Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
17152/18.6T8SNT.L1-7
Relator: CRISTINA COELHO
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
USUFRUTUÁRIO
LEGITIMIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/19/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: 1. O usufruto (direito real de gozo) constituído sobre quota de comproprietário persiste com a alienação do direito de propriedade/compropriedade.
2. Não obstante, o usufrutuário é parte legítima na ação de divisão de coisa comum, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 32º do CPC, pelas possibilidades que a sua presença potencia na ação.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
A [ Carla … ] intentou a presente ação de divisão de coisa comum contra B [ Fernando …]  e C [ Pedro …..] , alegando, em síntese:
A A. é proprietária de metade indivisa da fração autónoma designada pela letra T, correspondente ao 6º andar do prédio sito na Rua José Bento Costa, nº … em Sintra, descrito na CRP de Sintra sob o nº 18/,... … da freguesia de Santa Maria e S. Miguel, e da fração autónoma designada pela letra A, correspondente a loja na retaguarda do R/C do prédio sito na Rua Dr. António José Soares, nºs  a , Portela de Sintra, descrito na CRP de Sintra sob o 970/… … da freguesia de Santa Maria e S. Miguel.
Os RR. são proprietários da outra metade dos descritos prédios, sendo o 1º R. dono do usufruto dessa metade e o 2º R. dono da nua propriedade dessa metade, por doação do primeiro.
Os prédios não são divisíveis já que eles mesmos são frações autónomas de prédios em regime de propriedade horizontal.
A A. não é obrigada a permanecer na indivisão e pode, portanto, requerer a divisão dos imóveis.
Termina pedindo a citação dos RR. para contestarem nos termos do art. 926º, nº 1 do CPC.
Foi proferido despacho a ordenar a citação dos RR., que foi efetuada, não tendo sido apresentada contestação.
Em 29.7.2019 foi proferido o seguinte despacho, no que ora importa: “Do Usufruto. A intentou a presente ação especial de divisão de coisa comum das duas frações autónomas que identifica, contra B, titular do direito de usufruto sobre aquelas e C, titular da nua propriedade sobre as mesmas. Visa a presente ação por fim à indivisão da compropriedade. Propriedade e usufruto são direitos reais distintos. Estando determinado prédio ou prédios onerados com usufruto a favor de terceira pessoa (distinta dos comproprietários), o direito de fazer cessar a indivisão está limitado ao conteúdo do direito de nua propriedade, cuja compropriedade, com a divisão, atinge o seu termo. Contudo, o direito de usufruto manter-se-á até que se se extinga por uma das formas legalmente previstas, cfr. art. 1476º do C. Civil. Inexiste qualquer norma que determine expressamente a existência de direito de preferência na alienação da nua propriedade do bem objeto do usufruto, sendo que tem vindo a nossa jurisprudência a entender que, resultando diretamente da lei as situações de preferência legal e atenta a natureza real dos direitos em causa, não é lícita qualquer aplicação analógica quanto a casos omissos, como é o caso do usufruto. Assim, e posto isto, cumpre apreciar da legitimidade do usufrutuário demandado como parte na presente ação. * Da exceção de ilegitimidade passiva Nos termos do art. 30º nº 1 do CPC “(…) o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.”. E diz o nº 2 que “o interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.”. Em termos gerais, a legitimidade não constitui uma qualidade pessoal das partes, referente aos processos, mas uma posição delas em face do processo concreto - o interesse de cada uma delas em determinado processo (cfr. Prof. A. Varela, RLJ, Ano 114, pág. 139). Significa, pois, que “É uma posição do autor e réu, em relação ao objeto do processo, qualidade que justifica que possa aquele autor, ou aquele réu, ocupar-se em juízo desse objeto do processo” (Castro Mendes, «Direito Processual Civil», 1980, 2º, pág. 153). No tocante ao conteúdo dessa qualidade ou posição da parte em relação ao objeto do processo, é hoje pacífico, resultando do texto da lei, que tal objeto é sempre um litígio ou conflito de interesse, daqui resultando que, a legitimidade afere-se da posição das partes perante esse litígio que configuram como objeto do processo, ou seja, pela configuração que lhe é dada pelo A. Assim, a parte é sempre legítima se, se apresentar como titular da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor da PI, a pretensa relação que no processo é apresentada pelo autor, conforme dispõe o art. 30º, nº 3 do Código de Processo Civil. Ora in casu, e de acordo com a situação configurada pela Requerente na petição inicial, o sujeito da relação controvertida aí apresentada é o comproprietário / titular do direito de nua propriedade sobre os imóveis objeto dos autos. Assim, de acordo com a relação jurídica tal como é configurada pela Requerente, resulta que não tem o Requerido B interesse em contradizer, já que, não sendo titular do direito de (nua) propriedade dos imóveis, nada tem a dividir com a Requerente. Tanto basta para o 1º Requerido ser parte ilegítima, procedendo a exceção da ilegitimidade. A ilegitimidade passiva constitui exceção dilatória nos termos do disposto no art. 577º, al. e) do C.P.C., cuja verificação obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância, cfr. art. 576º, nº 2 do C.P.C.. Nestes termos e pelo exposto, julga-se procedente a exceção da ilegitimidade passiva do Requerido B e em consequência, absolve-se o mesmo Requerido da instância. Custas pela Requerente.  Notifique”.
