Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
4305/15.8T8SNT.L1-4
Relator: PAULA SANTOS
Descritores: DESPEDIMENTO
JUSTA CAUSA
PROVA
CLIENTES MISTÉRIO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/15/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA A SENTENÇA
Sumário: I–No caso em que o empregador contrata alguém com a finalidade de detectar falhas no serviço prestado, neste caso por um barman, num período perfeitamente delimitado no tempo, a saber, o lapso temporal coincidente com a visita efectuada – alguns minutos – visita essa destinada a aferir única e exclusivamente do desempenho profissional do trabalhador, naquela que é a parte visível e pública dessa prestação, num local de trabalho frequentado pelo público, em que o labor do trabalhador tem uma visibilidade captada por todos os que frequentam tal local, não está em causa a tutela da privacidade do trabalhador e os direitos da personalidade no contexto das relações de trabalho. O papel das denominadas “clientes mistério” consiste em assumir um comportamento que materialmente em nada se distingue de um outro qualquer cliente do Hotel, embora com vista a proceder a uma avaliação do serviço dos trabalhadores a exercer funções de barmans.

II–Não está em causa a figura do “agente provocador” que convence outrem à prática do ilícito, determina-lhe a vontade para o acto ilícito, o que constitui um “meio enganoso” de obtenção de prova. As “clientes mistério” limitam-se a observar o trabalhador na perspectiva do cliente, neste caso de um cliente qualificado para detectar as falhas da actuação do trabalhador.

III–A prova composta por duas testemunhas, “clientes mistério” não é proibida e é lícita.

IV–Provando-se que o trabalhador, barman, não registou consumos de clientes e - apropriou-se dos quantitativos pagos relativamente aos consumos não registados, ocorre justa causa para o seu despedimento.

(Sumário elaborado pela Relatora)

Decisão Texto Parcial: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa.


I–Relatório:


AA, instaurou a presente acção declarativa especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento contra BB, S.A., opondo-se ao despedimento promovido pela Ré.
***

Teve lugar a audiência de partes e, gorada a conciliação, foi a Ré notificada para apresentar o articulado de motivação do despedimento.
***

A empregadora apresentou articulado a fundamentar o despedimento, alegando que:
-é proprietária do CC, o qual oferece, entre outros, serviços de restauração;
-o Autor foi admitido ao seu serviço no dia 5 de Março de 1990, com a categoria profissional de empregado de mesa;
-em 20 de Junho de 2014 foi integrado na equipa/secção DD Bar CC, onde, apesar de manter a mesma categoria profissional –empregado de mesa – passou a exercer as funções de Barman;
-na sequência de várias queixas apresentadas ao Director Geral do Hotel relativamente a condutas de Barman´s do DD Bar, a Ré contratou uma empresa de Consultadoria de Gestão, a qual fez várias visitas presenciais aos bares do hotel durante os meses de Outubro e Novembro de 2014;
-a Ré tomou conhecimento de que o procedimento de receber pagamento em dinheiro, não registar no sistema Micros, não emitir factura, verificando-se depois que o dinheiro não constava do fecho de caixa aconteceu, pelo menos uma vez, relativamente a qualquer um dos Barmans do DD e do EE Bar, incluindo o Autor;
-nos dias 29 de Outubro de 2014 e 03 de Novembro de 2014, o Autor interagiu com duas clientes de forma cordial e educada mas sem cumprir  os procedimentos habituais instituídos pelo Hotel e conhecidos de toda a equipa, os quais estava obrigado a respeitar, mantendo-se distante e não perguntando se as mesmas pretendiam consumir mais alguma coisa, nem concretizando qualquer pergunta sobre o diagnóstico da qualidade dos produtos; não levou a conta às mesas e entregou o troco sem entregar a factura, no primeiro caso, sendo que no segundo caso não entregou o troco ou a factura, não agradeceu a visita e não convidou a cliente a voltar;
-no fecho da caixa desses dias não constava qualquer valor a título de “sobra”, mas apenas valores registados.
-o Autor subtraiu a quantia de 13€, correspondente ao valor dos consumos da primeira cliente, e 25€ correspondente ao valor dos consumos da segunda cliente;
-o Autor violou culposamente o dever de diligência que sobre ele impende.
Conclui pela licitude do despedimento, e pela improcedência da acção.
***

O Autor contestou, invocando desde logo a aplicação ao caso da presunção de ilicitude do despedimento, referida no nº3 do artigo 410º do CT, pois apesar de à data do mesmo não ser já delegado sindical, tal acontecera apenas há 5 meses, pelo que entende continuar a gozar do respectivo regime jurídico.

Impugna os factos alegados pela Ré.

Invoca a nulidade da prova produzida, alegando que a Ré funcionou como um agente instigador, agindo com abuso de direito ao contratar uma empresa de “clientes mistério” para os enviar ao DD Bar do Hotel para consumir algo e pagar em dinheiro, pelo que o tribunal não deve considerar os factos e os meios de prova em causa porquanto eles só existem, ainda que ficticiamente, dada a actuação da Ré.

Conclui pedindo.

A.Se considere ilício o despedimento com justa causa promovido pela Ré  porquanto esta, em sede de processo disciplinar, não conseguiu ilidir a presunção de que o despedimento é ilícito;
B.Caso assim se não entenda, sempre se deverá considerar ilícito o despedimento por se considerarem não provados os factos constantes do processo disciplinar;
C.Devem ser desconsiderados os factos alegadamente praticados nos dias 29 de Outubro e 3 de Novembro de 2014 porquanto os mesmos, a existirem, foram propositadamente praticados pela Ré e o exercício do direito disciplinar exercido em claro abuso de direito.
***

Foi dispensada a realização da audiência prévia e a fixação dos temas da prova.
***

Foi proferido despacho saneador, o qual conheceu da validade e regularidade da instância.
***

Foi realizado julgamento com observância do legal formalismo.
***

A sentença julgou a “ação procedente, declarando-se ilícito o despedimento do Trabalhador e, consequentemente condena-se a Empregadora a pagar ao Trabalhador: I) Uma indemnização por antiguidade que se liquida, nesta data, no montante € 29.154,58( vinte e nove mil cento e cinquenta e quatro euros e cinquenta e oito cêntimos);
II-A quantia que se apurar em incidente de liquidação, correspondente aos salários, e respetivos subsídio de férias e Natal, vencidos desde 13 de fevereiro de 2015, até ao transito em julgado da presente sentença, com referência à retribuição e diuturnidade do Trabalhador, no montante de €1.121,33 ( mil cento o vinte e um euros e trinta e três cêntimos), deduzidas as importâncias que o mesmo eventualmente tenha auferido, a título de rendimentos de trabalho, após a data do despedimento, e que não receberia se não fosse o despedimento, e subsidio de desemprego, nos termos do disposto no nº 2 e 3 do art. 390º do C. de Trabalho. “ (sic)
***

