Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
92/14.5TAHRT.L1-5
Relator: ARTUR VARGUES
Descritores: DEPOIMENTO INDIRECTO
PROIBIÇÃO DE PROVA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO
Sumário: - A reprodução pela testemunha do que as técnicas/assistentes, que não prestaram depoimento em audiência (sendo que não está demonstrada a verificação de qualquer das circunstâncias excepcionais mencionadas na parte final do nº 1 do artigo 129ºCPP), terão visualizado, de que teve conhecimento pela leitura do registo escrito e fotografias que fizeram, não podia ser valorado pelo tribunal recorrido, como foi, para a formação da sua convicção quanto à factualidade dada como provada em causa, pois integra efectivamente depoimento indirecto e, por conseguinte prova proibida.
- E, sendo “declarada a proibição de prova, não está em causa o vício que afecta a matéria de facto, a necessitar de um adequado esclarecimento, mas sim o expurgar do vício da nulidade que afecta a mesma decisão o que tem, em princípio, por consequência, a emissão de uma nova sentença pelo tribunal recorrido, mas expurgada do vício apontado.
- A sentença que se funda em prova nula é também ela nula – nulidade que é até do conhecimento oficioso, pois estão em causa direitos e princípios processuais fundamentais, como os do contraditório e processo justo e equitativo, tutelados pelos artigos 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa e 6º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e, sendo outra a cominação, proibições de prova que os rejeitam poderiam transformar, por via da não arguição, vícios insanáveis em vícios sanáveis - pelo que importa declarar a nulidade parcial da sentença, o que impõe a prolação de nova decisão que, analisando a restante prova, mantenha ou modifique em conformidade a matéria de facto e a respectiva matéria de direito.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o NUIPC 92/14.5TAHRT, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores - Juízo de Competência Genérica de São Roque do Pico, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi a arguida SM condenada, por sentença de 11/03/2019, pela prática de um crime de maus-tratos, previsto e punido pelo artigo 152º-A, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 1 ano e 7 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.
Foi ainda arbitrada, a título de reparação à vítima GO Ângelo Costa Oliveira pelos prejuízos sofridos, a quantia de 1.500,00 euros, que será gerida pelo director da instituição de acolhimento ou pela pessoa a quem o menor estiver confiado.
2. A arguida não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1º - Vem o presente recurso interposto da sentença condenatória proferida em primeira instância
2º - Funda-se o presente recurso nos seguintes aspetos:
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
A - Artigo 410.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a) e b), do CPP:
1 - Contradição insanável da fundamentação (quanto aos factos provados 7 a 21, 27 e 28, 29 e 31 da sentença recorrida) - art. 410.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CPP;
e, subsidiariamente,
2 - Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (quanto aos factos provados 7 a 21, 27 e 28, 29 e 31 da sentença recorrida) - art. 410.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPP;
B - Artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP:
1 - Concretos pontos de facto incorretamente julgados - art. 412.º, n.º 3, al. a), do CPP;
2 - Concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida - art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP;
MATÉRIA DE DIREITO:
1 - Depoimento indireto - art. 129.º, n.ºs 1 e 2, do CPP: proibição de valoração de prova; nulidade da sentença; inconstitucionalidade do conjunto normativo formado pelos arts. 118.º, n.º 3, 129.º, n.ºs 1 e 2, e 379.º, n.º 1, al. c), 2.a parte, do CPP, na interpretação infra descrita;
2 - Declarações para memória futura (art. 271.º, do CPP): nulidade insanável prevista no artigo 119.º, alínea c), do CPP;
3 - Inconstitucionalidade da norma prevista no artigo 271.º, do CPP, na interpretação que infra vai descrita.
Subsidiariamente,
4 - Crime praticado pela arguida;
5 - Medida da pena.
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:
3º - Contradição insanável da fundamentação (quanto aos factos provados 7 a 21, 27 e 28, 29 e 31 da sentença recorrida) - art. 410.º, n.º 2, al. b), do CPP;
Na respetiva fundamentação de facto e de direito, a sentença recorrida considerou em simultâneo que os factos provados 7 a 21 e 27 e 28, CONSUBSTANCIAVAM E NÃO CONSUBSTANCIAVAM ilícito criminal e concretamente o crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152.º - A, n.º 1, alínea a), do CP.
Em consequência, do texto da decisão recorrida, por si só, resulta CONTRADIÇÃO INSANÁVEL DA FUNDAMENTAÇÃO;
Vício esse que, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.ºs 1 e 2, alínea b) , do CPP, aqui se invoca para todos os efeitos legais.
Acaso assim não se entenda, e subsidiariamente,
4º - Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (quanto aos factos provados 7 a 21, 27 e 28, 29 e 31 da sentença recorrida)
- art. 410.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPP - e ainda contradição insanável da fundamentação (art. 410.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CPP):
A factualidade em causa, tal como se encontra descrita na decisão recorrida, não consubstancia a prática de qualquer ilícito criminal, nomeadamente do crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152.º - A, n.º 1, alínea a), do CP.
Desses factos provados e da correspondente motivação resulta com transparência que o menor, com 9 anos de idade, tinha comportamentos desviantes em ambiente escolar, desobedecendo e criando conflitos com colegas e com adultos;
Dali resulta também que a arguida tinha o menor à sua exclusiva guarda, em processo de pré-adoção, o que significa que lhe estava também cometida a educação do menor, devendo, por isso, e nomeadamente, corrigir ou tentar corrigir comportamentos e formas de estar em comunidade desconformes com os princípios, os valores e as regras comuns à vivência comunitária e aceitáveis na vida em sociedade, incutindo-lhos, e dando-lhe também o reforço positivo sempre que as condutas adotadas sejam adequadas.
É o que resulta das regras da experiência comum, nomeadamente da experiência na educação de que cada um de nós foi objeto e na educação que procuramos dar aos nossos filhos.
Ora, lendo, na decisão recorrida, os factos provados 7 a 21 e 28 e 29, e os factos não provados descritos em e), e a correspondente motivação, é facilmente percetível que a conduta adotada pela arguida nunca consubstanciou quaisquer maus tratos ou qualquer ilícito criminal, antes se integrando no «poder/dever de educação-correção dos pais (ou das pessoas que, nos termos do art. 152.º-A, os substituam) [que] pode justificar certos castigos corporais ou privações da liberdade» - cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2.a Edição, anotação ao art. 152.º, §14, pág. 520 e 521 da autoria de Américo Taipa de Carvalho.
Note-se que quanto ao facto provado 28, não vem dado como provado que tenha sido a arguida a colocar na mala do menor roupa suja e imprópria para uso;
Quanto ao facto provado 16, dele próprio e da correspondente Motivação resulta que as «duas palmadas nas nádegas do menor» foram dadas pela arguida em consequência do grave e mau comportamento deste na escola, assim se integrando no âmbito do «poder/dever de educação-correção dos pais (ou das pessoas que, nos termos do art. 152.º-A, os substituam)» e revelaram-se «necessárias, adequadas, proporcionais e razoáveis» - cfr. Comentário Conimbricense na anotação supra citada.
Quanto ao facto provado 10 e à Motivação que consta da decisão recorrida, trata-se de uma situação inadvertida, que pode acontecer a qualquer pai ou mãe, sendo que, como se diz na própria decisão recorrida - na fundamentação de direito - «é questionável» que esta situação tenha «relevância jurídico-penal»;
Quanto aos demais factos provados e nomeadamente os mencionados em 8, 9, 11, 12, 13, 14, 15, 17, 18, 19, 20 e 21, e correspondente Motivação íntegram-se, uns, na vida comum de qualquer família devidamente estruturada (deixarmos os nossos filhos em casa dos avós, ou na nossa casa com os avós, ou, numa situação desesperada como a saúde ou o falecimento do nosso pai, na casa de pessoa amiga), outros no poder/dever de educação-correção dos pais.
Do exposto resulta, assim, que os factos provados 7 a 21 e 28 e 29 constantes da decisão recorrida não consubstanciam qualquer ilícito criminal, nomeadamente o crime de maus tratos p. p. pelo art. 152.º-A, n.º 1, al. a), do CP.
Ou seja, da decisão recorrida, por si só e/ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta que há INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA, no que concerne aos factos provados 7 a 21, e 27 e 28, nos termos do disposto no art. 410.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do CPP
Mais: verifica-se igualmente, nesta parte, CONTRADIÇÃO INSANÁVEL NA FUNDAMENTAÇÃO - novamente se invocando assim o disposto no art. 410.°, n.°s 1 e 2, al. b), do CPP. já que os factos provados 29 e 31 são incompatíveis com aqueles outros factos provados 7 a 21 e 27 e 28. Pelas razões que acabaram de expor-se.
Vícios estes que, nos termos daqueles dispositivos legais, aqui se invocam para todos os efeitos legais.
B - Artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP:
5º - Concretos pontos de facto incorretamente julgados - art. 412.º, n.º 3, al. a), do CPP:
FACTOS PROVADOS DA DECISÃO RECORRIDA:
«...
22. No dia 4 de Junho de 2014, após regressar do continente nacional, na residência ocupada pela arguida e pelo menor GO , aquela desferiu um número não concretamente apurado de pancadas com uma colher de pau que atingiram GO nas costas e nas nádegas após ter tido conhecimento do mau comportamento deste no estabelecimento de ensino.
23. Em consequência do relatado em 22), o menor GO sofreu dores e lesões nas zonas atingidas;
29. A arguida não se coibiu de agir da forma supra descrita, bem sabendo que o GO era apenas uma criança, indefesa em razão da sua idade, e que aquele tinha sido confiado à sua guarda;
30. A arguida ao bater no menor GO de forma violenta com uma colher de pau quis molestar a criança fisicamente e na sua saúde, pessoa frágil e indefesa em razão da sua idade, como molestou;
31. Em todas as circunstâncias referidas, a arguida agiu sempre de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.»
2 - Concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida - art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP:
Na fundamentação da decisão da matéria de facto - e no que respeita aos factos que acima se elencaram como incorretamente julgados o tribunal afirma ter fundado a sua convicção num conjunto de provas produzidas em audiência de discussão e julgamento, conjugadas com as regras da experiência comum;
Dá-se aqui por reproduzida na íntegra a fundamentação de facto da sentença quanto aos factos provados acima elencados e incorretamente julgados
O tribunal não deu, assim, relevância ao depoimento da arguida - que negou ter desferido pancadas no corpo do menor GO com uma colher de pau após o seu regresso à ilha do Pico - tendo em conta os restantes meios de prova, quer os produzidos em sede de audiência de julgamento quer os constantes em sede de inquérito, e que logo de seguida passou a examinar e que são os seguintes:
- o depoimento da testemunha JN  ;
- as assistentes/técnicas que prestavam apoio na instituição de acolhimento que visualizaram, na hora do banho, as nódoas negras que o menor apresentava na região nadegueira, técnicas essas a quem o menor confirmou que tais lesões tinham sido provocadas pela arguida com uma colher de pau;
- as declarações para memória futura do menor;
- o relatório do INML da perícia de avaliação do dano corporal, de fls. 34 a 36;
- as regras da experiência comum.
