Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
10221/2006-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
NULIDADE
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/30/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: I - É nula a acusação pública - conduzindo à sua rejeição por ser de reputar manifestamente infundada - quando a mesma é omissa quanto aos factos que integram o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido.
II - Concluindo o juiz de instrução que a acusação não contém todos os pressupostos – nomeadamente, de facto – de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, só lhe resta a alternativa de proferir despacho de não pronúncia, nos termos do art. 308.º, n.º 1, in fine, do CPP.
II – Não pode, naquele caso, o juiz de instrução devolver o processo ao MP, para reformular a acusação declarada nula.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
(…)
II – FUNDAMENTAÇÃO:
1. Conforme entendimento pacífico nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que operam a fixação e delimitação do objecto dos recursos submetidos à apreciação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.

No presente caso, a única questão suscitada pelo recorrente e que este submete à apreciação deste Tribunal é a seguinte:

- Declarada a nulidade da acusação pública, por ofensa ao disposto no art. 283.º, n.º 3 al. b), do CPP, deve o processo ser devolvido ao MP para suprir a deficiência da acusação, ou, antes pelo contrário, deve ser ordenado o arquivamento dos autos?

2. Vejamos se assiste razão ao recorrente.
a) O despacho recorrido é do seguinte teor, na parte que ora releva (transcrição parcial):
«…
1.2 Nulidade da acusação particular por falta da indicação do dolo. ---
O arguido veio também suscitar a nulidade da acusação deduzida invocando que da mesma não consta o elemento volitivo (dolo).
O MP, chamado a pronunciar-se, entendeu, que não se verifica a nulidade arguida, sendo certo que admite assistir alguma razão ao requerente, mas que o dolo se deverá intuir dos factos constantes da acusação.
Determina o art. 283, n.º 1 e n.º 3, al. c) (1) do CPP, que a acusação contêm, sob pena de nu/idade, "(...) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;" (...). Entre estes elementos conta-se, sem sobra de dúvida o dolo, ou seja a intenção com a qual o arguido agiu de determinado modo.
Lida a acusação de fls. 71 não pode deixar de se dar razão ao arguido, pois a mesma apenas refere que o arguido, após um desentendimento com o recepcionista agarrou num placar informativo que aí se encontrava, tendo desferido com o mesmo no balcão, provocando a sua destruição. A acusação é assim omissa quanto à intenção (dolo ou negligência) do agente.
O crime constante da acusação é um crime doloso (não é penalmente censurável o dano negligente), daí que, em nosso entender este elemento volitivo deveria constar da acusação.
Nestes termos é de julgar procedente a nulidade da acusação particular (2) suscitada pelo arguido requerente da presente instrução.
Pelo exposto:
a) declaro nula a acusação deduzida pelo M .ºP.º e, consequentemente, todos os actos processuais posteriores àquela e ordeno a remessa destes autos para inquérito, a fim de ser deduzida nova acusação.--
Notifique.
Remeta ao DIAP».

b) Findo o inquérito, o MP deduziu acusação contra o arguido A, imputando-lhe a prática de um crime de dano, p. p. pelo art. 212.º, do CP.
Dispõe o art. 283.º, do CPP, na parte que ora releva:
«1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.

2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:

a) As indicações tendentes à identificação do arguido;

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) A indicação das disposições legais aplicáveis;

d) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respectiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspectos referidos no artigo 128.º, n.º 2, as quais não podem exceder o número de cinco;

e) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;

f) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;

g) A data e assinatura.

…»