Inconformada, a Ré recorreu, concluindo nas suas alegações que
(…)
NESTES TERMOS,
E nos mais de Direito que os Venerandos Juízes Desembargadores, doutamente, suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso jurisdicional e, em consequência:
a)deve a decisão sobre a matéria de facto ser alterada nos termos reclamados e
b)o despedimento do autor considerado regular e lícito, absolvendo-se  a Ré de todo o peticionado.”
***

O Autor contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
***

A Exma Procuradora-Geral Adjunta, junto deste Tribunal da Relação, emitiu parecer no sentido de ser mantida a sentença recorrida.
***

Os autos foram aos vistos aos Exmos Desembargadores Adjuntos.
Cumpre apreciar e decidir
***

II–Objecto do Recurso.
Assente que é pelas conclusões de recurso que se afere do objecto do mesmo, no presente caso cumpre reapreciar e decidir
-da admissibilidade dos documentos juntos com as alegações de recurso;
-se o tribunal a quo errou na decisão da matéria de facto, quanto aos factos impugnados;
-se existe justa causa para o despedimento do Autor.
***

III–Questão Prévia
Relativamente aos documentos juntos com as alegações de recurso, dado que se trata de acórdãos para consulta dos juízes que compõem este tribunal, e não de meios de prova, admite-se a respectiva junção aos autos.
***

IV–Fundamentação de Facto.

São os seguintes os factos considerados provados pela primeira instância.
1.-A empregadora é proprietária do CC., com sede na Rua (…) Lisboa, doravante designado por Hotel.
2.-O Hotel oferece serviços de restauração.
3.-Para o efeito tem dois restaurantes.
4.-E dois bares, o DD Bar e o Bar EE.
5.-O trabalhador foi admitido ao serviço da empregadora no dia 5 de Março de 1990, data em que foi contratado com a categoria profissional de Empregado de Mesa.
6.-O trabalhador exerceu as funções de Empregado de Mesa até há cerca de 2 anos.
7.-A 20 de Junho de 2014 foi integrado na equipa/secção DD Bar do CC.
8.-Onde passou a exercer as funções de Barman.
9.-Por ter competência e qualificações para o efeito.
10.-Apesar de manter a categoria profissional de Empregado de Mesa.
11.-Sem desvalorização salarial.

12.-No âmbito da sua actividade de Barman, incumbia ao trabalhador:
i.-preparar e servir bebidas simples ou compostas;
ii.-cuidar da limpeza e arranjo das instalações do bar;
iii.-executar as preparações prévias do balcão;
iv.-elaborar ou mandar emitir as contas dos consumos respeitando as tabelas de preços em vigor e respectivo recebimento por parte do cliente;
v.-proceder à requisição dos artigos necessários ao funcionamento e à reconstituição das exigências; e
vi.-cuidar do asseio e higiene dos utensílios de preparação do serviço de bebidas.

13.-No exercício de tais funções, de forma a garantir os parâmetros de excelência exigidos pela empregadora o trabalhador estava ainda obrigado, a:
i.-Estabelecer afinidade com os hóspedes através de ligações acolhedoras e aconchegantes;
ii.-Manter um comportamento ético e responsável no desempenho das suas funções;
iii.-Cumprir as políticas e procedimentos definidos pela companhia garantindo que os mesmos são executados;
iv.-Executar e colaborar em todos os trabalhos relacionados com o Bar, atendendo clientes, facturando consumos, executando “Cocktail´s
v.-Dar satisfação, com maior rapidez e eficiência, a todas as solicitações dos clientes.

