Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2155/15.0T8PDL.L1-2
Relator: MARIA JOSÉ MOURO
Descritores: REPARAÇÃO DE DANOS
CÔNJUGE LESADO
OFENSAS À HONRA E DIGNIDADE DO OUTRO CÔNJUGE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Sumário:
I - A lei 61/2008, de 31-10, consagrou o afastamento da denominada tese da “fragilidade da garantia” - consoante o nº 1 do art. 1792 do CC (na redação introduzida por esta lei) o cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil.
II – Assim, verificando-se os pressupostos da responsabilidade civil previstos no art. 483 do mesmo Código, serão indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, nos termos previstos no nº 1 do art. 496 do CC.
III - Entre os deveres conjugais aludidos no art. 1672 do CC encontra-se o dever de respeito - cada cônjuge tem o especial dever de respeitar os direitos individuais do outro, abrangendo o dever de respeito desde logo, os direitos inerentes à personalidade; assim, cada um dos cônjuges está obrigado a não lesar física ou moralmente o outro - não atentar contra a saúde, a integridade física, a honra e o bom nome do outro.
IV - Correspondem a factos ofensivos da integridade moral, bem como violadores do dever de respeito, quaisquer palavras ou actos de um cônjuge que ofendam a honra do outro, a sua reputação e consideração social de que goza, ou mesmo o seu amor-próprio e brio, a sua sensibilidade e susceptibilidade pessoais.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível (2ª Secção) do Tribunal da Relação de Lisboa:

                                                                       *

    I – SB intentou a presente acção declarativa com processo comum contra PM.

            Alegou a A., em resumo:

A A. e o R. casaram em 22 de Dezembro de 1994, vivendo a A. com o R. até ao final de Agosto, princípio de Setembro de 2014 e havendo em Dezembro desse ano proposto acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, a qual corre termos.

Durante a vida em comum com o R. este infligiu-lhe os maus tratos físicos e psicológicos que descreve, ofendendo-a física e moralmente, violando ilícita e continuadamente os direitos à integridade física, a não ter medo e agir livremente, a um corpo e a uma mente saudável, à dignidade, a uma convivência fundada no respeito mútuo, na colaboração e na igualdade, constituindo-se na obrigação de indemnizar a A. pelos danos resultantes daquelas violações.

Pediu a A. a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de € 150.000,00 a título de danos não patrimoniais, acrescidos de juros de mora à taxa legal, calculados da data da citação e até integral pagamento.

O R. contestou, invocando a excepção da litispendência e impugnando factos alegados pela A..

No saneador aquela excepção foi julgada improcedente e, prosseguindo o processo, a final foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu o R. do pedido.

Da sentença apelou a A. concluindo nos seguintes termos a respectiva alegação de recurso:

1 A douta sentença limita-se a dizer que os factos não provados assim foram considerados por falta de prova.

2 É, por isso, por falta de análise crítica das provas, nula, violando o disposto no art. 607 nº 4 e 615 nº 1 b) do C.P.C.

3 A douta sentença é nula por não ser admissível em sentença judicial a inserção de reticências – só na parte da convicção e do direito aplicável contam-se mais de 50 – por omissão do dever de especificar os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida – art. 607 nº 4 e 615 nº 1 b) ibid..

4 A matéria dada como provada, sem mais nada, é já de si suficiente para que seja proferida condenação do réu a indemnizá-la por incumprimento das obrigações de respeito, mútua colaboração e assistência, por injúrias e maus tratos psicológicos.

5 No item 28 dá-se por provado que a A. saiu de casa porque quis.

6 Em parte nenhuma da prova produzida se encontra sequer qualquer indício que permita dar esta resposta.

7 Pelo contrário, bastaria o senso comum para não acrescentar o «porque quis».

8 Competia ao réu fazer essa prova.

Onde está? Não se sabe.

9 O que consta provado nos autos é que a autora saiu de casa por ter medo do réu e porque já não podia mais suportar as agressões de todo o tipo perpetradas pelo réu.

10 O «porque quis» poderia ter descido e deve descer duas linhas e com toda a propriedade ser acrescentado ao R. o qual ficou responsável exclusivamente por todos os encargos (apenas o da casa onde ficou a viver e do carro com que ficou, como se viu) dos empréstimos comuns do casal – porque quis. Acordo no processo de divórcio referido pelo senhor juiz.

11 No item 31 está escrito que a separação e pedido de divórcio trouxe à A. algum sofrimento mas também o trouxe ao R..

12 Nada na prova produzida permite este acrescento que é da pura lavra do senhor juiz.

13 A douta sentença é nula por violação do disposto no art. 615 nº 1 al. b) e c) ibid.

14 A douta sentença contém na convicção termos e expressões vagas tais como «a autora prestou declarações… de forma titubeante…», «A A. “pintou” o R. como a pior pessoa do mundo…», «(como se fosse possível retirar queixas por crime de tal natureza)», «a versão por ela apresentada não tem qualquer sustentação probatória. … «…fragilidade do relato na sua globalidade… sua inverosimilhança».

15 Mais uma vez, por violação do disposto no citado art. 615 nº 1 b) e c) deve ser anulada.

16 Por tudo o que atrás alegou, a autora entende que os items 33, 34, 35, 36, 37, 38 (verdadeiro à data da saída de casa), 39, 40 (idem), 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47 a 52, 55, 56, 57, 69, 70, 72, 73, 74, 75, 77, 80, 84, 85, 86, 92 até perante a criança assustada, 94, 95, 97, 99, dados como não provados, devem passar a integrar a matéria dada como provada.

17 Ao julgar de forma inversa a douta sentença ignorou, sem justificação crítica específica, os depoimentos acima referidos, prestados por conhecimento direto.

18 Pelas mesmas razões deve ser anulada.

19 A conduta do réu para com a autora ao longo do seu casamento violou os princípios mais básicos da convivência humana tal como está consagrado nos arts. 1º, 24º nº 1, 25º e 26º da Constituição da República, fazendo eco da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, especialmente do Protocolo nº 7 de 22.11.1984, art. 5º1, art. 23º nº 42 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos de 1966 e ainda na Carta dos Direitos Fundamentais da U.E..

20 A apreciação do desvalor da conduta culposa do R. e da medida dos danos causados por essa conduta na esfera jurídica pessoal e patrimonial da A., está hoje remetida para a lei civil geral da responsabilidade por factos ilícitos, art. 483 do C. Civil.

21 Agindo como agiu ao longo dos anos o R. violou, ilicitamente e de forma continuada, o direito à integridade física, o direito de não ter medo e de agir livremente, o direito a um corpo e a uma mente saudável, o direito à dignidade, o direito a uma convivência fundada no respeito mútuo, na colaboração e na igualdade, da A..

22 Tudo obrigações legais que vinculam todos os cidadãos portugueses desde há muitos anos e que, por isso, constituiu o R. na obrigação de indemnizar a A. pelos danos resultantes daquelas violações – art. 483 do C. Civil.

23 São pressupostos da responsabilidade em que o R. incorreu, a livre vontade com que praticou os actos, a ilicitude destes, a culpa com que os praticou, os danos que causou e o nexo de causalidade entre os actos e os danos.

24 Todos e os muitos que praticou que, por configurarem uma atitude prepotente geral e diária de índole cultural inadmissível, na prática uma admissão consciente de superioridade física, mental e financeira subversiva dos princípios legais enunciados, por parte do R., por isso, impossível de enumerar, mas que, nem por isso, devem deixar de ser tidos em conta.

25 É bem sabida a dificuldade de estabelecer um critério sistemático susceptível de servir de base para a atribuição de uma compensação material nestas situações.

26 Tão bom como qualquer outro, para este caso concreto, pensamos ser o do valor da mais valia de que o R. beneficia com o casamento e a sua dissolução – o valor do lote de terreno doado acima referido e que a A. estima em 150.000,00€.

27 Revogada a douta sentença, estando nos autos todos os elementos de prova necessários, pede a autora seja substituída por douto acórdão deste Tribunal que condene o réu a indemnizar a autora por danos patrimoniais e não patrimoniais no valor pedido ou, se assim não for entendido, segundo o seu mais alto critério em juízo de equidade.

O R. contra alegou nos termos de fls. 352 e seguintes.

                                                           *

II – 1 - O Tribunal de 1ª instância julgou provados os seguintes factos:

1.

A. e R. casaram em 22 de Dezembro de 1994 na Conservatória do Registo Civil de Ponta Delgada, sem convenção antenupcial;

2.

Do casal nasceu um filho, MM, em 6 de abril de 1997, em S. José, Ponta Delgada;

3.

A A. viveu com o R. sob o mesmo teto até ao final de Agosto princípio de Setembro de 2014, tendo no início de Dezembro proposto acção de divórcio sem consentimento do outro cônjuge que corre os seus termos nesta comarca com o nº.1269/14.9T8PDL;

4.

A ação referida em 3. foi, na altura da audiência de julgamento levada a cabo em 28.1.2016, convolada em divórcio por mútuo consentimento, a ela sendo junta a relação dos bens comuns; acordo em ambos os cônjuges prescindem mutuamente de alimentos e acordo quanto ao destino a dar à casa de morada de família até à partilha, entregando a sua utilização ao requerente PM, logo nessa altura sendo proferida decisão a decretar o divórcio;

5.

A A. saiu de casa como se aponta e 3. e, provisoriamente, foi morar em casa de sua mãe enquanto não lhe foi possível encontrar alojamento compatível com o seu único rendimento, o do trabalho, e porque o filho estava a viajar e o irmão se encontrava a trabalhar temporariamente no Reino Unido, havendo, por isso, uma cama vaga na habitação;

6.

Depois de muito procurar a A. conseguiu alojamento na Rua ..., em Ponta Delgada pela qual pagava renda mensal equivalente a cerca de metade do seu salário;

7.

A A., habituada a uma vivenda sita na Canada dos Verdes n....., Ponta Delgada, com um grande jardim, com dois pisos e seis divisões, confortavelmente mobilada, num sítio com vista desafogada, construída durante o casamento num terreno doado pelo seu avô materno, onde cresceu e brincava em criança, viu-se confinada ao exíguo r/c dtº da R..., 9500-020 Ponta Delgada, parte de uma casa de porta e duas janelas, onde nem cabem os móveis indispensáveis para se acomodar com o filho;

8.

Foi o melhor que pôde arranjar face ao seu rendimento, ao mesmo tempo que priorizava o bem-estar do filho uma vez que a casa ficava a dois minutos a pé da respetiva escola e não tinha transporte familiar, por isso a A. andava meia hora a pé para chegar à paragem do autocarro mais próxima e daí, em transporte público, seguia para o trabalho, o que foi acontecendo até ter arranjado, com a ajuda da mãe, transporte próprio;

9.

O R. ficou na casa de morada de família a troco do pagamento das restantes prestações do empréstimo contraído para a sua construção e nessas mesmas condições ficou também ele com o carro familiar que possuem;

10.

Penoso para a A. é o facto de a casa de habitação familiar ter sido construída sobre terreno doado ao casal pelo seu avô materno, de quem era muito chegada, e que o fez para facilitar o sonho de uma família feliz acalentado pela A.;

11.

Por tudo a A. recorreu ao auxílio psicológico profissional para tentar recuperar o equilíbrio emocional que perdera;

12.

Em 24 agosto de 1993 a A., sentada no banco do passageiro, teve um grande acidente de mota com o R. por força do qual ficou muito maltratada fisicamente, tendo tido que fazer grandes tratamentos e fisioterapia durante mais de um ano;

13.

O acidente deu origem a um processo judicial, que foi resolvido em tribunal, no qual foi atribuída uma indemnização líquida de mil contos (hoje cerca de 5 mil euros);

14.

Desde o início do casamento que a A. se deu conta de que o R. aos fins-de-semana fumava “erva” e haxixe, tendo para tanto em cultivo caseiro algumas plantas;

15.

Em 2011, maio, 23 a 29, o A. foi convidado para ir a Palermo, Sicília, aos Jogos das Ilhas, como árbitro de basquete desacompanhado da A.;

16.

No mês de junho 2012 foram os três a um espectáculo de música no Nordeste com um grupo de amigos, tendo combinado lá pernoitar em casa de outros amigos;

17.

Nessa noite, na vila do Nordeste, a caminho do local onde ia decorrer um festival de música, deixou-se ficar um pouco para trás, o R., agastado, interpelou a A. para se juntar a eles, discutindo por isso, acabando a A. por telefonar ao seu primo Nuno que, a seu pedido, a foi buscar ao Nordeste para a trazer para Ponta Delgada;

18.

Em 30 junho de 2013, estando uma torneira da casa de banho do r/c a pingar já há muitos dias sem que, apesar dos pedidos da A., o R. a arranjasse ou mandasse arranjar, foi preciso a A. chamar o seu padrasto, o pai José, como lhe chama, para substituir a sola da torneira; estando então o R. a dormir no sofá da sala a A. disse-lhe o que se estava a passar; o R. visivelmente irritado e mal disposto, ignorando a presença daquela pessoa mais velha que, aliás, lhe prestava um favor, respondeu mal à A. em voz alta, dizendo-lhe que ela era uma gaja do caralho, que tudo tinha que ser quando ela queria e nunca podia esperar;

19.

O padrasto assistiu, procurou apaziguar a situação, mas ficou extraordinariamente incomodado;

20.

A A. sentiu muita vergonha por causa desse episódio;

21.

No Verão de 2012 o padrasto assistiu a outras expressões do mesmo jaez, por a A. ter pedido ao padrasto para arranjar uma cabeceira para a sua cama de casal. Estando este a colocá-la, o R. pensou que ele tinha saído e começou a “berrar” à A.;

22.

No dia 14 de Julho de 2014, quando chegou a casa, entrando, viu que estavam presentes dois amigos do R., ele de nome S, ela S, que com o R. estavam a consumir haxixe e álcool frente à TV, deixando os objetos próprios daquele consumo expostos na mesa da sala. Nem se mexeram, nem a saudaram. Foi como se não existisse, como se não estivessem em sua casa. A A. sentiu-se humilhada;

23.

Nas vésperas de se mudar da casa de morada de família, quando foi buscar as suas roupas e outros objetos de uso pessoal, o R. tinha-as encaixotado e deixando as gavetas onde estavam arrumadas todas reviradas, estando presentes os tais SP;

23.

No sábado dia 9 de Agosto 2014, por volta do meio-dia, a A. estava em casa com o pequeno João Nuno, filho do primo, vizinho. Então chegou o R. e deu-se entre ambos e à frente do pequeno uma forte discussão, por isso o levou a casa dos pais na altura em que o progenitor do pequeno já o ia buscar por ter ouvido a discussão da sua casa;

24.

No dia 21 de agosto de 2014, quando a A. precisou de ir à casa buscar mais bens pessoais pediu o auxílio da PSP, cujos agentes a acompanharam na diligência. Aí, apesar dos esforços dos agentes para o acalmarem, o R. acusou a A. de estar a levar coisas da casa em frente dos polícias e da prima, vizinha, Cláudia, que assistiu;

25.

A A. está desde então a ser seguida e apoiada por uma psicóloga da APAV;

26.

Na casa de morada de família mantêm-se a morar o R. e o filho já maior do ex-casal;

27.

A. e R. tentaram, antes da ação mencionada em 3. e através dos seus mandatários acordar o divórcio por mútuo consentimento, regulação das responsabilidades parentais do então menor Miguel, promessa de partilha dos bens comuns e atribuição da casa de morada de família até à referida partilha, o que não lograram;

28.

A A. saiu de casa em Agosto de 2014 porque quis e levou consigo os seus pertences e ainda bens comuns do casal, sem destes dar conta ao R. o qual ficou responsável exclusivamente por todos encargos dos empréstimos comuns do casal;

29.

O R. não aufere pelo seu trabalho o dobro que aufere a A. pelo seu;

30.

Há muito tempo que A. e R. não viviam como casal, apesar de estarem a residir debaixo do mesmo tecto;

31.

A separação e pedido de divórcio trouxe à A. algum sofrimento mas também o trouxe ao R.;

*

II – 2 - O Tribunal de 1ª instância julgou não se terem provados os seguintes factos:

32.

Que foi a desproporção de meios entre a A. e o R. que impediu o acerto das condições do divórcio por mútuo consentimento, dado que a A. tem um salário mensal da ordem dos oitocentos euros, metade do rendimento mensal do R.;

33.

Dados os antecedentes de maus tratos psicológicos e físicos infligidos pelo R. à A. que, inclusivamente chegaram a levá-la a fazer queixas-crime, mas de que acabou por desistir com receio das possíveis represálias, esta atingiu um ponto de quase rotura da resistência psíquica, temendo pela sua integridade física, até pela sua vida;

34.

Com grande mágoa o fez pois tudo tentou para manter a unidade da sua família, idealizada desde sempre com o R. e o filho ainda menor, agora já com 18 anos de idade;

35.

Sacrificou-se durante quase 20 anos de casamento por acreditar profundamente nos votos matrimoniais formulados, sempre com a esperança de que o R. melhorasse a sua conduta e por não querer ferir a suscetibilidade e qualidade de vida do filho que, desde muito cedo, se revelou um ser muito sensível;

36.

Depois de ser ver forçada a sair da sua casa de família, conservada e melhorada pelo esforço e com o bom gosto da A., para não constituir uma sobrecarga para sua mãe, viu-se obrigada a trocar a casa desta por outra mais distante, ficando assim muito prejudicada a convivência com o seu filho, habituados que estavam ao ambiente anterior e próximo dos familiares maternos e respectivo apoio;

37.

Mas não era possível prolongar por mais tempo uma situação que, de dia para dia, se vinha a degradar até ao ponto do temor acima referido;

38.

Mesmo fisicamente separada a A. continua muito receosa que o R. possa voltar a atacá-la e a bater-lhe, pois sabe quais são os seus percursos diários e onde reside;

39.

Os antecedentes assim a fazem reagir e sentir;

40.

Tem sido muito penoso e difícil para a A. vencer a barreira do medo que o A. lhe causou e causa, até mesmo para poder descrever alguns dos antecedentes que a conduziram até este estado e a esta ação;

41.

Que o R. se tenha apropriado da quantia apontada em 12., pois já estavam casados e esse valor, segundo ele, era para consertar a mota;

42.

Na véspera do batizado do filho Miguel (3.8.1997) o R., sem qualquer aviso ou justificação (como se pudesse havê-la!) bateu-lhe socando-a, esbofeteando-a e apertando-lhe o pescoço ao ponto de quase a sufocar, deixando marcas no pescoço, tão visíveis que não passaram despercebidas ao seu sogro, (apesar de a A. as disfarçar) comentando este, inocentemente, que o filho teria de passar a ter mais cuidado com os beijinhos;

43.

Em fevereiro de 99, na casa de renda na Primeira Rua do Terreiro 14, em S. Roque, onde então viviam, certo dia o R. chegou a casa de madrugada e bêbedo; vindo de um festejo com os amigos (dia dos amigos);

44.

Questionado pela A. para se justificar, o R. começou a agredi-la no pé da escada para o primeiro andar onde estava para o receber e foi-lhe batendo até à sala, com as mãos e com os pés, com tanta violência que a A. desmaiou a sentir os pontapés, a pingar sangue pelo nariz;

45.

O filho, de cerca de 2 anos que estava a dormir no primeiro andar, acordou com o barulho e veio interferir suplicando ao pai que parasse de dar pancada na mãe;

46.

A A. não se recorda bem como, mas fugiu para a casa dos tios, vizinhos, para pedir socorro;

47.

Depois disso, não se lembra como, foi para o hospital onde foi atendida pelo Dr. Raffik que a tratou e onde soube que tinha a cana do nariz partida;

48.

A A. lembra-se de ter ficado com a cara toda inchada e com muitas dores, tendo que permanecer em casa durante uma semana, de baixa;

49.

No emprego, para disfarçar as equimoses, passou a usar uns óculos escuros grandes e a responder, vexada, às colegas e amigas que a interrogavam, dizendo que tinha caído na escada de sua casa;

50.

Houve uma altura em que chegaram a estar separados;

51.

O R. saiu de casa em 28 ou 29 de outubro de 2000 indo residir para casa dos pais;

52.

Alegou que queria divorciar-se, dizia estar cansado da vida de casado;

53.

A A. notou-lhe então um comportamento adolescente, andando com amigos muito mais jovens com 18, 19, 21 anos e foi visto várias vezes com uma jovem atleta de basquete, modalidade que o R. também praticava e na qual sempre esteve envolvido, de nome Patrícia Gomes, por quem nunca escondeu ter uma forte atração;

54.

A A. sabe que o R. chegou a procurar uma advogada para proceder ao divórcio;

55.

A separação durou uns 4 meses. Depois recompuseram-se;

56.

Na festa de Natal de 2001 da empresa onde o R. trabalha, prosseguiu depois no restaurante discoteca Sentado em Pé;

57.

Aí o R. comportou-se de maneira tão escandalosa com uma colega Sónia Teves, que os próprios colegas do R. telefonaram à A. para lá ir intervir, pois estava a incomodar os presentes;

58.

A A. tinha-se recusado a ir porque sabia, de experiências anteriores, que o R. se embebedava e dava escândalo, deixando-a incomodada e humilhada perante os restantes convivas;

59.

Nessa noite o R. chegou bêbedo a casa. Confrontado pela A. limitou-se a negar tudo;

60.

Nessa altura estavam a morar em casa da avó da A., pois estavam a construir a sua casa;

61.

Em 5.12.2009, véspera do batizado do João Nuno, filho do primo seu vizinho, Nuno, pelas 10h30 da noite pediu ao R. para reduzir o volume do som da tv, para poder ir dormir e para não incomodar o sono do filho;

62.

O R., insensível, recusou, alegando que o aparelho de tv era dele;

63.

Não se conformando a A. pegou no comando e reduziu o volume;

64.

O R., furioso, reagiu aos pontapés à mobília, partindo vários móveis;

65.

A R., com medo de mais uma vez ser agredida fugiu para o quarto de cama no piso superior onde se trancou, aterrorizada, com o filho, para passarem a noite;

66.

Na manhã seguinte a A. levantou-se cedo para ir ajudar à festa do batizado tendo deixado ao marido um fato, camisa e gravata novas para ele se aprontar para a festa;

67.

O R. porém, em atitude de desprezo pela A. e pela sua família, apareceu com o fato mas com a barba por fazer e todo despenteado;

68.

No dia seguinte para ir a um jantar de Natal da sua empresa aprontou-se com a mesma roupa mas desta vez foi à cabeleireira cortar e pentear o cabelo e escanhoou-se;

69.

Que a A. apelasse ao R. para que não consumisse haxixe e que esse hábito se foi agravando passando o R. a fumar sistematicamente antes de ir para o trabalho, em casa, de tal maneira que o filho se apercebeu, comentando com a mãe;

70.

A A. chamou a atenção do R. para o mau exemplo que estava a dar ao filho mas o R. ficou indiferente;

71.

O R. tenha forçado a A. a abandonar o lar;

72.

Que o R. para viajar sozinho à Sicília inventou toda uma casta de desculpas para que a R. não o acompanhasse, apesar de a A. ter o dinheiro oferecido por familiares e facilidade de férias na IPSS onde trabalha, recusou-se a deixá-la acompanhá-lo, primeiro porque «não tinha informação sobre o local onde ia ficar, etc.», depois porque «não tinham dinheiro para isso»; depois de aparecer o dinheiro, oferecido, deixou de argumentar, remetendo-se ao silêncio mas obstinando-se na recusa;

73.

Que em resultado a A. tenha ficado a pintar a casa e a fazer melhoramentos de decoração para, quando o R. voltasse, estar tudo mais bonito, contudo, quando voltou e a A. lhe mostrou os melhoramentos feitos por si, com muito esforço admitiu que estava… melhor. Nem uma palavra de agradecimento ou de reconhecimento;

74.

Que a R. na ocasião referia em 17. a A. afastou-se deles porque o R. e os amigos já apresentavam sinais de embriaguez, contudo, quanto A., acedendo, se dirigiu do jardim frente ao edifício da Câmara Municipal para ir ter com eles ao parque de estacionamento que fica por detrás da igreja, sem qualquer aviso, zangado, o R., gritando que estava farto de esperar pela A., atirou-lhe à cara a cerveja que tinha na mão, atingindo-a de surpresa nos olhos;

75.

De seguida, deixando-a cega pelo álcool da cerveja, dolorida e vexada perante os amigos, abandonou-a;

76.

Só mais tarde voltou atrás porque o filho, Miguel, aflito com o estado lastimável em que a R. se encontrava, lhe telefonou a exigir que os fosse levar a casa dos amigos, sita na Pedreira do Nordeste;

77.

A A. porém, ficou de tal modo violentada, psíquica e fisicamente, que foi necessário ser socorrida pelo seu primo Nuno que, a seu pedido, a foi buscar ao Nordeste para a trazer para Ponta Delgada;

78.

Que por conta do episódio referido em 18. o padrasto foi comentar o caso com a mãe da A. logo que chegou a casa;

79.

O R. sempre rebaixou o filho Miguel, fazendo-o crer que era desajeitado para o desporto;

80.

De vez em quando agredia o filho fisicamente;

81.

A última vez, em 2013, foi até ao ponto de o agredir ao pontapé, com tal violência que ele desmaiou na casa de banho;

82.

A R. só tomou conhecimento disto mais tarde, causando-lhe então um ainda maior sofrimento psicológico;

83.

O Miguel, em 2014, animado por ter indicações positivas sobre a sua aptidão para a ciência de investigação, referiu-o ao R.; este, de forma distante e fria comentou: «mais um para o desemprego!», o que deixou o filho magoado e a A. ainda mais triste por ver o mal que o pai estava a fazer ao filho;

84.

Que o R. soubesse que a A. nunca simpatizou com os amigos Sérgio e Solange por achá-los levianos e o acompanharem no consumo de substâncias estupefacientes;

85.

A A. mais uma vez sentiu uma grande humilhação por as suas roupas mais íntimas terem sido remexidas, o que a deixou ainda mais deprimida e assustada;

86.

O R. desde há quatro ou cinco anos que passou a ficar no sofá da sala a ver TV ou em frente ao computador, até às tantas da madrugada, só então indo deitar-se, evitando ter relações sexuais com a A., apesar dos apelos da A. no sentido de retomarem a normalidade da vida conjugal;

87.

Numa das vezes em que a A. se lamentou da indiferença com que o R. a tratava o filho comentou: «oh mãe, não percebes que o pai nem sequer te vê?!»;

88.

O R. recebeu recentemente como premio no emprego na empresa ZON, agora NOS, um lote de ações;

89.

Perguntado pela A. sobre o seu destino, disse que as tinha vendido todas por 4 mil euros;

90.

O R. gastou essa quantia toda em proveito próprio e só deu conhecimento disso em fins de junho, quando estavam a negociar o divórcio;

91.

Em estilo de provocação o R. disse à A. que iria dividir essa quantia por três, sendo uma parte para si, outra para o filho, e que, a restante, seria para descontar como renda para a A. poder continuar a viver na casa de morada da família;

92.

Que na ocasião apontada em 23. o R., muito alterado, disse-lhe aos gritos que tinha sido informado que a A. não tinha assinado os acordos do divórcio por mútuo consentimento e em tom de ameaça referiu-lhe para não tocar em nada da casa e que «tu assinas o contrato e daqui a seis meses a casa não é vendida e fica tudo igual», perante a criança, assustada, tirando-lhe os brinquedos decorativos das mãos da criança, para a A. não os levar consigo;

93.

A A., com medo de ser agredida e com receio pela segurança do miúdo, fugiu com ele para a casa vizinha, do primo, pai da criança, ao mesmo tempo que à porta da rua, o R. desatou aos gritos e insultos, chamou-a de «vadia» e «vagabunda vai trabalhar» e «maluca», de tal modo que a vizinha, a mãe da criança e mulher do primo da A. chamou o marido para vir acudir;

94.

Que a presença da polícia apontada em 24. se deveu aos antecedente e ao medo que a A. sentia (e sente) do R. e que, nessa mesma ocasião, mais uma vez se sentiu amedrontada e humilhada com as agressões do R.;

95.

Que após ter saído da casa de morada da família, foi no seguimento de uma das queixas por crime de violência doméstica que fez do R. mas de que, por medo das possíveis represálias deste, desistiu, que a A. foi aconselhada a procurar apoio psicológico e que sem ele, tal era o seu temor, que, aliás, persiste, não teria sido capaz de narrar o conteúdo desta petição;

96.

O R. está consciente de que deve à boa relação que existia entre a A. e o seu avô, este ter-lhes feito a doação do terreno que permitiu a construção da vivenda familiar que a A. foi obrigada a deixar para trás;

97.

A pretexto de que está a pagar as prestações do empréstimo bancário respectivo, o R. mantem-se a viver na casa e bem sabendo das dificuldades financeiras da A., impediu a promoção da sua venda, escorraçando o representante da mediadora que a A. procurara para o efeito;

98.

Sabendo que a A. necessitava de uma viatura para o seu dia-a-dia de trabalho e de acompanhamento do filho, em vez de pôr o veículo familiar à venda para repartir o valor pelos dois e assim facilitar a aquisição de outro veículo, embora mais modesto, pela A., a pretexto de que apenas ele tem a capacidade financeira para continuar a pagar as prestações, reteve a viatura na sua posse, sem necessidade, pois sempre se movimentou na viatura do seu serviço;

99.

Que nas negociações prévias à instauração da ação de divórcio A. e R. lograram obter acordo quanto aos termos do mesmo, acordo este que mais tarde a A se recusou a formalizar;

100.

Que na altura em a A. saiu da casa de morada de família, em Agosto de 2014, deixou o filho atrás, com o pai, por lhe convir.

            *

            III - São as conclusões da alegação de recurso, no seu confronto com a decisão recorrida, que determinam o âmbito da apelação, salvo quanto a questões de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo. Deste modo, tendo em consideração o teor das conclusões da alegação de recurso, as questões que essencialmente se colocam são as seguintes: se a sentença enferma de alguma das nulidades invocadas pela apelante; se deverá ser alterada a decisão sobre a matéria de facto nos termos propostos pela apelante; se o R. está obrigado a indemnizar a A. por danos não patrimoniais por esta sofridos.

                                                                       *

            IV – Prévia às apontadas questões haverá que ponderar uma outra.

            Em 30-11-2016 veio a requerente juntar aos autos documentos dirigidos à sua própria pessoa, datados de 2014, um deles por ela mesma assinado, reportados ao estatuto de vítima (fls. 344-348).

A junção de tais documentos data de dois dias depois da junção da sua alegação de recurso, em 28-11-2016 (fls. 193), justificando a apelante a junção tardia por um lapso de memória do seu mandatário, uma vez que tais documentos se encontravam «bem no fundo da pasta» referente à A..

No processo civil, em regra, os documentos têm de ser juntos pelas partes na 1ª instância; depois, no caso de recurso, com a alegação, apenas os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até então, ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância – arts. 425 e 651 do CPC.

A 1ª hipótese - quando não tenha sido possível a apresentação dos documentos até ao encerramento da discussão em 1ª instância – reconduz-se às sub-hipóteses de a parte não ter conhecimento da sua existência, ou, conhecendo-a, lhe não ter sido possível fazer uso deles, ou, mesmo, a de os documentos se terem formado ulteriormente. Aí, utilizando a expressão de Alberto dos Reis ([1]) «a parte tem de convencer o tribunal da superveniência do documento respectivo, ou porque o documento se formou depois do encerramento da discussão, ou porque só depois deste momento ela teve conhecimento da existência do documento, ou porque não pôde obtê-lo até àquela altura».

Na 2ª hipótese - a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância - «a lei não abrange a hipótese de a parte se afirmar surpreendida com o desfecho da acção (ter perdido, quando esperava obter ganho de causa) e pretender, com tal fundamento, juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em primeira instância. O legislador quis manifestamente cingir-se aos casos em que, pela fundamentação da sentença ou pelo objecto da condenação, se tornou necessário provar factos com cuja relevância a parte não podia razoavelmente contar antes de a decisão ser proferida» ([2]).

Ora, nenhuma das hipóteses supra mencionadas foi demonstrada no caso dos autos, em que, aliás, como referimos a junção até teve lugar depois da alegação de recurso da apresentante.

Saliente-se que, consoante entendido no acórdão da Relação de Coimbra de 18-11-2014 ([3]), «só são atendíveis razões das quais resulte a impossibilidade daquela pessoa, num quadro de normal diligência referida aos seus interesses, ter tido conhecimento anterior da situação ou ter tido anteriormente conhecimento da existência do documento».

Pelo que não se atenderá aos documentos agora juntos pela A./apelante, não se deferindo à sua junção.

                                                                       *

V – 1 - Defende a apelante que a sentença é nula «por falta de análise crítica das provas, nula, violando o disposto no art. 607 nº 4 e 615 nº 1 b) do C.P.C.», sendo nula «por não ser admissível em sentença judicial a inserção de reticências», por omissão do dever de especificar os demais fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida – arts. 607, nº 4 e 615 nº, 1-b) do CPC.

Vejamos.

Nos termos do nº 1-b) do art. 615 do CPC é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.

Saliente-se que apenas existirá a invocada nulidade quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão, não constituindo aquela nulidade a mera deficiência de fundamentação.

Assim, já Alberto dos Reis explicava ([4]): «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade.

Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto».

No caso que nos ocupa é óbvio que a sentença recorrida se encontra fundamentada: contém a enunciação dos factos julgados provados (bem como dos factos que não foram julgados provados), e as razões de direito em que o Tribunal de 1ª instância se alicerçou.

Pelo que não se verifica a nulidade imputada à sentença.

Nos termos do nº 3 do art. 607 do CPC enunciadas as questões que ao tribunal cumpre solucionar seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes. É a estes fundamentos que se reporta o nº 1-b) do art. 615 do CPC e não á análise crítica das provas e fundamentos (motivos) decisivos para a convicção do julgador, aludidos no nº 4 do art. 607.

É certo que de acordo com o nº 4 do art. 607 do CPC na fundamentação da sentença o juiz declara quais os factos que julga provados e não provados “analisando criticamente as provas … e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção”. Estamos, aqui, no âmbito da motivação da decisão de facto, a que se reporta o nº 2-d) do art. 662 do CPC, não se reconduzindo a sua falha a um caso de nulidade da decisão de 1ª instância ([5]).

Por fim, no que concerne às reticências… Cada um tem o seu estilo de escrita e não resultando do estilo adoptado pelo subscritor da sentença recorrida o comprometimento da clareza do que se pretendia dizer é infundada a crítica da apelante. Aliás, como resulta do que aduzimos supra, nunca estaríamos aqui perante a invocada nulidade que tão só ocorre quando falte em absoluto a indicação dos fundamentos de facto ou a indicação dos fundamentos de direito da decisão.

                                                           *

V – 2 - Prossegue o apelante arguindo de nula a sentença por violação do disposto nos arts. 615, nº 1-b) e c) do CPC. Isto por conter nos factos provados elementos sobre os quais não foi feita qualquer prova, concretamente no ponto 28 dos factos provados (“porque quis”) e no ponto 31 dos factos provados (“mas também o trouxe ao R.”) - conclusões 7 a 13. Bem como porque a sentença «contém na convicção termos e expressões vagas tais como «a autora prestou declarações… de forma titubeante…», «A A. “pintou” o R. como a pior pessoa do mundo…», «(como se fosse possível retirar queixas por crime de tal natureza)», «a versão por ela apresentada não tem qualquer sustentação probatória. … «…fragilidade do relato na sua globalidade… sua inverosimilhança» - conclusões 14 e 15.

Já acima referimos em que se traduz a nulidade da sentença prevista na alínea b) do nº 2 do art. 615 do CPC, sendo desnecessário repeti-lo.

Por outro lado, inclui o art. 615 do CPC entre as causas de nulidade da sentença os fundamentos estarem em oposição com a decisão ou ocorrer alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível - nº 1-c).

Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa da nulidade da sentença ([6]).

Por outro lado, quando não seja perceptível qualquer sentido da parte decisória (obscuridade) ou ela encerre um duplo sentido (ambiguidade) sendo ininteligível para um declaratório normal, a sentença não pode valer enquanto não for esclarecida. A obscuridade e a ambiguidade só são relevantes quando gerem ininteligibilidade, isto é, quando um declaratário normal não possa retirar da parte decisória (e só desta) um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar ([7]).

Nenhuma dessas nulidades ocorre no caso dos autos.

No que concerne especificamente aos segmentos da matéria de facto que a apelante considera não provados e que o julgador de 1ª instância entendeu como provados, o descontentamento da apelante deveria manifestar-se através da impugnação da decisão da matéria de facto, também nessa parte, não se reconduzindo tal à nulidade da sentença.

Quanto às aludidas “expressões vagas”, utilizadas na motivação da decisão sobre a matéria de facto, elas ilustram as razões da formação da convicção do julgador em determinado sentido e, nesse contexto, não são “vagas”.

Não se verificando qualquer obscuridade ou ambiguidade geradora de ininteligibilidade, na parte decisória, não se vislumbra onde residam as apontadas nulidades da sentença.

                                                           *

V – 3 - Sustenta a apelante que devem ser julgados provados os pontos «33, 34, 35, 36, 37, 38 (verdadeiro à data da saída de casa), 39, 40 (idem), 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47 a 52, 55, 56, 57, 69, 70, 72, 73, 74, 75, 77, 80, 84, 85, 86, 92 até perante a criança assustada, 94, 95, 97, 99, dados como não provados».

Remete para esse efeito para os excertos das transcrições constantes do corpo da alegação, sendo certo que junta, por transcrição, o teor integral dos depoimentos prestados.

Nos termos do nº 1 do art. 640 do CPC, quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que imponham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

            O preceito em referência, nesta parte, não se afasta muito do que dispunha o art. 685-B do anterior CPC (na redacção do dl 303/2007, de 24-8) quando dizia que ao impugnar a matéria de facto deve o recorrente obrigatoriamente especificar – sob pena de rejeição - quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou do registo ou gravação realizados que impunham decisão diferente sobre os pontos da matéria de facto impugnados.

A imposição destas especificações traduz, respectivamente, a necessidade do recorrente circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso indicando claramente qual a parcela ou segmento da decisão proferida que considerava viciada por erro de julgamento, bem como o ónus de fundamentar, em termos concludentes, as razões porque discordava do decidido, indicando ou concretizando quais os meios probatórios que implicavam decisão diversa da tomada pelo tribunal ([8]).

            Apesar de não se afigurar tarefa difícil indicar em termos concretos quais os pontos da matéria de facto que se creem incorretamente julgados  bem como quais as respostas a essa matéria que se entendem como correctas e quais os meios de prova que alicerçam o desacordo manifestado, no que concerne a este último parte a apelante não chegou a fazê-lo verdadeiramente – aliás, como é aludido pelo apelado na sua contra alegação de recurso. Ou seja, a apelante não relaciona concretamente os vários depoimentos cujos excertos transcreve com cada um dos vários pontos da matéria de facto cuja resposta é impugnada, mais preocupada em pôr em causa o modo pelo qual o julgador de 1ª instância enunciou ter atingido a sua convicção do que em demonstrar que de determinados meios de prova haveria de resultar que os factos em causa deveriam ter sido julgados provados.

Lembremos que, como salienta Abrantes Geraldes, «foram recusadas soluções que pudessem reconduzir-nos a uma repetição do julgamento, tal como foi rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos sobre a errada decisão da matéria de facto» ([9]).

Apesar da falta rigor da apelante no cumprimento dos ónus que lhe são impostos pela lei, procedemos à reapreciação da prova, analisando os documentos juntos aos autos e o teor das transcrições confrontadas com a audição do CD contendo a gravação dos depoimentos.

Dos depoimentos das testemunhas, integralmente considerados, destacamos que:

- A testemunha Nuno Rodrigues, primo da A. e vizinho da A. e do R. quando estes moravam juntos, mencionou uma discussão entre A. e R. numa altura em que o filho da testemunha estava com a A., bem como numa ocasião, durante a noite (cerca das 3 h da manhã) ter ido buscar a A. ao Nordeste a pedido desta, contando-lhe na viagem que o R. lhe atirara uma cerveja à cara.

- A testemunha Maria José Raposo, mãe da A., relatou que havia discussões entre a A. e o R. porque este em nada queria ajudar em casa - estava sempre deitado no sofá – e era desleixado com a sua pessoa, havendo “mau viver” dos dois, mas a A. queria manter o casamento, apesar dos problemas de droga do R. (que fumava “erva” e cultivava para consumir). Referiu que a A. ficou “negra” porque o R. lhe batera na véspera do baptizado e que soubera que ela tivera o nariz partido e fora ao hospital mas não concretizou melhor estas situações. Não se recordava de a A. lhe contar que o R. a agredira a pontapé e a atirara pela escada abaixo. Referiu que o R. chamava à A. nomes “feios” – “puta”, “caralho” - e que a filha lhe respondia, mas não utilizava aquilo tipo de palavras. O R. fumava “erva” e cultivava para consumir.

- A testemunha José Paiva, “padrasto” da A. relatou, designadamente, uma ocasião em que foi a casa da A. e do R. para reparar uma torneira e este, dirigindo-se à A. dizia «és uma sacana, és uma porra, és uma caralha»; afirmou não a ter visto com o nariz partido ou com nódoas negras ou quaisquer marcas e que o filho da A., o Miguel, nunca se queixara de alguma sova do pai.

- A testemunha Cláudia Costa, prima da A., referiu que quando foi com a A. a casa dela para esta ir buscar as suas coisas o R. já empacotara as coisas da A., havendo-as tirado das gavetas para o efeito e que a A. ficara aborrecida com isso.

            - A testemunha Raquel Rebelo, psicóloga na APAV e que acompanhou a A. desde que esta a procurou em 2014 relatou aquilo que a A. lhe contara então: que o R. lhe partira a cana do nariz no início do casamento, que em Junho de 2014 houvera uma discussão por causa de partilhas em que o R. lhe chamara malandra e vadia e que também em 2014 quando a A. fora buscar os seus pertences o R. a ameaçou de lhe bater, razão pela qual ela começou a desenvolver medo de o encontrar. Não soube relatar mais nenhum episódio concreto, dizendo, embora, a A. estava muito fragilizada e que na sua óptica era uma situação grave devido ao impacto provocado na A.

            - A testemunha Catarina Rodrigues, mulher da testemunha Nuno Rodrigues, vizinha da casa de A. e R., recordou o seu marido ter ido buscar a A. ao nordeste, havendo esta telefonado cerca das 3 h da manhã a pedir que o fizesse e que na altura a A. relatara ao marido – que por sua vez contara à testemunha - que o R. lhe tinha atirado uma cerveja. Igualmente recordou ter ouvido uma discussão entre A. e R., em que ambos estavam um pouco exaltados, numa ocasião em que o filho da testemunha estava com a A., sem que tivesse percebido o que estavam a dizer. Mencionou que a A. lhe referiu discussões do casal mas nunca lhe falou em agressões.

            - A testemunha André Amaral, amigo do R. e frequentador da casa deste, narrou que numa ocasião em que foram todos para o nordeste A. e R. se chatearam e começaram a discutir e que depois ela se foi embora, não tendo visto o R. atirar a cerveja à A.; confirmou que o R. fuma “erva”.

            - A testemunha Sérgio Santos que frequenta a casa do R., também o fazendo no tempo em que A. e R. viviam juntos, disse que o A. fuma “erva”.

A A., nas declarações que prestou, confirmou genericamente o que alegara na petição inicial - trata-se, todavia, de declarações da própria parte. Decorre do nº 3 do art. 466 do CPC que o tribunal aprecia livremente as declarações da parte, salvo se as mesmas constituírem confissão. Como referem Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro ([10]) a «experiência sugere que a fiabilidade das declarações em benefício próprio é reduzida. Por essa razão compreende-se que se recuse ao depoimento não confessório força para, desacompanhado de qualquer outra prova, permitir a demonstração do facto favorável ao depoente». Dizendo Lebre de Freitas ([11]) que «a apreciação que o juiz faça das declarações de parte importará sobretudo como elemento de clarificação do resultado das provas produzidas e, quando outros não haja, como prova subsidiária, máxime se ambas as partes tiverem sido efetivamente ouvidas».

Neste contexto, tendo em conta o que percepcionámos e o que já resulta dos factos julgados provados, entendemos ser de julgar provado, também (com referência aos ponto 74) e 77) dos factos que não foram julgados provados):

- «No desenvolvimento da discussão aludida em 17) o R. atirou com cerveja à A., atingindo-a com o líquido» – com base nos depoimentos prestados por Nuno Rodrigues e Catarina Rodrigues, sendo que a A. no seguimento do episódio relatou àquele o que sucedera, havendo-o, aliás, chamado às 3 h da manhã para que a fosse buscar. A testemunha André Amaral apenas disse não ter visto o R. atirar a cerveja à A. – o que não conduz à impossibilidade de tal ter acontecido. Que a A. pediu ao primo, Nuno Rodrigues, que a fosse buscar já resulta daquele ponto 17).

Quanto aos demais factos que a A. defende deverem ser julgados provados, entende-se que não foi produzida prova suficiente. Assim, designadamente, quanto às agressões físicas aludidas nos pontos 42) e 44) e seguintes - as referências da mãe da A. são pouco consistentes, as outras testemunhas que então privavam com a A. nada referiram de relevante e não foi produzido qualquer outro meio de prova nesse sentido. No que toca à viagem à Sicília, quando o R. ali se deslocou como árbitro numa comitiva desportiva, não ficou demonstrada com a necessária clareza a razão pela qual a A. – que queria ir com o R. – não o pôde acompanhar.

                                                           *

V – 4 - Na realidade, a A. quando invoca nulidades da sentença com respeito aos pontos 28) e 31) dos factos provados está a impugnar a decisão quanto a expressões neles utilizadas, provenenientes da contestação oferecida pelo R. (artigos 24 e 30 daquela peça processual) e que, na sua perspectiva, não se provaram.

Assim, entende-se que da prova produzida não resulta que a separação e pedido de divórcio tenham trazido sofrimento para o R. – ponto 31) dos factos provados.

No que diz respeito à expressão «porque quis» a mesma poderá aportar um sentido dúbio ao ponto 28) dos factos provados, sendo, aliás, desnecessária, não se pondo em causa que a A. saiu por acto voluntário da sua parte – outra coisa sendo as razões que estiveram na base da formação da sua vontade.

Assim, os pontos 28) e 31) dos factos provados passarão a ter a seguinte redacção:

28 - «A A. saiu de casa em Agosto de 2014 e levou consigo os seus pertences e ainda bens comuns do casal, sem destes dar conta ao R. o qual ficou responsável exclusivamente por todos encargos dos empréstimos comuns do casal».

31 - «A separação e pedido de divórcio trouxe à A. algum sofrimento».

                                                           *

V – 5 - Sustentou a A. que o R., ao longo dos anos, violou reiteradamente e com grave culpa os deveres conjugais, conduzindo à ruptura definitiva do casamento, pretendendo a A. ver compensado o seu direito à integridade corporal, liberdade de autodeterminação, saúde física e psíquica e dignidade de pessoa humana, decorrente da atitude prepotente geral e diária do R.. Pretende que o R. seja condenado a pagar-lhe uma indemnização pelos danos não patrimoniais físicos e psíquicos ilicitamente infligidos que conduziram à ruptura da convivência conjugal.

A lei 61/2008, de 31-10, terminou com a declaração de culpa no divórcio e com as consequências patrimoniais negativas associadas a essa declaração. Todavia, «não centrou a regulamentação jusfamiliar das consequências da dissolução do casamento na equidade, mostrando-se algo insensível à relevância da actuação culposa de um dos cônjuges e à repercussão do divórcio na condição económica das partes»; o novo regime «em geral, trata de forma idêntica os cônjuges, ainda que um deles tenha violado de modo sistemático e patente o princípio da boa fé, e despreza as legítimas expectativas da parte que mais tenha investido na relação conjugal» ([12]).

Afastou, porém, a denominada tese da “fragilidade da garantia”.

Efectivamente, consoante o nº 1 do art. 1792 do CC (na redação introduzida pela lei 61/2008, de 31-10) o cônjuge lesado tem o direito de pedir a reparação dos danos causados pelo outro cônjuge, nos termos gerais da responsabilidade civil e nos tribunais comuns. Dispondo o nº 2 do mesmo artigo que o «cônjuge que pediu o divórcio com o fundamento da alínea b) do artigo 1781.º deve reparar os danos não patrimoniais causados ao outro cônjuge pela dissolução do casamento; este pedido deve ser deduzido na própria ação de divórcio».

O STJ consignou, no seu acórdão de 12-5-2016 ([13]) que aquilo que fundamentalmente se pretendeu foi «ante a hipótese da indemnização por danos não patrimoniais decorrentes do divórcio prevista no n.º 2 daquele normativo, deixar clara a ressalva dos casos de indemnização do cônjuge lesado nos termos gerais da responsabilidade civil, a serem peticionados em ação autónoma à do divórcio, aliás na linha do que vinha sendo admitido pela jurisprudência».

Referindo-se ali que também Capelo de Sousa salienta que «“(…) os cônjuges não alienam nas relações entre si a generalidade dos seus direitos de personalidade, pelo que, para além da inquestionável tutela civilística de bens essenciais como a vida e a integridade física nas relações entre os cônjuges, nos parecem ressarcíveis mesmo os danos não patrimoniais, desde que, v.g. a honra, a reputação, a liberdade e mesmo a intimidade, verificadas durante a vigência do casamento, que não apenas pela dissolução do casamento.”

 Não se suscitará, pois, grande dúvida de que, pelo menos nos casos de concomitância da violação dos deveres conjugais e da tutela da personalidade, o mesmo é dizer, da violação dos direitos de personalidade ainda que através da violação dos direitos conjugais, assista ao cônjuge lesado o direito a ser indemnizado pelo danos daí decorrentes nos termos gerais da responsabilidade civil».  

Dizendo, a propósito, Aida Filipa Ferreira da Silva ([14]): «No quadro do nosso direito, a causa do divórcio é agora a ruptura do casamento e já não a violação dos deveres conjugais. E a sanção para a violação dos deveres conjugais é a reparação dos danos resultantes de tal incumprimento e já não o divórcio, como era anteriormente entendido por grande parte da doutrina e da jurisprudência». Bem como: «Dando com uma mão (a indemnização dos danos ocorridos entre cônjuges) o que retira com a outra (eliminação da declaração de culpa no processo de divórcio), o legislador vem demonstrar que a eliminação da apreciação da culpa não retira qualquer importância às obrigações conjugais e não torna irrelevante o comportamento dos cônjuges entre si, antes reforça o sentido de responsabilidade de que o casamento, naturalmente, se reveste. Ou seja, como já várias vezes se disse a este propósito: os cônjuges não veem a sua responsabilidade diminuída pelo facto de estarem unidos pelo vínculo do matrimónio, pelo contrário…Neste sentido, defendemos que o casamento não cria um regime de excepção nesta matéria».

Considera, ainda, seguindo Capelo de Sousa que os cônjuges não alienam nas relações entre si a generalidade dos seus direitos de personalidade, sendo por vezes os deveres conjugais elementos potencializadores dos direitos de personalidade. E que «o dever de respeito tem duas vertentes: a negativa e a positiva. Na sua vertente negativa, este dever obriga os cônjuges a não ofenderem a integridade física e moral de cada um e, ainda, a não adoptar comportamentos públicos desonrosos e desrespeitadores do outro cônjuge na sua honra e dignidade. Por outro lado, o dever de respeito positivo traduz-se em comportamentos que demonstrem interesse na comunhão espiritual e na família constituída».

            *

V – 6 – Deste modo, atento o disposto no nº 1 do art. 1792 do CC, verificando-se os pressupostos da responsabilidade civil previstos no art. 483 do mesmo Código, serão indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, nos termos previstos no nº 1 do art. 496 do CC.

No caso dos autos, sendo a A. e o R. casados entre si desde Dezembro de 1994 e havendo vivido sob o mesmo tecto até final de Agosto de 2014, tendo-se divorciado por mútuo consentimento em 2016, interessará salientar os seguintes factos julgados provados:

 - Desde o início do casamento que a A. se deu conta de que o R. aos fins-de-semana fumava “erva” e haxixe, tendo para tanto em cultivo caseiro algumas plantas;

- No mês de Junho 2012 a A., o R. e o filho de ambos foram a um espectáculo de música no Nordeste com um grupo de amigos, tendo combinado lá pernoitar em casa de outros amigos; nessa noite, na vila do Nordeste, a caminho do local onde ia decorrer um festival de música, a A. deixou-se ficar um pouco para trás e o R., agastado, interpelou-a discutindo por isso; no desenvolvimento da discussão o R. atirou com cerveja à A., atingindo-a com o líquido, acabando a A. por telefonar ao seu primo Nuno que, a seu pedido, a foi buscar ao Nordeste para a trazer para Ponta Delgada;

- Em 30 Junho de 2013, estando uma torneira da casa de banho do r/c da casa do casal a pingar já há muitos dias sem que, apesar dos pedidos da A., o R. a arranjasse ou mandasse arranjar, foi preciso a A. chamar o seu padrasto, o “pai José”, como lhe chama, para substituir a sola da torneira; estando então o R. a dormir no sofá da sala a A. disse-lhe o que se estava a passar; o R. visivelmente irritado e mal disposto, ignorando a presença daquela pessoa mais velha respondeu mal à A. em voz alta, dizendo-lhe que ela era uma gaja do caralho, que tudo tinha que ser quando ela queria e nunca podia esperar;

- O padrasto da A. assistiu, procurou apaziguar a situação, mas ficou extraordinariamente incomodado e a A. sentiu muita vergonha por causa desse episódio;

- No Verão de 2012 o padrasto assistiu a outras expressões do mesmo jaez, por a A. ter pedido ao padrasto para arranjar uma cabeceira para a sua cama de casal; estando este a colocá-la, o R. pensou que ele tinha saído e começou a “berrar” à A.;

- No dia 14 de Julho de 2014, quando a A. chegou a casa, entrando, viu que estavam presentes dois amigos do R., ele de nome Sérgio, ela Solange, que com o R. estavam a consumir haxixe e álcool frente à TV, deixando os objetos próprios daquele consumo expostos na mesa da sala; nem se mexeram, nem a saudaram, foi como se não existisse, como se não estivessem em sua casa; a A. sentiu-se humilhada;

 - No sábado dia 9 de Agosto 2014, por volta do meio-dia, a A. estava em casa com o pequeno João Nuno, filho do primo, vizinho; então chegou o R. e deu-se entre ambos e à frente do pequeno uma forte discussão, por isso o levando a A. a casa dos pais na altura em que o progenitor do pequeno já o ia buscar por ter ouvido a discussão da sua casa;

- A A. saiu de casa em Agosto de 2014 e levou consigo os seus pertences e ainda bens comuns do casal, sem destes dar conta ao R.;

- Há muito tempo que A. e R. não viviam como casal, apesar de estarem a residir debaixo do mesmo tecto;

- Nas vésperas de se mudar da casa de morada de família, quando foi buscar as suas roupas e outros objetos de uso pessoal, o R. tinha-as encaixotado e deixando as gavetas onde estavam arrumadas todas reviradas, estando presentes os tais SP;

 - No dia 21 de agosto de 2014, quando a A. precisou de ir à casa buscar mais bens pessoais pediu o auxílio da PSP, cujos agentes a acompanharam na diligência. Aí, apesar dos esforços dos agentes para o acalmarem, o R. acusou a A. de estar a levar coisas da casa em frente dos polícias e da prima, vizinha, Cláudia, que assistiu;

- A A. estava habituada a uma vivenda com um grande jardim, com dois pisos e seis divisões, confortavelmente mobilada, num sítio com vista desafogada, construída durante o casamento num terreno doado pelo seu avô materno, onde cresceu e brincava em criança:

- Quando saiu de casa a A. conseguiu alojamento num exíguo r/c, parte de uma casa de porta e duas janelas onde se viu confinada, pela qual pagava renda mensal equivalente a cerca de metade do seu salário, havendo sido o melhor que pôde arranjar face ao seu rendimento e ao condicionalismo em que ela e o filho se encontravam;

- Na casa de morada de família mantêm-se a morar o R. e o filho já maior do ex-casal (havendo o filho, anteriormente morado com a A.); o R. ficou na casa, procedendo ao pagamento das restantes prestações do empréstimo contraído para a sua construção e nessas mesmas condições ficou também ele com o carro familiar que possuem;

- É penoso para a A. a casa de habitação familiar ter sido construída sobre terreno doado ao casal pelo seu avô materno, de quem era muito chegada, e que o fez para facilitar o sonho de uma família feliz acalentado pela A.;

 - Por tudo a A. recorreu ao auxílio psicológico profissional para tentar recuperar o equilíbrio emocional que perdera; a A. está a ser seguida e apoiada por uma psicóloga da APAV;

- A separação e pedido de divórcio trouxe à A. algum sofrimento.

Entre os deveres conjugais aludidos no art. 1672 do CC encontra-se o dever de respeito. Cada cônjuge tem o especial dever de respeitar os direitos individuais do outro, abrangendo o dever de respeito desde logo, os direitos inerentes à personalidade. Assim, cada um dos cônjuges está obrigado a não lesar física ou moralmente o outro - não atentar contra a saúde, a integridade física, a honra e o bom nome do outro.

É este dever de respeito que fundamentalmente protege a individualidade de cada elemento do casal.

Correspondem a factos ofensivos da integridade moral e, assim, violadores do dever de respeito, quaisquer palavras ou actos de um cônjuge que ofendam a honra do outro, a sua reputação e consideração social de que goza, ou mesmo o seu amor-próprio e brio, a sua sensibilidade e susceptibilidade pessoais.

Refere Aida Filipa Ferreira da Silva ([15]) que «o dever de respeito terá como conteúdo mínimo a tutela da honra e do bom nome, protegidos no artigo 70.º, uma manifestação do princípio da dignidade humana, constitucionalmente consagrado. Esta norma determina no seu nº 1 que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”, sendo que “para que um direito de personalidade seja reconhecido não é necessária específica previsão legal: basta que decorra da personalidade ontológica». Acrescentando que podem «apontar-se como violações do dever de respeito os seguintes exemplos: a injúria e a humilhação pública; a ridicularização reiterada (ainda que sem exposição pública) da crença religiosa, formação profissional (ou falta dela) ou posição política de um dos cônjuges; o recurso à procriação (assistida) sem conhecimento (e consentimento) do outro cônjuge, com esperma de dador; a embriaguez e toxicodependência crónica (sobretudo, com a recusa de tratamento); a desonra pela condenação por crime (ou tentativa) contra terceiro».

O R., no episódio sucedido no Nordeste, em de Junho 2012, quando na sequência de uma discussão entre o casal atirou com cerveja à A., atingindo-a com o líquido, se não a lesou fisicamente (isso não ficou demonstrado), afectou-a no seu amor-próprio, na sua sensibilidade e susceptibilidade pessoais, lesando a sua personalidade na vertente moral (art. 70 do CC); trata-se de um acto voluntário e culposo do R. ofensivo da consideração da A., sua mulher e a quem estava obrigado a tratar com respeito.

Igualmente quando do sucedido perante o padrasto da A. em 30 de Junho de 2013, havendo o R. dito à A. em voz alta «ela era uma gaja do caralho», ficando o padrasto da A. incomodado e a A. envergonhada, o R. voluntária e culposamente afectou a A. - a quem estava obrigado a tratar com respeito – dirigindo-lhe expressão ofensiva da sua consideração, atingindo-a no seu amor-próprio perante o “padrasto” que ficou incomodado, resultando a A. envergonhada. O que nos mesmos termos sucedera no Verão de 2012 quando o padrasto da A. arranjava a cabeceira da cama e o R. começou a “berrar” para a A. expressões do mesmo jaez.

Provou-se que o R. aos fins-de-semana fumava “erva” e haxixe, tendo para tanto em cultivo caseiro algumas plantas e que no dia 14 de Julho de 2014, quando a A. chegou a casa ao entrar viu que estavam presentes dois amigos do R., que com ele estavam a consumir haxixe e álcool frente à TV, sendo que nem se mexeram, nem a saudaram, foi como se não existisse, sentindo-se a A. humilhada. No que respeita ao fumo das ditas substâncias não temos elementos suficientes para concluir por uma ofensa à A.; o mesmo se diga quanto ao cultivo caseiro sobre cujo conhecimento pela A. nada se sabe. Por outro lado, o R. não responderá pelos amigos, mas apenas por si, mas a indiferença daqueles reflectirá o desprezo do próprio R. para com a A..

Dos factos provados resulta que a relação conjugal entre A. e R. se deteriorara – assim, há muito que não viviam como casal apesar de residirem debaixo do mesmo tecto. Neste contexto a A. acabou por deixar a casa de morada de família e por intentar acção de divórcio, o que lhe trouxe algum sofrimento.

Para mais, a A. deixou uma casa espaçosa, com um grande jardim, construída sobre terreno que fora doado ao casal pelo seu avô materno para ir morar numa casa acanhada, o que se compreende que a desgostasse.

Provou-se que «por tudo a A. recorreu ao auxílio psicológico profissional para tentar recuperar o equilíbrio emocional que perdera; a A. está a ser seguida e apoiada por uma psicóloga da APAV».

Ou seja, a perda do equilíbrio emocional, com a necessidade de recurso a auxílio psicológico, foi a consequência de “tudo” – do desmoronar do casamento, da circunstância de ter deixado a casa que era o seu lar, construída sobre terreno que fora da sua família, mas, também, dos comportamentos do R. acima assinalados, violadores do dever de respeito e ofensivos do amor-próprio, da sensibilidade e susceptibilidade da A.. Os ditos comportamentos do R. foram concausais da perda de equilíbrio emocional da A., havendo contribuído para a deterioração da relação conjugal.

Verificados aqueles actos ilícitos e culposos do R. temos, igualmente, os restantes pressupostos da responsabilidade civil, ou seja o dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.

                                                           *

V – 7 – Nos termos do art. 496 do CC, na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

Dizem-nos a propósito Pires de Lima e Antunes Varela ([16]) que o Código limita a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais àqueles que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, medindo-se a gravidade do dano por um padrão objectivo (conquanto a apreciação deva ter em linha de conta as circunstâncias de cada caso) e não à luz de factores subjectivos (de uma sensibilidade particularmente embotada ou especialmente requintada).

Os danos não patrimoniais, embora insusceptíveis de uma verdadeira e própria reparação ou indemnização, porque inavaliáveis pecuniariamente, podem, de algum modo ser compensados.

A «indemnização reveste, no caso dos danos não patrimoniais, uma natureza acentuadamente mista: por um lado, visa reparar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada; por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente» ([17]).

Assente que está a existência dos danos causados pela actuação do R. há que quantificar a compensação adequada. Decorre do nº 4 do art. 496 do CC que a indemnização será fixada equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção as circunstâncias referidas no art. 494. Assim, o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado, em qualquer caso (haja dolo ou mera culpa do lesante) segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, à flutuação do valor da moeda, etc., e deve ser proporcionada à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida ([18]).

Deste modo, considerando os factos supra relatados e o seu contexto, tendo em conta que não se demonstrou que o sofrimento psicológico da A. – que reclamou acompanhamento – tivesse como causa única os comportamentos do R. (o que também nos conduziria a uma sensibilidade exagerada) afigura-se-nos adequada uma compensação actualizada no valor de 3.000,00 € - pelo que os juros se contarão apenas desde esta decisão e até efectivo pagamento.

                                                           *

VI – Face ao exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente a apelação revogando a sentença recorrida e condenando o R. a pagar à A. uma indemnização de 3.000,00 € (três mil euros) acrescida de juros contados a partir desta decisão e até efectivo pagamento.

Custas – da acção e da apelação – por A. e R. na proporção do decaimento.

                                                           *

Lisboa, 13 de Julho de 2017

Maria José Mouro

 Teresa Albuquerque

                                                                      

  Jorge Vilaça

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[1]             «Código de Processo Civil Anotado», Coimbra Editora, vol. IV, pag. 15.
[2]             Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, «Manual de Processo Civil”, “Coimbra Editora, 2ª edição, pags. 533-534.
[3]             Ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jtrcj.nsf/, processo 628/13.9TBGRD.C1.
[4]             No «Código de Processo Civil, Anotado», Coimbra Editora, vol. V, pag. 140.
[5]             Ver, a propósito, Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, «Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil», Almedina, 2014, pag. 105.
[6]             Lebre de Freitas, «A Acção Declarativa Comum», Coimbra Editora, 3ª edição, pag. 333.
[7]             Lebre de Freitas, obra citada, pags. 333-334 e nota 48-A.
[8]             Ver, a propósito, Lopes do Rego, «Comentários ao Código de Processo Civil», pag. 465.
[9]             Em «Recursos no Novo Código de Processo Civil», Almedina, 2013, pag. 124.
[10]            Nas já citadas «Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil», Almedina, 2014, pag. 364.
[11]            Em «A Ação Declarativa Comum», Coimbra Editora, 3ª edição, pag. 278.
[12]            Ver Jorge Duarte Pinheiro, «O Direito da Família Contemporâneo», Almedina, 5ª edição, pag. 539.
[13]            Ao qual se pode aceder em http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/, processo 2325/12.3TVLSB.L1.S1.
[14]            Na dissertação de Mestrado sob o título «Responsabilidade Civil entre Cônjuges no Divórcio – As alterações ao artigo 1792.º do Código Civil com a Lei n.º 61/2008, de 31 de Outubro», acessível na Internet.
[15]            Local citado.
[16]            Em «Código Civil Anotado», Coimbra Editora, vol. I, pag. 473.
[17]            Antunes Varela, «Das Obrigações em Geral», Almedina, 4ª edição, vol. I, pag. 534.

[18]            Pires de Lima e Antunes Varela, obra citada, pag. 474.