintes conclusões:

             (…)

  A R. contra-alegou pugnando pela confirmação da decisão recorrida.

O objecto do recurso consiste na reapreciação da questão de saber se o M.P. tem ou não interesse em agir.

   Os elementos de facto relevantes para a apreciação do recurso decorrem com clareza do antecedente relatório, razão pela qual nos dispensamos de os elencar.

                Apreciação

   Atenta a simplicidade das questões colocadas, passo a decidir sumariamente nos termos permitidos pelo art. 656º do CPC, aplicável por força do disposto pelo art. 1º nº 2 al. a) do CPT.

O recorrente insurge-se contra a decisão recorrida sustentando, em síntese, que intervém na acção em representação do Estado, na promoção de um interesse público (já que são diversos os interesses públicos relevantes que decorrem da qualificação de uma relação como de trabalho subordinado, por exemplo, fiscais, parafiscais, como são os relativos às contribuições para a segurança Social, estatísticos, entre outros), detendo a exclusividade do direito de acção, não sendo, pois, a trabalhadora BB parte na acção, nem tendo aderido ao articulado apresentado pelo M.P., pelo que a declaração da mesma junta aos autos não poderia ter os efeitos considerados na decisão recorrida, não podendo ser valorada nesta fase, sem que o contraditório pleno tivesse sido assegurado.

   Adiante-se desde já que, pelo menos nesta última questão, não podemos deixar de reconhecer razão ao recorrente.

Mesmo admitindo, em conformidade com a orientação dominante na doutrina e jurisprudência, que, apesar de não expressamente previsto na lei, o interesse processual ou interesse em agir é um pressuposto processual, autónomo da legitimidade processual, que consiste na necessidade justificada, razoável e fundada de usar o processo[1], o que pressupõe uma situação de carência objectiva, sucede, como relativamente a qualquer outro pressuposto processual, que deve ser aferido apenas e só pelos elementos resultantes da descrição efectuada na petição inicial[2].

Ora, no caso em apreço, não é isso que se verifica pois o Sr. Juiz, para chegar à conclusão que o M.P não tinha interesse em agir, atendeu ao teor da declaração junta aos autos pela trabalhadora, na sequência do convite que o tribunal lhe fez, tendo em conta o teor da contestação da R. (de que não existia divergência entre as partes da relação contratual).

Tal declaração, para além de não ter sido efectuada perante o Sr. Juiz, não se sabendo, em rigor, se a trabalhadora a fez com total liberdade e a plena consciência das consequências que dela possam resultam, é posterior à propositura da acção, não podendo pois, de modo algum, relevar para ajuizar do interesse em agir do M.P.  

E, dos elementos constantes da petição, não se vislumbra o que quer que seja apto a fundamentar o juízo de que o M.P. carece de interesse em agir, quando é certo que o legislador o incumbiu (art. 186º-K do CPT) de intentar a acção de reconhecimento da existência de contrato de trabalho sempre que, face à participação que lhe seja remetida pela ACT, sejam bastantes os indícios de que se está perante um caso de utilização indevida de contrato de prestação de serviços, por haver elementos bastantes que, conforme previsto no art. 12º nº 1 do CT, permitem presumir a existência de uma relação de trabalho subordinado.

Decisão

Pelo exposto e sem necessidade de maiores desenvolvimentos se decide dar provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida, e determinando que os autos prossigam os termos legais.

Custas pela recorrida.»

       A reclamante reputa de nula, nos termos do art. 195º nº 1 do CPC, e ilegal, a decisão reclamada por, em seu entender, a questão a decidir não caber no âmbito normativo da simplicidade decisória, dado não ter sido jurisdicionalmente apreciada de modo uniforme e reiterado, tanto mais que se trata de matéria nova, que tem suscitado dúvidas interpretativas e gerado decisões díspares, quer na 1ª instância, quer nas relações.

            Sustenta, por outro lado, que a falta de interesse em agir já resulta da petição inicial e dos elementos que a instruem, pois o M.P. não alega qualquer divergência, conflito ou litígio entre as partes da relação material quanto à natureza do vínculo.

Atento o modo como está estruturada esta acção especial, a posição (processual e substantiva) do A./parte activa só está completa após a notificação do putativo trabalhador para, querendo, tomar posição sobre o pedido do M.P. e, assim sendo, a decisão sobre o interesse em agir, atentas as particularidades próprias inerentes à estrutura da acção, só pode ser tomada após o cumprimento do disposto pelo art. 186º-L nº 4 do CPT e eventual apresentação do articulado do trabalhador, pelo que o Sr. Juiz a quo não só podia, como devia, porque assim o impõe a estrutura da acção, atender à declaração junta pela suposta trabalhadora.

Insurge-se ainda contra o excerto da decisão em que se refere que a declaração da trabalhadora, porque posterior à propositura da acção e por não ter sido feita perante o Sr. Juiz, não podia relevar para ajuizar do interesse em agir do M.P., considerando-o inaceitável por assentar num raciocínio errado, e encontrar-se aparentemente em contradição com a doutrina vertida no acórdão de 24/9/2014 deste mesmo colectivo. Em seu entender a declaração da trabalhadora configura processualmente o (imprecisamente designado) articulado a que se refere o art. 186º-L nº 4 do CPT e se a trabalhadora podia apresentar factos que traduziriam uma verdadeira confissão nos termos e para os efeitos do art. 283º a 290º do CPC, aplicável ex vi do art. 1º do CPT, por maioria de razão relevará para efeitos de ajuizamento do interesse em agir do M.P..