14.-O trabalhador estava obrigado a proceder ao registo no sistema informático Micros de todos os pedidos e pagamentos.
15.-Tinha que fazer constar do sistema quais os produtos servidos, o seu valor e a forma de pagamento.
16.-Para efectuar tais registos o trabalhador tinha, ao receber um pedido de um cliente, que abrir uma conta no sistema Micros.
17.-Onde registava o respectivo pedido.
18.-Tal registo é encerrado no momento do pagamento.
19.-Mediante a emissão da correspondente factura e a menção à forma de pagamento: com cartão ou em dinheiro.
20.-O trabalhador auferia uma remuneração base no valor de €1.089,77, acrescida da quantia de € 31.56 a título de diuturnidades, e da quantia de € 9.16 a título de prémio.
21.-À relação jurídico-laboral é aplicável o CCT celebrado entre a AHP e a FETESE -, publicado no BTE, 1.ª Série, n.º 26, de 15-07-2007, e a Revisão Global do acordo salarial celebrado entre a AHP e a FESAHT, publicado no BTE n.º 29, de 8/8/2008, cujos efeitos foram estendidos através da portaria de extensão publicada no BTE n.º 5, 08/02/2009, doravante designados genericamente por CCT`s.
22.-O trabalhador não era representante sindical.
23.-Na empregadora encontra-se constituída uma comissão de trabalhadores.
24.-O trabalhador foi alvo de um processo disciplinar em virtude de, no dia 10 de Maio de 2011, ter desobedecido ilegitimamente a uma ordem de um superior hierárquico e recusado ajudar um dos seus colegas de trabalho.
25.-Com fundamento em tal comportamento foi-lhe aplicada a sanção de 10 dias de suspensão, com perda da retribuição e da antiguidade.
26.-Tal sanção foi cumprida entre 11 de Novembro e 24 de Novembro de 2011.
27.-O contrato de trabalho que vinculou as partes cessou, no dia 13/02/2015 por decisão de despedimento proferida 12/02/2015.
28.-No dia 10 de Outubro de 2014, foi reenviada para o Director Geral do Hotel, uma queixa apresentada por uma hóspede relativamente à conduta de um Barman do DD Bar, o Sr. FF.
29.-Tal queixa levou a que a Ré fosse verificar o fecho de caixa.
30.-A empregadora contratou uma empresa de Consultoria de Gestão (GG) para fazer uma avaliação dos serviços prestados nos bares.
31.-Esta empresa levou a cabo visitas presenciais aos Bares do Hotel durante o mês de Outubro Novembro de 2014.
32.-Nessa data, integravam a equipa do DD Bar, para além do trabalhador, mais três Barmans (o Sr. FF, o Sr. HH e a Sra. II), e um Chefe de Bar (o Sr. JJ).
33.-A equipa do Bar EE era composta por 2 barmans (LL e MM), dois formandos (NN e OO) e um Chefe de Bar (o Sr. PP).
34.-Em face da avaliação efectuada pela empresa de Consultoria de Gestão (GG) considerou que os barmans recebiam pagamentos em dinheiro que não registavam no sistema nem emitiam factura e tal dinheiro não constava da caixa.
35.-A Empregadora instaurou contra o trabalhador e a cada um dos colegas Barmans das equipas do DD Bar e do Bar EE, bem como a cada um dos Chefes de Bar, Sr. PP e o Sr. JJ, um procedimento disciplinar com intenção de despedimento com justa causa.
36.-O trabalhador foi notificado da instauração do procedimento disciplinar no dia 5 de Dezembro de 2014.
37.-Nessa data foi o trabalhador suspenso preventivamente, sem perda de retribuição.
38.-Tal suspensão teve como fundamento nas suspeitas que sobre o mesmo recaíam, podendo “a sua presença na empresa ser prejudicial ao andamento do processo, desestabilizadora do bom ambiente de trabalho e provocadora de mais prejuízos patrimoniais sérios.”
39.-O trabalhador foi notificado destas decisões através de carta que lhe foi entregue em mão no dia 5 de Dezembro de 2014.
40.-Efectuado o processo prévio de inquérito para apuramento das circunstâncias de modo, tempo e lugar das infracções cometidas, veio o trabalhador a ser acusado da prática dos factos constantes da Nota de culpa que lhe foi entregue no dia 26 de Dezembro de 2014.
41.-Foi concedido ao Autor o prazo de 10 dias úteis para consultar o processo e apresentar a sua defesa, requerendo as diligências de prova que considerasse pertinentes.
42.-O trabalhador respondeu à Nota de culpa dentro do prazo.
43.-E requereu a audição de duas testemunhas, o Sr. HH e o Sr. JJ, ambos trabalhadores da empregadora.
44.-As testemunhas arroladas pelo trabalhador foram ouvidas em auto de declarações no dia 23 de Janeiro de 2015.
45.-No dia 26 de Janeiro de 2014, finda a instrução do processo disciplinar foi o mesmo remetido à Comissão de Trabalhadores para emissão do respectivo parecer.
46.-A comissão de trabalhadores emitiu parecer nos termos constantes do documento junto a fls. 42 do procedimento disciplinar apenso.
47.-No dia 12 de Fevereiro a empregadora decidiu o processo disciplinar, aplicando ao trabalhador a sanção de despedimento com justa causa, sem indemnização ou compensação, com fundamento nos factos que constam da nota de culpa que se consideraram provados.
48.-Esta decisão foi entregue em mão ao trabalhador no dia 13 de Fevereiro de 2015.
49.-Os processos disciplinares instaurados aos Barmans colegas de trabalho do trabalhador terminaram igualmente com a sanção de despedimento.

49.A.- No dia 29 de Outubro de 2014, pelas 23h01m, a Sra. QQ dirigiu-se ao balcão do DD Bar do Hotel e passados alguns minutos (cerca de 5 ms) foi atendida pelo Autor. – Conforme decisão infra.
49.B.-O Autor interagiu com a cliente de forma cordial e educada, servindo-lhe conforme solicitado um Smirnoff e um Cappuccino. – Conforme decisão infra.
49.C.- Durante o atendimento o Autor manteve-se distante não tendo perguntado à cliente se pretendia consumir mais alguma coisa, nem concretizado qualquer pergunta sobre o diagnóstico da qualidade dos consumo. – Conforme decisão infra.
49.D.- Quando a cliente solicitou a conta, o Autor levou a conta à mesa, a qual totalizava o valor de € 13,00. – Conforme decisão infra.
49.E.- A Cliente entregou ao Autor a quantia de € 20,00 para pagamento dos consumos que totalizavam a quantia de € 13,00,tendo este último entregue o troco, mas sem entregar a fatura. – Conforme decisão infra.
49.F.- O Autor não agradeceu a visita nem convidou a cliente a voltar. – Conforme decisão infra.

50.-Do fecho de caixa referente ao dia 29 de Outubro de 2014, não constava qualquer valor a título de “sobra” mas apenas os valores registados.
50.A.- No dia 3 de Novembro de 2014, a Sra. RR chegou ao DD Bar pelas 17h20m, mas apenas foi atendida 20 minutos depois, uma vez que durante este período de tempo o Autor esteve a arrumar garrafas atrás do balcão sem efectuar atendimento aos clientes nem permitir o contacto visual. – Conforme decisão infra.
50.B.-A cliente realizou o pedido por volta das 18h, concretamente, 1 Tosta Mista e 1 Sumo de Laranja e 1 Baleys. – Conforme decisão infra.
50.C.- No momento do pagamento, o Autor não apresentou a conta . – Conforme decisão infra.
50.D.- A cliente pagou os consumos às 18h45, mediante a entrega da quantia de € 30,00 ao Autor tendo ficado à espera do troco e da factura. – Conforme decisão infra.
50.E.-Passados 35 minutos, o Autor continuava sem regressar à mesa e a cliente acabou por se ir embora sem o troco e sem a respectiva factura. – Conforme decisão infra.
50.F.-O Autor atendeu a cliente de forma cordial e educada, mantendo-se no entanto distante, sem perguntar pelas preferências ou gosto da cliente, sem sugerir mais algum consumo, sem concretizar qualquer pergunta sobre o diagnóstico da qualidade dos consumos, bem como, sem agradecer a sua visita convidando-a a voltar. – Conforme decisão infra.
50.G.-Dos registos efectuados no sistema micros naquele dia, não foram lançadas, naquele período horário, as bebidas consumidas pela Sra. RR (sumo de laranja e Baleys) mas há um registo de uma tosta mista às 17h59m – CHEK 5571 - conta à qual foram adicionados às 18h51 um copo de Espumante e às 18h52 duas superbock e que foram debitadas ao quarto 1112/Sr. SS. – Conforme decisão infra.