A consequência da falta de alguma das menções exigidas no n.º 3 do citado normativo dita-a o mesmo: é a nulidade da acusação?
A questão controvertida é a que se refere ao destino a dar ao processo, após a declaração dessa nulidade. O despacho recorrido entendeu que o processo deveria voltar à fase de inquérito, afim de ser dada oportunidade ao MP de reformular a acusação, aditando nela os factos omissos. Posição que é defendida pelo próprio MP, em 1.ª instância e neste Tribunal Superior.
Diferentemente, o arguido defende que aquela nulidade deverá levar ao arquivamento do processo.
Quid juris?
Que consequências retirar da declaração de nulidade da acusação pública, por falta de factos essenciais ao preenchimento do tipo legal imputado, ou seja, essenciais à condenação?
É certo que a declaração de invalidade de um acto determina, em princípio, a sua repetição, sempre que esta seja necessária e ainda seja possível. O que pode determinar o retrocesso dos autos para uma fase distinta e anterior daquela em que se encontram.
Mas essa não é, seguramente, na nossa opinião, a situação dos autos.
Cremos ser inquestionável que, caso o processo tivesse sido remetido directamente para julgamento – a instrução é facultativa e no caso sub judice só o arguido a podia ter requerido, como requereu, para impugnar a acusação pública contra ele deduzida – o respectivo juiz, ao proferir despacho ao abrigo do art.º 311.º, do CPP e constatando a escassez de factos para preenchimento do tipo legal de crime imputado, deveria rejeitar a acusação, por manifestamente infundada, ao abrigo do n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do mencionado normativo legal.
Igualmente, caso tal falha não tivesse sido detectada nestas fases processuais e o processo chegasse a julgamento, ao lavrar a sentença, o juiz julgador, perante a insuficiência dos factos, só tinha uma solução: absolver o arguido.
Isto porque, perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal – leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido. Ou seja, perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual. Não tem uma terceira alternativa, a de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito. O mesmo se passa com o juiz de instrução. Requerida esta fase pelo arguido para contrariar a acusação pública, ou particular nos casos de procedimento dependente de acusação particular, o JIC, chegado o momento de sobre ela decidir, ou considera que aquela contém todos os elementos essenciais e que há “indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena …” e, então, profere despacho de pronúncia, ou faz um juízo negativo e profere despacho de não pronúncia. Não pode ordenar, perante a insuficiência de factos, que os autos voltem ao MP – ou ao acusador particular – para que seja completada a acusação.
Aliás, tal maneira de ver as coisas está bem explícita e expressa na muita jurisprudência, que actualmente se pode dizer uniforme, que se tem debruçado sobre os requerimentos de abertura de instrução do assistente, quando o MP não deduziu acusação, que têm vindo sucessivamente a serem rejeitados pelos respectivos juízes de instrução, precisamente pelos mesmos fundamentos que levam à rejeição da acusação pública formulada nestes autos: a ausência do elemento subjectivo da infracção na narração dos factos imputados ao arguido. Como é do conhecimento generalizado, tais requerimentos acusatórios são liminarmente rejeitados, com a aquiescência dos tribunais superiores, com o argumento de que aqueles consubstanciam uma verdadeira acusação substitutiva da acusação pública não deduzida, defendendo-se que não há, em tais casos, lugar a convite para aperfeiçoamento dos mesmos requerimentos, porque, por um lado, também não há aperfeiçoamento da acusação do MP, por outro, tal convite corresponderia a uma verdadeira prorrogação do prazo, peremptório, para acusar, agravando, de forma injustificada, os direitos e garantias de defesa do arguido.
Acabando mesmo por ser fixada jurisprudência na matéria, mediante o Acórdão n.º 7/2005, de 12/05/2005, do Plenário das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça (3), no seguinte sentido:
«Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido».
Porque também não o pode haver ao MP, em igualdade de circunstâncias.
Conforme se pode ler na fundamentação do mesmo acórdão uniformizador, «a falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada (4), nos termos dos arts. 283.º, n.º 3, alínea b), e 311.º, n.ºs 2, alínea a), e 3, alínea b), do CPP».
Para mais adiante se voltar a afirmar: «Significante, ainda, estar vedado ao juiz do julgamento direccionar convite ao Ministério Público para complementar o elenco factual acusatório (5), ante e com apoio nos peremptórios termos do citado art. 311.º, n.º 3, alínea b)».
Citando-se aí um acórdão do Tribunal Constitucional (6), a propósito do mesmo tema, transcreve-se o seguinte:
«A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre aos quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução».
E, por maioria de razão, diríamos nós, se conta também aquele em que é deduzida a acusação pública.
E aquele continua: «Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura de instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas no n.º 3 do art. 283.º, do Código de processo Penal. Tal exigência decorre […] de princípios fundamentais de processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória», referindo-se ainda, no mesmo acórdão, «que tal exigência é suficientemente justificada e legitimada, “sendo a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa (7) ».
Maior clareza nos argumentos não é possível.
Nessa conformidade, concluindo o juiz de instrução que a acusação não contém todos os pressupostos – nomeadamente, de facto – de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, só lhe resta a alternativa de proferir despacho de não pronúncia, nos termos do art. 308.º, n.º 1, in fine, do CPP.
Consequentemente, é o recurso do arguido procedente, implicando a revogação do despacho recorrido na secção impugnada, ou seja, na parte em que ordena a “remessa dos autos para inquérito, a fim de ser deduzida nova acusação”.

III – DECISÃO:
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o presente recurso do arguido A, revogando-se a decisão recorrida na parte impugnada.
Sem custas, por não serem devidas.
Notifique.
Lisboa, 30 / 01 / 2007


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1.-Há manifesto lapso na indicação desta alínea, já que a correcta é a alínea b).

2.-Também aqui, tal como no início do texto transcrito, se fala, por lapso, em acusação particular, sendo certo que a acusação deduzida nos autos é da autoria do MP.

3.-Publicado no DR, SÉRIE I-A de 2005-11-04, que fixou jurisprudência no seguinte sentido: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do art. 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido»

4.-Sublinhado da nossa autoria.

5.-Idem.

6.-Acórdão n.º 358/04, de 19/05, in Proc. 807/03, publicado no DR 2.ª série, de 28/06/04.

7.-Negrito e itálico da nossa autoria.

(Texto elaborado em computador e revisto pelo relator, o primeiro signatário – art. 94.º, n.º 2, do CPP).