Sucede, porém, que estas provas foram erradamente analisadas pelo tribunal, antes impondo, no seu conjunto, decisão diversa;
Quanto ao depoimento da testemunha JN  , na parte em que se reportou ao que ouviu dizer às assistentes/técnicas, e atendendo a que estas nunca foram ouvidas nos autos, nem na fase do inquérito, nem na audiência de julgamento, traduz depoimento indireto previsto no artigo 129.º, do CPP, que não pode, nessa parte, servir como meio de prova uma vez que o tribunal não chamou a depor aquelas técnicas a quem, alegadamente, se ouviu dizer.
Sendo assim, não podia o tribunal ter valorado o depoimento da testemunha JN na parte em que «confirmou, em sede de audiência de julgamento, que as assistentes que prestavam apoio na instituição de acolhimento, visualizaram, na hora do banho, que o menor GO apresentava nódoas negras na região nadegueira»;
Nem podia o tribunal ter valorado o depoimento desta testemunha JN na parte em que esta afirmou que «o menor, na altura em que as técnicas visualizaram as lesões, confirmou que as mesmas tinham sido provocadas pela arguida através de uma colher de pau»;
Trata-se, pois, de proibição de valoração de prova que, no entanto, a decisão recorrida violou.
Ao fazê-lo a decisão recorrida conheceu de questão de que não podia conhecer, sendo, por isso, nula, nos termos do disposto nos arts. 118.º, n.º 3, 129.º, n.º 1 e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP.
Acaso, porventura, assim não se entenda, desde já se invoca a inconstitucionalidade desse conjunto normativo (arts. 118.º, n.º 3, 129.º, n.º 1 e 379.º, n.º 1, al. c), do CPP) quando interpretado no sentido de que o tribunal pode, na sentença, valorar provas e concretamente depoimentos de testemunhas que não tenham sido produzidos em audiência de julgamento, ainda que não se verifiquem os casos previstos no n.º 2, do art. 355.º do CPP.
Na verdade, esta interpretação viola o princípio da imediação que tem natureza constitucional já que íntegra o princípio do Estado de Direito previsto no art. 2.º da CRP (cfr. acs. do TC n.ºs 394/89, 172/92, 212/93, 1183/96, 1052/96 e 87/99) e, nessa medida, viola as garantias de defesa do arguido consagrados no art. 32.º, n.º 1, do CRP.
Ainda no que respeita ao depoimento da testemunha JN , diz- se na decisão recorrida que esta «...testemunha referiu que o menor lhe confidenciou a versão que teria dito às técnicas/auxiliares...»
O que só pode constituir um grave lapso do Tribunal recorrido.
Com efeito, a testemunha nunca fez essa afirmação no respetivo depoimento.
Veja-se, nessa parte, o depoimento da testemunha JN em audiência de julgamento (por referência à respetiva ata) cuja transcrição consta da motivação supra e que por razões de economia e celeridade processuais se dão aqui por reproduzidas na íntegra.
Como resulta deste depoimento, nunca a testemunha afirmou que o menor lhe confidenciou a versão que alegadamente terá contado às técnicas, ou seja, que aquelas lesões nas nádegas e nas costas teriam sido causadas pela aqui arguida;
O que a testemunha afirmou foi, sim, que o menor não lho contou a si, testemunha JN ;
Terá contado às técnicas, que, por sua vez, o reduziram a escrito em documento que a testemunha terá lido.
E aqui, o resultado é o mesmo: trata-se de depoimento indireto, como se determina no n.º 2, do mesmo art. 129.º, do CPP, já que estamos perante depoimento que resulta da leitura de documento da autoria de pessoa diversa da testemunha.
Nessa medida, valem aqui as mesmas considerações jurídicas que supra se teceram a propósito do depoimento indireto que resultou do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, depoimento esse que, também neste caso, não pode servir como meio de prova porque o tribunal não chamou a depor o autor do documento que a testemunha terá lido.
Trata-se igualmente de prova proibida, que resulta em nulidade da decisão recorrida, nos termos do disposto das disposições conjugadas dos arts. 118.º, n.º 3, 129.º, n.ºs 1 e 2, e 379.º, n.º 1, al. c) 2.a parte, do CPP.
Acaso, porventura, assim não se entenda, invoca-se também aqui a inconstitucionalidade desse conjunto normativo (arts. 118.º, n.º 3, 129.º, n.ºs 1 e 2, e 379.º, n.º 1, al. c) - 2.a parte, do CPP) quando interpretado no sentido de que o tribunal pode, na sentença, valorar provas e concretamente depoimentos de testemunhas, verbais ou constantes de documento, que não tenham sido produzidos em audiência de julgamento, ainda que não se verifiquem os casos previstos no n.º 2, do art. 355.º do CPP, tudo por violação do princípio da imediação e do princípio do Estado de Direito previsto no art. 2º da CRP (cfr. acs. do TC n.ºs 394/89, 172/92, 212/93, 1183/96, 1052/96 e 87/99) e, nessa medida, por violação das garantias de defesa do arguido consagrados no art. 32º, n.º 1, do CRP.
Ainda quanto a esta mesma testemunha, JN , cabe dizer que a mesma afirmou no respetivo depoimento que só visualizou as lesões do menor no dia em que o mesmo foi submetido ao exame que viria a originar o relatório do INML de fls. 34 a 36, ou seja, no dia 09/06/2014, e não nos dias anteriores;
Por outro lado, resulta do depoimento desta testemunha que, durante o referido exame no INML, o menor pura e simplesmente não falou;
Foi a própria testemunha quem relatou ao médico respetivo a origem das lesões evidenciadas pelo menor, o que fez na presença do mesmo menor;
Mais afirmou a mesma testemunha que, perante a descrição que esta fez ao médico, o menor tê-la-á confirmado, dizendo apenas "sim” ou "abanando a cabeça”, não conseguindo a testemunha recordar com rigor como tal sucedeu (cfr. transcrição do depoimento desta testemunha constante da motivação supra desde 00:36:49, até 00:37:43).
E, mais à frente, a instâncias do Senhor Juiz, a testemunha confirmou que, naquele exame médico, o menor “estava realmente completamente fechado e não dizia uma palavra” (cfr. transcrição do depoimento desta testemunha constante da motivação supra desde 00:42:59, até 00:43:48).
Por outro lado, no próprio relatório do INML, de fls. 34 a 36, se afirma que “o menor tem relutância em falar no facto”.
Do exposto se infere que a descrição dos factos ao médico do INML foi feita não pelo menor, mas, sim, pela testemunha JN que ali acompanhou o mesmo, sendo que o menor, apesar de instado, nunca falou. Daí que o próprio médico, naquele relatório, se tenha visto na necessidade de escrever a citada “relutância do menor em falar”.
Ou seja, este silêncio total do menor, confirmado pela testemunha e pelo próprio relatório do INML de fls. 34 a 36, não corresponde, nem de longe nem de perto, a qualquer confirmação do que quer que seja por parte do menor e, muito menos, a qualquer "confidência” que o menor tenha feito;
O menor não confidenciou rigorosamente nada, nem à testemunha JN , nem ao médico do INML;
Pura e simplesmente fez um aceno com a cabeça, aceno esse que, muito curiosa e estranhamente, o médico não referenciou no seu relatório.
Ora, não pode esquecer-se antes de mais, que o menor, nessa data (09/06/2014), já estava institucionalizada no C.  , instituição de acolhimento de menores em que a testemunha JN trabalhava, sendo que esta mesma testemunha tinha obviamente ascendente sobre a criança - com 9 anos de idade -, pessoa que o menor não podia contrariar no que era por ela descrito atenta a reverência natural de relação entre ambos.
Daí que o menor não falasse; limitava-se e limitou-se a concordar com tudo o que a sua superior/encarregada educacional ali dizia.
Acresce que - e este é um aspeto absolutamente fundamental - a testemunha JN relatou ao médico do INML apenas aquilo que lhe terá sido alegadamente contado por outras técnicas e nunca pelo próprio menor;
O que, como se disse, tratando-se de depoimento indireto, não tem qualquer valor.
Tudo isto resulta do depoimento da testemunha JN que vai acima transcrito.
De todo o exposto resulta igualmente que toda a descrição dos factos que terão originado as lesões evidenciadas pelo menor e que foi feita constar do relatório do INML de fls. 34 a 36, não pode ser valorado como prova, nos mesmos termos mencionados acima, uma vez que o menor se limitou ao silêncio e o que foi descrito pela testemunha JN traduziu-se num depoimento indireto, isto é, do que ouviu dizer a outras pessoas.
Assim sendo, daquele relatório do INML apenas pode concluir-se com certeza que o menor apresentava as lesões aí descritas;
O mesmo não se passando quanto aos factos que terão estado na origem de tais lesões.
Refere ainda a sentença recorrida que foi fundamental para a prova dos factos provados 22 a 25 o depoimento do menor em declarações para memória futura.
Essa importância, segundo a decisão recorrida, resulta desde logo do facto de, aí, o menor ter voltado a confirmar a versão já antes transmitida à testemunha JN e às restantes técnicas da instituição de acolhimento.
Mais uma vez a sentença recorrida incorre nos mesmos vícios acima invocados, isto é, parte do princípio de que o menor confirmou à testemunha JN que havia sido a arguida que, com uma colher de pau, lhe causou as lesões mencionadas no relatório do INML de fls. 34 a 36;
Quando, como se viu atrás, o menor nada confirmou à dita testemunha, e, portanto, não pode afirmar-se que o menor “voltou a confirmar” a dita versão à mesma testemunha...
Para além disso, porque o Tribunal não chamou a depor as restantes técnicas da instituição de acolhimento, a quem alegadamente a testemunha JN terá ouvido aquela versão, não pode a decisão recorrida fundar-se no que quer que seja que tenha sido transmitido a essas técnicas; Trata-se de prova proibida, como acima se deixou consignado.
É por isso absolutamente irrelevante afirmar-se, como se faz a este respeito na sentença recorrida, que o menor confirmou e situou temporalmente os factos da mesma forma, quer nas declarações para memória futura, quer no que confirmou e voltou a confirmar à testemunha JN e às restantes técnicas;
Na verdade, não pode usar-se como termo de comparação uma situação que pura e simplesmente não existe que é o que se passa com o depoimento indireto da testemunha JN e os inexistentes depoimentos das restantes técnicas da instituição de acolhimento.
Por outro lado, e fazendo-se comparações, deve salientar-se que a decisão recorrida, com certeza por lapso, não evidencia a diferença abismal entre o que consta do relatório do INML e o que consta das declarações para memória futura quanto ao número de vezes que o menor terá afirmado que a arguida lhe bateu com uma colher de pau na região nadegueira:
Enquanto a fls. 35 se afirma que terá sido a primeira vez que a arguida bateu no menor com a colher de pau, nas declarações para memória futura isso terá acontecido por três vezes.