51.-As bebidas são preparadas e servidas no próprio bar sem necessitar de intervenção de terceiros.
52.-A tosta mista tem que ser solicitada à cozinha através do sistema interno que obriga a registo/informático.
53.-Do fecho de caixa do dia 3 de Novembro de 2014, não constava qualquer valor a título de “sobra” mas apenas os valores registados.
54.-O trabalhador é reconhecido pelos seus colegas como um trabalhador diligente.
55.-O Smirnoff no DD Bar custava € 8,00.
56.-No dia 3 de Novembro o trabalhador estava de turno com o chefe do bar JJ.
57.-O sumo de laranja custava € 6,00.
58.-O Baileys custava € 9,00.
59.-Várias pessoas usavam a caixa registadora.
****

V–Apreciação do Recurso.

1.Recurso da Matéria de Facto.
A Ré expressa impugnar a matéria de facto, pretendendo sejam considerados provados os factos alegados nos artigos 15º, 31º a 36º e 38º a 47º do articulado de motivação do despedimento.
Determina o art. 662º do NCPC que “1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.”

Trata-se de um preceito imperativo, sempre que a reapreciação dos meios de prova determine um resultado diverso do alcançado pela primeira instância.

Nos termos do disposto no art. 640º do CPC, a impugnação da matéria de facto tem, no entanto, de obedecer a determinados requisitos adjectivos, a saber
“1-Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a)Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b)Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c)A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2-No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a)Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados,  incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
(…)” (sic)

No presente caso, a apelante cumpriu o ónus de impugnação da decisão da matéria de facto[1], pelo que cumpre reapreciar a matéria de facto, no que respeita aos segmentos factuais impugnados.

Preliminarmente, cumpre avaliar e decidir se a prova testemunhal constituída pelas denominadas “clientes mistério” é ou não válida.
Ao contrário do referido nas alegações de recurso da Ré, o tribunal a quo não considerou inválida esta prova, aliás, considera-a válida, embora lhe tenha merecido as maiores reservas[2], daí não a ter considerado na formação da sua convicção.

O direito à prova surge no nosso ordenamento jurídico com assento constitucional, consagrado no art. 20º da CRP, como componente do direito geral à protecção jurídica e de acesso aos tribunais.[3]

Em processo civil, o direito à prova significa que as partes conflituantes, por via da acção e da defesa, têm o direito a utilizarem a prova em seu benefício e como sustentação dos interesses e das pretensões que apresentarem em tribunal.

Esse direito à prova confere, ainda, a possibilidade de as partes conflituantes utilizarem para prova de um facto ou factos, o meio de prova que mais lhes convier, o que é determinado pela sua vontade, bem como poderem escolher o momento da sua apresentação, tendo em consideração o encerramento da audiência de discussão e julgamento.[4]

A lei processual civil consagra, em matéria de prova, dois princípios: o da disponibilidade das provas e o da livre apreciação judicial das provas[5]. De acordo com o primeiro princípio, o juiz deve apoiar a sua decisão nas provas carreadas pelas partes para o processo, embora a lei lhe atribua o poder de ordenar as diligências que entenda necessárias para a descoberta da verdade[6]
De acordo com o segundo princípio, o juiz pode apreciar livremente as provas, quer no tocante à sua admissibilidade, quer no que respeita ao seu valor probatório.[7]

No presente caso, a questão a decidir respeita ao modo como determinados meios de prova foram obtidos e decidir se o tribunal, ao formar a sua convicção, poderá entrar em linha de conta com os mesmos.

A lei processual civil não se desinteressa pelo modo como as provas são obtidas, podendo acontecer que a prova seja inadmissível, ou seja, que, por ocorrer um impedimento, não possa a mesma ser considerada na formação da convicção do julgador, nomeadamente por estar afectada de ilicitude no que respeita ao modo da sua obtenção, por violar o direito material. [8]

O Código de Processo Civil não é tão claro em matéria de nulidade das provas como o é o Código de Processo Penal, pois ali não existe um preceito idêntico ao artigo 126º do CPP, sob a epígrafe “Métodos proibidos de prova[9]. De facto, o artigo 413º do CPC determina, de forma muito abrangente, que “[O] tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto , quando seja feita por certo interessado.” Daqui resulta que o juiz deve atender, “não só às provas constituendas (produzidas em juízo) mas também às pré-constituídas (produzidas antes dele).
Do dever de o tribunal tomar em consideração todas as provas produzidas, e do direito das partes à prova decorre que a recusa de um meio de prova deve ser sempre fundamentada numa norma ou num princípio jurídico, não podendo o tribunal exercer neste campo um poder discricionário.”[10]

Prevêem-se, no entanto, limitações a este denominado “direito à prova”, que decorre do direito de acesso aos tribunais e a um processo equitativo, como sejam as  limitações ao dever de cooperação previsto no artigo 417º nº1 do CPC[11], ao consagrar como legítima a recusa de cooperar quando tal importe “a) Violação da integridade física ou moral das pessoas; b) Intromissão na vida privada ou familiar, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações; c) Violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado (…)[12]
.
Trata-se aqui de formas ilícitas de obtenção de prova que demandam a sua inadmissibilidade. Mas outras proibições existem como a prevista no artigo 497º (recusa legítima a depor), 490º (relativo às inspecções judiciais). São limitações à possibilidade de as partes se socorrerem de todos os meios de prova ao seu alcance. Acresce que as normas processuais civis em matéria de prova devem conformar-se com a normas constitucionais em matéria de direitos, liberdades e garantias[13]

Segundo João Abrantes[14], é possível “encontrar na Constituição a fonte para afastar certos meios de prova cuja admissibilidade não é expressamente repudiada pelo legislador ordinário: os meios de prova obtidos de uma forma imoral ou que implique violência, grosso modo os que são obtidos pela violação de direitos individuais (...) Essas provas são em princípio inadmissíveis, só assim não sendo quando se mostrar serem a única via possível e razoável de proteger outros valores que no caso concreto, devam ser prioritários.”

A questão da inadmissibilidade de provas não é confundível com a da ilicitude das mesmas, pois muitas vezes sucede que as provas são lícitas e ainda assim são inadmissíveis (como acontece quando as provas são oferecidas intempestivamente), não podendo ingressar no processo, discutindo-se em que medida é que sendo uma prova ilícita na sua obtenção tal possa levar à inadmissibilidade da sua aceitação, pois que, ao contrário do que sucede no processo penal, como já vimos, a lei processual civil não estatui directamente a nulidade das provas.

A prova ilícita não se confunde ainda com a  prova imoral. [15]

Diferente da questão da admissibilidade é a da apreciação da prova, ou seja, da valoração que o julgador faz do resultado da prova, sendo nesta sede que o juiz verifica qual o grau de segurança que a prova indica, e, portanto, qual a credibilidade que a mesma lhe pode merecer.