Não se conformando com esta decisão, apelou a A., tendo, no final das respectivas alegações, formulado as seguintes conclusões, que se reproduzem:
1. Os prédios de que se pretende a divisão pertencem na proporção de metade indivisa à autora / requerente de divisão, sendo esta propriedade plena.  
2. A outra metade dos prédios pertence ao requerido C em nua propriedade e o usufruto dessa metade ao requerido B.
3. Uma vez que o requerido B é apenas titular de usufruto sobre metade da propriedade, a dona da propriedade plena da outra metade, inclui nessa sua propriedade o correspondente à outra metade do usufruto.  
4. Em sequência do art. 1404º do Código Civil, é possível também obter a divisão desse usufruto indiviso.  
5. O meritíssimo juiz a quo, ao decidir que o usufruto do requerido Fernando não é passível de divisão, violou este normativo do Código Civil.  
6. Assim, deve revogar-se a douta sentença na parte em que determina que o requerido B é parte ilegítima da ação e ordenar-se o prosseguimento dos termos da mesma conforme petição inicial da autora /requerente.
Não se mostram juntas contra-alegações.
QUESTÕES A DECIDIR
Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões da apelante (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC) a única questão a decidir é se o Requerido Fernando José Nunes Mouta é parte legítima na presente ação.
Cumpre decidir, corridos que se mostram os vistos.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A factualidade relevante é a constante do relatório supra.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A presente acção é de divisão de coisa comum.
Dispõe o nº 1 do art. 1412º do CC que “nenhum comproprietário é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa”.
Como explicam Pires de Lima e Antunes Varela, no CC Anotado, Vol. III, 2ª ed. rev. e act. (reimpressão), pág. 386, “são os reconhecidos inconvenientes da propriedade em comum que, explicando a concessão do direito legal de preferência aos consortes e a posição deste direito entre as várias preferências legais, também justificam o direito de exigir a divisão, atribuído aos consortes”.
A divisão (substancial ou do preço) pode ser feita amigavelmente, com sujeição à forma exigida para a alienação onerosa de coisa – art. 1413º, nºs 1 e 2 do CC -, ou, não se entendendo os comproprietários quanto à divisão, nos termos da lei de processo (art. 1413º, nº 1 do CC), ou seja, seguindo os termos do processo especial de divisão de coisa comum, actualmente previsto nos arts. 925º e ss. do CPC [1].
Efectivamente, dispõe o art. 925º do CPC que “todo aquele que pretenda pôr termo à indivisão de coisa comum requer, no confronto dos demais consortes, que, fixadas as respectivas quotas, se proceda à divisão em substância da coisa comum ou à adjudicação ou venda desta, com repartição do respectivo valor, quando a considere indivisível, indicando logo as provas”.
A A., comproprietária com o 2ºR. C dos imóveis identificados, e não pretendendo permanecer na indivisão, intentou a presente ação de divisão de coisa comum.
Sucede, porém, que sobre a metade indivisa pertencente ao 2ºR. incide o usufruto do 1ºR. B.
Ou seja, a nua propriedade de metade indivisa dos referidos imóveis está inscrita a favor do 2ºR., e o usufruto sobre a mesma a favor do 1ºR.
Dispõe o nº 1 do art. 1408º do CC que o comproprietário pode dispor de toda a sua quota ou de parte dela.
Pires de Lima e Antunes Varela, na obra cit., pág. 364, elucidam que este poder de disposição envolve não só a faculdade de alienação entre vivos ou de transmissão por morte, como o poder de constituição de certos direitos reais limitados, como o usufruto, ou de direitos reais de garantia, como o penhor ou a hipoteca.
Foi no âmbito deste poder de disposição que o 2ºR. constituiu o usufruto sobre a sua quota, o que fez apenas a favor do 1ºR.
Existirá co-usufruto se o mesmo for constituído a favor de duas ou mais pessoas - cfr. art. 1441º do CC.
Assim sendo, a A. não é co-usufrutuária uma vez que não é co-titular do direito de usufruto sobre a quota do 2ºR., sendo, apenas, comproprietária deste, pelo que, ao contrário do que sustenta, in casu, não tem aplicação o disposto no art. 1404º do CC [2].
Nos termos do disposto no art. 1439º do CC o “usufruto é o direito de gozar temporária e plenamente uma coisa ou direito alheio, sem alterar a sua forma ou substância”.
