Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
559/12.0TTLSB.L1-4
Relator: PAULA SÁ FERNANDES
Descritores: PLURALIDADE DE EMPREGADORES
SUBORDINAÇÃO JURÍDICA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: N
Texto Parcial: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: ALTERADA A DECISÃO
Sumário: SUMÁRIO:
1. No âmbito do direito do trabalho a própria circunstância de poder existir um contrato formal em que apenas um dos empregadores aparece identificado como tal não
é decisiva na sua qualificação jurídica, desde que se determine que, de facto, o trabalhador se encontra subordinado juridicamente a outra entidade. É a realidade factual, ou seja, a relação que realmente existiu, a sua vida e a sua dinâmica que determina a forma jurídica e não o inverso.
2. Existindo a subordinação jurídica da trabalhadora em relação às duas rés que utilizam em comum a prestação de trabalho da autora porque mantêm estruturas organizativas comuns, configura-se a existência de um contrato de trabalho com vários sujeitos a assumir o estatuto de empregador.

(Elaborado pela Relatora.
Decisão Texto Parcial:Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

AA,  residente em Odivelas, intentou a presente acção declarativa e de condenação emergente de contrato de trabalho, contra as rés :
1ª “BB” e
2ª “CC", ambas com sede na Rua (…), em Lisboa,
Pedindo que estas sejam condenadas a pagar-lhe o seguinte:
a) € 25.902,18, a titulo de indemnização;
b) € 1.268,18, a título de formação profissional devida e não paga/proporcionada;
c) € 5.398,67, por créditos laborais vencidos e não pagos;
d) Pelos salários intercalares vincendos;
e) Pagar juros de mora desde a data do vencimento até ao integral pagamento referentes às quantias referidas nas alíneas anteriores.
Alega ter celebrado um contrato de trabalho com a "BB", cuja posição contratual desta veio a ser assumida pela 2ª ré "CC, L.da", e para as quais trabalha, sob sua autoridade e direcção, desde Novembro de 1990, detendo a categoria profissional de primeira Escriturária, com horário semanal de 35 horas, desenvolvendo o seu trabalho em regime de rotatividade interna, distribuído por três funcionárias com as mesmas competências. Apesar do seu contrato de trabalho ter sido celebrado apenas com a primeira ré, desde de Novembro de 1990, que a autora exercia também as suas funções para a sociedade 2ª ré, cujo objecto social é semelhante ao da primeira, funcionando na mesma morada, com alguns dos sócios comuns, partilhando as mesmas instalações. Apesar das retribuições mensais serem pagas pela 1ª Ré e os respectivos recibos emitidos por esta, a Autora sempre recebeu ordens directas de ambas as Rés, estando vinculada ao cumprimento das mesmas, sendo comum a estrutura organizativa de ambas as Rés, comungando da mesma actividade comercial e do mesmo objecto, e utilizando, entre o mais, os mesmos recursos, designadamente funcionários.
A 1ª Ré passou a faltar ao pagamento pontual das retribuições da Autora, acabando por informar a autora que não dispunha de liquidez financeira, foi-lhe feita proposta para a cessação do contrato de trabalho mediante uma indemnização que rejeitou pelo valor diminuto da mesma. Por falta de pagamento das retribuições a autora viu-se obrigada a primeiro suspender e depois resolver o contrato de trabalho, invocando justa causa e reclamando das rés o pagamento da indemnização e créditos salariais.

Contestou, apenas, a 2ª ré, afirmando ser falso que a autora tenha exercido a sua actividade para si, ou que se encontrasse sujeita as ordens e directrizes suas, não se inserindo na sua organização. A autora não utilizou instrumentos ou equipamentos de trabalho sua propriedade, não cumpria horário de trabalho, nem observava tempos mínimos de trabalho impostos pela 2ª ré, nem a retribuição e outras prestações a que autora teria direito eram suportadas por si, nunca tendo tido trabalhadores ao seu serviço. Mas, admitindo-se a hipótese de que assim não se entenda, sustenta que à autora não assiste direito aos créditos que reclama por não ter existido tempo suficiente de falta de pagamento de retribuições que permitisse à autora suspender e depois resolver o contrato de trabalho, créditos esses que, além do mais, se encontram incorrectamente calculados.