Dir-se-á que o que consta daquele relatório do INML, como acima se disse, foi descrito pela testemunha JN , em depoimento indireto, e não pelo menor;
Mas o certo é que também na sentença recorrida se faz uso do mesmo depoimento indireto da mesma testemunha.
O que significa que, ainda que se use ilegalmente esses depoimentos indiretos, ainda assim, não há confirmação nesta comparação de depoimentos "confirmativos” da versão do menor.
Na verdade, no relatório do INML e nas declarações para memória futura não coincidem o número de vezes que o menor terá afirmado que a arguida lhe bateu com uma colher de pau.
Por conseguinte, e por todo o supra exposto, é errado e ilegal a afirmação que consta da decisão recorrida no sentido de que "volvidos cerca de seis meses entre a data em que pela primeira vez aludiu às lesões e à sua autoria e as declarações para memória futura, "o menor” apresentou a mesma versão sobre os factos, o que é demonstrativo de sua coerência relativamente ao que lhe sucedeu”.
Mais uma vez o Tribunal pretende comparar situações que a lei não permite comparar.
Mais uma vez se afirma aqui que a versão apresentada pelo menor (pela primeira vez) às técnicas da instituição de acolhimento, ou à testemunha JN , não pode ser valorada porque se trata de depoimento indireto, o que tem por consequência que o depoimento do menor prestado em declarações para memória futura não pode ser comparado com qualquer outra versão;
Porque não existe outra versão a ser validamente valorada.
Já no que concerne às declarações para memória futura do menor, há que referir o seguinte:
No momento em que prestou essas declarações, o menor encontrava-se institucionalizado na mesma instituição de acolhimento C.  ;
Por isso, o menor sabia bem ao que ia.
Acresce que nessas declarações para memória futura o menor referiu que quando a arguida a arguida lhe bateu com a colher (e note-se que não foi o menor que referenciou uma colher de pau... - cfr. fls. 306), disse que o fez no rabo do menor; não nas costas, apesar de o menor evidenciar à data do exame no INML lesões também na região das omoplatas e não apenas no rabo.
De qualquer modo, a única prova "direta” que aponta para a arguida como autora das agressões ao menor com uma colher de pau é a que resulta destas declarações para memória futura.
Ora o certo é que várias testemunhas ouvidas em audiência de julgamento afirmaram que a arguida é uma pessoa extremamente bondosa e sensível, que sempre tentou perceber os motivos pelos quais o menor adotava comportamentos desviantes, privilegiando o diálogo com o mesmo de forma insistente, tendo com o mesmo menor uma relação de grande empatia, de grande cumplicidade e de grande respeito pela dimensão humana daquela criança, em suma é o que resulta do depoimento de várias testemunhas ouvidas em audiência de julgamento, de onde se infere que a arguida possui personalidade avessa a comportamentos violentos como os que lhe são imputados na decisão recorrida, e concretamente nos factos provados 22 a 25;
Assim, veja-se, o depoimento das testemunhas AV , RF , PM e LM , em audiência de julgamento (por referência à respetiva ata) cujas transcrições constam da motivação supra e que por razões de economia e celeridade processuais se dão aqui por reproduzidas na íntegra.
Dos excertos destes depoimentos - sendo que a testemunha AV  era uma das técnicas que, nos Açores, fazia o acompanhamento do processo de pré-adoção em que estavam envolvidos o menor e a arguida - resulta à evidência que a arguida possui personalidade diferente do comum das pessoas, sendo de uma sensibilidade muito especial e de cariz compreensivo, afetivo, amistoso e nada violento.
Por outro lado, e como vem dado como provado na decisão recorrida (cfr. factos provados números 6, 8, 15, 16, 19, e 22 parte final), o menor tinha problemas de comportamento em ambiente escolar, não cumprindo regras, provocando conflitos com os colegas e com os adultos, sendo manipulador, mentindo compulsivamente, agredindo os seus pares e até adultos indefesos, subindo a telhados, falsificando assinaturas, rasgando folhas da caderneta escolar, pegando em facas, tentando estrangular com uma corda um gato, magoando crianças mais novas que tiveram que receber tratamento médico.
Leia-se a título de exemplo o depoimento das testemunhas JN  , AV , RF, PM, MM , LM, em audiência de julgamento (por referência à respetiva ata) cujas transcrições constam da motivação supra e que por razões de economia e celeridade processuais se dão aqui por reproduzidas na íntegra.
E quanto às agressões com a colher de pau, há apenas uma testemunha - RF - que estava presente no dia e hora em causa e que diz justamente que não houve qualquer agressão da arguida e muito menos com a dita colher de pau. Veja-se o que a propósito disse esta testemunha (sempre por referência à ata de julgamento) no depoimento transcrito supra na motivação:
Esta testemunha esteve presente na data em que alegadamente ocorreu a dita agressão com a colher de pau;
Nenhuma outra testemunha estava presente;
E esta testemunha garantiu que essa agressão não aconteceu.
De todos estes depoimentos resulta à evidencia que as declarações para memória futura prestadas pelo menor, sem um consistente complemento probatório, não possuem a credibilidade necessária para poderem escorar a conclusão de que a arguida praticou os factos provados 22 a 25.
Com efeito, não podendo ser valorado o depoimento da testemunha JN ,
nem o que porventura lhe terão afirmado as técnicas/auxiliares,
nem o relato da dita testemunha JN ao médico que elaborou o relatório do INML de fls. 34 a 36,
nem podendo comparar-se o que consta das declarações para memória futura com o depoimento da testemunha JN ,
resta efetivamente o depoimento do menor em declarações para memória
futura,
e ainda as lesões descritas no relatório do INML de fls. 34 a 36, que em 09/06/2014, o menor apresentava.
Mas resta também o depoimento da testemunha Ruben Ferreira que garante que aquela agressão não teve lugar.
Assim, se não existem efetivamente quaisquer dúvidas que o menor apresentava aquelas lesões.
Todavia, a prova existente nos autos no que respeita à autoria dos factos que provaram essas lesões, como se viu, acabam por reduzir-se às declarações para memória futuras mencionadas.
O que, há que convir é muito pouco, dada a falta de credibilidade desse depoimento.
É que as lesões que o menor apresentava e que se encontram descritas no relatório do INML de fls. 34 a 36, podem ter tido origem em situações e locais diversos e distintos.
Isto é, o menor GO dos dias 03, 04, 05 e 06 e na noite de 06 para 07 de Junho de 2014, esteve em situações e locais onde tais lesões lhe podem ter sido infligidas ou ter resultado de qualquer queda que o menor tenha sofrido.
Não pode, com efeito, esquecer-se que naqueles dias o menor esteve em aulas, na escola, tendo frequentado o futebol, o ATL e o recreio na escola.
Além de que, como resulta dos depoimentos que acima se transcreveram, o menor tinha acabado de subir e descer do telhado da escola.
Por outro lado, o menor passou a noite de 06 para 07 de junho de 2014 na ilha do Faial, em instituição de acolhimento de menores, na companhia de outros menores.
Tudo isto resulta, nomeadamente, do depoimento da arguida (no que concerne ao futebol, ao ATL e à escola) e do depoimento da testemunha Ana Vaz (no que concerne ao local em que o menor passou a noite 06 para 07 de junho de 2014) transcritos ambos na motivação supra e que por razões de economia e celeridade processuais se dão aqui por reproduzidos na íntegra.
Resulta de todo o exposto que as lesões que o menor apresentava podem, por isso, ter sido causados noutros locais ou noutras situações em que o menor se encontrou desde o dia 03 à manhã do dia 07/06/2014.
Ainda no que respeita às declarações para memória futura a que o menor foi sujeito, cabe dizer o seguinte:
O presente processo iniciou-se com um ofício da instituição de acolhimento C.  dirigido ao Tribunal de Espinho, em 09/06/2014, em que se imputava à ora arguida as lesões que constam do relatório do INML a fls. 34 a 36;
Esse ofício consta de fls. 31 e 32 dos autos.
A partir daí o processo de inquérito foi instaurado para investigação de eventual crime de maus tratos (cfr. fls. 4 dos autos).
Ainda em 09/06/2014, como resulta de fls. 34 a 36 do relatório do INML, o menor foi sujeito a exame no INML de que resultou o respetivo relatório mencionado naquele local dos autos;
Nesse relatório já se referenciava a ora arguida como tendo sido a autora das lesões exibidas pelo menor (cfr. nomeadamente fls. 35);
Após férias judiciais, em 30/09/2014, os autos foram conclusos ao MP que, em 13/10/2014, determinou a prestação de declarações para memória futura do menor, como resulta de fls. 47.
Nesse despacho disse-se expressamente que se entendia "pertinente que o menor preste declarações sobre a sua vivência junto da candidata a adotante e alegada agressora, durante o período em que permaneceu junto da mesma nesta ilha do Pico”.
Aí determinou-se também que se instruísse o ofício a enviar aos serviços do ministério público territorialmente competentes com cópia de fls. 6 a 36 dos presentes autos.
De todo o exposto resulta que quando foram requeridas pelo ministério público as declarações para memória futura do menor, já o ministério público tinha como única e exclusiva suspeita da prática do eventual crime de maus tratos a ora arguida.
Não se tratava, portanto, de uma situação em que fosse desconhecido o suspeito da autoria do crime ou em que não se soubesse do paradeiro do mesmo.
A fls. 61, o ministério público da comarca de Aveiro (deprecada) promoveu a tomada de declarações para memória futura do menor, apesar de ter conhecimento do teor dos presentes autos uma vez que, a expedição da carta precatória incluiu o teor de fls. 6 a 36;
Ou seja, apesar de o ministério público de Aveiro ter conhecimento também de que o único suspeito da prática do alegado crime de maus tratos era a ora arguida.
Quando o Senhor Juiz de instrução criminal respetivo designou data para a inquirição - cfr. fls. 65 dos autos - igualmente tinha conhecimento do teor da carta precatória e, portanto, da identidade da suspeita da prática do alegado crime de maus tratos, ou seja, a ora arguida.
Todas estas autoridades judiciárias tinham, pois, conhecimento de quem era a denunciada, conhecendo o respetivo paradeiro.
A fls. 78 foi lavrada cota em que se fez constar que, contactado telefonicamente o Tribunal de São Roque do Pico, este informou "que não existe defensor nem mandatário constituído uma vez que é apenas denunciada e ainda não foi constituída arguida”.
A fls. 79 consta depois o auto de declarações para memória futura do menor, em que consta, além do mais, que foi nomeada defensora oficiosa à denunciada, a Senhora Dra HB, "nomeada para o ato”.
O depoimento do menor foi gravado e a respetiva transcrição consta de fls. 299 e ss.