É um direito real de gozo, que permite ao usufrutuário usar (sem alterar a sua forma ou subsistência), fruir e administrar a coisa como faria um bom pai de família, respeitando o seu destino económico (art. 1446º do CC), limitando, nesses termos, o direito de gozo do proprietário (art. 1305º do CC) [3].
Sendo o usufruto constituído sobre uma quota em compropriedade, o usufrutuário participa das vantagens e encargos da coisa paralelamente com os outros comproprietários durante o prazo de duração do usufruto (art. 1405º, nº 1 do CC).
O usufruto é temporário, na medida em que não excede a vida do seu titular, sendo pessoa singular, e não pode durar mais de 30 anos, se for constituído a favor de pessoa coletiva (art. 1443º do CC).
O usufruto apenas se extingue nas situações elencadas no nº 1 do art. 1476º do CC, nas quais não se enquadra a situação em apreço, sendo certo que se mantém mesmo que o proprietário (ou comproprietário) aliene o seu direito (ou quota).
Como escreve José Alberto Vieira, em Direitos Reais, 2008, pág. 102, “Os atos de disposição não alteram a situação de oneração e o novo proprietário adquire a propriedade onerada com o usufruto, tal qual existia antes da alienação. E isto é em todos os caos de oneração”.
Ou seja, o usufruto (direito real de gozo) persiste com a alienação do direito de propriedade/compropriedade e, em regra, subsiste mesmo à venda executiva (art. 824º, nº 2, do CC).
É certo que a lei não prevê qualquer direito de preferência do usufrutuário na alienação da coisa, nem, consequentemente, na divisão da coisa comum.
Contudo, o usufrutuário pode renunciar ao usufruto, caso em que se extingue.
Na ação de divisão de coisa comum, sendo a coisa indivisível, realiza-se conferência com vista ao acordo dos interessados para fazer a adjudicação, e na falta de acordo sobre a mesma, a coisa é vendida, podendo os consortes concorrer à venda (nº 2 do art. 929º do CPC).
Nesta conformidade, pode o usufrutuário “participar” no acordo sobre a adjudicação das frações, no interesse de todos, nomeadamente podendo renunciar ao usufruto relativamente a uma delas, tendo a sua presença na ação várias virtualidades.
Nessa medida, estamos perante uma relação material que respeita à A. e aos RR.
Nos termos do disposto no nº 2 do art. 30º do CPC, o R. é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer, o qual se exprime pelo prejuízo que lhe advenha da procedência da ação.
E nos termos do nº 3 do mesmo preceito legal, “na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor”.
Tendo em conta a relação controvertida tal como a A. a configurou na PI, e o que supra se acaba de explanar, à A. é admissível demandar ambos os RR., nos termos do disposto no nº 1 do art. 32º do CPC.
Assim sendo, conclui-se que o 1ºR. é parte legítima na presente ação de divisão de coisa comum, ao contrário do que entendeu o tribunal recorrido.
Procede, pois, a apelação, devendo revogar-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro a considerar o 1ºR. parte legítima na ação.
As custas da ação ficam a cargo dos RR. por ficarem vencidos – art. 527º, nºs 1 e 2 do CPC.
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente a apelação, revogando-se o despacho recorrido, que se substitui por outro a julgar o 1ºR. parte legítima na ação.
Custas pelos apelados.
*
Lisboa, 2020.05.19
Cristina Coelho
Luís Filipe Pires de Sousa
Carla Câmara
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[1] E no âmbito do CPC61, nos arts. 1052º e ss., com regime essencialmente idêntico no que, ora, importa.
[2] Luís Filipe Pires de Sousa (ora 1º adjunto), em Ações Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, 2011, pág. 11, reportando-se ao referido art. 1404º, escreve que “Desta norma decorre que o regime jurídico configurado para a compropriedade é o regime jurídico da comunhão de direitos patrimoniais de direitos reais, mas não só, e não apenas do direito de propriedade. Em sede de direitos reais, pode haver comunhão noutros direitos reais de gozo, de garantia e de aquisição, c.g., co-usufruto, co-uso e habitação, co-superfície, compropriedade intelectual. Ou seja, a comunhão de direitos é um instituto vasto que engloba todos os casos em que um direito patrimonial (real ou de outro tipo) pertence em contitularidade a dois ou mais sujeitos. … A circunstância de a lei se reportar à divisão de “coisa comum” (…) não colide com este entendimento porquanto tal expressão tanto abrange a divisão de uma coisa como a divisão de um direito sobre uma coisa. O sentido a retirar da lei quando se refere à divisão de “uma coisa” é o de que a divisão tem como resultado objetivo a individualização do objeto sobre o qual passa a incidir o direito de propriedade exclusiva ou o direito (real ou de crédito) que, de contitularidade, passa a ser de titularidade singular”.
[3] O direito de propriedade do proprietário de raiz fica “comprimido”, podendo, apenas, praticar os atos que não impeçam ou limitem o uso por parte do usufrutuário, sem prejuízo de poder reagir contra o mau uso da coisa por este.