Após a realizou-se a audiência de discussão e julgamento, foi proferida a sentença que decidiu nos seguintes termos: “Em face do exposto, julga-se a presente acção parcialmente procedente por provada e, em consequência, decide-se condenar, solidariamente, ambas as rés no pagamento à autora de €23 137,72 (vinte e três mil, cento e trinta e sete euros e setenta e dois cêntimos).
a) dos quais a quantia de €17 276,25, a título de indemnização pela antiguidade, a que acrescerão juros de mora à taxa de 4%, desde esta data e até integral pagamento;
b) A quantia de € 462,80, devida por crédito de horas por falta de formação, que igualmente vencerá juros de mora nos termos de a);
c) A quantia de € 5.398,67, devida por crédito laborais (retribuição base, subsídios de férias e de Natal e proporcionais), que vencerá juros de mora desde a data do vencimento de cada uma daquelas importâncias e até integral pagamento.

    A 2ª ré, CC. Lda inconformada, interpôs recurso com os seguintes objectivos:

- Falta de motivação da decisão sobre a matéria de facto.
- Impugnação da matéria de facto
- Indevida decisão condenatória da ré 

Não foram apresentadas contra-alegações.

Colhidos os vistos legais.

Apreciando  

Fundamentos de facto:
Foram considerados provados os seguintes factos :
(…)

Fundamentos de direito

A 1ª questão suscitada no recursos é relativa à motivação sobre a decisão de facto, questão que, no entanto, já foi apreciada no acórdão de fls. 522 e sgts, tendo os autos sido devolvidos à 1ª instância para que o tribunal recorrido procedesse à devida fundamentação da matéria de facto, o que sucedeu, conforme despacho de fls. 535 a 540.

A 2ª questão é relativa à impugnação da matéria de facto.
(…)

 A 3ª questão - a recorrente impugna a decisão de mérito sobre a questão de direito, invocando o seguinte :
 a) Inexistência de contrato de trabalho entre autora e recorrente por inexistência de subordinação jurídica;  
 b) Não verificação dos requisitos legais da pluralidade de empregadores;
c) Inexistência do direito a indemnização e demais créditos.  

a) Inexistência de contrato de trabalho entre autora e a ré/ recorrente por inexistência de subordinação jurídica e a não verificação dos requisitos legais da pluralidade de empregadores;
O tribunal recorrido entendeu, como sustenta a autora, ter existido um verdadeiro contrato de trabalho entre a autora e a 2ª ré, que perdurou ao longo do tempo, sendo esta co-responsável da mesma forma que a primeira ré, atenta a organização, hierarquização e funcionamento entre as rés, que nem sequer  permite estabelecer qualquer grau de maior ou menor desempenho por parte da autora em relação a qualquer das sociedades rés - factos das alíneas n), p) e q) .
A recorrente insurge-se com este entendimento, por considerar que se apurou que a autora tinha apenas uma relação laboral com a 1ª ré, sem que se tenha provado qualquer relação de subordinação jurídica entre a autora e a ré/recorrente.

Vejamos então

Com o Código do Trabalho de 2003, o seu artigo 92º, n.º1 passou a estabelecer expressamente que o trabalhador pode obrigar-se a prestar trabalho a vários empregadores entre os quais exista uma relação societária de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, sempre que se observem cumulativamente os requisitos identificados nas suas alíneas a) a c). E o seu n.º2 alarga o respectivo regime a todas as situações em que dois ou mais empregadores, independentemente da natureza societária, mantenham estruturas organizativas comuns.
Assim, o contrato de trabalho com uma pluralidade de empregadores pode ser celebrado com entidades que mantêm estruturas organizativas comuns à actividade económica desenvolvida, particularmente, instalações, equipamentos ou recursos colocados à disposição das diversas entidades.
No caso, resulta claro dos factos apurados ter existido uma relação laboral entre autora e ré/recorrente qualificável como contrato de trabalho que perdurou ao longo do tempo - desde 1990. Com efeito, resultou provado que a  autora exercia a sua actividade, também, para a ré, CC, L.da, pois dela recebia ordens
directas, trabalhando a autora em local de trabalho propriedade da mesma, explorado pela 1ª ré. E, apesar das retribuições serem pagas pela 1ª ré, a autora sempre recebeu ordens directas quer dessa sociedade, quer da ré/recorrente, existindo uma estrutura hierarquizada composta por um coordenador que, por sua vez, recebia directivas de vários médicos, recebendo a autora ordens directas dos médicos. Ambas as rés utilizam a mesma sede, instalações, gabinetes de consultas, equipamentos telefónicos, informáticos e de diagnóstico, partilhando ainda os mesmos funcionários. O espaço utilizado por ambas é composto por rés-do-chão e cave, ambos com espaço de espera, com gabinete de atendimento e marcação de consultas, o consultório, focalizado no rés-do-chão, funciona para atendimento médico, essas consultas são facturadas em nome de várias entidades, designadamente a ré, e os serviços de fisioterapia e radiologia estão localizados na cave. O sinal identificador das relações trabalhador-empregador encontra-se na subordinação jurídica, no exercício efectivo de uma autoridade que, no caso, resulta da factualidade apurada – cf. factos provados alíneas k) a u).
Existindo, assim, a subordinação jurídica da trabalhadora em relação às duas rés que utilizam em comum a prestação de trabalho da autora porque mantêm estruturas organizativas comuns, configura-se a existência de um contrato de trabalho com vários sujeitos a assumir o estatuto de empregador.
No âmbito do direito do trabalho a própria circunstância de poder existir um contrato formal em que apenas um dos empregadores aparece identificado como tal não é decisiva na sua qualificação jurídica, desde que se determine que, de facto, o trabalhador se encontra subordinado juridicamente a outra entidade. É a realidade factual, ou seja, a relação que realmente existiu, a sua vida e a sua dinâmica que determina a forma jurídica e não o inverso, ou seja, a vontade das partes não pode afastar a subordinação jurídica quando ela estiver presente, como resultou bem claro no caso dos autos. Com este entendimento, ver os acórdãos do STJ de 1.04.2009 (relator Vasques Dinis), recentemente o acórdão de 28.01.2015 (relator Mário Morgado), publicados no site da dgsi, ver ainda, na doutrina, Maria do Rosário Palma Ramalho, em Direito do Trabalho – parte I dogmática geral - a Pluralidade de empregadores, 326 a 332.

Deste modo, concluiu bem a sentença recorrida ao considerar que sendo as ambas as rés entidades empregadoras da autora, são solidariamente responsáveis pelo pagamento dos créditos laborais da autora, atento ao disposto no n.º3 do artigo 92º/CT/2003.
         
b) Justa causa na resolução do contrato – indemnização

   A ré/recorrente veio invocar a inexistência de justa causa na resolução do contrato por parte da autora face ao reduzidíssimo grau de ilicitude e de culpa da entidade empregadora.

            Vejamos  
O artigo 394 n.º1 do CT dispõe que ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato. Esclarecendo o seu n.º2 quais os comportamentos do empregador que constituem justa causa de resolução pelo trabalhador, designadamente o previsto na alíena a) - falta culposa de pagamento pontual da retribuição, sendo que tal falta presume-se culposa quando se prolongue por período de 60 dias, como resulta do disposto no n.º5 do mesmo  preceito legal.
No caso, apurou-se que as rés deixaram de pagar à autora parte do subsídio de férias vencido em 2011 e parte da retribuição de Novembro desse mesmo ano, em virtude da 1ª ré não dispôr de liquidez. Mas apurou-se ainda que no âmbito de "negociações" a autora não obteve qualquer resposta das rés, tendo então decidido comunicar-lhes a suspensão do contrato de trabalho por carta de 16.11.2011, e depois a resolução de tal contrato com efeitos imediatos em  01.02.2012- cf. factos w,x , ad) ae) af) ah) ao).
Sendo certo que a recorrente tem sempre negado a sua qualidade de entidade empregadora da autora.
Ora, estes comportamentos das rés revelam uma ilicitude grave, pela falta de pagamento total das retribuições mencionadas, conduta que mantiveram relativamente às retribuições subsequentes, mas revelam, ainda, uma atitude gravemente culposa, pois no âmbito das negociações com vista a uma resolução por acordo do contrato, que tinha sido proposta pela 1ª ré, a  autora deixou de obter qualquer resposta das rés, sendo que a ré/recorrente recusa-se mesmo aceitar a sua qualidade de entidade empregadora e de assumir os seus deveres enquanto tal.     
Verifica-se, assim, justa causa de resolução do contrato por parte da autora, ao abrigo dos referidos dispositivos, tendo sido adequadamente fixada a indemnização com base em 30 dias da retribuição, num valor total de €17.276,25 a que acrescem os juros de mora legais desde a data da sentença até integral pagamento – artigos 840 a 806 e 559 do Civil.

Créditos devidos pela formação profissional.

Apesar de resultar provado que a 2ª ré nunca proporcionou formação profissional à autora, não se chegou a apurar se a 1ª ré o tinha feito no âmbito do contrato que a autora detinha com ambas as rés, prova que competia à autora, pelo que deverá improceder este pedido.

 Créditos em divída

Resultou provado que : 
Em 2011, foi apenas facturado à autora metade do valor do subsídio d férias; desde o mês de Novembro de 2011 que a autora não recebe a sua retribuição mensal; em 16.11.2011, a ré enviou  à 1ª ré com conhecimento à 2ª ré,  carta a comunicar a suspensão de contrato de trabalho pelo não pagamento pontual da retribuição, nos termos do artigo 325 CT - factos que constam das alíenas x) y) z).  
                           Assim a autora tem direito:

1. Ao pagamento da retribuição relativa ao mês de Novembro em falta, no valor  €463,00 – facto da al. ac);
2. A metade do subsídio de férias de 2011 em falta, no valor de 406,50 – facto al. v);
3. A 2/3 da retribuição normal relativa aos meses de Dezembro de 2011 e Janeiro de 2012, no valor de € 813,00 + 813,00 x 2/3=  num total de € 1 084, 00, atento ao disposto no artigo artigo 305 n.º1 a) do CT. ;
4. Aos subsídios de alimentação relativos aos meses de Novembro de Dezembro de 2011 no valor -  € 260,92 – art. 305 n.º1 b) do CT.
Uma vez que, nos termos do artigo 306º do CT, a suspensão não afecta o vencimento da duração do período de férias e subsídios de férias e Natal, a autora tem ainda direito:
5. Ao subsídio de Natal de 2011, no valor de € 813,00;

6. Às férias e subsídios de férias vencidas em 1.1.2012, pelo trabalho prestado em 2011, no valor de € 1 626,00;
7. Aos proporcionais de férias e subsídios de férias e de Natal relativos ao ano de 2012 - no valor de € 203,25.
Totalizando a verba de € 4856,67 (quatro mil oitocentos de cinquenta e seis euros e sessenta e sete cêntimos).

Decisão
Face ao exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto e em consequência altera-se a decisão da sentença sob recurso, nos seguintes termos :
A) Absolve-se as rés do pagamento da quantia de € 462,80, referida na b) da decisão recorrida.
B) Altera-se a condenação constante na alíena c) da mesma decisão,   para o montante de € 4 856,17.
C) Confirma-se no mais a sentença recorrida.
D) Custas pelas partes, na proporção do vencimento.

Lisboa, 11 de Março de 2015

Paula Sá Fernandes
Filomena Manso
Duro Mateus Cardoso
Decisão Texto Integral: