Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16180/22.1T8LSB.L1-7
Relator: MICAELA SOUSA
Descritores: PROVIDÊNCIA CAUTELAR
LOCAÇÃO FINANCEIRA
RESOLUÇÃO
ENTREGA JUDICIAL DE BEM
DECISÃO DEFINITIVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I – A providência cautelar de entrega judicial de bem dado em locação financeira, não obstante a sua natureza provisória, determina, na prática, resultados definitivos, porquanto, cancelado o registo da locação financeira e retomada a posse do bem locado, o direito que se pretende fazer valer na acção definitiva a instaurar pelo locador é a confirmação do direito alegado, ou seja, a resolução promovida com base no incumprimento contratual
II – Decretada a providência cautelar, constitui dever do Tribunal proceder à tramitação necessária para a concretização da medida de antecipação do juízo final, procedendo, se necessário, à audição das partes e apreciando se foram ou não trazidos ao processo os elementos referidos nos n.ºs 1 e 2 do artigo 21º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho e decidir em conformidade com tais elementos.
III - A antecipação da decisão final apenas não terá lugar quando o Tribunal, justificadamente, entender que o procedimento cautelar não reúne todos os elementos necessários e indispensáveis para tal.
IV – Numa situação, como a dos autos, em que no procedimento cautelar, para além da restituição dos bens locados decorrente da resolução dos contratos de locação financeira, nenhuma outra questão foi suscitada, verificando-se a citação da requerida e ausência de oposição, seja quanto à verificação dos requisitos para o decretamento da providência cautelar, seja quanto à reunião dos pressupostos para a emissão de uma decisão definitiva, face à relativa simplicidade do litígio e atentos os factos provados, que revelam o incumprimento contratual e a resolução extrajudicial, justifica-se a sua convolação e prolação antecipada da decisão definitiva.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam as Juízas na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A [ …., S.A. ], pessoa colectiva n.º ..., com sede social sita na … Lisboa apresentou, em 29 de Junho de 2022, requerimento inicial de procedimento cautelar de entrega judicial, nos termos do artigo 21.º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira[1], aprovado pelo Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho contra B  [ ….– LOGÍSTICA, LDA ] ., pessoa colectiva n.º …, com sede no Largo … Guimarães, requerendo que, sem prévia audição da requerida, seja ordenada:
a) A entrega imediata dos veículos locados, cuja apreensão deve ser solicitada às autoridades policiais e, bem assim, de toda a respectiva documentação
b) A emissão de decisão que consubstancie resolução definitiva da causa, sem necessidade da propositura de acção principal conexa, nos termos e para os efeitos do n.º 7 do artigo 21.º do RJCLF.
Alegou para tanto, em síntese, o seguinte:
- A requerente é uma sucursal de uma instituição de crédito que tem por objecto social todas as operações bancárias, financeiras e de crédito, tendo, no exercício da sua actividade, celebrado com a requerida dois contratos de locação financeira mobiliária identificados pelos n.ºs 11600153 e 11700233, através dos quais deu em locação à requerida, no âmbito do primeiro, o veículo ligeiro de mercadorias, marca IVECO, modelo DAILY 35S15V 12M3, com a matrícula XX-XX-XX e, no âmbito do segundo, dois camiões, marca IVECO, modelo STRALIS AS440S46TP, com as matrículas YY-YY-YY e 00-00-00 ;
- A requerente pagou à empresa IVECO Portugal – Comércio de Veículos Industriais, S.A., fornecedora dos bens locados, o valor correspondente ao preço dos bens;
- O prazo de duração dos contratos foi fixado em 60 e 48 meses, respectivamente e foi celebrado um acordo de recompra, entre a requerente, a requerida e a Iveco Portugal, para a eventualidade de a segunda não optar pela aquisição dos bens locados findos os contratos;
- Os bens foram entregues à requerida;
- Após sucessivas moratórias decorrentes da aplicação do Decreto-Lei n.º 10-J/2020, de 26 de Março, e subsequentes alterações contratuais, a requerida não pagou à requerente, quanto ao contrato n.º 11600153, a 56ª renda, vencida em 22 de Novembro de 2021, no valor de € 818,71 (oitocentos e dezoito euros e setenta e um cêntimo) e quanto ao contrato n.º 11700233, a 43ª renda, vencida em 22 de Outubro de 2021, no valor de € 5.393,03 e a 44ª renda, vencida em 22 de Novembro de 2021, no valor de € 5.393,03, num total de € 10.786,06 (dez mil setecentos e oitenta e seis euros e seis cêntimos);
- A requerente efectuou diversas interpelações à requerida e ao seu avalista para pagamento das rendas em atraso, sem sucesso; em 10 de Dezembro de 2021, remeteu à requerida carta registada com aviso de recepção a informar sobre a respectiva resolução contratual, indicando que os bens locados teriam de ser entregues à empresa Iveco Portugal – Comércio de Veículos Industriais, S.A.;
- A requerida não procedeu à restituição dos bens locados, o que causa prejuízos patrimoniais sérios à requerente que, com o atraso verificado na entrega dos bens locados, vão sendo agravados;
- A requerente procedeu ao cancelamento dos registos dos bens objecto dos contratos junto da Conservatória do Registo Automóvel, estando reunidos os pressupostos para a sua apreensão e a entrega imediata, assim como estão reunidos todos os elementos necessários para que o Tribunal se possa pronunciar em termos definitivos sobre a causa principal.
Em 1 de Julho de 2022 foi proferida decisão que indeferiu a requerida dispensa de contraditório e ordenou a citação da requerida, nos termos do n.º 3 do art.º 21º do RJCLF (cf. Ref. Elect. 417192914).
Citada a requerida, esta não deduziu oposição (cf. Ref. Elect. 33088946).
Em 27 de Julho de 2022 foi proferida decisão final que julgou procedente o procedimento cautelar e decretou a apreensão e entrega imediata à requerente dos veículos automóveis supra identificados e respectivos documentos, tendo indeferido a dispensa do ónus da propositura da acção principal (cf. Ref. Elect. 417870644).
Em 8 de Agosto de 2022 a requerente dirigiu aos autos um requerimento para reforma da decisão, considerando ter ocorrido lapso manifesto quanto ao indeferimento da dispensa do ónus de propositura da acção principal, porquanto consta dos autos toda a prova documental necessária à análise definitiva do litígio devendo ter lugar a antecipação do juízo sobre a causa principal (cf. Ref. Elect. 33319855).
Tal requerimento foi indeferido, conforme despacho proferido em 11 de Agosto de 2022 (cf. Ref. Elect. 418081399).
Inconformada com a decisão proferida, dela vem a requerente interpor o presente recurso, cujas alegações concluiu do seguinte modo (cf. Ref. Elect. 33364430):
A. O presente recurso de apelação vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo, em 28 de julho de 2022, que, em suma, declarou que os presentes autos não reúnem os elementos que permitam proferir decisão que antecipe o juízo acerca da causa principal.
B. Ora, a Recorrente não se pode conformar com tal entendimento, não tendo a decisão recorrida acolhido devidamente a especificidade da matéria em causa, a prova produzida e o âmbito jurídico do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira (RJCLF).
C. Pois, os presentes autos de Providência Cautelar de Entrega Judicial de Bens Móveis (Veículos) foram intentados ao abrigo do vertido no artigo 21.º, nº 1, do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira (RJCLF), aprovado pelo Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de junho, com a redação que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 265/97, de 2 de outubro e pelo Decreto-Lei nº 30/2022, de 25 de fevereiro.