No decurso da diligência, e como concretamente resulta de fls. 310, a defensora nomeada à então denunciada, ora arguida, logo na sua primeira intervenção, afirmou o seguinte:
“Se me permite, eu não conheço o processo, eu fui chamada agora, eu não sei se ela tinha outros filhos, a SM. Sabe-me dizer”.
Ao que a Senhora Juiz respondeu à Senhora Advogada:
“Não tinha outros filhos, viviam só os dois sozinhos, não era GO ?”
Ao que a Senhora Advogada retorquiu:
“Não era casada? Portanto, a idade dela mais ou menos?”
Ou seja, a denunciada, ora arguida, não foi minimamente representada por defensor.
Desde logo, porque o defensor foi nomeado para o ato e, em vez de solicitar a consulta do processo antes de intervir na diligência, aceitou fazê-lo sem ter o mínimo conhecimento dos autos e do que se iria passar na diligência.
O que, sendo de uma irresponsabilidade total da Senhora Advogada, configura desde logo e na prática a ausência de defensor.
Na verdade, um defensor nomeado para o ato que não solicita sequer a consulta do processo antes de iniciar a diligência, equivale a NENHUM defensor;
Porque pura e simplesmente não conhece o processo;
Além de que tal Advogado nomeado muito menos conhecia a pessoa da denunciada, ora arguida, não podendo, por isso, saber qual a posição desta relativamente aos factos investigados e de cuja autoria aquela era suspeita.
Por outro lado ainda, sendo conhecida a pessoa da denunciada.
Sendo esta a única suspeita da prática do crime,
Conhecendo-se perfeitamente nos autos o respetivo paradeiro,
E tratando-se de proceder a declarações para memória futura, diligência que, como se sabe, equivale a uma antecipação de prova em audiência de julgamento,
Funcionando aí, em consequência e em pleno o princípio do contraditório, dever-se-ia ter constituído como arguida a então denunciada, de modo a que a mesma pudesse exercer e ver asseguradas cabalmente as respetivas garantias de defesa;
Ou no mínimo, ter-se nomeado defensor à denunciada - como nomeou - mas sempre com a devida antecedência, de modo a permitir que esse defensor nomeado pudesse contactar a sua patrocinada, a então denunciada e ora arguida, e por forma a que esse defensor pudesse inteirar-se dos factos através da própria denunciada.
Só assim poderia assegurar-se o cumprimento das respetivas garantias de defesa, as quais têm obvia consagração constitucional (art.º 32.º, n.º 1, da CRP).
Mais:
A denunciada ora arguida não foi sequer notificada, nem da existência, à data, dos presentes autos, nem muito menos da data designada para as declarações para memória futura.
De todo o exposto resulta que, no que respeita à ora arguida, então denunciada, o que ocorreu foi um simulacro de declarações para memória futura;
O que sucedeu foi um simulacro da realização do princípio do contraditório;
Um simulacro do assegurar das garantias de defesa da arguida que, apesar de ainda não ter sido constituída como tal, já se sabia que isso poderia vir a acontecer e nessa medida impunha-se que se tivesse dado à denunciada a oportunidade EFECTIVA de exercer TODOS os seus direitos de defesa.
Percebe-se - e conhece-se a jurisprudência - que se realizem diligências de declarações para memória futura sem que o arguido disso tenha conhecimento quando não se conhece a identificação do suspeito da autoria do crime ou, conhecendo-se, se ignore o respetivo paradeiro.
Já assim não sucede quando, como no caso dos autos, se conhece perfeitamente a pessoa da denunciada e o seu paradeiro e sobretudo quando se trata de crimes como o dos autos e que está em causa a dignidade da vítima e a sua integridade física e psíquica.
No caso dos autos, não se verificava também inadiável urgência que impusesse que a diligência tivesse sido realizada desta forma que não assegurou as mínimas garantias de defesa da denunciada, futura e previsível arguida.
Sendo assim, tudo se passou como se a futura e previsível arguida não tivesse sido assistida por defensor: porque este pura e simplesmente não conhecia o processo nem teve tempo para o conhecer; nem tão pouco pôde conferenciar com a patrocinada de modo a preparar a respetiva defesa.
O que constitui NULIDADE insanável nos termos do disposto nos art.ºs 64.º, n.º 1, al. f) e 119.º, al. c), vício esse que deve por isso ser declarado com todas as consequências legais.
A tudo isto acresce que, já na fase da audiência de julgamento, foi indeferido o requerimento da arguida no sentido de aí se proceder à inquirição do menor, o que impediu em definitivo o exercício pleno do princípio do contraditório pela agora efetivamente constituída como arguida e agora acompanhada de defensor por si escolhido.
A arguida viu assim serem-lhe coartadas todas as mais elementares garantias de defesa.
Não sendo declarada aquela nulidade, desde já se invoca a INCONSTITUCIONALIDADE do conjunto normativo composto pelos art.ºs 64.º, n.º 1, al. f) e 271.º, n.º 3, do CPP e do art.º 28.º, n.º 2, da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, quando interpretado no sentido de que, ainda que se conheça a pessoa do suspeito autor do crime e o seu paradeiro, e não se tratando de diligência de inadiável urgência, não tem que, antecipadamente, notificar-se aquele mesmo denunciado da realização da diligência de declarações para memória futura, nem nomear-se antecipadamente o respetivo defensor, considerando-se ainda assim cumpridas as regras do princípio do contraditório inerentes nomeadamente às garantias de defesa da arguida, tudo por violação do disposto nos art.ºs 16.º, 18.º, n.ºs 1 e 2, 20.º, n°s. 2 e 4, e 32.º, n.ºs 1 e 5, da CRP, bem como do disposto no art.º 6.º, § 1 e 2, al. d), da CEDH.
De todo o exposto resulta que os meios de prova que serviram para fundamentar a decisão da matéria de facto, no que concerne aos factos provados 22 a 25 e 29 a 31, que foram feitos constar da motivação factual da sentença recorrida (motivação correspondente aos factos provados 22 a 25 e 29 a 31), ao contrário do decidido, impunham decisão diversa, ou seja, impunham a ABSOLVIÇÃO da arguida;
O que sai ainda reforçado com os depoimentos das testemunhas supra transcritos e com as constatação dos vícios acima elencados.
Subsidiariamente:
CRIME PRATICADO PELA ARGUIDA:
A entender-se que a arguida praticou efetivamente os factos dados como provados em 22 a 25 e 29 e 31, sempre deverá considerar-se que tal factualidade não íntegra o crime de maus tratos previstos no art.º 152.º-A, n.º 1, al. a) do CP, uma vez que os factos em causa não colocaram o menor ofendido na situação de vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade pessoal, nem o quadro global de vivencia do menor com a arguida evidencia qualquer estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento daquela mesma dignidade pessoal do menor que permita qualificar a situação como de maus tratos que, porventura, ponha em causa a saúde psíquica da vitima.
Tais factos antes consubstanciam - sempre nesta hipótese subsidiária - a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p.p. pelo art.º 143.º, n.º 1, do CP.
Sendo assim aplicável à arguida uma pena substancialmente mais leve que deverá situar-se nos mínimos legais previstos neste normativo mencionado.
TERMOS EM QUE, E NOS QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS SUPERIORMENTE SUPRIRÃO, DEVE CONCEDER-SE PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, EM CONSEQUÊNCIA, REVOGAR-SE A SENTENÇA RECORRIDA, ABSOLVENDO-SE O ARGUIDO DA PRÁTICA DO CRIME POR QUE VINHA ACUSADA E POR QUE FOI CONDENADA, OU, SUBSIDIARIAMENTE, E ASSIM NÃO SE ENTENDENDO, CONDENAR-SE A ARGUIDA PELO CRIME PREVISTO NO ART. 143.º DO CP, APLICANDO-SE-LHE UMA PENA SITUADA NOS MÍNIMOS LEGAIS, CONFORME AO EXPOSTO E COMO É DE JUSTIÇA
3. A Representante do Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu à motivação de recurso, pugnando pela manutenção da decisão revidenda.
4. Procedeu-se à realização de audiência, por ter sido impetrada pela arguida/recorrente, tendo-se observado o formalismo legal.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1.   Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Vício de contradição insanável da fundamentação/vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c), do CPP.
Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/proibição de valoração de prova.
Enquadramento jurídico-penal da conduta da arguida.
Dosimetria da pena aplicada.
2. A Decisão Recorrida
O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):
1. GO nasceu em Espinho, no dia 23 de Marco de 2004, sendo filho de AO e de SC ;
2. Por decisão proferida a 10 de Outubro de 2012 é aplicada ao GO a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista à futura adopção, ficando confiado à guarda e cuidados do Centro C.  ;
3. Em 19 de Abril de 2013, a arguida SM é seleccionada como candidata à adopção do menor GO ;
4. Em 13 de Julho de 2013, o menor GO passou a residir com a arguida, na morada desta, ficando entregue aos seus cuidados, tendo sido transferida para esta a curadoria provisória da criança;
5. O menor GO frequentou o ATL da SCM de São Roque do Pico durante as férias de Verão e, no ano lectivo de 2013/2014, frequentou o 4° ano na Escola Básica e Secundária de São Roque do Pico;
6. A adaptação do GO à nova realidade gerou problemas de comportamento em ambiente escolar, nomeadamente, ao nível do cumprimento de regras e de conflitos com colegas e com adultos;
7. Em data não concretamente apurada do mês de Agosto de 2013, as técnicas da Equipa de Adopção efectuaram uma visita domiciliária à residência da arguida, tendo almoçado com esta e com o menor GO ;
8. Enquanto as técnicas da Equipa de Adopção permaneceram na habitação, a arguida não interagiu com o menor GO , apesar deste solicitar a atenção daquela, mantendo o seu distanciamento e evitando o contacto ocular com a criança uma vez que esta se tinha portado mal no ATL;
9. A arguida viajou para Cabo Verde na primeira quinzena de Setembro por motivos de trabalho, sendo que o menor GO ficou aos cuidados da mãe da arguida, MM , que, para esse efeito, viajou para a ilha do Pico, tendo sido esta a levar o menor GO ao estabelecimento de ensino no seu primeiro dia de aulas;
10. Em data não concretamente apurada, a arguida puxou a alça da mochila que o menor GO tinha às costas, causando-lhe um marca na zona da omoplata;
11. Em data de concretamente apurado do mês de Fevereiro de 2014, a arguida viajou inesperadamente para o continente devido ao agravamento do estado de saúde do seu pai, tendo deixado o GO aos cuidados de um amigo RF e da mãe deste, OC ;
12. O menor GO não estava habituado a conviver com OC ;
13. Na segunda quinzena de Março, a mãe da arguida desloca-se à ilha do Pico para prestar apoio à sua filha, nomeadamente, nos cuidados com o menor GO devido ao trabalho exercido por aquela.
14. A progenitora da arguida, sempre que se deslocava à ilha do Pico, dormia no anexo da residência, tendo o menor GO , no período de tempo aludido em 12), aí pernoitado durante algumas noites.
15. No dia do aniversário do menor GO , a arguida decidiu entregar o bolo de aniversário da criança a uma instituição de acolhimento porque este se tinha portado mal no estabelecimento de ensino que frequentava.
16. Em data não concretamente mas seguramente entre a segunda quinzena de Março e o aniversário do GO , a arguida desferiu duas palmadas nas nádegas do menor GO em consequência do mau comportamento deste no estabelecimento de ensino.
17. No período das férias da Páscoa, o menor GO deslocou-se para o continente nacional com a mãe da arguida, sendo que esta viajou para o continente nacional dias depois daqueles;
18. No dia 24 de Abril de 2014, após as técnicas da Equipa de Adopção terem conversado com o GO e ainda na presença daquelas, a arguida dirige-se à criança e pergunta-lhe: "então, mentiste-lhes muito?";
19. No dia 10 de maio de 2014, na sequência de um mau comportamento do GO , a arguida enviou uma mensagem de correio eletrónico à professora da criança, com o seguinte teor: a. "Professora RD, o GO está-me a ver enviar este e-mail. Ele diz que a professora RD me mentiu, pois ele não torceu o braço a ninguém, apenas passou uma rasteira...Ele vai levar este recado escrito no seu caderno para a professora assinar. Ele também me disse que na sexta feira não teve de castigo por ter sido dia da Europa, o que me fez sentir muito triste...Pois considero que as acções que o GO tomou devem ser fortemente penalizadas. proponho castigo até ao fim do ano...esta situação está-me a criar muita ansiedade, preciso de falar consigo...quando poderá ser? Muito obrigada".
20. No dia 22 de maio de 2014, a arguida viajou para o continente nacional para o funeral do seu pai, ali permanecendo cerca de 15 dias;
21. O menor GO volta a ficar aos cuidados de OC ;
22. No dia 4 de Junho de 2014, após regressar do continente nacional, na residência ocupada pela arguida e pelo menor GO , aquela desferiu um número não concretamente apurado de pancadas com uma colher de pau que atingiram GO nas costas e nas nádegas após ter tido conhecimento do mau comportamento deste no estabelecimento de ensino.
23. Em consequência do relatado em 22), o menor GO sofreu dores e lesões nas zonas atingidas;
24. Sujeito a perícia médica, o menor GO apresentava: a. Duas áreas de equimoses de coloração amarelada na face posterior do tórax, localizadas ao nível dos cantos internos de ambas as omoplatas, ambas com 1cm de maior diâmetro; b. Três equimoses de coloração amarelo-verde- acastanhada, na região nadegueira direita; uma no quadrante superior da nádega, com 4,5cm por 4,5cm, com área esbranquiçada poupada (medindo 1,5cm); outra no quadrante inferior com 4,5cm por 4,5cm de maiores dimensões; e outra com 1,5cm por 1cm de maiores dimensões; c. Na região nadegueira esquerda observava-se uma área equimótica com 8,5 por 7,5cm de maiores dimensões, de coloração amarelo-verde-acastanhado, em que na sua zona periférica foi possível observar três equimoses, uma supero externo com 3,5cm por 1,5cm, outra com 1,5cm de diâmetro, inferiormente à primeira, e outra com 1cm de diâmetro no quadrante superior interno.
25. As referidas lesões foram causa determinante de um período de doença de 8 dias;
26. Após as técnicas da Equipa de Adopção terem comunicado à arguida que o processo de adopção tinha cessado, o menor GO foi entregue àquelas no dia 6 de Junho de 2014.
27. Quando se despediu do menor GO , a arguida disse-lhe que iria para a instituição de acolhimento e que se se portasse bem poderia regressar;
28. Aquando do seu regresso à instituição C.  , no dia 7 de Junho de 2014, parte da roupa que o menor GO levava na sua mala estava imprópria para arrumar nos armários e outra imprópria para uso, pelo que parte foi imediatamente lavada e a restante foi deitada no lixo;
29. A arguida não se coibiu de agir da forma supra descrita, bem sabendo que o GO era apenas uma criança, indefesa em razão da sua idade, e que aquele tinha sido confiado à sua guarda;
30. A arguida ao bater no menor GO de forma violenta com uma colher de pau quis molestar a criança fisicamente e na sua saúde, pessoa frágil e indefesa em razão da sua idade, como molestou;
31. Em todas as circunstâncias referidas, a arguida agiu sempre de forma livre, consciente e deliberada, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.
Mais se provou que:
32. A arguida não tem antecedentes criminais.
33. A arguida encontra-se a frequentar o doutoramento na área do Teatro (Ciência Sociais); reside com sua progenitora, o seu irmão e sua filha M  com 24 meses de idade na residência propriedade da sua mãe; é proprietária de uma residência na ilha do Pico, da qual paga uma prestação mensal de cerca de €340,00; a sua filha M  é fruto de uma relação amorosa que teve; a sua progenitora encontra-se, actualmente, reformada e o irmão encontra-se a trabalhar; contribui mensalmente com cerca de €120,00 para despesas domésticas; tem um veículo registado em seu nome, marca Renault, modelo Kangoo, de 5 lugares.
Quanto aos factos não provados, considerou (transcrição):
Com interesse para a decisão da causa, não se provaram quaisquer factos para além dos que, nessa qualidade, se descreveram supra, não resultando provado que os factos ocorreram noutras circunstâncias, com outras motivações ou consequências que não as dadas como provadas, designadamente, não se tendo apurado que:
a) Em data não concretamente apurada, mas ainda durante o primeiro período de ano lectivo de 2013/2014, a arguida tivesse desferido uma bofetada no rosto do menor GO ;
b) O GO passou as férias escolares de natal aos cuidados da mãe da arguida, primeiro na ilha do Pico e depois no continente nacional, dizendo à criança que o fazia por causa do comportamento desajustado do mesmo;
c) A arguida não passa o natal com o GO alegando que não sente o amor suficiente para se enquadrar como mãe e sente-se desconfortável em apresentar a criança à família alargada;
d) No dia 4 de Junho de 2014, a arguida regressa ao Pico e, no dia seguinte, diz para as técnicas da Equipa de Adopção: "Era tão bom se eu não tivesse o GO comigo", esclarecendo ainda que o projecto de adopção já não se coloca;
e) A arguida tinha conhecimento das anteriores vivências do GO , da sua institucionalização, do abandono familiar a que foi sujeito, pelo que, ao agir da forma descrita, entregando a criança sistematicamente a outras pessoas, humilhando-a à frente de terceiros, hostilizando-a e responsabilizando-a pelo seu regresso à instituição, estava ciente de estar a causar danos emocionais e psíquicos no GO ;
Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
O tribunal formou a sua convicção conjugando e entrecruzando os vários meios de prova, designadamente, a prova documental junta aos autos (certidão da sentença no âmbito do processo de promoção e protecção que aplicou à criança a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a adopção de fls. 4 a 28, informação da EMAT de fls. 29 e 30, informação da instituição de acolhimento de fls. 31 a 32, relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 34 a 36, assento de nascimento nº 5352 do ano de 2008 de GO de fls. 95, relatório social de acompanhamento do período de pré-adopção elaborado pela EMAT de fls. 106 a 125 e respectivos anexos de fls. 126 a 144, declaração emitida pelo Município da M  de fls. 198, diversas comunicações entre a arguida e as técnicas responsáveis pelo processo de adopção do menor GO de fls. 200 a 206, fotografias do menor GO com a arguida de fls. 208 a 211, relatório externo de avaliação do menor GO e que foi entregue à arguida aquando da chegada daquele em Maio de 2013 de fls. 212 a 217, relatório de avaliação comportamental do menor GO de fls. 218 a 220, textos manuscritos pelo GO retirados dos cadernos escolares de fls. 221 a 230, cópia da caderneta do aluno onde constam as comunicações entre a escola e a arguida de fls. 231 a 250, comunicações electrónicas entre a arguida e a professora do menor GO de fls. 251 a 263, comunicações electrónicas entre a arguida e a esquipa de adopção de fls. 264 a 275, cópia do projecto Educação livre de fls. 276 a 277, CRC da arguida de fls. 562, fotos da residência da arguida e do anexos de fls. 570 a 574 e pedido de protecção jurídica da arguida), e, bem assim, as declarações prestadas pela arguida SM e os depoimentos das testemunhas AV , assistente social a exercer funções no Instituto de Segurança Social dos Açores, JN  , técnica superior social a exercer funções na C.  , RD , professora na EBS de São Roque do Pico, OC , amiga da arguida e mãe da testemunha RF, MM , progenitora da arguida, RF, amigo da arguida, PM, irmão da arguida, LM, psicóloga e amiga da arguida e as declarações para memória futura do menor GO de fls. 298 a 311.
Todos os elementos de prova supra referidos - com excepção da prova pericial - foram apreciados à luz do disposto no artigo 127º do Código Processo Penal, ou seja, segundo as regras da experiências e a livre convicção do julgador, já que o julgador é livre de decidir segundo o bom senso e a experiência de vida, claro está tendo em mente a capacidade crítica, o distanciamento e a ponderação que se impõe.
Concretizando.
No que concerne à factualidade inserta no ponto 1) dos factos provados, o tribunal relevou a certidão de assento de nascimento nº 5352 do ano de 2008 de GO de fls. 94 e 95.
Já no que diz respeito à facticidade inserta nos pontos 2) dos factos provados, o tribunal relevou, essencial o teor da sentença proferida no âmbito do processo de promoção e protecção que aplicou à criança GO a medida de promoção e protecção de confiança a instituição com vista a adopção de fls. 4 a 28.
Relativamente à factualidade inserta nos pontos 3) a 5) dos factos provados, o tribunal ancorou a sua convicção nas declarações prestada pela arguida em sede de audiência de julgamento em conjugação com o depoimento da testemunha AV . Nesta sede importa sublinhar que o tribunal considerou credível o depoimento da testemunha AV  uma vez que, demonstrando conhecimento directo dos factos, apresentou um discurso objectivo, coerente, escorreito e desinteressado.
No que concerne, especificamente ao ponto 6) dos factos provados, o tribunal ancorou a sua convicção no depoimento da arguida SM - a arguida descreveu ao tribunal os comportamentos do menor GO em contexto escolar, - em conjugação com o depoimento da testemunha RD , professora do menor GO na EBS de São Roque do Pico, a qual, de forma objectiva e pormenorizada, relatou, em sede de audiência de julgamento, os comportamentos desviantes do menor GO quer em contexto de sala de aula quer em ambiente de recreio; no mais, o tribunal valorou o acervo documental existente nos autos, nomeadamente, os textos manuscritos pelo GO retirados dos cadernos escolares de fls. 221 a 230, cópia da caderneta do aluno onde constam as comunicações entre a escola e a arguida de fls. 231 a 250, comunicações electrónicas entre a arguida e a professora do menor GO de fls. 251 a 263.
No que diz respeito aos pontos 7) e 8) dos factos provados, o tribunal ancorou a sua convicção no depoimento da testemunha AV  que, demonstrando conhecimento dos factos uma vez que esteve presente no almoço com a arguida e o menor GO, relatou ao tribunal a postura da arguida com o menor GO , nomeadamente, tendo descrito o distanciamento daquela face às tentativas de interacção por parte do menor. Neste ponto, cumpre frisar que a arguida, em sede de audiência de julgamento, apenas admitiu que se encontrava chateada com o menor GO devido a ter tido conhecimento, nesse mesmo dia, dos comportamentos incorrectos deste no ATL, negando, contudo, que tivesse evitado contacto ocular com o menor.
Já no que diz respeito ao ponto 9) dos factos provados, o tribunal ancorou a sua convicção nas declarações prestadas pela arguida - esta explicou, em sede de audiência de julgamento, as razões pelas quais teve que se ausentar de Portugal - bem como as declarações coincidentes das testemunhas MM  - mãe da arguida que, demonstrando conhecimento dos factos, relatou as várias vezes que se deslocou à ilha do Pico para prestar apoio à sua filha (incluindo quando esta teve que se deslocar à ilha de Cabo Verde) e da testemunha RD , professora na EBS de São Roque do Pico; no mais, o tribunal valorou a declaração emitida pelo Município da M  de fls. 198.
A facticidade inserta no ponto 10) dos factos provados encontra-se provada com base nas declarações prestadas pela testemunha RD , professora na EBS de São Roque do Pico. Destarte, esta testemunha, através de um discurso objectivo e desinteressado, revelando conhecimento directo dos factos, relatou ao tribunal o momento em que o menor GO lhe mostrou a marca com que ficou no corpo bem como a explicação que este lhe transmitiu das razões da sua existência (a arguida puxou-o pela alça da mochila na sequência de uma discussão entre ambos).
Relativamente à factualidade inserta nos pontos 11) e 12) dos factos provados, o tribunal estribou a sua convicção, desde logo, nas declarações prestadas pela arguida em sede de audiência de julgamento (confirmando a mesma), em conjugação com os depoimentos coincidentes e consentâneos das testemunhas RF, amigo da arguida e da testemunha OC (ambas as testemunhas confirmaram a versão apresentada pela arguida, confirmando que tomaram conta do menor GO quando aquela teve que se ausentar para o continente nacional devido à doença de que padecia o pai da arguida).
No que concerne aos pontos 13) a 15) dos factos provados, o tribunal ancorou a sua convicção nas declarações prestadas pela arguida - mais uma vez confirmou esta factualidade, tendo explicado as razões pelas quais a sua mãe se deslocou à ilha do Pico (avolumar do seu trabalho devido ao Dia Mundial do Teatro), as dormidas do menor GO com a sua mãe no anexo existente na sua residência (fruto do trabalho que exercia durante a noite, nomeadamente, os ensaios de teatro) bem como a decisão de entregar o bolo de aniversário do menor GO a uma instituição de acolhimento de crianças em consequência do seu mau comportamento no estabelecimento de ensino.
Tal factualidade foi, igualmente, corroborada pela sua progenitora, a testemunha MM , que, em sede de audiência de julgamento, confirmou a sua deslocação à ilha do Pico neste hiato temporal, o local onde pernoitava (anexo à residência que mais não é do que uma segunda residência) bem como explicou as razões que presidiram à decisão de entregar o bolo de aniversário do menor GO a uma instituição de acolhimento (não obstante, não deixou de descrever, com precisão, as actividades lúdicas que realizou, juntamente com a arguida, no âmbito do aniversário do menor GO , actividades que foram, igualmente, corroboradas pela arguida).
No que respeita ao ponto 16) dos factos provados, o tribunal relevou, essencialmente, nas declarações prestadas pela arguida em sede de audiência de julgamento; destarte, a arguida confessou que, nesse período temporal, desferiu duas palmadas na nádega do menor GO devido ao seu mau comportamento (a arguida tinha tido conhecimento que o menor GO teria falsificado a sua assinatura na caderneta do aluno, teria rasgado folhas da caderneta do Aluno, dizia no estabelecimento de ensino que não tinha comida em casa e que não fazia os trabalhos para casa porque ia para as Lajes do Pico com a arguida).
A factualidade inserta no ponto 17) dos factos provados, encontra-se provada, mais uma vez, com base nas declarações prestadas pela arguida - confirmou, em sede de audiência de julgamento que a sua mãe viajou com o menor para o continente nacional com o menor, tendo viajado mais tarde mas a tempo de se juntar à sua mãe e ao menor GO durante as férias da Páscoa - em conjugação com o depoimento da testemunha MM .
Relativamente ao ponto 18) dos factos provados, o tribunal estribou a sua convicção no depoimento da testemunha AV , assistente social a exercer funções no Instituto de Segurança Social dos Açores - a qual, demonstrando conhecimento directos dos factos, relatou, em sede de audiência de julgamento, que arguida proferiu a aludida expressão - em conjugação com as declarações a própria arguida que confirmou tal factualidade embora enquadrando-a numa dinâmica de jogo que tinha com o menor GO (quase todos os dias lhe perguntava em que é que tinha mentido e por quem ou pelo quê se tinha apaixonado).
Já no que concerne ao ponto 19) dos factos provados, o tribunal relevou, essencialmente, a prova documental, mormente, o teor do correio electrónico enviado pela arguida à testemunha RD  de fls. 258.
A facticidade inserta nos pontos 20) e 21) encontra-se provada com base nas declarações prestadas pela arguida em sede de audiência de julgamento - depois de explicar a doença de que padecia o seu pai, relatou a sua deslocação ao continente nacional para assistir ao funeral do seu pai, o tempo que permaneceu no continente nacional (fruto da necessidade de tratar de documentação relativamente ao falecimento do seu pai) bem como a pessoa que ficou a tomar conta do menor GO durante a sua ausência; no mais, a testemunha Pedro Ilharco de Moura, irmão da arguida e a testemunha MM , progenitora da arguida, confirmaram que a testemunha se deslocou ao continente nacional após ter tido conhecimento do falecimento do seu pai, sendo que a testemunha OC  asseverou que o menor GO permaneceu aos seus cuidados durante a ausência da arguida na ilha do Pico.
Já no que diz respeito aos pontos 22) a 25) dos factos provados, importa, desde já, referiu que a arguida negou ter desferido pancadas no corpo do menor GO com uma colher de pau após o seu regresso à ilha do Pico, tendo apenas confessado que desferiu três palmadas nas nádegas do menor após ter tido conhecimento, mais uma vez, dos comportamentos desviantes deste no estabelecimento de ensino. Não obstante, neste segmento, o tribunal não relevou as declarações prestadas pela arguida tendo em conta os restantes meios de prova (quer os produzidos em sede de audiência de julgamento quer os constantes em sede de inquérito).
Desde logo, a testemunha JN  , técnica superior social a exercer funções na C.  , confirmou, em sede de audiência de julgamento, que as assistentes que prestavam apoio na instituição de acolhimento, visualizaram, na hora do banho, que o menor GO apresentava nódoas negras na região nadegueira; a própria testemunha, que acompanhou o menor GO ao Instituto de Medicina Legal, teve a oportunidade de visualizar as lesões que o menor apresentava naquela região do corpo; por outro lado, o menor, na altura em que as técnicas visualizaram as lesões, confirmou que as mesmas tinha sido provocadas pela arguida através de uma colher de pau (a testemunha referiu que o menor lhe confidenciou a versão que teria dito às técnicas/auxiliares pese embora a relutância do mesmo em descrever os factos ao médico que efectuou o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal - o que não deixa de ser normal tendo em conta a idade do menor e o facto de estar perante uma pessoa desconhecida que iria realizar um exame médico ao seu corpo).
Ora, em sede de declarações para memória futura, o menor voltou a confirmar a versão já antes transmitida à testemunha JN e às restantes técnicas/assistente da instituição de acolhimento, tendo, inclusivamente, situado temporalmente os factos ora dados como provados. Na verdade, o menor GO , em sede de declarações para memória futura, disse que a arguida lhe tinha batido três vezes com uma colher de pau na região nadegueira, tendo aludido que a última vez teria sido dois dias antes de chegar à instituição de acolhimento, o que é coincidente com os factos vertidos na acusação.
Assim, importa ter presente que o menor, volvidos cerca de seis meses entre a data em que pela primeira vez aludiu às lesões e a sua autoria e as declarações para memória futura (11/12/2014), apresentou a mesma versão sobre os factos, o que é demonstrativo da sua coerência relativamente ao que lhe sucedeu; no mais, sempre se dirá que inexistem nos autos qualquer indício que conduzam ao afastamento da versão apresentada pelo menor em sede de declarações para memória futura, nomeadamente, qualquer fundamento que permita concluir que o menor estivesse a mentir; ao invés, dúvidas inexistem que o menor apresentava as lesões descritas nos factos provados, sendo que o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 34 a 36 concluiu que "as lesões observadas são compatíveis terem sido produzidas por um traumatismo de natureza contundente ou como tal actuando, ta como o que se pode ser produzido por um objecto com as características referidas pelo examinado (colher de pau)."
Assim, ao contrário do defendido pela arguida em sede de audiência de julgamento, o tribunal criou a convicção segura de que a arguida não desferiu três palmadas nas nádegas do menor GO (tal como por si defendido e incompatível com o resultado da perícia médico-legal) mas sim um número não concretamente apurado de pancadas na região das nádegas e das costas com a utilização de uma colher de pau.
Concluindo, afigura-se-nos que as lesões apresentadas pelo menor GO permitem concluir que este foi vítima de agressões físicas e violentas; assim, a probabilidade de uma outra possibilidade é, atenta as regras da experiência comum, destituída de razoabilidade.
No que concerne aos pontos 26) e 27) dos factos provados, o tribunal estribou a sua convicção no depoimento da testemunha AV , assistente social a exercer funções no Instituto de Segurança Social dos Açores, que, de forma coerente e objectiva, relatou ao tribunal como terminou o processo de pré-adopção do menor GO (comunicação à arguida de que o mesmo se encontrava findo) bem como a despedida entre a arguida e o menor GO , nomeadamente, as expressões que aquela proferiu a este tal como descrito nos factos dados como provados.
No que diz respeito ao ponto 28) dos factos provados, o tribunal ancorou a sua convicção no depoimento da testemunha JN  , técnica superior social a exercer funções na C.   em conjugação com a prova documental, mormente, a informação prestada pela instituição de acolhimento "C.  " de fls. 31.
Relativamente aos factos dados como provados nos pontos 29) a 31), o tribunal relevou os factos objectivos dados como provados em conjugação com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer; destarte, a arguida não poderia deixar de conhecer a posição de indefesa do GO tendo em conta a sua tenra idade bem como que o mesmo se encontrava confiado à sua guarda; não obstante, a arguida, ao bater com uma colher de pau na região nadegueira do menor, quis e conseguiu atingir fisicamente o menor, infringindo-lhe castigos corporais, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Para efeitos da consignação dos factos que dizem respeito à ausência de antecedentes criminais da arguida (cfr. facto provado nº 32), o Tribunal tomou em consideração o teor do certificado de registo criminal junto a fls. 562.
Quanto às condições pessoais, familiares e profissionais da arguida (cfr. factos provados nº 33), o Tribunal estribou a sua convicção nas declarações prestadas pela própria por, nesta parte, se afigurarem como credíveis.
Relativamente aos factos não provados, para além das considerações supra já tecidas e que valem aqui, mutatis mutandis, sinteticamente, cumpre começar por dizer que não foi produzida qualquer prova testemunhal ou por declarações bastante quanto a outros factos que não os que se deram como provados, não resultando distinto resultado probatório dos documentos juntos aos autos.
Relativamente à alínea a) dos factos não provados, a arguida apresentou uma versão plausível dos factos descritos da acusação (toque involuntário na face do menor quando este efectuava um movimento de rotação do corpo); não obstante o menor aludir, em sede de declarações para memória futura, à existência de bofetadas na cara perpetradas pela arguida, o mesmo foi incapaz de as situar temporal e espacialmente, razão pela qual o tribunal desconsiderou, nesta parte, as mesmas até porque a acusação pública alega que as mesmas ocorreram durante o primeiro período escolar.
No que concerne às alíneas b) e c) dos factos não provados, nenhuma prova foi produzida em audiência de julgamento com a virtualidade de dar como provada tal matéria; ao invés, das declarações da arguida e dos depoimentos das testemunhas MM  e PM, irmão da arguida, resulta que a arguida passou o natal como o menor GO em conjunto com a família alargada.
No que diz respeito à alínea d) e e) dos factos não provados, nenhuma prova foi produzida que permitisse ao tribunal criar a convicção segura sobre a veracidade dos factos aqui vertidos, não tendo sido feita prova de que a arguida quis humilhar o menor à frente de terceiros, hostilizá-lo ou responsabilizá-lo pelo seu regresso à instituição ciente de estar a causar danos emocionais e psíquicos ao menor.
Apreciemos.
Vício de contradição insanável da fundamentação/vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, in www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.
Sustenta o recorrente que a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável da fundamentação, porquanto na fundamentação de facto e de direito considerou em simultâneo que os factos provados 7 a 21 e 27 e 28, consubstanciavam e não consubstanciavam ilícito criminal, concretamente o crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º-A, nº 1, alínea a), do Código Penal, sendo que, “da leitura da sentença recorrida, fica-se, porém, sem perceber se se considerou que os factos provados dados como provados e acabados de elencar (factos provados 7 a 21, 27 e 28, 29 e 31 da sentença recorrida) consubstanciam também o mencionado crime de maus tratos, ou se, pelo contrário, a sentença recorrida assim não entendeu e antes considerou como integrando a prática daquele crime apenas os factos dados como provados em 22 a 25 da mesma decisão, conjugados, também estes, com os factos, já acima mencionados, descritos na decisão recorrida em 29 e 31 (…)”.
Como vimos, o apontado vício, a que se reporta o artigo 410º, nº 2, alínea b), do CPP, só releva se resultar do texto (e do contexto) da decisão recorrida apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. É um vício da decisão, não do julgamento, como frisa Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro/Março de 1994, pág. 121.
E, está o vício de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão presente, como se salienta no Ac. do STJ de 29/10/2015, Proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, quando se dá como provado e não provado determinado facto, quando ao mesmo tempo se afirma ou nega a mesma coisa, quando simultaneamente se dão como assentes factos contraditórios e ainda quando se estabelece confronto insuperável e contraditório entre a fundamentação probatória da matéria de facto ou contradição entre a fundamentação e a decisão, quando a fundamentação justifica decisão oposta ou não justifica a decisão.
Pois bem, percorrida a sentença, que constitui um todo incindível e nessa perspectiva de unidade tem de ser interpretada, afirma o tribunal recorrido que importa analisar e caracterizar o quadro global de forma a determinar se evidencia um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita qualificar a situação como de maus-tratos que, por si, constitui um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima.
E, na mesma peça processual podemos ainda ler:
(…) E foi nesse período de tempo que a arguida infringiu castigos corporais ao menor GO que, pela sua gravidade, se traduzem em actos que revelam sentimentos de desprezo sobre a vítima incompatível com a sua dignidade e liberdade desta.
Destarte, o acto praticado pela arguida no dia 4 de Junho de 2014 - várias pancadas com uma colher de pau que atingiram GO nas costas e nas nádegas - do qual resultaram dores e lesões nas zonas atingidas (…) e foram causa determinante de um período de doença de 8 dias, por si só, evidenciam um estado de degradação e aviltamento da dignidade pessoal do menor GO que permite qualificar a situação como de maus-tratos.
Se é questionável que as duas palmadas desferidas pela arguida nas nádegas do menor GO bem como o puxar a alça da mochila causando uma marca no corpo, têm relevância jurídico-penal (o que, para nós, sempre se enquadraria, no que se refere às palmadas na nádegas, no crime de ofensa à integridade física, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal), o mesmo não se poderá dizer relativamente às pancadas com a colher de pau nas nádegas e costas perpetradas pela arguida no dia 04 de Junho de 2014.
Com efeito, este último acto revela uma utilização de violência absolutamente desproporcionada e injustificada, bem como revela necessariamente sentimentos de crueldade e de indiferença pelo sofrimento de uma criança indefesa, como é o caso de GO.
Do transcrito resulta perfeitamente perceptível que os factos que o tribunal recorrido entendeu integrarem o crime que vinha imputado à arguida e por que veio a ser condenada são as duas palmadas nas nádegas e as pancadas desferidas com a colher de pau, não se podendo olvidar que estamos perante um único crime de maus-tratos, de onde, as palmadas que só por si eventualmente apenas se enquadrariam na previsão do artigo 143º, nº 1, do Código Penal, estarão consumidas por aquele crime.
De onde, não se verifica a assinalada contradição insanável da fundamentação, carecendo de razão o recorrente.
Mas, encontra novamente a arguida a existência do mesmo vício apontando que os factos provados vertidos nos pontos 29 e 31 são incompatíveis com os também dados como provados nos pontos 7 a 21, 27 e 28.
Não obstante o esforço da recorrente, plasmado na motivação (strictu sensu) de recurso, em demonstrar a propalada contradição, ela não existe.
É que, argumenta, o menor tinha comportamentos desviantes, à arguida estava cometida a sua educação e a sua conduta integra-se no poder/dever de correcção ou na “vida comum de qualquer família devidamente estruturada”.
Só que, a problemática de saber se a conduta da recorrente integra ou não o crime previsto no artigo 152º-A, nº 1, alínea a), do Código Penal, nada tem a ver com o vício trazido à colação, tal como legalmente estruturado está e pela jurisprudência nacional tem sido densificado.
E, face ao que retro já se explicitou quanto aos factos que, no entender do julgador da 1ª instância, são subsumíveis nesse tipo legal de crime, também aqui inexiste contradição.
Aduz ainda a arguida, a título subsidiário, que a sentença padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, no que tange aos factos dados como provados nos pontos 7 a 21, 27, 28, 29 e 31, porquanto “a factualidade em causa, tal como se encontra descrita na decisão recorrida, não consubstancia a prática de qualquer ilícito criminal, nomeadamente do crime de maus tratos p. e p. pelo artigo 152º-A, nº 1, alínea a), do CP”.
Verifica-se a “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão.
Refere-se, por isso, à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito (e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova) e verifica-se quando, nas palavras de Germano Marques da Silva, ob. cit. pág. 340, “a matéria de facto se apresenta como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito” porque o Tribunal “deixou de apurar ou de se pronunciar relativamente a factos relevantes para a decisão da causa, alegados pela acusação ou pela defesa, ou que resultaram da audiência ou nela deviam ter sido apurados por força da referida relevância para a decisão” - Ac. do STJ de 03/07/2002, Proc. nº 1748/02-5ª; a insuficiência “decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão”, ou seja, quando da decisão revidenda resulta que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados ou descritos, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição – Ac. do STJ de 18/03/2004, Proc. nº 03P3566, disponível em www.dgsi.pt e Ac. do STJ de 21/06/2007, Proc. nº 07P2268.
Ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto, enquanto vício desta, com as consequências a que conduz – o reenvio do processo para novo julgamento quando não for possível decidir da causa, conforme consagra o nº 1, do artigo 426º, do CPP - não se identifica com a não suficiência dos factos provados para a decisão que está em causa, antes concerne à impossibilidade de permitir uma qualquer decisão segundo as várias soluções plausíveis para a questão. Se os factos provados permitem uma decisão, ainda que com orientação diferente da prosseguida, não estamos perante a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada mas, eventualmente, face a erro de julgamento e de subsunção dos factos provados ao direito.
Pois bem, a recorrente não suscita questão alguma que resulte da insuficiência enquanto vício da matéria de facto nos termos legalmente configurados, mas tão só, relativamente à sua actuação, exprime a divergência sobre a subsunção jurídico-penal que dos factos provados o tribunal a quo efectuou, o que naquele se não enquadra.
Carece, assim, de razão, pois não se verifica o invocado vício, porquanto a factualidade que provada se mostra permite uma decisão segundo as várias soluções plausíveis para as questões em causa, mesmo eventualmente diversa da que foi encontrada pela 1ª instância.
Improcede, assim, o recurso neste segmento.
Nulidade insanável prevista no artigo 119º, alínea c), do CPP
No entender da recorrente, na diligência de tomada de declarações para memória futura ao menor GO Oliveira, que decorreu na Comarca de Aveiro, “não foi minimamente representada por defensor”, isto porque “o defensor foi nomeado para o ato e, em vez de solicitar a consulta do processo antes de intervir na diligência, aceitou fazê-lo sem ter o mínimo conhecimento dos autos e do que se iria passar na diligência”, o que configura “na prática a ausência de defensor” e, consequentemente, nulidade insanável nos termos do estabelecido nos artigos 64º, nº 1, alínea f) e 119º, alínea c), do CPP.
Ora, conforme resulta do auto de declarações para memória futura de fls. 79, para a acto foi nomeada defensora a Srª Dr.ª Helena Bessa.
Nos termos do estabelecido no artigo 64º, nº 1, alínea f), do CPP, é obrigatória a assistência de defensor nas declarações para memória futura.
E, de acordo com o artigo 119º, alínea c), do CPP, constitui nulidade insanável a ausência do arguido ou do seu defensor, nos casos em que a lei determinar a sua obrigatoriedade.
No caso em apreço, à diligência esteve presente a mencionada ilustre advogada.
É patente que a arguida está desagradada com a forma como entendeu a Srª advogada pautar a sua intervenção na diligência (denominando-a até de “irresponsabilidade total”) mas tal é matéria que não se prende com a questão da ausência de defensor, que, como é evidente, não ocorreu.
Quanto à constituição da ora recorrente como arguida antes das declarações para memória futura, cumpre se diga que estas não supõem uma prévia declaração de arguido e, sendo certo que o nome da mesma surgiu no início do processo por o menor ter alegadamente mencionado a duas técnicas do serviço social que as lesões físicas que apresentava tinham sido causadas por acção “da SM” com uma colher de pau, menos vero não é que se estava em momento inicial do inquérito em que não recaíam ainda fundadas suspeitas da prática de crime pela mesma e, portanto, não ser admissível a sua constituição como arguida, atento o estabelecido no artigo 58º, nº 1, alínea a), do CPP.
Não tendo sido constituída arguida, também não teria de ser notificada da data da diligência.
E, tal entendimento não constitui violação do princípio do contraditório - previsto no artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa, a propósito das garantias de processo penal, consagrando-se que o processo penal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório, sendo que este, numa perspectiva processual, consubstancia-se em não poder ser tomada qualquer decisão que afecte o arguido sem que lhe seja dada a oportunidade para se pronunciar - ao contrário do que sustenta a recorrente, pois, como se pode ler no Ac. R. de Évora de 07/07/2011, Proc. nº 100/11.1YREVR, disponível em www.dgsi.pt, “o respeito pelo princípio do contraditório não exige a constituição de arguido antes da prestação das referidas declarações para memória futura, exige, sim, a nomeação de defensor, mesmo que não esteja identificado qualquer suspeito (o que foi feito no caso em apreço). Pode ver-se, neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 3ª edição actualizada, 2009, nota 9 ao artigo 271º, pgs. 701 e 702); e os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25/3/2009, processo nº 09P0486, relatado por Fernando Fróis (in www.dgsi.pt); da Relação do Porto de 18/4/2001 (in C.J., XXVI, pgs. 228 e segs); e de 1/2/2006, processo 0515949, relatado por Jorge França (in www.dgsi.pt); e da Relação de Coimbra de 29/9/2010, processo 380/08.0TACTB, relatado por Abílio Ramalho (in www.dgsi.pt)”.
Por outro lado, a arguida teve a real possibilidade de contraditar a versão apresentada pelo menor nas suas declarações para memória futura no decurso da audiência de julgamento em que foi assistida pelo seu ilustre mandatário, podendo indicar as provas tidas por pertinentes para a infirmar.
De onde, também inexistir interpretação obliteradora das normas ínsitas nos artigos 16º, 18º, nºs 1 e 2, 20º, nºs 2 e 4 e 32º, nºs 1 e 5, da Constituição da República Portuguesa e artigo 6º, parágrafos 1 e 2, alínea d), da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento/proibição de valoração de prova/nulidade da sentença
Critica a recorrente a matéria de facto dada como assente pela 1ª instância nos pontos 22, 23, 24, 25, 29, 30 e 31, dos fundamentos de facto da decisão recorrida, chamando a terreiro, para tanto, além do relatório do INML, segmentos das suas declarações, das declarações para memória futura prestadas pelo menor GO e dos depoimentos das testemunhas JN  , AV, RF, PM , LM e MM, prestados em audiência de julgamento.
Quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto nesta modalidade, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do CPP, têm de descriminar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Segundo o nº 4 da mesma disposição legal, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa - nº 6.
Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência, como ocorre no caso em apreço, o que não obsta a que, também neste caso, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens).
Analisando a peça processual recursória, constata-se que cumpridas se mostram as exigências legais.
Assim se entendendo, importa analisar então a prova produzida com o objectivo de determinarmos se consente a convicção formada pelo tribunal recorrido, norteados pela ideia – força de que o tribunal de recurso não procura uma nova convicção, mas apurar se a convicção expressa pela 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e demais elementos probatórios podem exibir perante si (partindo das provas indicadas pela recorrente que, na sua tese, impõem decisão diversa, mas não estando por estas limitado) sendo certo que apenas poderá censurar a decisão revidenda, alicerçada na livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se for manifesto que a solução por que optou, de entre as várias possíveis e plausíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum - artigo 127º, do CPP.
E, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção”, pois “doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.
Cumpre ter em atenção também que os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se confortam e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram.
Analisemos então a concreta factualidade que provada foi considerada e a arguida critica, considerando a óptica da censura que lhe faz e se tem ou não suporte na prova produzida.
Começa a recorrente por afirmar que, relativamente ao depoimento da testemunha JN , este, na parte em que refere o que ouviu dizer às técnicas de serviço social, visto que estas não foram ouvidas, constitui depoimento indirecto, não admissível de ser valorado como meio de prova, atento o estabelecido no artigo 129º, do CPP.
De acordo com o artigo 128º, nº 1, do CPP, “a testemunha é inquirida sobre factos de que possua conhecimento directo e que constituam objecto da prova”.
Por seu turno, consagra-se no aludido artigo 129º, que “se o depoimento resultar do que se ouviu dizer a pessoas determinadas, o juiz pode chamar estas a depor. Se o não fizer, o depoimento produzido não pode, naquela parte, servir como meio de prova, salvo se a inquirição das pessoas indicadas não for possível por morte, anomalia psíquica superveniente ou impossibilidade de serem encontradas” – nº 1; sendo que o mesmo se aplica “ao caso em que o depoimento resultar da leitura de documento de autoria de pessoa diversa da testemunha” – nº 2.
O que se visa com tal proibição é que o tribunal não acolha como prova um depoimento que se limita a reproduzir o que se ouviu dizer a outra pessoa que é possível ouvir directamente.
Este entendimento tem subjacente a ideia de que a utilização e valoração dos testemunhos de ouvir dizer é incompatível com um processo de estrutura acusatória, por ser contrária aos princípios da imediação e do contraditório em julgamento.
Acresce que, como se pode ler no Ac. do STJ de 03/03/2010, Proc. n.º 886/07.8PSLSB.L1.S1), consultável em www.dgsi.pt “a essência da prova testemunhal é a que a mesma se refere às declarações que efectua uma pessoa sobre aquilo que percebeu pessoal e directamente. A prova testemunhal caracteriza-se pela sua imediação com o acontecimento que se presenciou visual ou auditivamente.
O depoimento indirecto refere-se a um meio de prova, e não aos factos objecto de prova, pois que o que está em causa não é o que a testemunha percepcionou mas sim o que lhe foi transmitido por quem percepcionou os factos. Assim, o depoimento indirecto não incide sobre os factos que constituem objecto de prova mas sim sobre algo de diferente, ou seja, sobre um depoimento.”
Tendo-se procedido à audição do depoimento da testemunha JN , técnica superior de serviço social, na gravação disponibilizada pelo tribunal a quo, constatou-se que referiu, entre o mais, que só no dia 9 de Junho de 2014, quando acompanhou o menor GO ao INML é que viu as lesões corporais que este apresentava.
Teve conhecimento que estas lesões já existiam quando ele regressou ao Centro de Acolhimento em 7 de Junho de 2014, porque leu o registo efectuado pelas técnicas/assistentes onde se relata a situação e visualizou as fotografias que as documentaram.
Diz-se na decisão recorrida:
Desde logo, a testemunha JN  , técnica superior social a exercer funções na C.  , confirmou, em sede de audiência de julgamento, que as assistentes que prestavam apoio na instituição de acolhimento, visualizaram, na hora do banho, que o menor GO apresentava nódoas negras na região nadegueira; a própria testemunha, que acompanhou o menor GO ao Instituto de Medicina Legal, teve a oportunidade de visualizar as lesões que o menor apresentava naquela região do corpo; por outro lado, o menor, na altura em que as técnicas visualizaram as lesões, confirmou que as mesmas tinha sido provocadas pela arguida através de uma colher de pau (a testemunha referiu que o menor lhe confidenciou a versão que teria dito às técnicas/auxiliares pese embora a relutância do mesmo em descrever os factos ao médico que efectuou o relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal - o que não deixa de ser normal tendo em conta a idade do menor e o facto de estar perante uma pessoa desconhecida que iria realizar um exame médico ao seu corpo).
Ora, a reprodução pela testemunha do que as técnicas/assistentes, que não prestaram depoimento em audiência (sendo que demonstrado não está a verificação de qualquer das circunstâncias excepcionais mencionadas na parte final do nº 1 do artigo 129º), terão visualizado, de que teve conhecimento pela leitura do registo escrito e fotografias que fizeram, não podia ser valorado pelo tribunal recorrido, como foi, para a formação da sua convicção quanto à factualidade dada como provada em causa, pois integra efectivamente depoimento indirecto e, por conseguinte prova proibida.
E, sendo “declarada a proibição de prova, não está em causa o vício que afecta a matéria de facto, a necessitar de um adequado esclarecimento, mas sim o expurgar do vício da nulidade que afecta a mesma decisão o que tem, em princípio, por consequência, a emissão de uma nova sentença pelo tribunal recorrido, mas expurgada do vício apontado” - anotação do Colendo Conselheiro Santos Cabral no Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição revista, Almedina (anotado por Exmºs Conselheiros do S.T.J.), pág. 407.
Ou seja, a ideia subjacente é a de que a sentença que se funda em prova nula é também ela nula – nulidade que é até do conhecimento oficioso, pois estão em causa direitos e princípios processuais fundamentais, como os do contraditório e processo justo e equitativo, tutelados pelos artigos 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa e 6º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e, sendo outra a cominação, proibições de prova que os rejeitam poderiam transformar, por via da não arguição, vícios insanáveis em vícios sanáveis - pelo que importa declarar a nulidade parcial da sentença, o que impõe a prolação de nova decisão que, analisando a restante prova, mantenha ou modifique em conformidade a matéria de facto e a respectiva matéria de direito - assim Ac. do STJ de 06/10/2016, Proc. nº 535/13.5JACBR.C1.S1, em www.dgsi.pt.
Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso que apreciadas não foram.
III – DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da 5ª Secção desta Relação em conceder parcial provimento ao recurso pela arguida SM interposto e declarar a nulidade parcial da sentença recorrida, por utilização na formação da convicção do julgador de prova de valoração proibida no que concerne à supra referida factualidade e demais com ela conectada, impondo-se a prolação de nova sentença que exclua como meio de prova as declarações prestadas pela testemunha JN na parte em que se reporta ao que foi visualizado ou referido pelas assistentes/técnicas do serviço social e fotografias por estas obtidas e, em conformidade, reconfigure a matéria de facto e respectiva matéria de direito;
Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso que não foram apreciadas.
Sem tributação.
Lisboa, 28 de Janeiro de 2020
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário – artigo 94º, nº 2, do CPP)

Artur Vargues
Jorge Gonçalves
Filomena Gil