No presente caso, estamos em presença de prova testemunhal, no entanto, obtida na sequência de um contrato de prestação de serviços entre a Ré e uma empresa de Consultoria de Gestão (GG) para fazer uma avaliação dos serviços prestados nos bares daquela. Na execução de tal contrato, esta empresa levou a cabo visitas presenciais aos Bares do Hotel durante o mês de Outubro e Novembro de 2014, através dos denominados “clientes mistério”, que se dirigiram a ambos os bares da Ré, no CC, e actuaram como clientes, solicitando produtos e consumindo-os, enquanto observavam o desempenho profissional dos Barmans, por fim pagando os produtos e verificando se recebiam, de forma espontânea, a respectiva factura e troco.

Este tipo de prova não é proibido pelo nosso ordenamento jus civilístico. A lei proíbe expressamente os denominados meios de vigilância à distância, sancionando a utilização de “meios de vigilância à distância no local de trabalho, mediante o emprego de equipamento tecnológico, com a finalidade de controlar o desempenho profissional do trabalhador” (cfr. nº1 do artigo 20º), embora considerando esta utilização “lícita sempre que tenha por finalidade a protecção e segurança de pessoas e bens ou quando particulares exigências inerentes à natureza da actividade o justifiquem.” (cfr. nº2)

Trata-se de um meio absolutamente ilícito de controlar o desempenho profissional do trabalhador, visando-se preservar ao máximo a sua intimidade, subjacente que está o reconhecimento de que a relação laboral significa para o trabalhador, também, uma compressão dos seus direitos enquanto indivíduo. [16]

Em casos como o sub judice, em que o empregador contrata alguém com a finalidade de detectar falhas no serviço prestado, neste caso por um barman, num período perfeitamente delimitado no tempo, a saber, o lapso temporal coincidente com a visita efectuada – alguns minutos – visita essa destinada a aferir única e exclusivamente do desempenho profissional do trabalhador, naquela que é a parte visível e pública dessa prestação, num local de trabalho frequentado pelo público, em que o labor do trabalhador tem uma visibilidade captada por todos os que frequentam tal local, não está em causa a tutela  da  privacidade  do trabalhador e  os  direitos  da  personalidade  no contexto das relações de trabalho. O papel das denominadas “clientes mistério” consiste em assumir um comportamento que materialmente em nada se distingue de um outro qualquer cliente do Hotel, embora com vista a proceder a uma avaliação do serviço dos trabalhadores a exercer funções de barmans.

Não está em causa a figura do “agente provocador” que convence outrem à prática do ilícito, determina-lhe a vontade para o acto ilícito, o que constitui um “meio enganoso” de obtenção de prova. As “clientes mistério” limitam-se a observar o trabalhador na perspectiva do cliente, neste caso de um cliente qualificado para detectar as falhas da actuação do trabalhador.[17]

É legítimo ao empregador, e não bule com a lei, ou os princípios, nomeadamente o princípio da boa fé, e na inerente obrigação de lealdade para com o trabalhador, que afira da prestação deste, especialmente em actividades em que o prestador de trabalho está em constante contacto com o público, mas que não geram a fidelização do cliente e em que, portanto, tornam mais difícil apurar tais desempenhos quando a clientela é flutuante, volátil, e anónima, o que dificulta a reclamação.

Em face do exposto, a prova nos presentes autos, composta pelas duas testemunhas “clientes mistério” não é proibida e é lícita.

Questão diferente é a que se prende com o concreto valor probatório da prova produzida neste processo, mas trata-se de questão que encontra ressonância no princípio da livre apreciação das provas. Quanto a este aspecto, e como se refere no acórdão da Relação de Coimbra de 23-06-2015[18], “O controlo da Relação relativamente à decisão da matéria de facto pode ter, entre outras, como finalidade, a reponderação da decisão proferida. A Relação pode reapreciar o julgamento da matéria de facto e alterar – e substituir – a decisão da 1ª instância, designadamente se a prova produzida – designadamente a prova pessoal produzida na audiência final, desde que tenha sido objecto de registo – impuser decisão diversa (artº 640 nº 1 do nCPC).
Todavia, esse controlo é actuado na ausência de dois princípios que contribuem decisivamente para a boa decisão a questão de facto: o da oralidade e da imediação - a decisão da Relação não é atingida por forma oral – mas através da audição de registos fonográficos ou da leitura, fria e inexpressiva de transcrições – e sem uma relação de proximidade comunicante com os participantes processuais, de modo a obter uma percepção própria do material que há-de ter como base dessa mesma decisão.
Além disso, esse controlo orienta-se pelos parâmetros seguintes:
a)Do exercício da prova – que visa a demonstração da realidade dos factos – apenas pode ser obtida uma verdade judicial, jurídico-prática e não uma verdade, absoluta ou ontológica, matemática ou científica (artº 341 do Código Civil);
b)A livre apreciação da prova assenta na prudente convicção – i.e., na faculdade de decidir de forma correcta - que o tribunal adquirir das provas que foram produzidas (artº 607 nº 5 do nCPC).
c)A prudente obtenção da convicção deve respeitar as leis da ciência, da lógica e as regras da experiência - entendidas como os juízos hipotéticos, de conteúdo geral, desligados dos factos concretos objecto do processo, procedentes da experiência mas independentes dos casos particulares de cuja observação foram deduzidos e que, para além desses casos, pretendem ter validade para casos novos – e que constituem as premissas maiores de facto às quais são subsumíveis factos concretos;
d)A convicção formada pelo juiz sobre a realidade dos factos deve ser uma convicção subjectiva fundada numa convicção objectiva, assente nas regras da ciência e da lógica e da experiência comum ou de normalidade maioritária, e portanto, uma convicção cognitiva e não volitiva, voluntarista, subjectiva ou emocional.
e)A convicção objectiva é uma convicção argumentativa, i.e., demonstrável através de um ou mais argumentos capazes de se impor aos outros;
e)A apreciação da prova vincula a um conceito de probabilidade lógica – de evidence and inference, i.e., segundo um critério de probabilidade lógica prevalecente, portanto, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis: os elementos de prova são assumidos como premissas a partir das quais é possível extrair inferências; as inferências seguem modelos lógicos; as diversas situações podem ser analisadas de acordo com padrões lógicos que representam os aspectos típicos de cada caso; a conclusão acerca de um facto é logicamente provável, como uma função dos elementos lógicos, baseada nos meios de prova disponíveis.”

Feitos estes considerandos, passemos agora à análise da prova produzida relativamente a cada um dos factos impugnados.
Para melhor esclarecimento, este tribunal ouviu a totalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento.
*
(…)
Em face do exposto, procede parcialmente o recurso que incidiu sobre a matéria de facto.
***

2.–Da justa causa de despedimento.
Cumpre agora avaliar se os factos praticados pelo Autor justificam a aplicação da sanção de despedimento, importando averiguar se existe ou não justa causa para esse efeito.
A Ré alega que a conduta do trabalhador integra violação dos deveres consagrados nas alíneas b), c) e) e h) do nº1 do art. 128º do Código do Trabalho, segundo as quais: “b) Comparecer ao serviço com assiduidade e pontualidade; c) Realizar o trabalho com zelo e diligência; (…) e) Cumprir as ordens e instruções do empregador respeitantes a execução ou disciplina do trabalho, bem como a segurança e saúde no trabalho, que não sejam contrárias aos seus direitos ou garantias; (…) h) Promover ou executar os actos tendentes à melhoria da produtividade da empresa; a) Respeitar e tratar o empregador, os superiores hierárquicos, os companheiros de trabalho e as pessoas que se relacionem com a empresa, com urbanidade e probidade;”  (sic)
Nos termos do art. 98º do CT, “O empregador tem poder disciplinar sobre o trabalhador ao seu serviço, enquanto vigorar o contrato de trabalho”.

A posição jurídica do empregador congrega assim, no âmbito do vínculo contratual e enquanto titular da empresa (havida esta como um organização de meios, materiais e humanos), um conjunto de poderes, incluído o disciplinar, que se manifesta tipicamente pela possibilidade de reagir, por via punitiva, aplicando sanções internas aos trabalhadores cuja conduta se revele desconforme com ordens, instruções e regras de funcionamento da empresa.

No âmbito desse poder, foi aplicada ao Autor a sanção disciplinar de despedimento por factos que lhe são imputáveis.

Como afirma Abílio Neto, “a infração disciplinar está indissociavelmente ligada à ideia de comportamento ilícito e culposo do trabalhador violador de algum dos seus deveres contratuais ou legais, mas não necessariamente causador de danos patrimoniais, e, daí que as sanções laborais visem, acima de tudo, objectivos, não tanto ressarcitórios, mas de retribuição e de prevenção geral e especial, consoante decorre da respectiva tipologia, prevalentemente dirigida à pessoa do trabalhador, com excepção da sanção pecuniária que, essa sim, assume natureza patrimonial directa, ao passo que as demais, incluindo as previstas nas alíneas d) a f) do art. 366º têm apenas efeitos patrimoniais indirectos. Assim, a aplicação da regra da proporcionalidade, fixada no art. 367º, ao mandar atender à gravidade da infracção e à culpabilidade do infractor, não pode nem deve atender em primeira linha aos danos patrimoniais decorrentes do comportamento do trabalhador – vício em que incorre com demasiada frequência a nossa jurisprudência -, cuja ressarcição é prosseguida através dos meios para que remete o art. 363º, mas às imposições de prevenção geral e especial no âmbito da comunidade laboral em que o trabalhador se insere, em ordem a reparar ou prevenir a violação dos mencionados deveres.
Tanto na eleição da sanção aplicável como na sua graduação, haverá que atender ao grau de culpa do infractor (se agiu dolosamente, com negligência grave ou leve) ao valor ofendido e às demais circunstâncias atendíveis, por forma a punir diferentemente situações que, sendo aparentemente iguais, são, em si mesmas, diferentes, e de modo também a evitar o risco de aplicar sanções desproporcionadas às infracções cometidas, tendo em atenção todo o quadro que envolveu a prática de cada uma delas.”[19]

A proibição de despedimentos sem justa causa decorre do princípio constitucionalmente consagrado no art. 53º da CRP, sob a epígrafe “Segurança no emprego” e inserido no Capítulo III “Direitos, liberdades e garantias dos trabalhadores”, do Título I – “Direitos, liberdades e garantias”, da Parte I –“Direitos e deveres fundamentais”. Nos termos desse preceito legal, “É garantida aos trabalhadores a segurança no emprego, sendo proibidos os despedimentos sem justa causa …” (sic)

No plano infra constitucional, e nos termos da lei aplicável ao presente caso, o art. 338º do CT proíbe os despedimentos sem justa causa. E o art. 351º nº1 esclarece que constitui justa causa de despedimento “o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho.” (sic)

A noção de justa causa pressupõe assim:
-um comportamento ilícito e culposo do trabalhador, violador dos deveres de conduta ou de valores inerentes à disciplina laboral, que seja grave em si mesmo ou nas suas consequências - o chamado elemento subjectivo;
-a impossibilidade de subsistência da relação de trabalho – o chamado elemento objectivo;
-um nexo de causalidade entre esse comportamento e a impossibilidade de subsistência da relação laboral.[20]
Por sua vez, o nº2 do art. 351º do C.Trabalho estabelece exemplos-padrão de comportamentos que podem conduzir ao despedimento com justa causa, e o nº 3 estabelece critérios para apreciação deste conceito, a saber, o grau de lesão dos interesses do empregador, o carácter das relações entre as partes, ou entre o trabalhador e os seus companheiros, e as demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes.

Não basta assim que tenha ocorrido uma violação dos deveres a que está obrigado o trabalhador. Cumpre ademais formular um juízo sobre os efeitos reais e concretos que a infracção praticada tem na relação de trabalho, pois o apuramento da “justa causa” corporiza-se essencialmente na impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação de trabalho, que a jurisprudência tem interpretado, considerando as seguintes vertentes:
-a impossibilidade de subsistência do vínculo laboral deve ser reconduzida à ideia de inexigibilidade da manutenção vinculística;
-exige-se uma impossibilidade prática, com necessária referência ao vínculo laboral em concreto;
-e imediata, no sentido de comprometer, desde logo e sem mais, o futuro da relação contratual laboral.

Para integrar este elemento de impossibilidade da manutenção da relação laboral, torna-se necessário fazer um prognóstico sobre a viabilidade da relação contratual, no sentido de saber se ela mantém, ou não, a aptidão e idoneidade para prosseguir a função típica que lhe está cometida.

Nessa linha de entendimento, a jurisprudência dos tribunais superiores vem reafirmando que a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação laboral verifica-se quando, perante um comportamento ilícito, culposo e com consequências gravosas na relação laboral, ocorra uma situação de absoluta quebra de confiança entre a entidade patronal e o trabalhador, susceptível de criar no espírito da primeira a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do último, deixando de existir o suporte psicológico mínimo para o desenvolvimento dessa relação laboral.[21]

Este o regime legal e a respectiva interpretação jurisprudencial e doutrinal, à luz dos quais iremos analisar os factos que resultaram provados nos presentes autos, de molde a aferir, não só se a o Autor praticou qualquer comportamento ilícito porquanto violador dos seus deveres legais, como se esse comportamento, a ter ocorrido, colocou irremediavelmente em causa a relação contratual-laboral que a liga à Ré.

E aplicando os factos que resultaram provados ao Direito, não podemos deixar de dar razão à Ré.

Resulta do disposto no art. 126º nº1 do CT o princípio segundo o qual “O empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respectivas obrigações” (sic)

Com o contrato de trabalho nascem para as partes determinados direitos e deveres.

Para o que interessa à decisão desta questão, resulta provado que o Autor:
-não registou consumos de clientes nos dias 29 de Outubro e 3 de Novembro de 2014;
-apropriou-se dos quantitativos pagos relativamente aos consumos não registados.
Com a sua conduta violou os deveres previstos nas alíneas c), e) e h) do nº1 do artigo 128º do CT. Mas essencialmente, violou o dever de boa fé, estruturante das relações entre as partes no contrato de trabalho.
Agiu culposamente, na modalidade de dolo directo.
Considerando a natureza e reiteração dos comportamentos do Autor entendemos que são os mesmos suficientemente graves para inviabilizar a relação de trabalho. Tais factos põem claramente em causa a confiança da entidade patronal sobre o Autor, tanto mais que as funções que exercia pressupunham o manuseamento de dinheiro.
Acresce que ao Autor havia já sido aplicada uma sanção disciplinar, como resulta da matéria de facto, desta feita por desobediência.
Assim, e tendo em conta a culpa do Autor, que é em grau muito elevado, e a gravidade do seu comportamento, haverá que concluir que existe a impossibilidade prática de manutenção da relação laboral, pois a permanência do contrato e das relações que dele resultam são de molde a ferir, de forma exagerada e violenta, a confiança que entre Autor e Ré presidiu à elaboração do contrato de trabalho, criando na Ré a dúvida sobre a idoneidade futura da conduta do Autor, o que se traduz no rompimento imediato do contrato.
Estão, pois, verificados os requisitos da justa causa de despedimento do Autor.
Por outro lado, não se nos afigura que a sanção, ainda que a mais gravosa do leque sancionatório disponível, seja desproporcional à gravidade das infracções, tendo em conta quer a sua gravidade, manifestada por uma atitude muito reprovável, quer o grau de culpa do Autor que reiterou o seu comportamento.
Tudo visto e ponderado, decide-se revogar a sentença recorrida, e considerar a licitude do despedimento por se verificar um situação de justa causa.
Procede o presente recurso.
***

Face ao decaimento da pretensão do Apelado, as custas correm por sua conta.
***

VI–Decisão:

Face a todo o exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto por BB, S.A., e, em consequência, revogar a sentença recorrida, considerando que o despedimento do Autor pela Ré é lícito porquanto com justa causa, absolvendo-se a Ré de todos os pedidos contra ela formulados.
Custas do recurso a cargo do apelado.
Registe e notifique.


Lisboa, 15-12-2016



Relatora-Paula de Jesus Jorge dos Santos
1º adjunto-Claudino Seara Paixão
2ª adjunta-Maria João Romba