Acrescenta ainda que não se compreende a relevância dada ao facto de a declaração não ter sido feita perante o juiz, quando a mesma foi feita na sequência de notificação do tribunal, a lei não exige que o trabalhador esteja representado por advogado e a suposta trabalhadora é professora universitária, logo, com conhecimentos e cultura acima da média, que lhe permitem ter perfeita consciência dos actos que pratica e, além disso a declaração, embora posterior à propositura da acção, reporta-se à realidade anterior e confirma o alegado pela R.. O legislador pressupõe a existência de litígio (e por isso prevê a existência de uma tentativa de conciliação entre as parte da relação contratual), mas inexistindo esse litígio, é manifesta a falta de interesse em agir.

Conclui pedindo que a decisão singular sindicada seja declarada nula e em consequência seja proferido acórdão no qual se declare improcedente o recurso e confirme a decisão recorrida.

O M.P. respondeu nos termos que constam de fls. 487/488, concluindo pelo indeferimento da reclamação.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar, o que passamos a fazer.

Quanto à alegada nulidade processual nos termos do art. 195º nº 1 do CPC (que não nulidade da decisão singular da relatora, que teria de se enquadrar na previsão do art. 615º nº 1 do mesmo código), afigura-se-nos que não tem razão a reclamante, nada permitindo considerar ilegal tal decisão.

A circunstância de a questão objecto do recurso – do interesse em agir do M.P. - não ter sido jurisdicionalmente apreciada de modo uniforme e reiterado, quer na 1ª instância quer nas relações, (sendo certo que nos encontramos no âmbito de um novo tipo de acções, criado pela L. 63/2013 de 27/8, não havendo ainda grande número de decisões publicadas sobre a questão) não basta de forma alguma para obstar à aplicação da norma que permite ao relator decidir o recurso em singular, pois aquela é apenas uma das hipóteses, entre outras, que permitem ao relator entender que a questão a decidir é simples. O legislador, indica exemplificativamente (como evidencia o uso do advérbio “designadamente”), além dessa, uma outra hipótese (ser o recurso manifestamente infundado), que, todavia, não esgotam o leque de casos passíveis de integrar a previsão de simplicidade da decisão, justificativa do uso desta forma mais expedita de decisão dos recursos, cabendo esse juízo apenas ao relator[3].

As partes não ficam desprotegidas, na medida em que, sentindo-se porventura prejudicadas, sempre podem deitar mão do pedido de que sobre a matéria recaia acórdão, como aliás sucedeu com a reclamante no caso vertente.

No que tange à alegada falta de interesse em agir, corrobora-se o entendimento da decisão sumária ora reclamada de que para o efeito não pode relevar a declaração apresentada pela “trabalhadora” BB, na sequência do convite que o tribunal lhe fez, dado que para tanto, tal como em relação à generalidade dos pressupostos processuais, só relevam os elementos descritos na petição inicial.

A declaração junta aos autos a fls. 387 na medida em que suscita uma questão de direito (a qualificação do vínculo estabelecido entre a “trabalhadora” BB e a AA), e se encontra subscrita apenas pela própria trabalhadora, que não constituiu mandatário, não pode, em rigor, considerar-se, como pretende a reclamante, que constitua o (indevidamente denominado) “articulado” a que se refere o art. 186º-L nº 4, dado que esse teria de ser subscrito por advogado (cfr. art. 40º nº 1 al. b) do CPC e 186º-P do CPT). Vale, pois, tão só como declaração de não pretender aderir aos factos apresentados pelo M.P., nem apresentar articulado próprio ou constituir mandatário.

Daí que, tal como se entendeu no ac. desta relação de 10/9/2014 proferido no processo nº 1344/14.0TTLSB.L1-4, relatado pela Des. Isabel Tapadinhas, também se nos afigure que a declaração em causa é irrelevante para ajuizar sobre o interesse em agir do M.P., tanto mais que apesar de se tratar de resposta a uma solicitação que lhe foi feita pelo próprio tribunal, não sendo presencial, não se pode, em rigor, considerar que tivesse sido efectuada perante o juiz, dado que não permitiu ao juiz certificar-se junto da declarante da liberdade e consciência com que emitia a mesma. O facto de se tratar de uma docente universitária não obsta a que se suscitem pertinentes dúvidas sobre o grau de consciência e de liberdade com que a “trabalhadora” emitiu a dita declaração, atenta dependência económica em que a mesma se encontra relativamente à reclamante.

O interesse em agir afere-se apenas pelos dados de facto invocados na petição pelo M.P. e esses são bastantes para revelar uma situação de incerteza objectiva quanto à natureza da relação jurídica estabelecida entre a R. e a “trabalhadora” BB, justificando o recurso à via judicial através da presente acção especial de simples apreciação positiva que o legislador incumbiu o M.P. de impulsionar.

Decisão

Pelo exposto se acorda em desatender a reclamação, confirmando a decisão da relatora de dar provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e determinando que os autos prossigam os termos legais.

Custas pela reclamante.

Lisboa, 17 de Dezembro de 2014

 Maria João Romba

Paula Sá Fernandes

Filomena Manso


[1] Daí que, como salientam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, 2º ed. pag.180) seja mais apropriado o nome que lhe dá a doutrina alemã de “necessidade de tutela judiciária”.
[2] Vide, neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, in “O interesse Processual na Acção Declarativa”, publicado em 1989 pela Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, pag. 13.
[3] No caso foi considerada a simplicidade das questões a decidir, atendendo sobretudo à circunstância de, tratando-se de decidir quanto à verificação de um pressuposto processual (o interesse em agir do M.P.) se ter atendido à tomada de posição da “trabalhadora” na sequência do convite que lhe foi feito pelo tribunal, portanto em momento posterior à apresentação da petição.

Decisão Texto Integral: