Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
24974/19.9T8LSB.L1-8
Relator: ANTÓNIO VALENTE
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
FUTEBOL
CAUSA DE PEDIR
RESPONSABILIDADE CIVIL
QUID DISPUTATUM
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/13/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I– A competência internacional dos Tribunais Portugueses afere-se pelo quid disputatum, isto é, pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida, pressupondo que o litígio apresenta um ou mais elementos de conexão com uma ou várias ordens jurídicas distintas do ordenamento do foro.

II– Consistindo – no entender do autor - o facto ilícito gerador de responsabilidade civil na utilização e exploração do nome e imagem do A, e ocorrendo aquele - com a criação do jogo, contendo o nome e outras características pessoais e profissionais do A, incluindo a sua imagem, sem sua autorização, o qual foi posteriormente divulgado - nos Estados Unidos da América, então os Tribunais Portugueses são internacionalmente incompetentes para o conhecimento da causa.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes da 8ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa



Nos presentes autos que A [Bruno .....] move a B  [....Arts Inc], em sede de contestação, defende a Ré a incompetência dos tribunais portugueses para o conhecimento da presente causa.

Alega, em síntese:
O A. diz ser jogador de futebol de nacionalidade brasileira e à data da propositura da acção declara-se residente no Brasil;
A Ré é uma sociedade norte-americana, com sede no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América;
A Ré dedica-se à exploração, distribuição e venda de jogos, sendo que o A. não alega que o faz em Portugal;
Nenhum dano é alegado pelo A. como tendo ocorrido em Portugal;
Verifica-se assim que dos factos alegados em sede de petição inicial, não é invocada qualquer conexão que permita atribuir a competência aos tribunais portugueses.
Devidamente notificado, respondeu o A. que exerceu no passado e exerce actualmente a sua actividade e Portugal tendo tido e tendo actualmente o seu domicílio em Portugal.
Os jogos comercializados pela Ré são-no a nível mundial e por isso também em Portugal razão pela qual o facto danoso também é praticado e consumado em Portugal.
A propositura da acção nos tribunais estrangeiros constitui para si dificuldade apreciável até porque o A. e bem assim duas das testemunhas arroladas vivem, agora, em Portugal.

Foi proferida decisão julgando procedente a excepção de incompetência internacional, absolvendo a Ré da instância.

De acordo com os factos alegados, temos que:
1)-O Autor é jogador de futebol brasileiro, que actualmente joga no Brasil.
2)-Jogou em Portugal, ao serviço de clubes portugueses desde 2011 a 2018.
3)-O Autor tem nacionalidade italiana e reside no Brasil.
4)-A Ré é uma sociedade com sede na Califórnia, Estados Unidos da América que se dedica ao desenvolvimento e fornecimento de jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais.
5)-Entre as suas subsidiárias destaca-se, na Europa, A EA Swiss Sàrl com sede na Suíça, que assume a responsabilidade pela venda dos produtos perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos, Canadá e Japão.
6)-O Autor teve conhecimento que a sua imagem, nome e características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (também com as designações FIFA Football ou FIFA Soccer), nas edições 2012, 2013, 2016, 2017 e 2018; FIFA MANAGER na edição de 2012; FIFA Ultimate Team-FUT nas edições de 2012, 2013, 2014, 2016, 2017, 2018 e 2019, todos propriedade da Ré.
7)-O Autor jamais concedeu autorização expressa, ou sequer tácita, a quem quer que fosse, para ser incluído nos referidos jogos electrónicos, jogos de vídeo e  aplicativos, ou seja, FIFA, FIFA MANAGER e FUT.
8)-Nem conferiu poderes aos clubes para que estes negociassem a licença para o uso da sua imagem e do seu nome, para jogos electrónicos, jogos de vídeo, aplicativos ou quaisquer outros jogos online ou offline, em qualquer tipo de plataforma.

Inconformado com a decisão, recorre o Autor concluindo que:
- A decisão recorrida é. salvo o devido respeito, injusta e precipitada, tendo partido de pressupostos errados:
- Entende o Recorrente que as suas legítimas pretensões saem manifestamente prejudicadas pela manutenção da decisão recorrida:
- O Autor invoca, na petição inicial, que o facto ilícito/danoso consiste, na utilização pela Ré nos jogos desta (FIFA. FIFA MANAGER e FUT). da sua imagem, nome e demais características pessoais, sem autorização, o que acontece, pelo menos, desde Setembro de 2011.
- Quanto ao facto ilícito, ao contrário do referido pelo Tribunal a quo na decisão ora impugnada, vem, claramente, alegada pelo Autor a sua prática em território português, no articulado de Resposta às Excepções.
- O Autor juntou aos autos vasta prova documental da comercialização dos jogos da Ré e da exploração ilícita da sua imagem, nome e demais caraterísticas pessoais por parte daquela em Portugal (vide a factura de aquisição em Portugal dos jogos FIFA junta como doc. 12. o doc. 10. o doc. 16. o doc. 17 e o doc. 18. estes últimos demonstrativos da possibilidade de aquisição dos jogos da Ré em território nacional).
- Não colhe, pois a argumentação expendida na decisão de que se recorre, relativa à suposta falta de alegação de factos ilícitos/danosos praticados em território português, que servem de causa de pedir nos autos ou de algum dos factos que a integram.
- Aliás, o próprio Tribunal a quo acaba por reconhecer a inexistência de qualquer lacunar factualidade, quanto a essa matéria, por parte do Autor ao referir que este alegou que. "Os jogos comercializados pela Ré são-no a nível mundial e por isso também em Portugal razão pela qual o facto danoso também é praticado e consumado em Portugal. 'Cfr. pág. 5, penúltimo parágrafo da sentença recorrida.
- A fundamentação da sentença recorrida aponta assim, num sentido (a de que o Autor alegou factos ilícitos/danosos praticados em território português) e a decisão nela tomada segue um caminho completamente oposto (a procedência da excepção de incompetência internacional com base na suposta falta de alegação dessa mesma factualidade. que. como demonstrado e o Tribunal a quo reconhece. não ocorreu).
- Verifica-se, pois, uma clara e insanável contradição entre os fundamentos da sentença e a sua parte decisória, como previsto no artigo 615.°, n.° 1, alínea c) do Código de Processo Civil, o que constitui causa da sua nulidade, a qual se argui para os devidos e legais efeitos.
- E ainda que assim não fosse. o Tribunal teria sempre de dar como preenchidos os requisitos constantes das alíneas a). b) e c) do artigo 62.° do Código de Processo Civil.
- Sendo praticados e consumados em território português os factos que integram a causa de pedir na presente acção, não podia o Tribunal a quo deixar de concluir pelo preenchimento do requisito constante da alínea b) do supra invocado artigo 62.° do Código de Processo Civil.
- Tendo o Autor domicílio em Portugal, mostra-se assim, também, verificado o requisito previsto na alínea a) do artigo 62.° do Código de Processo Civil.
- Constitui para o Autor uma séria e apreciável dificuldade a propositura da presente acção nos Estados Unidos da América, uma vez que não se verificam quaisquer afinidades culturais, linguísticas, nem qualquer ligação do Autor àquele país. Para além disso, o Autor, bem como duas das testemunhas já arroladas. vivem em Portugal.
- Essa dificuldade, de acordo com o disposto na alínea c) do artigo 62.° do Código de Processo Civil constitui, igualmente, um claro factor de atribuição da competência internacional no que respeita aos Tribunais Portugueses.
- Face ao que antecede, a sentença em crise violou o disposto nos artigos 615.°, n.° 1 alínea c). 62.°, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Civil, bem como nos artigos 80.° n.° 3 e 82.° n.° 1 do Código Civil.
Termos em que deverá o presente recurso proceder, por provado, e, em consequência, ser declarada nula a decisão recorrida, por violação do disposto no artigo 615.°, n.° 1, alínea c), do Código de Processo Civil, com as legais consequências.

Caso assim não se entenda, deve ser revogada a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julgando internacionalmente competentes os tribunais portugueses, prossiga a tramitação dos autos.

A Ré contra-alegou defendendo a bondade da decisão recorrida.

Cumpre apreciar.
Coloca-se a questão da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer dos termos da acção.
Há que sublinhar desde já que o problema deverá ser apreciado no âmbito da relação controvertida configurado pelo Autor na petição inicial.
Como se pode ler no acórdão do STJ de 09/12/2013, disponível no site da dgsi, “a competência (…) afere-se pelos termos em que a acção é proposta e pela forma como se estrutura o pedido e os respectivos fundamentos, atendendo-se, apenas, aos factos articulados pelo autor na petição inicial e à pretensão jurídica por ele apresentada, ou seja, à causa de pedir invocada e aos pedidos formulados”. 
   
O art. 62º do CPC estabelece quais os factores de atribuição de competência internacional:
a)-Quando a acção possa ser proposta em território português, segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa;
b)-Ter sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na acção, ou algum dos factos que a integram;
c)-Quando o direito invocado não possa tornar-se efectivo senão por meio de acção proposta em território português ou se verifique para o Autor dificuldade apreciável na propositura da acção no estrangeiro, desde que entre o objecto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real.
De acordo com o alegado pelo Autor na petição inicial, o Autor tem nacionalidade italiana, é jogador de futebol desenvolvendo a sua actividade profissional actualmente no Brasil, onde reside. Quanto à Ré trata-se de uma empresa norte-americana, que conta com várias sociedades subsidiárias, uma das quais sediada na Suíça e que tem a responsabilidade da venda dos produtos criados pela Ré, perante todos os consumidores não residentes nos Estados Unidos da América, Canadá e Japão.
O Autor exerceu a sua actividade profissional de futebolista em Portugal de 2011 a 2013 e de 2015 a 2018.
A Ré é uma empresa global de entretenimento digital interactivo, desenvolvendo e fornecendo jogos, conteúdos e serviços online para consolas com ligação à Internet, dispositivos móveis e computadores pessoais.
A causa de pedir invocado pelo Autor consiste no seguinte: teve conhecimento que a sua imagem, nome, as suas características pessoais e profissionais foram e continuam a ser utilizados nos jogos denominados FIFA (ou FIFA Football ou FIFA Soccer) nas edições de 2012, 2013, 2016, 2017 e 2018; no jogo denominado FIFA MANAGER na edição  de 2012; e no jogo denominado FIFA-ULTIMATE TEAM-FUT nas edições 2012, 2013, 2014, 2016, 2017, 2018 e 2019. Todos esses jogos são propriedade da Ré.
Sendo que o Autor nunca concedeu autorização expressa ou tácita para ser incluído em tais jogos, nem conferiu quaisquer poderes aos clubes para que o fizessem.
Assim o Autor viu a sua imagem ser retratada e o seu nome divulgado sem o seu consentimento em milhões de jogos de vídeo.

Estamos assim perante uma acção centrada na responsabilidade civil, sendo peticionadas indemnizações por danos patrimoniais de personalidade e danos não patrimoniais.
Nas suas conclusões, o recorrente invoca a nulidade da sentença recorrida, por contradição  entre os fundamentos e a decisão.
Alega que na sentença se reconhece que os jogos comercializados pela Ré são-no a nível mundial, e por isso também em Portugal, razão pelo que o facto danoso também é praticado em Portugal., para depois se decidir com base na conclusão de falta de alegação de factos ilícitos e danosos, que integram a causa de pedir, praticados em território português.
Contudo, não existe qualquer contradição. A passagem a que o requerente se refere, situa-se na parte da sentença em que o Mº juiz a quo descreve o alegado pelo Autor na resposta à contestação, a fls. 230.
Mais adiante, afirma-se que quanto ao facto ilícito “não vem alegado facto praticado em território português” e ainda que “a instância estabilizou-se com a propositura da acção” – ver fls.233 verso e 234.
Ou seja, a decisão transcreve parte do referido pelo Autor na resposta à contestação, mas tendo em conta a estabilidade da instância com a propositura da acção, decidiu de acordo com o que o Autor alegara na petição inicial. Não há qualquer contradição.
Alega ainda o recorrente que na petição inicial já afirmara que o facto ilícito foi igualmente praticado em território português. Por exemplo, no art. 18º quando refere “o jogo FIFA já vendeu 24 milhões de unidades em todo o mundo”, no art. 95º ao mencionar que a Ré “agiu e age ilegalmente ao explorar a imagem e nome do Autor, atleta famoso, ao comerciar jogos para consolas (…) em todo o mundo” e ainda no art. 174º  (“os jogos de que se trata nesta acção são vendidos a preços consideráveis em Portugal”.
Esta questão deverá ser apreciada mas não no âmbito de uma inexistente contradição entre os fundamentos e a decisão recorrida. Deverá ser vista na apreciação do mérito, nomeadamente em termos de indagar se tais factos são constitutivos do direito do Autor, para efeitos de competência internacional.

O problema em causa, relativo também a um jogador profissional de futebol e à empresa aqui Ré, foi ponderado e decidido, a nosso ver com inteira pertinência no recente acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26/10/21, disponível no endereço electrónico da dgsi, e que passamos a transcrever parcialmente:
“… a causa de pedir que aqui é invocada pelo Autor consiste na utilização e exploração comercial da sua imagem e do seu nome e demais características pessoais (…) pela Ré, sem o seu consentimento e, portanto, de forma ilícita. Enquadra-se assim esta pretensa actuação da Ré no campo da responsabilidade civil extra-contratual (…).
“É igualmente certo que, baseando-se o pedido do A na responsabilidade por factos ilícitos, são pressupostos cumulativos desta responsabilidade, enquanto fonte geradora da obrigação de indemnização, o facto, a ilicitude desse mesmo facto (ilicitude que pode revestir duas modalidades, traduzindo-se na violação do direito de outrem ou na violação de uma disposição legal destinada a proteger interesses alheios), o nexo de imputação do facto ao lesante, o dano e, finalmente, o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
Nessa medida, o dano integra igualmente a causa de pedir, quando invocada está a responsabilidade civil decorrente de facto ilícito, pelo que, verificando-se em território nacional os danos (ou pelo menos, parte significativa e relevante desses danos) ter-se-ia por atribuída a competência internacional aos tribunais portugueses, com fundamento na alínea b) do art. 62º”.

Temos assim que o facto ilícito gerador de responsabilidade consiste na utilização e exploração do nome e imagem do A, e ocorre com a criação do jogo, contendo o nome e outras características pessoais e profissionais do A, incluindo a sua imagem, sem sua autorização, o qual foi posteriormente divulgado.
Significa isto que o dano, utilização não autorizada e indevida do nome e imagem do A, ocorre com a própria criação dos jogos. A amplitude da divulgação do jogo com o uso de diversos meios, o montante maior ou menor dos ganhos económicos para a Ré e para as aludidas subsidiárias poderão servir para aferir a medida dos danos, mas não são autonomizáveis, ou seja, o dano já estava cometido com a criação do jogo, independentemente das variáveis da sua comercialização.

Voltando ao mencionado acórdão, salienta-se que “o facto constitutivo essencial da causa reporta-.se à produção e divulgação destes jogos utilizando a imagem e o nome do A, sem sua autorização e que esta produção e divulgação se localizam em solo norte-americano, independentemente de o poderem ser posteriormente para todo o mundo, mediante acordos feitos com a proprietária dos jogos, suas subsidiárias ou por qualquer outro meio (…)
Dito de outra forma: não é o local, ou um dos locais onde essa divulgação ocorre que confere a competência internacional aos tribunais portugueses, por não se poder afirmar que o dano ocorreu em Portugal. Não é o local, ou um dos locais onde o jogo é vendido ao consumidor final que constitui o elemento relevante para atribuição da competência internacional, mas antes o local onde o jogo foi criado e posto em circulação, por ser nesse local que ocorreram os factos constitutivos do direito invocado pelo Autor.”

Quer o facto ilícito quer o dano resultante do uso da imagem e nome do Autor, sem autorização deste, alegadamente imputáveis à Ré, ocorreram nos Estados Unidos da América, com a criação do jogo e com a sua venda ou cedência, seja a que título for, a outras empresas, eventualmente subsidiárias da Ré que o comercializaram em todo o mundo, salvo nos próprios EUA, Canadá e Japão onde se supõe que terá sido a própria Ré a proceder a tal comercialização.

O Autor tem razão quando alega que, tendo afirmado, na petição inicial, que o jogo foi divulgado em todo o mundo, também o foi, forçosamente, em Portugal.

Mas já não tem razão, em nosso entender, quando pretende que o dano, ou parte significativa do mesmo, ocorreu em Portugal.

Foi nos Estados Unidos da América, onde está sediada a Ré, que o jogo foi criado e onde se gerou a sua circulação, já que foi a Ré, através de sociedades subsidiárias ou através de outros meios, que iniciou tal circulação, ou seja, tal divulgação pública.
     
Não se verificam pois, circunstâncias que possam preencher os requisitos do art. 62º b) do CPC.

Quanto à alínea c) do mesmo preceito, não se vislumbra que o direito invocado pelo Autor não possa tornar-se efectivo se não for por meio de acção proposta em tribunal português.

Aliás, o próprio Autor invoca no art. 177º da sua petição, um precedente, em caso similar ao seu, julgado nos Estados Unidos da América e com condenação da Ré.

Nestes termos, julga-se a apelação improcedente, confirmando-se a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.



LISBOA,13/1/2022



António Valente
Teresa Prazeres Pais
Rui Vouga