D. Tendo a respetiva petição inicial sido apresentada em 29 de junho de 2022.
E. Em 28 de julho de 2022 é proferida sentença pela Mma. Juíza do Tribunal a quo considerando como provados, com relevância para a boa decisão da causa, os factos 8º a 11º, e 19º a 21º, melhor referidos no artigo 9.º do presente articulado, relativos à resolução dos contratos de locação financeira por incumprimento definitivo e à não restituição dos bens locados.
F. A sentença recorrida julgou procedente e provado o presente procedimento cautelar requerido contra a Requerida e, consequentemente, determinou o decretamento da providência requerida nos autos, sendo ordenada a entrega imediata a Recorrente do veículo ligeiro de mercadorias, marca IVECO, modelo DAILY 35S15V 12M3, com o número de série ..., com a matrícula XX-XX-XX, do camião, marca IVECO, modelo STRALIS AS440S46TP, com o número de série ... e matrícula YY-YY-YY e do camião, marca IVECO, modelo STRALIS AS440S46TP, com o número de série ..., com a matrícula 00-00-00
G. Mais, em decisão, in fine, foi proferido o seguinte: “Dispõe o nº 7 do artigo 21º do DL. 149/95 de 24 de junho que decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, exceto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso. Ora assim sucede no caso em análise dado que os elementos de facto trazidos aos autos não revestem carácter que permita a resolução definitiva do litígio entre as partes, mas tão só a apreciação da tutela cautelar pretendida. Consequentemente, indefere-se a requerida dispensa do ónus da propositura da ação principal”.
H. São requisitos para que seja decretada a providência cautelar de entrega judicial prevista no artigo 21.º, nº 1, do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira (RJCLF), a resolução do contrato por parte do locador, a não entrega pelo locatário aquele bem objeto da locação, bem como o cancelamento prévio do registo da locação financeira.
I. Requisitos que foram dados como provados, tanto assim é que o Tribunal a quo com base nos mesmos julgou procedente a providência cautelar e ordenou a entrega à Recorrente do veículo ligeiro de mercadorias, marca IVECO, modelo DAILY 35S15V 12M3, com o número de série ..., com a matrícula XX-XX-XX, do camião, marca IVECO, modelo STRALIS AS440S46TP, com o número de série ... e matrícula YY-YY-YY e do camião, marca IVECO, modelo STRALIS AS440S46TP, com o número de série ..., com a matrícula 00-00-00
J. Nos termos do disposto no nº 7 do artigo 21.º do diploma supra referido, decretada a providência cautelar o Tribunal, ouvidas as partes, antecipa o juízo sobre a causa principal.
K. Contudo, e apesar de a Requerida ter sido citada previamente, a Requerida não apresentou oposição ao presente procedimento cautelar.
L. Sendo que a ausência de oposição tem especial cominação e deve ser relevada, inclusivamente para dispensa do ónus da propositura da ação principal, sem necessidade de outro Tribunal analisar a mesma documentação e demais prova produzida.
M. Todas as oportunidades de defesa, bem como todo o contraditório, foram dados à Requerida ao longo de todo o processo.
N. Com efeito, no exercício da sua atividade, a Requerente celebrou com a Requerida 2 (dois) contratos de locação financeira mobiliária identificados pelos n.ºs 11600153 e 11700233, pelo qual deu em locação os bens melhor identificados no Anexo I aos contratos de Docs. 1 e 2.
O. Sucede que a Requerida, deixou de efetuar os pagamentos das rendas mensais a que encontrava obrigada nos termos contratos de locação financeira mobiliária identificados pelos n.ºs 11600153 e 11700233, designadamente, a renda nº 56, vencida em 22 de novembro de 2021 e as rendas nº 43, vencida em 22 de outubro de 2021, e 44, vencida em 22 de novembro de 2021, respetivamente.
P. Encontrando-se, pois, por demais provado, o incumprimento por parte da Requerida, aliás, tal facto nem sequer foi impugnado na decisão que decretou a presente providência.
Q. Nessa sequência, em 10 de dezembro de 2021, a Recorrente remeteu à Requerida cartas registadas com aviso de receção a informar sobre a respetiva resolução contratual dos 2 (dois) contratos de locação financeira mobiliária identificados pelos n.ºs 11600153 e 11700233.
R. Porém, e apesar da resolução dos 2 (dois) contratos de locação financeira mobiliária identificados pelos n.ºs 11600153 e 11700233 por incumprimento definitivo, a Requerida nunca restituiu os veículos à ora Recorrente.
S. Em face ao exposto, existem nos autos todos os elementos necessários para proferir decisão que antecipe o juízo acerca da causa principal, pelo que é desprovido de qualquer sentido que, o Tribunal a quo, para justificar o teor da decisão recorrida, tenha dito “Ora assim sucede no caso em análise dado que os elementos de facto trazidos aos autos não revestem carácter que permita a resolução definitiva do litígio entre as partes, mas tão só a apreciação da tutela cautelar pretendida.”.
T. Pelo que é incompreensível que num procedimento cautelar, onde foi carreada toda a prova possível, onde o Tribunal a quo dá como provados todos os pressupostos exigidos pelo artigo 21.º do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira (RJCLF), o Tribunal a quo determine que não se encontram reunidos todos os elementos necessários e indispensáveis para que seja proferida decisão antecipada sobre a causa principal.
U. Acresce ainda que, com refere o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 06.09.2011, cuja consulta se encontra disponível in www.dgsi.pt, o fim visado pelo legislador, com a alteração introduzida no n.º 7 do artigo 21.º do DL 149/95 de 24/06, pelo DL 30/2008, de 25/02, encontra-se expressamente enunciado no preâmbulo deste último diploma, onde se refere que se permite ao juiz decidir a causa principal após o decretamento da providência “extinguindo-se a obrigatoriedade de intentar uma ação declarativa apenas para prevenir a caducidade de uma providência cautelar”.
V. Tal desiderato legal, que determinou a formulação da norma – evitar uma ação declarativa apenas para prevenir a caducidade da providência – realiza-se com a antecipação do “juízo sobre a causa principal”, previsto no n.º 7 do artigo 21.º do DL 149/95, tendo como objeto, exclusivamente, a entrega definitiva do bem locado.
W. A coincidência entre o objeto da providência e da ação principal hipotética encontra-se estabelecida no citado preâmbulo, de forma unívoca: “uma providência cautelar e uma ação principal — que, materialmente, têm o mesmo objeto: a entrega do bem locado.” – o que aliás, conforme supra exarado o Tribunal a quo determinada na sentença ora recorrida.
X. Destes elementos interpretativos se retira a conclusão de que a entrega do bem locado constitui objeto comum da providência e do juízo definitivo sobre a causa principal, com carácter provisório na primeira decisão, tornado definitivo na segunda.
Y. Aliás, idêntico entendimento teve o Tribunal da Relação de Lisboa, que por Acórdão datado de 04.10.2011, cuja consulta se encontra disponível in www.dgsi.pt, considerou que no âmbito do regime especial da providência cautelar prevista no artigo 21.º nº 7 do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira (RJCLF), de que: “este tipo de providência cautelar (entrega judicial do bem locado) teve em vista enfrentar as situações de “periculum in mora” decorrentes do incumprimento dos contratos de locação financeira por parte dos locatários e que não são compatíveis com a natural morosidade da justiça.”.
Z. Mais considerou que: “O Legislador, neste particular, foi mais longe, na redação dada pelo DL 30/2008, de 25-2, ao nº 7, do art. 21º, do DL 149/95, de 24-6, dando ao julgador a faculdade de decidir a causa no próprio procedimento cautelar, antecipando nesse processo a resolução definitiva do litígio. Sendo o escopo do Legislador evitar a ação principal (…) Até porque um dos objetivos que em regra só se consegue com a ação principal já foi alcançado na providência cautelar em apreço: O locador poder dispor da coisa (nº 6 do citado art.º 21º do DL 149/95).”
AA. Face a tudo o exposto resulta claro que a decisão recorrida, além de nula por violação do disposto no artigo 615.º. nº 1, al. c) do CPC, violou o disposto artigo 21.º, nº 7, do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira.
BB. Nesta conformidade todo exarado na decisão recorrida deverá necessariamente soçobrar, devendo a mesma ser revogada e substituída por uma outra que ordene que seja proferida sentença que antecipe o juízo acerca da causa principal, considerando a letra e o espírito da lei consagrados no artigo 21.º, nº 7, do Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira, bem como a natureza e a finalidade do plasmado em tal normativo legal.
Termina as suas conclusões pugnando pela procedência do recurso e alteração da decisão recorrida nos termos propostos.
Não foram apresentadas contra-alegações.
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II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[2], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso. De notar, também, que o tribunal de recurso deve desatender as conclusões que não encontrem correspondência com a motivação - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2016, 3ª edição, pág. 95.
Assim, perante as conclusões da alegação da requerente/recorrente há que apreciar, para além da suscitada nulidade da decisão, se se verificam os pressupostos para a antecipação do juízo definitivo sobre a causa principal.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
O Tribunal recorrido considerou como indiciariamente provados os seguintes factos:
1. No exercício da sua actividade, a Requerente celebrou com a Requerida 2 (dois) contratos de locação financeira mobiliária identificados pelos n.ºs 11600153 e 11700233, pelo qual deu em locação os bens melhor identificados no Anexo I aos contratos de Docs. 1 e 2.
2. O veículo dado em locação contrato de locação financeira mobiliária n.º 11600153 foi o que abaixo se indica:
– 1 (um) Veículo Ligeiro de Mercadorias, marca IVECO, modelo DAILY 35S15V 12M3, com o número de série ..., com a matrícula XX-XX-XX.
3. Pelo veículo locado, a Requerente pagou à empresa IVECO Portugal – Comércio de Veículos Industriais, S.A., fornecedora do bem locado, o valor total de € 30.910,06 (trinta mil novecentos e dez euros e seis cêntimos).
4. Foi acordado e aceite pelas partes que o prazo de duração do contrato era de 60 (sessenta) meses, tendo início em 22 de Abril de 2016 e termo em 22 de Abril de 2021.
5. Conforme estipulado contratualmente, as rendas seriam pagas antecipadamente, com uma periocidade mensal, totalizando 60 (sessenta) rendas.
6. As rendas foram acordadas no montante de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros), às quais acrescia o valor do IVA à taxa legal em vigor, bem como o valor das despesas de transferência.
7. Foi também celebrado um acordo de recompra, entre a Requerente, a Requerida e a Iveco Portugal, para a eventualidade de a Requerida não optar pela aquisição do bem locado findo o contrato, obrigando-se a Iveco Portugal a adquiri-lo pelo preço do valor residual (este ponto figura como segundo ponto 6º na decisão recorrida, pelo que se procedeu à sua renumeração e todos os factos subsequentes serão renumerados por força desta correcção).
8. No âmbito da execução do respectivo contrato, a Requerente entregou à Requerida o veículo ligeiro de mercadorias objecto do contrato de locação financeira mobiliária.
9. Após sucessivas moratórias, e subsequentes alterações contratuais, a Requerida não pagou à Requerente a seguinte renda vencida:
– 56ª Renda, vencida em 22 de Novembro de 2021, no valor de € 818,71 (oitocentos e dezoito euros e setenta e um cêntimo).
10. Nos termos do artigo 27.º, n.º 2 das condições gerais do contrato celebrado entre a Requerente e a Requerida, “(…) considera-se que há incumprimento definitivo quando o Locatário (aqui Requerida) estiver em mora relativamente a uma qualquer das suas obrigações e não a cumprir no prazo que lhe for fixado pelo Locador (aqui Requerente), excepto quando a mora respeitar ao pagamento duma qualquer renda, caso em que o incumprimento definitivo se verifica automaticamente após terem decorrido 30 (trinta) dias sobre a data do respectivo vencimento.”
11. O artigo 27.º, n.º 5 das condições gerais do contrato prevê ainda que “O incumprimento definitivo pelo LOCATÁRIO (aqui Requerida) das obrigações emergentes de outros contratos celebrados com o LOCADOR (aqui Requerente), quer de locação financeira, quer de outra natureza considera-se, para todos os efeitos, como causa objectiva de perda de interesse do LOCADOR (aqui Requerente) na manutenção da vigência do presente Contrato, pelo que assiste a este último o direito de resolver o Contrato.”
12. Em 10 de Dezembro de 2021, a Requerente remeteu à Requerida carta registada com aviso de recepção a informar sobre a respectiva resolução contratual.
13. Mais alertou ainda a Requerida que o bem locado teria de ser entregue à empresa Iveco Portugal – Comércio de Veículos Industriais, S.A..
14. No contrato de locação financeira mobiliária identificado pelo n.º 11700233, os veículos dados em locação foram os que abaixo se indicam:
– 1 (um) Camião, marca IVECO, modelo STRALIS AS440S46TP, com o número de série ... e matrícula YY-YY-YY;
– 1 (um) Camião, marca IVECO, modelo STRALIS AS440S46TP, com o número de série ..., com a matrícula 00-00-00
15. Pelos bens locados, a Requerente pagou à empresa Iveco Portugal – Comércio de Veículos Industriais, S.A., fornecedora dos bens locados, o valor total de € 96.768,28 (novecentos e seis mil setecentos e sessenta e oito euros e vinte e oito cêntimos).
16. Foi acordado e aceite pelas partes que o prazo de duração do contrato era de 48 (quarenta e oito) meses, tendo início em 22 de Abril de 2017 e termo em 22 de Abril de 2021 (foi aditada a referência ao ano de 2021 como sendo o termo do contrato, em conformidade com o documento n.º 2 junto com o requerimento inicial).
17. Conforme estipulado contratualmente, as rendas seriam pagas antecipadamente, com uma periodicidade mensal, totalizando 48 (quarenta e oito) rendas.
18. As rendas foram acordadas no montante de € 2.094,03 (dois mil noventa e quatro euros e três cêntimos), às quais acrescia o valor do IVA à taxa legal em vigor, bem como despesas de transferência.
19. Foi também celebrado um acordo de recompra, entre a Requerente, a Requerida e a Iveco Portugal, para a eventualidade de a Requerida não optar pela aquisição dos bens locados findo o contrato, obrigando-se a Iveco Portugal a adquiri-los pelo preço do valor residual.
20. No âmbito da execução do respectivo contrato, a Requerente entregou à Requerida os bens objecto do contrato de locação financeira mobiliária.
21. Após sucessivas moratórias, e subsequentes alterações contratuais, a Requerida não pagou à Requerente as seguintes rendas vencidas:
– 43ª Renda, vencida em 22 de Outubro de 2021, no valor de € 5.393,03;
– 44ª Renda, vencida em 22 de Novembro de 2021, no valor de € 5.393,03.
O que perfaz o montante total de € 10.786,06 (dez mil setecentos e oitenta e seis euros e seis cêntimos).
22. Nos termos do artigo 27.º, n.º 2 das condições gerais do contrato celebrado entre a Requerente e a Requerida, “(…) considera-se que há incumprimento definitivo quando o Locatário (aqui Requerida) estiver em mora relativamente a uma qualquer das suas obrigações e não a cumprir no prazo que lhe for fixado pelo Locador (aqui Requerente), excepto quando a mora respeitar ao pagamento duma qualquer renda, caso em que o incumprimento definitivo se verifica automaticamente após terem decorrido 30 (trinta) dias sobre a data do respectivo vencimento.”
23. Em 10 de Dezembro de 2021, a Requerente remeteu à Requerida carta registada com aviso de recepção a 12/24 informar sobre a respectiva resolução contratual.
24. Mais alertou ainda a Requerida que os bens locados teriam de ser entregues à empresa Iveco Portugal – Comércio de Veículos Industriais, S.A..
25. Foi efectuado o cancelamento dos registos da locação financeira junto da Conservatória de Registo Automóvel.
26. A Requerida não procedeu à restituição dos bens locados.
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Não foram enunciados quaisquer factos dados como não provados.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Conforme decorre das conclusões da motivação do recurso interposto pela requerente, a sua discordância perante a decisão recorrida contende tão-somente com o segmento em que o tribunal recorrido apreciou o seu pedido de emissão de decisão que aprecie a causa definitivamente, sem necessidade da propositura de acção principal, tal como o permite o art.º 21º, n.º 7 do RJCLF, tendo-o indeferido considerando não estarem verificados os elementos para tanto.
Por entre a sua argumentação, a recorrente entende que, face aos factos que foram dados como provados e perante a prova documental carreada para os autos, não podia o Tribunal recorrido ter concluído como concluiu, isto é, pela inviabilidade da antecipação do juízo final sobre a causa, suscitando, desse modo, a nulidade da decisão, por violação do disposto no art.º 615º, n.º 1, c) do CPC.
As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art. 615.º do Código de Processo Civil (CPC).
Dispõe o art. 615º, n.º 1 do CPC o seguinte:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Para a correcta interpretação deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.
Conforme impõe o n.º 3 do art.º 607º do CPC, o juiz deve especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão, observando o disposto quer nesse normativo, quer no respectivo n.º 4, ou seja, o juiz deve discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas, o que fará em conformidade com a sua livre apreciação (princípio da liberdade de julgamento – cf. n.º 5 do art. 607º do CPC).
É usual verificar-se alguma confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou até entre a omissão de pronúncia (quanto a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que são convocados pelas partes – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 737.
A oposição entre os fundamentos e a decisão corresponde a “uma «construção viciosa», ou seja, […] um vício lógico da sentença: o juiz elegeu deliberadamente determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio para extrair uma dada conclusão; só que esses fundamentos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a um resultado oposto a esse, isto é, existe contradição entre os fundamentos e a decisão (por ex., toda a lógica fundamentadora da sentença apontaria para a condenação do réu no pagamento da dívida reclamada pelo autor, mas o juiz, na sentença, decreta, de modo contraditório, a absolvição do réu do pedido). Não se trata de um qualquer simples erro material (em que o juiz escreveu coisa diversa da pretendia – contradição ou oposição aparente) mas de um erro lógico-discursivo em termos da obtenção de um determinado resultado – contradição ou oposição real. O que não se confunde, também, com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção da hipótese concreta na correspondente fattispecie ou previsão normativa abstracta, vício este só sindicável em sede de recurso jurisdicional.” – cf. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, pp. 370-371.
Com efeito, a nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão não pode ser confundida com um erro de julgamento, que ocorrerá quando o juiz decide contrariamente aos factos apurados ou contra norma jurídica que impunha uma solução jurídica diferente – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 738; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Edição, p.p. 736-737 – “[…] quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante o erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correta, a nulidade verifica-se.”
No caso em apreço, em face do conteúdo da decisão, verifica-se que não ocorre a apontada nulidade decorrente de alegada oposição entre os fundamentos e a decisão. Com efeito, da sua leitura decorre de modo claro que em momento algum a senhora juíza a quo tomou qualquer posição no sentido de entender que os elementos de facto apurados seriam suficientes para antecipar a resolução final do caso, tendo, pelo contrário, após afirmar a procedência do procedimento cautelar deduzido, discorrido sobre a insuficiência dos elementos de facto apurados para fundamentar a prolação de decisão final.
Embora a argumentação aduzida seja escassa, afere-se que o tribunal recorrido apreciou essa questão e considerou não estarem reunidos os pressupostos mencionados no n.º 7 do art.º 21º do RJCLF, tendo indeferido a dispensa do ónus de propositura da acção principal (ainda que tal decisão não tenha sido expressamente vertida no dispositivo final da sentença, mas dela resultando claramente).
Assim, a conclusão de não antecipação da decisão final está em consonância com o discurso lógico-discursivo vertido no texto do despacho final, não se verificando a indicada contradição. Poderá, eventualmente, estar em causa um erro de julgamento face aos elementos de facto apurados (o que se apreciará infra por ser esse precisamente o objecto do recurso), mas tal não corresponde a qualquer nulidade da decisão, pelo que improcede, nesta parte, a argumentação recursória.
*
Nos presentes autos de procedimento cautelar, para além de solicitar a entrega imediata dos veículos objecto dos contratos de locação financeira identificados nos pontos 1., 2. e 14., a requerente, considerando estarem reunidos todos os elementos necessários para que o Tribunal se pudesse pronunciar em termos definitivos sobre a causa principal, requereu, nos termos do art.º 21º, n.º 7 do RJCLF, que, decretada a providência, fosse proferida decisão que consubstancie resolução definitiva da causa.
O Tribunal recorrido apreciou o litígio e deferiu a providência cautelar requerida, ordenando a apreensão e entrega imediata à requerente dos veículos automóveis supra identificados, objecto dos contratos de locação financeira, mas quanto à pretendida antecipação da decisão final pronunciou-se no sentido do seu indeferimento, nos seguintes termos:
“A Requerente peticionou ainda a a dispensa do ónus da propositura da acção principal.
Para tanto limita-se a fazer apelo ao disposto no nº 7 do no artigo 21º do DL. 149/95 de 24 de Junho.
Dispõe o nº 7 do no artigo 21º do DL. 149/95 de 24 de Junho que decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso.
Ora assim sucede no caso em análise dado que os elementos de facto trazidos aos autos não revestem carácter que permita a resolução definitiva do litígio entre as partes, mas tão só a apreciação da tutela cautelar pretendida.
Consequentemente, indefere-se a requerida a dispensa do ónus da propositura da acção principal.”
A recorrente insurge-se contra o assim decidido invocando a factualidade indiciariamente demonstrada, que revela a resolução do contrato de locação financeira, o cancelamento do registo e a falta de restituição dos bens locados, além da não oposição da requerida, regularmente citada para os termos do procedimento cautelar e a falta de suscitação de qualquer outra questão, para sustentar que se impunha o juízo antecipado da causa principal, pois que estão demonstrados os factos essenciais para o direito alegado, tendo sido cumprido o contraditório.
O regime jurídico do contrato de locação financeira foi introduzido no ordenamento jurídico português pelo DL 171/79, de 6 de Junho. Posteriormente, esse regime foi alterado pelo DL 149/95, de 26 de Abril, que, além do mais, alargou o objecto do contrato a quaisquer bens susceptíveis de serem dados em locação financeira, simplificou a forma do contrato (bastando o simples documento escrito), reduziu os prazos mínimos da locação e densificou os direitos e deveres das partes.
Entre o mais, o legislador, com vista a evitar a verificação de situações de periculum in mora decorrentes do incumprimento de contratos de locação financeira e facultar aos agentes económicos o acesso mais facilitado a determinado tipo de bens, protegendo ainda os interesses de mercado, reduzindo os riscos para o locador com a perda com a deterioração ou perda da coisa locada, estabeleceu uma providência cautelar especificada de natureza antecipatória, consistente na entrega judicial do bem locado ao locador e no cancelamento do registo, aplicável aos casos em que o locatário não procedesse à restituição do bem locado, depois de extinta a relação contratual, por resolução ou por caducidade.
Essa providência encontrava-se prevista no art.º 21º, n.º 1 do RJCLF que estatuía: “Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente e no cancelamento do respectivo registo de locação financeira, caso se trate de bem sujeito a registo.”
O DL 30/2008, de 25 de Fevereiro procedeu a novas alterações no regime da entrega judicial do bem locado, dispondo actualmente o n.º 1 do art.º 21º do RJCLF:
“Se, findo o contrato por resolução ou pelo decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, o locatário não proceder à restituição do bem ao locador, pode este, após o pedido de cancelamento do registo da locação financeira, a efectuar por via electrónica sempre que as condições técnicas o permitam, requerer ao tribunal providência cautelar consistente na sua entrega imediata ao requerente.”
Assim, a providência cautelar passou a ter por objecto apenas a entrega imediata da coisa locada ao requerente, passando o cancelamento do registo da locação financeira a ser efectuado em momento anterior à propositura do procedimento cautelar, sendo suficiente a prova da comunicação da resolução do contrato à outra parte, nos termos gerais (cf. art.º 17º do RJCLF).
Além disso, e para o que aqui, em concreto, releva, o n.º 7 do mencionado art.º 21º passou a dispor o seguinte: “Decretada a providência cautelar, o tribunal ouve as partes e antecipa o juízo sobre a causa principal, excepto quando não tenham sido trazidos ao procedimento, nos termos do n.º 2, os elementos necessários à resolução definitiva do caso.”
Com tal previsão pretendeu-se evitar a propositura desnecessária de acções judiciais com vista ao reconhecimento do incumprimento e da resolução do contrato de locação financeira – cf. Marco Carvalho Gonçalves, Providências Cautelares, 4ª edição, pp. 145-148.
Ora, o n.º 2 do art.º 21º do RJCLF prescreve: “Com o requerimento, o locador oferece prova sumária dos requisitos previstos no número anterior, excepto a do pedido de cancelamento do registo, ficando o tribunal obrigado à consulta do registo, a efectuar, sempre que as condições técnicas o permitam, por via electrónica.”
Em face destes normativos legais, o requerente da providência em referência deixou de estar sujeito à obrigação de intentar a acção principal, de que a providência cautelar depende, apenas para impedir a caducidade desta e a sua eventual responsabilização, salvo naquelas situações em que o tribunal entenda que o procedimento cautelar não reúne todos os elementos necessários e indispensáveis à antecipação da decisão de mérito, caso em que, mediante despacho fundamentado, deverá ordenar a notificação do requerente para os efeitos previstos nos art.ºs 373º e 374º do CPC – cf. Marco Carvalho Gonçalves, op. cit., pp. 152-153.
É sabido que a providência cautelar deve ser aquela que seja funcionalmente adequada a acautelar o efeito útil da acção principal, sendo que, via de regra, constitui um minus e um aliud em relação a esta (não visa alcançar aquilo que se pretende obter na acção principal) podendo, contudo, prosseguir diversas finalidades: uma finalidade de garantia de um direito (providência conservatória – cf. art.º 362º, n.º 1 do CPC); uma finalidade de regulação provisória de uma situação; ou uma finalidade de antecipação da tutela definitiva (providência antecipatória).
As providências com uma finalidade de antecipação da tutela destinam-se a antecipar os efeitos da acção principal e são genericamente admissíveis quando o requerente necessita da satisfação imediata do seu direito, não pode obter em tempo útil a tutela definitiva e as vantagens alcançadas por aquele são superiores às desvantagens impostas ao requerido (cf. art.º 368º, n.º 2 do CPC), mas sem que se retire objecto à acção principal de que é dependente – cf. João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Volume I, 2022, pág. 604.
Contudo, actualmente, o CPC reconhece a possibilidade de as providências cautelares assumirem outra função, qual seja a de se substituírem à própria tutela definitiva, tal como decorre da possibilidade de inversão do contencioso, prevista no art.º 369º do CPC, sucedendo, porém, que as providências que a admitem não perdem a sua natureza instrumental face à tutela definitiva, verificando-se apenas que se consolidam como tal pela inacção do requerido.
Retomando o regime jurídico da providência prevista no art.º 21º do RJCLF, está em causa um procedimento cautelar com natureza antecipatória, em que o objecto da causa principal é ali julgado, obtendo o requerente a satisfação da pretensão material que, em regra, apenas com a sentença numa acção viria a alcançar. Ou seja, nele se obtêm os efeitos próprios da decisão da acção principal.
Independentemente da questão de saber se na antecipação da decisão final se pode apreciar apenas o reconhecimento do direito à restituição do bem locado ou também, com base na mesma causa de pedir invocada, o pagamento da indemnização pelo incumprimento contratual, ou seja, se a antecipação do juízo sobre a causa principal deve respeitar apenas àquilo que na providência se apreciou e julgou provisoriamente (a imediata entrega do bem ao requerente) ou também a indemnização pretendida[3] – questão que aqui não se coloca -, há que ter presente que a antecipação do juízo implica a concretização, no próprio procedimento cautelar, dos efeitos inerentes à acção principal, em momento anterior ao percurso temporal e processual normal.
Rita Lynce de Faria, in A Tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português – Um difícil equilíbrio entre a Urgência e a Irreversibilidade, Dissertação de Doutoramento, Universidade Católica Editora, 2016, pág. 230, refere, a este propósito, que “a antecipação da tutela pode ocorrer em vários planos diferentes – o processual/formal, o jurídico/material e o concreto/de facto – sendo legítimo afirmar que, em sentido rigoroso, apenas existe tutela antecipatória quando se verifique uma equivalência no que toca às três dimensões. Quando a identidade ocorra somente parcialmente, a antecipação apenas existirá num sentido atécnico. Em primeiro lugar, no plano processual ou formal, a antecipação manifesta-se pela obtenção da mesma tutela que se obteria mais tarde, antes do momento potencialmente previsto. O que implica que através da tutela antecipatória, seja declarado o direito nos mesmos termos da decisão que se antecipa. No plano jurídico material, a antecipação identifica-se pela “aplicação das mesmas normas para os mesmos factos, de que se retira o direito subjectivo”. Finalmente, no plano concreto ou de facto, a antecipação traduz-se na obtenção precoce, pelo autor, do mesmo efeito útil executivo que apenas a tutela que se antecipa lhe asseguraria.” – apud acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6-01-2022, processo n.º 87/20.0T8CSC-A.L1-6[4].
Como tal, no contexto da antecipação da resolução final do caso prevista no n.º 7 do art.º 21º do RJCLF, o juiz antecipa a solução definitiva do litígio subsumindo os mesmos factos às mesmas previsões normativas para produzir os mesmos efeitos jurídicos, de modo definitivo, tal como sucederia na acção principal a interpor posteriormente, que é, desse modo, dispensada.
Todavia, a antecipação da decisão final depende da verificação dos requisitos para a restituição judicial provisória dos bens dados em locação.
Como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 6-04-2010, processo n.º 4602/09.1TBOER.L1-1, no procedimento cautelar para entrega do bem locado, no âmbito do contrato de locação financeira, o juiz pode decidir a causa principal logo no referido procedimento, ficando definitivamente resolvida a questão da restituição do bem com base na resolução ou caducidade, pelo que não se verifica a caducidade da providência cautelar (apreensão do veículo) quando o procedimento reúne todos os elementos necessários e indispensáveis à antecipação decisória.
Note-se, conforme se inscreveu no sumário do acórdão desta mesma Relação de 15-03-2018, processo n.º 699/17.9T8STR.L1-6, que “na providência cautelar para restituição do bem objecto da locação financeira, prevista no artigo 21º do DL 149/95 de 24/6, a decisão que procede ao juízo antecipado sobre a causa principal, a que se refere o nº 7 deste artigo, não tem de apreciar de novo a matéria de facto, nem de decidir excepções já decididas na decisão anterior que decretou a providência, apenas tendo de apreciar, após audição das partes, se foram ou não trazidos ao processo os elementos referidos nos nºs 1 e 2 do mesmo artigo”.
Assim, decretada a providência cautelar, o tribunal fica habilitado a decidir a pretensão principal, desde que proceda à audição prévia das partes e se encontre na posse de todos os elementos de facto que se revelem necessários para apreciar a causa principal de que o processo cautelar seria meramente instrumental, pois que a instauração de uma acção subsequente, para decisão sobre se o contrato de locação foi ou não devidamente resolvido, quando o bem em causa já foi entregue pelo locatário, é desnecessária quando essa questão já foi apreciada pelo tribunal cautelar de modo completo e exaustivo, daí que só o decretamento da providência permite ao tribunal a atribuição de força definitiva em relação à decisão de entrega do veículo (como se extrai, aliás, do texto do n.º 7 do art.º 21º do RJCLF) – cf. Elizabeth Fernandes, Entre a Urgência e a inutilidade da tutela definitiva, in CDP, número especial 1, pp. 49-51, apud Marco Carvalho Gonçalves, op. cit., pág. 153, nota 412.
É assim que Francisco Ferreira de Almeida, op. cit., pág. 275 realça que:
“Redundará quase sempre em completa inocuidade a intentação de uma ação declarativa apenas para prevenir a caducidade de decretada providência cautelar. Isto porque, nos termos do n.º 2 do art.º 21º, a antecipação daquele juízo só não terá lugar quando não tenham sido trazidos (aos autos do procedimento) os elementos necessários à resolução do caso […] Tudo em ordem a evitar a duplicação de ações judiciais que adviria de um procedimento cautelar e de uma ação principal com o mesmo objecto material: a entrega do bem locado ao locador”.
Impõe-se, reconhecer, pois, que não obstante a sua natureza provisória, a providência cautelar de entrega judicial de bem locado, na prática, conduz a resultados definitivos, porquanto, cancelado o registo da locação financeira e retomada a posse do bem locado, aquilo que se pretende fazer valer na acção definitiva instaurada ou a instaurar pelo locador é a confirmação do direito alegado, isto é, a resolução promovida com base no incumprimento contratual e o pagamento das prestações em dívida – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 20-01-2009, processo n.º 2791/09.9TVLSB.C1; Francisco Ferreira de Almeida, op. cit., pág. 272 – “O efeito antecipatório subjacente à providência é, nesta sede, particularmente sublimado, em clara ultrapassagem dos princípios da instrumentalidade e da provisoriedade que informam os procedimentos cautelares em geral, já que (se deferida) se permite, através dela, obter antecipadamente o mesmo efeito material (entrega do bem) e o mesmo efeito jurídico (cancelamento do registo) que normalmente só seriam alcançados com a ação principal.”
Deste modo, deferida a providência cautelar de entrega dos veículos e verificado o cancelamento do registo da locação financeira, como no caso concreto sucede, cumpria ao tribunal recorrido proceder às diligências necessárias à concretização da medida de antecipação do juízo final, ou seja, proceder à audição das partes (se tal ainda não houvesse ocorrido) e apreciar se foram ou não trazidos ao processo os elementos referidos nos n.ºs 1 e 2 do art.º 21º do RJCLF e decidir em conformidade com tais elementos.
Rui Pinto afirma que constitui dever do juiz fazer a convolação do procedimento cautelar, antecipando a própria sentença, mal haja os elementos suficientes – cf. Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pág. 600; em idêntico sentido, ao que se depreende, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 88; António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 434, que tomando posição no sentido de que a previsão do art. 369º (inversão do contencioso) do CPC de 2013 não revogou a norma do art.º 21º, n.º 7 do RJCLF por serem distintos os pressupostos de cada uma das figuras, afirmam que neste último caso, o desfecho é “imposto por lei, o mesmo é dizer que a intervenção do juiz tem natureza oficiosa, a decisão judicial proferida, mais do que uma mera inversão do contencioso, constitui uma verdadeira antecipação da resolução definitiva do litígio”.
A antecipação da decisão final apenas não terá lugar quando o tribunal, justificadamente, entender que o procedimento cautelar não reúne todos os elementos necessários e indispensáveis para tal, o que significa que, em rigor, o procedimento em apreço deixou de revestir a natureza de procedimento cautelar strictu sensu, configurando antes um “procedimento abreviado ou simplificado de condenação definitiva do locatário a entregar a coisa locada ao respectivo locador” – cf. Marco Carvalho Gonçalves, op. cit., pág. 154.
Há que ter presente que, no caso sub judice, o tribunal recorrido tomou expressa posição sobre a possibilidade de antecipar a decisão final, concluindo no sentido negativo, mas não aduziu fundamentação clara e consistente para o justificar, limitando-se a afirmar, sem qualquer concretização, que “os elementos de facto trazidos aos autos não revestem carácter que permita a resolução definitiva do litígio”, sem que se perceba quais os elementos relevantes e essenciais que, de acordo com a 1ª instância, estariam em falta para viabilizar a tutela definitiva antecipada, sobremaneira quando está demonstrada a resolução dos contratos, o cancelamento do registo e a falta de entrega dos bens e, mais do que isso, quando a requerida, regularmente citada, não deduziu qualquer tipo de oposição, não tendo colocado em crise tudo quanto foi alegado no requerimento inicial ou o conteúdo dos documentos juntos aos autos, o que, desde logo, depõe no sentido da possibilidade de o procedimento cautelar se transmutar em processo idóneo ao conhecimento definitivo do direito do locador.
Neste sentido, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 27-06-2019, processo n.º 6614/18.5T8GMR.G1:
“[…] o tribunal, nos casos em que tenha decretado [sem audição do requerido] a providência cautelar de entrega imediata ao locador dos bens locados [a qual é necessariamente precedida de pedido de cancelamento do registo de locação financeira], por virtude do fim do contrato de locação financeira resultante da sua resolução ou do decurso do prazo sem ter sido exercido o direito de compra, conhece, depois de ouvidas as partes, no próprio processo cautelar, de modo definitivo, a questão decidenda no processo principal, salvo naquelas situações em que as partes não tenham trazido ao processo os elementos necessários, entre eles ressaltando, as provas dos factos relevantes para o direito a aplicar, à resolução definitiva do caso.
O procedimento cautelar "convola-se", assim, ope legis, em processo adequado para conhecer de modo definitivo do direito do locador de ver restituídos os bens.
O processo passa a prosseguir a funcionalidade própria de uma acção de condenação do locatário dos bens a ver reconhecido o direito do locador de restituição definitiva dos bens locados. […]
Tal deve-se ao facto de se estar perante um tipo contratual cujo conjunto de obrigações se encontra fixado em termos objectivos, em que a sua celebração está sujeita à forma legal de, pelo menos, documento particular (cf. artigos 1.º e 3.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho) e as obrigações de cada uma das partes se encontram, assim, bem definidas.
Uma vez obtida a tutela cautelar do direito do credor, sem audição do locatário, através da entrega imediata dos bens, por forma a evitar o risco do seu extravio ou da sua desvalorização que o decurso dos trâmites próprios de um processo que conhecesse, logo, da causa principal sempre potenciaria, entendeu o legislador ser de aproveitar o processo existente para conhecer da causa principal, na medida em que os elementos de facto nele conhecidos e as provas nele produzidas por ocasião da apreciação do pedido de tutela cautelar sejam potencialmente os mesmos a considerar para a prolação da decisão definitiva.
A solução legislativa assenta na ideia de que a resolução definitiva da questão atinente à acção principal não demanda, por regra, a necessidade de outros elementos que não sejam os já ponderados para a prolação da decisão cautelar, apenas se impondo conceder às partes a possibilidade de proceder ao seu controlo, mediante a sua audição.
Corresponde a uma dimensão do direito de acesso aos tribunais, consagrado do artigo 20.º da Constituição, o direito de acção judicial adequada para fazer valer em juízo os direitos e interesses legalmente protegidos (n.º 5).
Segundo a própria formulação constitucional, “para a defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos”.
Cabe, assim, na discricionariedade constitutiva do legislador ordinário a previsão e a configuração das acções adequadas à obtenção da tutela judicial.
No que importa a tal matéria, as únicas exigências que decorrem daquele direito de acesso aos tribunais são as de que a acção judicial deva propiciar a obtenção de “tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações” dos direitos e interesses legalmente protegidos e que a causa seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo (n.º 4).
No direito a um processo equitativo ou a um processo justo, insere-se, como seu vector, o princípio do contraditório, consubstanciado no direito de a parte alegar as suas razões de facto e de direito, de oferecer as suas provas, de controlar as provas do adversário e de discretear sobre o valor e resultados de umas e outras (cf., entre muitos, Acórdão n.º 249/97, disponível em www.tribunalconstitucional.pt).
Tal princípio não tem, todavia, a natureza de um direito absoluto, sendo constitucionalmente admissível, para realizar outros valores constitucionais, como a celeridade processual (cf. Acórdão n.º 1193/96, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 35.º, pagina 529 e seguintes) e a efectividade da tutela jurisdicional, que o momento do seu exercício possa ser deferido (cf. Acórdãos n.ºs 259/00 e 303/03, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt), como acontece em sede de procedimentos cautelares típicos e atípicos, nestes se inserindo o presente caso.
Assim sendo, caberá na discricionariedade do legislador ordinário, desde que respeite a axiologia constitucional, a opção de, no recorte do sistema das acções judiciais, atribuir às acções cautelares, sempre, uma função instrumental relativamente à acção principal ou, ao invés, em certos casos, “confundir” as duas acções em um só processo, de modo que a tutela seja concedida ab initio a título definitivo, com perda de toda a ideia de instrumentalidade do processo cautelar, ou a tutela definitiva se possa suceder à tutela cautelar.
Perante o que vem sendo dito, pode concluir-se não existir impedimento constitucional a que se conheça da acção principal no procedimento cautelar aqui em causa, regido pelo Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, contanto que seja observado o princípio do contraditório e o processo contenha os elementos necessários à resolução definitiva da causa (neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 62/2010, proferido no âmbito do Processo n.º 642/09 e publicado no Diário da República n.º 46/2010, Série II de 2010-03-08), tanto mais que se a requerida não deduziu oposição foi porque não quis.”
De notar, também, que nada obsta que o locador financeiro requeira a resolução definitiva da causa simultaneamente com o requerimento da providência – como ora sucede -, visando, ao fim e ao resto, uma única decisão definitiva e imediata, posto que o juiz entenda que a celeridade e a economia processual o justificam e desde que o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão definitiva.
No caso em apreço, a providência cautelar foi decretada com prévia citação da requerida que, regularmente citada, não deduziu oposição.
Assim, não sendo caso de deferimento da providência sem audição da requerida, não se impunha nova notificação desta para se pronunciar sobre a reunião dos pressupostos para a antecipação da decisão final, tanto mais que essa antecipação foi logo solicitada no requerimento inicial e a requerida, citada, não entendeu útil deduzir qualquer oposição, seja ao deferimento da providência, seja ao conhecimento da causa principal, pelo que se deve ter por cumprido o necessário contraditório.
Neste sentido parece propender Abrantes Geraldes, conforme refere Tomás Henriques, in Providência Cautelar de Entrega Judicial de Bens Objeto de Locação Financeira Diferenças e inovações no contexto da tutela cautelar[5], pág. 57:
“No entanto, e se o locador financeiro requerer a resolução definitiva ao mesmo tempo que requer a providência, pretendendo, no fundo, uma só decisão definitiva e imediata, ou o juiz entender oficiosamente que uma tal decisão será o caminho a tomar, tendo em conta a celeridade e a economia processual? Abrantes Geraldes entende que nada obsta ao deferimento dessa pretensão, desde que o contraditório do requerido tenha sido assegurado, não podendo essa decisão definitiva ocorrer de todo sem o mesmo.”
E sobre o momento mais adequado para proferir a decisão de natureza definitiva refere ainda Abrantes Geraldes, que, apesar do preceito apontar para uma separação entre a decisão cautelar e a decisão definitiva sobre a questão da entrega do bem locado, nada obsta a que a resolução definitiva seja imediatamente declarada, designadamente quando o requerente tenha solicitado no requerimento inicial a antecipação do juízo definitivo e se mostre acautelado o contraditório – cf. Temas da Reforma do Processo Civil, 4ª edição, vol. IV, pág. 339  apud acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 5-06-2010, processo n.º 5/11.6TVPRT-A.P1.
Face ao enquadramento jurídico expendido, fica ao critério do juiz determinar se o processo contém todos os elementos para logo proferir a decisão final, ou se a questão é demasiado complexa para ser decidida com apenas o que foi discutido em sede cautelar, e se o requerido carece de outros meios de defesa mais contundentes, ou seja, será o juiz o garante dos direitos constitucionalmente protegidos do requerido, recusando a prolação de decisão final quanto estes não estejam assegurados, surgindo a proposição da acção principal como a única forma de os acautelar devidamente – cf. Tomás Henriques, op. cit., pág. 60.
Num caso como o dos autos, em que para além da restituição/entrega imediata dos bens locados, decorrente da resolução dos contratos de locação financeira, nenhuma outra questão foi suscitada, na ausência de oposição, seja quanto à verificação dos requisitos para o decretamento da providência cautelar, seja quanto à reunião dos pressupostos para a emissão de uma decisão definitiva, a situação apresenta-se suficientemente simples e clara, para justificar a resolução definitiva antecipada do litígio, pois que o procedimento cautelar está munido dos elementos vitais para o efeito, designadamente documentais, seja quanto à demonstração da celebração dos contratos de locação financeira, quanto à propriedade dos bens, à resolução dos contratos e ao cancelamento do registo, o que, aliás, determinou que a providência requerida fosse decretada.
Não se vislumbra, assim, que a requerida careça de outros meios de defesa para fazer valer uma qualquer posição ou divergência, que sequer cuidou de trazer aos autos, pelo que, ao contrário da posição assumida pela 1ª instância, não se vislumbra fundamento para remeter a decisão final para uma posterior acção.
Constituem requisitos do procedimento de restituição provisória do bem dado em locação e, por conseguinte, requisitos da antecipação de juízo da sua restituição definitiva: i) a resolução do contrato pelo locador ou sua caducidade pelo decurso do prazo, sem que o locatário exerça o direito de aquisição do bem; ii) a não restituição do bem pelo locatário financeiro; iii) o cancelamento prévio do registo da locação financeira.
Tal como decorre dos factos dados como provados, e não postos em causa, entre a requerente e a requerida foram celebrados dois contratos de locação financeira, identificados no ponto 1. da matéria de facto provada.
No âmbito de tais contratos, a requerente cumpriu com todas as obrigações por si assumidas: adquiriu os bens pretendidos pela requerida e concedeu-lhe o respectivo gozo.
A requerida não procedeu ao pagamento de diversas rendas acordadas nos termos descritos nos pontos 5., 6., 9., 14., 18. e 21., motivo pelo qual a requerente resolveu os contratos de locação financeira, em conformidade com o contratualmente fixado entre as partes, dirigindo à requerida as cartas datadas de 10 de Dezembro de 2021, comunicando a respectiva resolução com base no incumprimento do pagamento pontual das rendas, com base na Cláusula 27ª, n.ºs 1 e 2 – cf. pontos 10. a 12. e 22. a 23. da matéria de facto provada.
Face ao exposto, é de concluir constarem dos autos todos os elementos para a apreciação e decisão definitiva do litígio, pelo que o tribunal estava na posse de todos os elementos necessários à resolução definitiva da causa principal.
A providência cautelar aqui em referência é dependência de uma acção declarativa que se destina, em regra, a reconhecer a resolução extrajudicial ou a caducidade do contrato, ou a decretar a sua resolução judicial, e a condenar o locatário na restituição ao locador do bem locado. Mas pode ter ainda por fim, com base no mesmo fundamento de resolução ou de caducidade, o pedido cumulado do pagamento de uma indemnização complementar pelos prejuízos sofridos, nomeadamente pelos danos decorrentes da mora na restituição do bem.
O objecto da acção pode compreender, ao nível da causa de pedir, a alegação do contrato de locação financeira; do incumprimento contratual ou o decurso do prazo; dos danos decorrentes daquele incumprimento, incluindo os relativos à mora na restituição do bem locado, normalmente amparados por cláusulas penais previamente acordadas e, ao nível do pedido, a pretensão meramente declarativa da resolução extrajudicial ou da caducidade, ou a declaração extintiva de resolução judicial; a pretensão restituitória do bem locado e a pretensão indemnizatória dos danos acima mencionados.
Por seu lado, a providência cautelar inclui no seu objecto, ao nível do fundamento, a alegação do contrato de locação financeira; do incumprimento contratual ou o decurso do prazo; e porventura da lesão grave quanto ao direito de restituição do veículo, embora tal se presuma e, ao nível do pedido, a restituição do bem locado, suportada na conclusão sobre a probabilidade da existência do fundamento da resolução ou da caducidade.
Tendo em conta a pretensão da requerente no sentido de que o Tribunal profira decisão definitiva sobre aquela matéria, formulada desde logo no requerimento inicial e contendo os autos todos os elementos de prova necessários, estão substancialmente reunidas as condições para, com segurança, julgar, apreciando a título definitivo, o litígio em presença, ao abrigo do disposto no n.º 7 do artigo 21º do RJCLF – cf. no sentido de que a antecipação, no processo cautelar, do juízo sobre o mérito da causa principal depende de o autor ter alegado a causa de pedir do direito que pretende ver acautelado na acção principal, acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-05-2011, processo n.º 2275/10.8TBVS.C1, onde citando Remédio Marques, se refere: ““para que seja possível ao juiz pronunciar-se sobre o objecto da hipotética causa principal subsequente, é necessário que sobre os factos que integram a causa de pedir desta acção haja sido feita prova em sentido estrito, ou seja, que sobre os factos daquele que seria o objecto de uma causa principal, relativamente à qual a providência haveria de ter sido meramente instrumental, tenha o juiz logrado, com a prova que foi produzida, atingir uma certeza””.
Dos factos provados resulta a verificação da resolução extrajudicial dos contratos e dos respectivos fundamentos estribados na falta de cumprimento da obrigação de pagamento das rendas, em conformidade com o disposto no artigo 17º do RJCLF e ainda nos art.ºs 432º, n.º 1 e 436º, n.º 1 do Código Civil.
Tal resolução considera-se efectuada após notificação resolutória, constantes das cartas referidas em 12. e 23., estando, assim, a requerida obrigada à restituição dos bens, veículos automóveis, acima identificados.
Procede, assim, a apelação, impondo-se a alteração parcial da decisão recorrida, na parte em que indeferiu a antecipação da decisão final, procedendo ao julgamento antecipado da causa quanto à procedência da pretensão da requerente de ver reconhecido o seu direito à restituição dos veículos objecto dos mencionados contrato e condenação da requerida a satisfazê-lo.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art. 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art. 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A pretensão que a apelante trouxe a juízo merece provimento.
Dado que a requerida não influenciou a decisão recorrida nem a decisão deste recurso, não pode ser considerado vencida para os efeitos previstos no art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC.
Por sua vez, quem do recurso tirou proveito e, por isso, seria responsável pelo pagamento das respectivas custas, seria a recorrente.
No entanto, estando paga a taxa de justiça devida pela interposição do recurso porque a recorrente procedeu ao seu pagamento (cf. Ref. Elect. 33364430) e ninguém contra-alegou, e como o recurso não envolveu a realização de despesas (encargos), não há lugar ao pagamento de custas em qualquer das suas vertentes (cf. art. 529º, n.º 4 do CPC).
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar procedente a apelação, e, em consequência, alterar decisão recorrida, na parte em que indeferiu a antecipação do juízo sobre a causa principal, e, antecipando-o:
a. declarar verificada a resolução extrajudicial dos Contratos de Locação Financeira Mobiliária n.ºs 11600153 e 11700233, celebrados entre a requerente e a requerida;
b. condenar a requerida na restituição definitiva à requerente dos veículos ligeiro de mercadorias e camiões com as matrículas XX-XX-XX, YY-YY-YY e 00-00-00
Sem custas.
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Lisboa, 13 de Setembro de 2022[6]
Micaela Marisa da Silva Sousa
Cristina Silva Maximiano
Amélia Alves Ribeiro
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[1] Adiante designado pela sigla RJCLF.
[2] Adiante designado pela sigla CPC.
[3] No sentido de que a antecipação da tutela definitiva deve corresponder àquilo que foi provisoriamente apreciado, cf. os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-09-2010, processo n.º 10096/09.4TBCSC-A.L1-7; de 18-06-2099, processo n.º 6446/08.9TBVFX.L1-2; de 2-04-2010, processo n.º 4602/09.1TBOER.L1-1; do Tribunal da Relação de Coimbra de 30-06-2009, processo n.º 51/09.0TBALB-A.C1; do Tribunal da Relação de Évora de 26-02-2015, processo n.º 1/14.1T8ENT.E1; em sentido contrário, ou seja, de que o conhecimento do mérito da causa em sede cautelar não obsta a que o julgamento antecipado alcance a indemnização moratória pelo atraso na restituição do locado, cf. decisão singular proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 7-07-2009, processo n.º 5174/08.0TBVFX.L1-7, todos acessíveis na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt.
[4] Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[5] Dissertação com vista à obtenção do grau de Mestre em Direito na especialidade de Direito Forense e Arbitragem Outubro 2021, acessível em https://run.unl.pt/bitstream/10362/140703/1/Henriques_2021.pdf (consulta em 1-09-2022).
[6] Acórdão assinado digitalmente – cf. certificados apostos no canto superior esquerdo da primeira página.