[1]Apesar de no articulado recursivo não indicar, com exactidão, as passagens da gravação em que funda o seu recurso, transcreve os excertos dos depoimentos e, em anexo, transcreve todo o depoimento, indicando aí, a propósito de cada intervenção, as passagens da gravação onde pode ser ouvido, pelo que se tem por cumprido o ónus a que alude o artigo 640º nº2 a) do CPC.
[2]Refere-se na decisão da matéria de facto:” Tal como resulta da própria alegação da Empregadora, esta contratou uma empresa de consultadoria para fazer uma avaliação dos serviços prestados pelos Barmans e fê-lo para verificar se estavam instituídos, entre eles, procedimentos ilegais.
Ainda que se considere tal prova válida, considerando-se que a apresentação de testemunhas que para tal foram contratadas não determina, por si só, uma nulidade da prova, o certo é que a afirmação da convicção do tribunal, neste caso, é necessariamente mais exigente. Exige-se, portanto, um maior rigor na narração dos factos sobre os quais depõem, e a prestação de depoimentos particularmente convincentes, coerentes e sinceros.” (sic)
[3]1. A todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legítimos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos.
2.Todos têm direito, nos termos da lei, à informação e consulta jurídicas e ao patrocínio judiciário.” (sic)
[4]Sic Rui Rangel – O Ónus da Prova no Processo Civil, 3ª edição, pág. 75.
[5]Cfr. Adriano Vaz Serra, Provas (Direito Probatório Material – 1962, pág. 14-15.
[6]Cfr. artigos 3º, 5º e 311º do CPC e 342º n1 do C.Civil. Como se afirma no Acórdão do TC nº86/88 de 13 de Abril , no sítio do Tribunal Constitucional: “Este direito de acesso aos tribunais para defesa dos seus direitos é, entre o mais, um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcia­lidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder «deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultados de umas e outras» (cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, cit. p. 364).” (sic)
[7]Cfr. artigo 607º nº5 do CPC e Vaz Serra, ob citada, pág. 15.
[8]Prova inadmissível será aquela que a lei não permite que ingresse no processo pelos mais diversos fundamentos nela previstos, a saber:
(…)
- por inadmissibilidade nos termos do nº3 do art. 519º, do Código de Processo Civil;
(…)
competindo, pois, ao juiz o controlo da admissibilidade dos meios de prova, quer das provas pré-constituídas, quer das provas constituendas. E é facultado à parte o contraditório quanto a tal admissibilidade, como decorre da norma geral do art. 517º, nº2, e mais especificamente do disposto nos art.s 542º, 554º, 578º, nº1, a contrario sensu, 635º e 637º, do Código de Processo Civil”. Manuel Tomé Soares Gomes - in “Um Olhar Sobre a Prova em Demanda da Verdade no Processo Civil”, na Separata da Revista do CEJ ( 2005), nº3, Almedina, pag. 154.
[9]“1 - São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2-São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b)Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c)Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d)Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e)Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3-Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
4-Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.”
[10]Provas Ilícitas em Processo Civil – Isabel Alexandre, pág. 232-233.
[11]Que impõe que “[T]odas as pessoas, sejam ou não partes na causa, têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspecções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os actos que forem determinados.”
[12]Cfr. nº3 do artigo 417º do CPC.
[13]Como acontece com os artigos 26º nº1, 32º nº6 da CRP.
[14]Prova Ilícita – da sua relevância no Processo Civil”, Revista Jurídica, nº7, Julho-Setembro 1986, edição da Associção Académica da Faculdade de Direito de Lisboa (AAFDL), pág.36.
[15]Isabel Alexandre in Provas Ilícitas em Processo Civil refere que “A distinção entre imoralidade e ilicitude da prova é realçada por ZEISS. Um caso de prova imoral, mas não ilícita, seria aquele que o autor narra e denomina “caso da esposa comprada”. A história é a seguinte: a mulher do demandante renuncia ao seu direito de recusar o depoimento, a troco da quantia de 1000DM. O advogado do réu, que entretanto tomara conhecimento do acordo, contesta a valoração deste depoimento por ser, na sua perspectiva, uma prova ilicitamente obtida. ZEISS vê aqui , e com razão, apenas uma circunstância a ponderar livremente pelo tribunal, de acordo com o principio da livre apreciação das provas.” (pág. 32-33).
[16]Cfr. Sónia Kietzmann Lopes in Direitos de personalidade do trabalhador à luz do código do Trabalho:
Desde logo, porquanto o trabalhador, ao disponibilizar a sua  força de trabalho,se obriga a uma prestação de natureza pessoal.
Por outro lado, porque o contrato de trabalho se  caracteriza fundamentalmente pela existência de uma
subordinação jurídica. Ora, tal subordinação traduz-se na “situação  de  sujeição,  em  que  se  encontra  o trabalhador,  de  ver  concretizado,  por  simples  vontade  do  empregador,  numa  ou noutra direcção, o dever de prestar em que está incurso”(Menezes Cordeiro, in “Manual de Direito do Trabalho” , Almedina, 1994, pág. 535). Na verdade,  conforme  dita o art. 97.º do Código do Trabalho, compete ao empregador “estabelecer os termos em que o trabalho deve ser prestado”,  o  que  faz,  nomeadamente,  definindo  o  horário  de  trabalho  a  observar  pelo trabalhador  e o local onde o  trabalho  se  realiza,  controlando o modo  de  prestação, emitindo ordens   e   ditando
a disciplina da empresa. Acresce que, no negócio  
jurídico-laboral,  o trabalhador  é,  na  grande maioria dos  casos, o contraente mais fraco, desde logo por o rendimento do trabalho constituir, também em regra, a sua única fonte de subsistência.
Assim, face ao espectro de não alcançar ou de perder esse meio de sobrevivência, o candidato ao   emprego   ou   o   trabalhador   estão – mais do que o comum dos  contraentes –psicologicamente condicionados na reivindicação dos seus direitos, liberdades e garantias.
O reconhecimento da existência desta compressão de direitos, aliado à ideia de que o trabalhador não perde o direito à individualidade, ou seja, de que não deixa de ser pessoa, só por  estar integrado na empresa,aumentou o enfoque sobre os direitos  fundamentais  do trabalhador  no âmbito da relação de trabalho e significou uma “atenção crescente à chamada  “cidadania na empresa”, isto é, aos direitos fundamentais não  especificamente  laborais,  aos direitos do cidadão, que os exerce, enquanto trabalhador, na empresa” (José João Abrantes, in “Contrato de Trabalho e Direitos Fundamentais”, Coimbra, 2005, págs. 59 e ss).
Foi  nesta esteira  que  o Código  do Trabalho,  aprovado  pela  Lei  n.º  99/2003,  de  27  de Agosto,  dedicou,  pela  primeira  vez  na  legislação  laboral  portuguesa,  um  conjunto  de  normas aos direitos  de  personalidade  do  trabalhador,  aprovado  pela  Lei  n.º  99/2003,  de  27  de Agosto.”
[17]Júlio Gomes refere-se a esta questão à luz dos princípios da boa fé e do respeito pela dignidade e integridade moral do trabalhador, afirmando que “desde logo, se não se contesta que o empregador pode exercer o seu controlo directamente ou através de outras pessoas a quem delega poderes para tanto, é já duvidosa a licitude da prática que consiste em contratar “espiões”, pessoas que vão secretamente exercer funções de vigilância, embora na aparência sejam contratadas para trabalhar ao lado das demais . Esta prática, expressamente condenada na lei italiana, não é referida pelo nosso Código, mas parece-nos que deverá considerar-se desleal e contrária à boa fé; parece-nos emergir das normas do Código , designadamente das normas sobre controlo à distância um direito do trabalhador a saber que está a ser controlado e até, por quem está a ser controlado. Concordamos, também com a jurisprudência estrangeira, designadamente francesa que tem condenado a utilização de agentes provocadores ou outras práticas similares por parte do empregador e tendemos a reputar como desleal a utilização, por exemplo, de “clientes mistério”, designadamente quando estes ofereçam subornos ou pretendam provocar os trabalhadores (nomeadamente para induzi-los à prática de infracções disciplinares). In Direito do Trabalho, Volume I – Relações Individuais de Trabalho, pág. 321-322.
[18]Processo 1534/09.7TBFIG.C1.
[19]Sic Novo Código do Trabalho e legislação complementar, 3º edição, pág. 661 – com referência ao CT/2003, mas com inteira actualidade face à Lei 7/2009 de 12 de Fevereiro.
[20]Cfr. Direito do Trabalho, Maria do Rosário Palma Ramalho, Parte II, Situações Laborais Individuais, pág 899 e 900.
[21]Nesse sentido, vejam-se, entre outros, os Acórdãos do STJ de 07-02-2007 – Proc 06S2839, de 22-04-2009 -  Proc 09S0153, de 29.04.2009 - Proc 08S3081, de 17-06-2009 - Proc 08S3698, de 03.6.2009 - Proc 08S3085, de 15-09-2010, Proc 254/07.1TTVLG.P1.S1, de 7-10-2010 - Proc 439/07.0TTFAR.E1.S1, de 13-10-2010, Proc 142/06.9//LRS.L1.S1, de 03-10-2012 – Proc 338/08.9 TTLSB.L1.S2, 4º secção, todos eles disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.


Decisão Texto Integral: