Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
5424/20.4T8SNT.L1-2
Relator: PEDRO MARTINS
Descritores: CONSUMO DE ESTUPEFACIENTES
CONDUTOR
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 09/15/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA A SENTENÇA
Sumário: I – Tal como não basta o consumo do álcool para a seguradora ter direito de regresso contra o condutor, pois que se exige uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida (art. 27/1-c do DL 291/2007), também não basta o consumo de estupefacientes (acusado pela sua presença no organismo do condutor) para se verificar esse direito de regresso, sendo necessário que se prove que esse consumo teve uma influência negativa na capacidade para o exercício da condução, isto é, que é um consumo de estupefaciente em medida suficiente para não permitir a condução em condições de segurança.
II – Pressupostos do direito de regresso da seguradora contra o condutor são, para além do cumprimento da condenação na acção prévia, que (i) o condutor tenha dado causa ao acidente [o que corresponde ao conjunto dos pressupostos dados como provados naquela acção prévia e que levaram à condenação daquela que é agora autora na acção de regresso], (ii) o consumo de álcool ou estupefacientes com características referidas em I e, (iii), a ligação entre uma coisa e outra, ou seja, o nexo de causalidade.  
III – Provado um consumo que provoca a diminuição da capacidade de conduzir, presume-se o nexo de causalidade entre ele e o acidente a que o condutor deu causa; pelo que, a seguradora (apenas) tem de provar aquele consumo com aquelas características para poder beneficiar desta presunção e é isto que normalmente se quer dizer quando se diz que a seguradora não tem de provar aquele nexo de causalidade: porque beneficia, e se beneficiar, daquela presunção.
IV – O facto de constar dos factos provados que o condutor estava a conduzir sob a influência de estupefacientes quer apenas dizer, depois de 15/08/2007 (com a entrada em vigor da nova regulação da fiscalização da condução sob a influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas), que ele tinha estupefaciente no organismo.
V- Desde então (15/08/20207), a prova de que foi consumido estupefaciente em medida suficiente para não permitir a condução em condições de segurança, terá que ser feita ou por um exame médico que tenha procurado apurar um estado de influência e não a simples presença de estupefacientes, ou por um exame de confirmação que terá de revelar a presença de estupefaciente (activo: não servindo pois para o efeito o THC-COOH no caso do canábis) em quantidade suficiente para convencer o juiz, em conjunto com uma série de outros elementos que logica e necessariamente terão de ser também os que seriam obtidos pelo exame médico que fosse feito ao condutor nos termos do n.º 25 da Portaria 902-B/2007, de que tem uma suficiente base probatória para concluir que o condutor estava com efectivas condições diminuídas para o exercício da condução.
VI – O que faz caso julgado e aquilo a que este se estende são os factos e o direito que a decisão judicial condenatória tenha estabelecido (artigos 323/4 e 332 do CPC), não as absolvições ou as alegações de facto não dadas como provadas, sendo que estas também não beneficiam das presunções das disposições dos artigos 623 e 624 do CPC, mas nada disto retira valor e efeito ao que se diz aos pontos anteriores deste sumário.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:

Companhia de Seguros, S.A., intentou uma acção comum contra F, pedindo a condenação deste a pagar-lhe 109.453,05€ acrescida dos juros de mora vincendos desde a citação até total pagamento.
Alegou, em síntese, que: no exercício da sua actividade como seguradora, aceitou, por contrato celebrado com a respectiva proprietária, a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação de um veículo automóvel; de acordo com as condições gerais da apólice, no caso de o veículo ser conduzido por pessoa sob influência de estupefacientes, a responsabilidade civil da seguradora não fica excluída perante terceiros lesados; no entanto, nessa circunstância, a seguradora tem o direito de regresso contra o condutor, nos termos do disposto no art. 31/-c das referidas condições gerais do contrato e do art. 27/1-a do DL 291/2007, de 21/08; tal veículo interveio num acidente, com vítima mortal; o Ministério Público requereu o julgamento do réu, imputando-lhe a prática de um crime de homicídio por negligência e [de um crime de] condução sob a influência de estupefacientes e os familiares da vítima deduziram pedido de indemnização cível contra a ora autora; o réu foi chamado ao incidente pela ora autora para acautelar um eventual direito de regresso; nesse processo-crime com enxerto cível acabou por ser proferida sentença, entre o mais dando como provado que o acidente se deu quando o réu conduzia sob a influência de canábis consumido anteriormente, comprovado por exame toxicológico, e condenando o réu pela prática de um crime de homicídio por negligência e de uma contra ordenação muito grave pela condução de veículo sob efeito de substâncias psicotrópicas e a autora a pagar indemnizações aos familiares por danos decorrentes desse acidente, o que a autora já satisfez.
Os pressupostos do direito de regresso são: a) ter sido paga a indemnização aos lesados; b) o condutor do veículo tenha dado causa ao acidente; e c) acuse o consumo de estupefacientes. E estão preenchidos: (a) a autora já deu cumprimento à sentença; (b) no processo-crime resultou provado que “o embate acima descrito deveu-se exclusivamente ao facto do arguido conduzir o seu veículo de forma imprevidente e descuidada, iniciando a marcha do veículo sem assinalar com a devida antecedência a sua intenção e sem adoptar as precauções necessárias para evitar embater [na vítima], conforme estava obrigado e era do seu conhecimento; (c) resulta do exame químico toxicológico realizado pelo Instituto de Medicina Legal já junto como documento 6.
Não obstante após a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, através do DL 291/2007, já não se exigir a prova, por parte da seguradora, do nexo causal entre a causa do acidente e a condução sob o efeito de estupefacientes, a verdade é que não se poderá desconsiderar os efeitos do provado consumo de estupefacientes na condução do réu e, bem assim, na sua falta de diligência e cuidado demostrado antes de iniciar a marcha, violando as mais elementares leis da estrada, nomeadamente os artigos 12/1, 21/1 e 81/-1-5 do Código da Estrada, bem como o facto de os valores encontrados no organismo do réu serem capazes de perturbar a sua capacidade física, mental ou psicológica para o exercício da condução de veículo a motor com segurança. Na verdade, nos termos do artigo 23 da Portaria 902-B/2007, de 13/04, “Considera-se que o exame de confirmação é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo V ou de outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança.” Ora, uma vez que resulta do relatório final que é positiva a confirmação qualitativa e quantitativa de canabinóides no sangue, é forçoso concluir que a quantidade de canabinóides presentes no organismo do réu, poucas horas após o acidente, era susceptível de perturbar a sua capacidade de condução. Estes factos, aliados à evidência de o réu não ter cumprido regras básicas de segurança e de bom senso, como eram o de verificar se estava alguém na frente do camião e sinalizar o início da marcha, permitem concluir que o réu não estava em condições psicomotoras de conduzir com segurança, devido ao consumo de estupefacientes, o que levou à produção do acidente. Pelo que é forçoso concluir a existência de um nexo causal entre o consumo dos estupefacientes e o acidente. A conduta do réu é, e foi, sancionada, enquanto perigo que representa o exercício de condução por condutores sob a influência de substância psicotrópica, independentemente de qualquer evento danoso, perigo esse que não admite prova em contrário. O condutor culpado apresentava, de forma comprovada, canabinóides no sangue, e por esse facto tornou mais perigosa a condução, exorbitando o risco normal previsível da circulação automóvel, que não se inclui no risco que a seguradora assumiu contratualmente. Um contrato de seguro que protegesse um condutor que conduzisse sob a influência de substância psicotrópica seria um contrato nulo por impossibilidade legal do objecto – artigo 280 do Código Civil.
O réu contestou, alegando desconhecer as condições constantes da apólice, por não ser o tomador de seguro; quanto ao acidente, alega que existe divergência entre os factos objecto da acusação e os factos provados na sentença, sendo que a autora, em sede de processo-crime, defendeu que cabia à vítima a culpa exclusiva pela ocorrência do acidente. Dos factos objecto de julgamento não se pode concluir que o embate se deveu exclusivamente ao réu, ou sequer que deu causa ao acidente. Não foi submetido a exame médico destinado a avaliar estado de influenciado por substância psicotrópicas nos termos legais, importando em qualquer caso apurar de que forma e em que medida o consumo de substância psicotrópica teve influência no acidente, ou seja se a causa do acidente se ficou a dever a tal consumo. No caso, o acidente não correu pelo facto de se encontrar com os reflexos diminuídos ou por se encontrar a conduzir influenciado pelo consumo de canabinóides, não tendo sido tal consumo que levou à produção do acidente. Conclui pela improcedência da acção por não provada (aproveitou-se a síntese da contestação do réu feita pela sentença recorrida).
Realizada a audiência final foi depois proferida sentença julgando a acção improcedente e absolvendo o réu do pedido.
A autora recorre desta sentença – para que seja revogada e substituída por uma outra que reconheça o direito de regresso e condene o réu no pagamento de 109.453,05€ à autora -, terminando as suas alegações com 89 conclusões, que este TRL sintetiza assim:
O réu foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência e pela prática de uma contra-ordenação muito grave pela condução de veículo sob efeito de substâncias psicotrópicas.
Encontram-se preenchidos os pressupostos do direito de regresso do art. 27/1-c do DL 291/2007, pois que o réu foi o único e exclusivo culpado do acidente e acusou o consumo de estupefacientes (e bem assim a sua influência na condução).
O tribunal a quo considerou que era objecto do litígio a “causalidade da condução pelo réu sob o efeito de estupefacientes na produção do acidente” e assumiu, por força do efeito do caso julgado e da sentença penal absolutória, que não ficou provada essa causalidade:
A autora considera que está provado o nexo causal entre o consumo de estupefacientes e a produção do acidente e repudia a existência de uma presunção legal resultante do art. 27/1-c do DL 292/2007 e que a mesma tenha sido ilidida pelo réu.
A autora entende quanto ao nexo causal que não existe qualquer efeito de caso julgado, pois que o art. 323/4 do CPC determina que a sentença proferida no processo anterior constitui caso julgado quanto à autora apenas relativamente às questões que dependa o direito de regresso. Ora o direito de regresso depende unicamente da prova da culpa do acidente ser do condutor e este acusar o consumo de estupefacientes.
O tribunal a quo deveria ter decidido esta questão com base nos factos assentes, impondo-se a modificação da decisão de facto, nos termos do artigo 662/1 do CPC, por forma a incluir a questão do nexo na matéria no facto provado 17 que deverá passar a ter a seguinte redacção: “O embate acima descrito deveu-se exclusivamente ao facto do arguido, que, por estar influenciado pelo consumo de estupefacientes, conduziu o seu veículo de forma imprevidente e descuidada […].
Não pode a autora aceitar que, resultando provada a influência dos estupefacientes no réu (facto 6 – que faz caso julgado relativamente à autora) e, bem assim, a sua condução descuidada e imprevidente, com um total desrespeito pelas regras de segurança (factos 17 a 21 e 2), se possa, sem mais, considerar que não há nexo causal, sendo certo que esta análise pode, e deve, ser feita através da livre apreciação do tribunal, recorrendo às regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência: como motorista profissional de veículos pesados o réu estaria completamente ciente das especificidades da condução daquele tipo de veículo e, bem assim, dos comportamentos preventivos a adoptar por conta daquelas especificidades, o que reforça ainda mais a verificação de um evento estranho que o tenha levado a não observar as mais elementares condutas de prevenção; não havendo qualquer dúvida que o réu sabia exactamente o que fazer antes de iniciar a sua marcha, só um evento excepcional pode tê-lo levado a não tomar esse cuidado; resultando da matéria assente o consumo de estupefacientes e a sua influência no réu e na sua condução, não tendo sido trazido ao processo-crime nem ao caso sub judicie nenhum facto que permita justificar a falta de cuidado, zelo e a forma imprevidente e descuidada como conduzia, impunha-se ao tribunal a quo concluir que tal comportamento se deveu ao consumo de estupefacientes que, comprovadamente, o influenciava, dando por provado esse facto, para mais tendo em consideração todos os artigos médicos que existem sobre os efeitos do consumo de estupefacientes na condução.
No âmbito da vigência do art. 19/1-c do DL 522/85, na sequência da forte divergência jurisprudencial relativamente à interpretação daquela disposição, veio a ser proferido o AUJ 06/2002 que fixou jurisprudência no sentido de a seguradora ter o ónus da prova do anexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.
A jurisprudência dominante vem entendendo que, à luz da nova formulação legal (art. 27/1-c do DL 291/2007), para assegurar o seu direito de regresso, a seguradora apenas tem que provar que o condutor deu culposamente causa ao acidente e que acusava o consumo de estupefaciente (isto, naturalmente, para além da prova de ter satisfeito a indemnização – prova essa que, in casu, foi feita, o mesmo sucedendo com a prova de que o réu deu causa ao acidente, ou seja, de que o acidente se deu por culpa sua).
Fazendo um paralelismo com o consumo de estupefacientes uma vez [que] o legislador considerou que a condução após o consumo de estupefacientes não existem as condições necessárias para a condução de veículos e se ainda assim tal condução é efectuada e se vem a ocorrer um acidente em consequência de uma conduta culposa do condutor que apresenta um consumo de estupefacientes não será fácil admitir que esse consumo nenhuma influência teve no comportamento culposo que desencadeou o acidente.
Ora, no âmbito do processo sub judicie encontram-se provados estes 3 factos essenciais: o consumo de estupefacientes (bem como a sua influência no condutor), a culpa do ré na produção do acidente e o pagamento da indemnização.
Não obstante a prova de todos os pressupostos exigidos pela norma, o tribunal a quo defende que a mesma comporta uma presunção iuris tantum de que o consumo de estupefacientes foi causal do acidente e que o réu ilidiu essa presunção.
Caso o tribunal ad quem rectifique a matéria dada como provada este ponto não é sequer questão uma vez que se mostra provado o nexo causal, não sendo este facto passível de ser questionado por uma mera presunção resultante dos efeitos da decisão penal absolutória.
Mas, a admitir-se que resulta alguma presunção, [a mesma] é iuris et de iure, ou seja uma presunção que não admite prova em contrário e por isso pode ser considerada uma presunção absoluta – vide neste sentido – vide neste sentido acórdão do STJ, de 09/10/2014, proferido no proc. 582/11.1TBSTBTB.E1.S1 e o acórdão do TRP [de 16/12/2015] proc. 4678/13.7TBVFR.P1.
Sendo certo que a única forma de o réu obstar ao direito de regresso seria alegar e provar factos modificativos, extintivos ou impeditivos daquele direito e dos quais resultasse a) que não tinha tido culpa na eclosão do acidente e/ou que não tinha consumido estupefacientes, o que manifestamente não aconteceu pelo que também por esta via seria de exigir a revogação da sentença.
Assumindo, por mera hipótese académica, que o regime normativo da alínea c) visou estabelecer uma presunção legal (juris tantum), defende o tribunal a quo que o réu logrou ilidir a presunção uma vez que no processo-crime foi julgado como não provado “que o embate descrito nos fatos provados deveu-se ao facto de o arguido se encontra com os reflexos diminuídos por se encontrar a conduzir influenciado pelo consumo de estupefacientes, designadamente cannabis.” Ou seja, ainda que no âmbito daquele processo o réu não tivesse feito qualquer prova que permitisse ilidir a presunção, defende o tribunal a quo que, por força do caso julgado e dos efeitos da decisão penal absolutória, essa ilição foi feita através dos factos dados como não provados naquele processo e que acabaram por levar à absolvição do réu naquele processo do crime de condução de veículo sob influência de produtos estupefacientes.
A autora não concorda com esta decisão não só porque a questão do nexo não constitui caso julgado, como porque a sentença proferida no âmbito do processo-crime apenas pode constituir caso julgado relativamente à autora quanto aos dois factos que até lhe são favoráveis,
Pelo que se impunha ao réu, no âmbito do processo sub judicie, provar a ausência de nexo por forma a ilidir a alegada presunção, não o tendo feito, motivo pelo qual, também por esta via, a presente acção deveria proceder.
A sentença proferida no processo-crime tem uma manifesta desconformidade entre os factos dados como provados e a motivação do tribunal que levou à absolvição do réu, por se não ter mostrado provado o nexo. Face aos factos dado como provados - a influência dos estupefacientes e que, por causa dela aumentou o risco na condução, que levou à falta de cuidado na condução - e, bem assim, as regras de experiência e de bom senso que o tribunal pode e deve suportar-se para analisar os factos e deles subsumir o direito a aplicar, mal se entende que o réu tenha sido absolvido pelo crime de condução sob o efeito de estupefacientes, por não provado o nexo causal.
Por outro lado, não se pode aceitar o raciocínio do tribunal criminal que tanto admite a influência do consumo de estupefacientes no condutor como se recusa a concluir que essa influência, e os efeitos da mesma, esteja relacionada com a conduta do condutor antes do sinistro.
E para além de estarmos perante a falta ou ininteligibilidade de fundamentação de facto ou de erro de facto notório da sentença proferida na acção principal, entretanto consumido pela ocorrência do respectivo efeito de caso julgado, estamos também perante a indeterminabilidade do alcance desse caso julgado quanto àquele fundamento delimitador, para os efeitos do artigo 621 do CPC, mais precisamente no que respeita à determinação do facto que causou o acidente, ponto este que é essencial no caso sub judicie considerando a presunção que resulta do artigo 624 do CPC. Perante tão grave indeterminabilidade, não se afigura lícito concluir que o decidido, nesse segmento, na acção principal possa valer com autoridade de caso julgado como decisão indiscutível prejudicial em relação ao objecto da presente acção de regresso - veja-se neste sentido o acórdão do STJ no processo 313/17.2T8AVR.P1.S1. Assim sendo, não deverá prevalecer o juízo probatório da falta desse nexo de causalidade nesta acção de regresso, pelo que se exige que o tribunal a quo deveria ter decidido sobre essa questão, e não o fez.
Por fim, importa ainda referir que o réu foi absolvido no processo- crime o que constituí uma presunção ilidível de que não praticou os factos de que vinha acusado (condução sob a influência de “estupefacientes) mas os pressupostos da responsabilidade criminal são diferentes da responsabilidade civil. Basta ver que no caso do álcool a seguradora tem direito de regresso desde que comprovada uma TAS superior a 0,5 g/l e o crime exige uma taxa de 1,2 g/l; o mesmo se dirá para o consumo de estupefacientes que no processo-crime exige a influência das mesmas na produção do acidente (nexo) ao passo que para efeitos de direito de regresso se bastará com a presença do estupefaciente. Assim, para efeitos de lei civil – direito de reembolso – é bastante a prova do consumo e da culpa pelo que a matéria provada no processo penal é suficiente, sendo certo que até dá como assente no ponto 6 que o arguido conduzia sobre a influência de produto estupefaciente.
O réu contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso, entre o mais dizendo que “encontra-se provado que o acidente não ocorreu por causa do réu se encontrar com os reflexos diminuídos ou por se encontrar a conduzir influenciado pelo consumo de canabinóides e que o mesmo estava com capacidade para conduzir em segurança.”
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Questão que importa decidir: se o réu devia ter sido condenado no reembolso à autora do que esta pagou aos familiares da vítima mortal do acidente.
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Estão dados como provados os seguintes factos que interessam à decisão desta questão (não se transcrevem muitos outros que não importam para o efeito):
a) A autora é uma sociedade constituída sob a forma comercial que tem por objecto a actividade seguradora.
b) No exercício desta sua actividade e por força do contrato de seguro celebrado com a empresa T-Lda, titulado pela apólice n.º 000000000, aceitou a transferência da responsabilidade civil por danos decorrentes da circulação do veículo automóvel propriedade da mesma, com a matrícula  XX-XX-XX.
c) Tal contrato de seguro encontrava-se em vigor em 02/11/2017.
d) No dia 02/11/2017, pelas 09h50m, na Av. G em N, no sentido N => P ocorreu um acidente de viação, no qual foi interveniente o veículo automóvel seguro pela autora e conduzido pelo réu, com a matrícula  XX-XX-XX e do qual resultou uma vítima mortal.
e) No seguimento do sinistro foi elaborado pelas autoridades competentes o auto de notícia com o n.º 000/17.6GGTCS, tendo o processo prosseguido os seus termos no Juiz 3 do Juízo Local Criminal de Sintra.
f) No referido processo constituíram-se assistentes a cônjuge e neta da vítima mortal, tendo sido deduzido pedido de indemnização cível contra a ora autora no valor global de 160.000€. g) O réu foi chamado ao incidente pela autora para acautelar um eventual direito de regresso.
i) No âmbito desse processo foi em 17/01/2020 proferida sentença, transitada em julgado, cujo conteúdo se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, na qual, além do mais, foram julgados provados os seguintes factos:
[…]
3) A dado momento, o arguido imobilizou o veículo, na zona da intersecção do Largo do R com a Av. G, que se situa do lado direito, no sentido N => P, em ponto não concretamente apurado.
4) No mesmo circunstancialismo de espaço e tempo, enquanto o veículo do arguido estava imobilizado, S, que, por referência ao sentido da marcha daquele veículo, estava localizado em parte não concretamente apurada do passeio situado no lado direito da faixa de rodagem da Avenida e que contorna o café T, atravessou esse passeio em parte não concretamente apurada, seguindo a marcha junto e encostado à frente do veículo conduzido pelo arguido, até alcançar o lado esquerdo da frente do mesmo.
5) Enquanto isso, o arguido iniciou a marcha do mesmo veículo.
6) O arguido conduzia sob a influência de produto estupefaciente que havia consumido anteriormente, designadamente cannabis, tendo apresentado os seguintes resultados:
D9 - tetrahidrocanabinol (THC): 2.3 ng/ml;
11- Hidroxi – D9 – tetrahidrocanabinol (11-OH-THC): 1.5ng/ml;      
11 - Nor-9 Carboxi-D9-tetrahidrocanabinol (THC-COOH): 27 ng/ml.
7) Antes de iniciar a marcha, o arguido não se apercebeu da presença do peão, junto e encostado à frente do veículo, e acabou por embater no mesmo com a frente esquerda do veículo.
8) Em virtude do embate o peão foi projectado para o chão e foi arrastado pelo pavimento, cerca de 4 metros, até ao meio da faixa de rodagem, ficando deitado em decúbito dorsal e com os membros inferiores por baixo da roda da frente do lado esquerdo.
9) Como consequência directa e necessária do embate que sofreu, o peão sofreu, genericamente, lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, torácicas, pélvicas, vertebro-medulares e nos membros inferiores.
10) Tais lesões foram causa directa e necessária da sua morte.
11) A Av. G, no local onde ocorreu o descrito embate, caracteriza-se por ser uma recta em patamar, com uma ligeira curva à direita, sem obstruções visuais de qualquer natureza, tendo intersecção à esquerda com o Largo T e à direita com o Largo R, no sentido N => P.
12) A faixa de rodagem é dividida em duas vias de trânsito, uma em cada sentido.
13) A largura da faixa de rodagem é de seis metros, tendo cada via três metros.
14) O pavimento é de asfalto betuminoso, em regular estado de conservação e manutenção.
15) No local, a velocidade máxima permitida é de 50 quilómetros por hora.
16) No momento do acidente estava bom tempo, mas o piso estava molhado devido a ter chovido anteriormente.
17) O embate acima descrito deveu-se exclusivamente ao facto do arguido conduzir o seu veículo de forma imprevidente e descuidada, iniciando a marcha do veículo sem assinalar com a necessária antecedência a sua intenção e sem se certificar se estaria algum peão no passeio e na frente do veículo, como podia e devia.
18) Nada ocorreu que justificasse ou fizesse prever que o arguido iniciasse a marcha do veículo sem assinalar com a necessária antecedência a sua intenção e sem adoptar as precauções necessárias para evitar embater no peão, conforme estava obrigado e era do seu conhecimento.
19) O arguido ao agir como descrito, bem sabia que poderia pôr em perigo a vida dos outros utentes da via pública, designadamente peões, mas apesar disso, procedeu de forma contrária àquela que mandam as regras estradais e a segurança do tráfego, não observou regras de cuidado que era capaz de cumprir, provocando, com a sua falta de cuidado, a verificação de ferimentos noutra pessoa, causando-lhe a morte, embora acreditando que a mesma não se verificaria.
20) O arguido sabia que a condução de veículos na via pública, encontrando-se influenciado por estupefacientes, se traduzia num aumento de perigo para si e para os demais utentes da via, e, não obstante isso, decidiu conduzir nessas circunstâncias.
21) O arguido agiu de forma livre e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Da prova produzida e com interesse para a boa decisão da causa resultaram também provados os seguintes factos dos pedidos de indemnização civil deduzidos pelas assistentes/ demandantes:
22) Na ocasião do embate acima descrito, o arguido encontrava-se a conduzir o veículo ao serviço e no interesse da T-Lda.
23) Na mesma data, a responsabilidade civil emergente da circulação daquele veículo encontrava-se transferida para a Fidelidade, por contrato de seguro automóvel celebrado entre esta e a T-Lda e titulado pela apólice n° 000000000.
24) A vítima nasceu em 10/03/1934.
25) Na ocasião do embate, a vítima deslocava-se com o auxílio de uma bengala e de uma canadiana.
[…]
27) A vítima faleceu às l0h44m do dia 02/11/2017.
[…]
Da prova produzida e com interesse para a boa decisão da causa resultaram, ainda, provados os seguintes factos da contestação da Seguradora aos pedidos de indemnização civil deduzidos pelas assistentes/demandantes:
41) A uma distância aproximada de 28 metros, relativamente ao ponto de embate, existia uma passadeira destinada à travessia de peões, sinalizada no pavimento de alcatrão, sendo que, para a alcançar a partir do ponto onde se encontrava antes do embate, a vítima tinha que atravessar a Av. G, em sentido perpendicular, para o lado oposto, ou a via de circulação que contorna o Largo R, em sentido perpendicular à frente do café T.
42) Estando a conduzir sentado no lugar do condutor, o arguido, assim como qualquer outra pessoa na mesma posição, não tinha visibilidade sobre a vítima junto e encostada à frente do veículo.
[…]
48) Vem sendo acompanhado, de forma pontual, em consulta de psiquiatria no Hospital, em virtude de comportamentos desajustados, relacionados com a ingestão excessiva de álcool.
49) O arguido consome haxixe, o que assume, embora negue situação de dependência e não atribua gravidade ao facto.
[…]
51) Após o falecimento do irmão, o arguido agravou o seu comportamento no que se refere à ingestão de álcool e ao consumo de substâncias estupefacientes.
52) O arguido nasceu e viveu em França até aos 31 anos de idade.
[…]
55) O arguido não tem antecedentes criminais.
56) Também não tem contra-ordenações registadas no respectivo registo individual de condutor.”
j) E foram julgados não provados os seguinte factos:
[…]
e) Que o embate descrito nos factos provados deveu-se ao facto de o arguido se encontrar com os reflexos diminuídos por se encontrar a conduzir influenciado pelo consumo de estupefacientes, designadamente cannabis;
f) Que quanto aos factos julgados provados o arguido agiu deliberadamente.
[…]
k) O réu foi submetido a exame toxicológico no próprio dia do sinistro, pelas 14h45 no Instituto de Medicina Legal.
l) Face aos factos provados o réu foi condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência e pela prática de uma contra ordenação (por consumo de estupefacientes) p. e p. pelos artigos 81, nºs 1, 5 e 6, 138, 146/-m e 147, nºs 1 e 2, 2ª parte do Código da Estrada.
m) A autora foi condenada no pagamento dos seguintes valores indemnizatórios:
60.000€ conjuntamente às duas demandantes a título de dano não patrimonial decorrente da perda de vida (dano de morte);
30.000€ conjuntamente às duas demandantes a título de danos não patrimoniais sofridos pela vítima, no período que mediou entre a hora do acidente e a hora da sua morte (dano intercalar);
15.000€ à demandante R a título de danos não patrimoniais por esta sofridos em consequência da perda do seu marido (dano de apego); e
4.000€ à demandante I a título de danos não patrimoniais por esta sofridos em consequência da perda do seu avô (dano de apego).
Todas as quantias acrescidas de juros de mora, computados à taxa legal para as operações civis, 4%, desde a data da prolação da sentença até integral pagamento.
n) No dia 18/02/2020, a autora enviou ao mandatário das demandantes dois cheques para cumprimento da sentença.
*
A sentença tem a seguinte fundamentação, em síntese feita por este TRL:
Os factos e o direito estabelecidos na sentença crime fazem, atento o disposto nos artigos 623, 624 e 332 do Código de Processo Civil, caso julgado contra o réu, por este ter sido interveniente nesse sido por chamamento da seguradora.
Face ao disposto no art. 27/1-c do DL 291/2007, está actualmente pacificado o entendimento de que a norma que ele se extrai consagra uma presunção legal “do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia ou a evidência de consumo de substância psicotrópica e o acto de condução causador do acidente.” (ac. do STJ de 25/03/2021, proc. 313/2017), pelo que a seguradora não tem de fazer a prova do nexo causal entre o consumo de estupefacientes e o facto ilícito-culposo que ocasionou o acidente, bastando que se aproveite daquela presunção (que é iuris tantum, isto é, pode ser ilidida pelo condutor).
Face à fonte legal do direito de regresso da seguradora, não releva o facto de o réu ser o tomador do seguro, ou desconhecer as cláusulas contratuais do mesmo, dado que o direito da autora não advém de qualquer cláusula específica do contrato de seguro em causa nos autos.
Está provado que o réu exercia a condução sob a influência de substâncias psicotrópicas.
Na acção penal com enxerto cível a questão da causalidade entre o consumo de estupefacientes pelo réu e o acidente foi expressamente conhecida, tanto no plano dos factos como do direito.
Nos factos não provados dessa sentença penal consta expressamente que não se provou que o embate descrito nos factos provados se deveu ao facto de o arguido se encontrar com os reflexos diminuídos por se encontrar a conduzir influenciado pelo consumo de estupefacientes, designadamente cannabis.
E na motivação desta decisão discutiu-se se o consumo de estupefacientes foi a causa do acidente, designadamente porque o arguido se encontrava com os reflexos diminuídos, dizendo-se que para determinar tal se pode utilizar, sem prejuízo de outros, a confissão, a perícia – que obviamente não se mostra oportuna decorridos anos sobre o acidente e que não se pode confundir com a prova do consumo de estupefacientes, porque uma coisa é apurar o consumo em si, outra é apurar o impacto desse consumo na condução e no acidente ocorrido - ou, admite-se nalguns casos, simples observação médica ou prova testemunhal do estado comportamental do arguido. Não pode é extrair-se de forma simples e automática das regras da experiência comum. Tanto mais que é sabido que a cannabis permanece no sangue durante largo período de tempo e o seu consumo não tem sempre o mesmo efeito sobre cada pessoa, podendo depender das circunstâncias de cada caso concreto, nomeadamente se a pessoa é ou não consumidor habitual ou de outras variáveis.
A influência do consumo (confirmado por exame pericial) na segurança da condução concreta, há-de pois ser demonstrada por quaisquer elementos de prova, cuja análise crítica em confronto com a dinâmica da condução concreta permita ao julgador concluir pela falta de segurança da condução exercida pelo condutor. Prova essa que não existe no caso concreto, pois o que temos são apenas os resultados do exame toxicológico.
E na fundamentação de Direito da mesma sentença penal consta, entre o mais, que não basta para o preenchimento do tipo do crime de condução sob a influência de estupefacientes a presença de estupefaciente, do art. 292/2 do CP, sendo necessário que se prove – o que não aconteceu no caso dos autos - que a mesma influencia e torna o condutor incapaz de conduzir com segurança (para esta conclusão invoca-se a “exposição de motivos” da Proposta de Lei 69/VIII, subjacente à Lei 77/2001, de 13/07, que acrescentou o nº 2 ao art. 292 do CP e os acórdãos do TRP de 20/02/2019, proc. 540/17.2GBILH.P1 e do TRC de 06/04/2011, proc. 1017/08.2TAAVR.C2).
Da factualidade e da fundamentação desta decisão penal e cível, resulta expressamente que a causalidade do consumo da canábis pelo réu foi expressamente discutida e expressamente afastada por sentença transitada em julgado, com efeitos de caso julgado. Até porque o réu estava acusado da prática do crime de condução do veículo sob a influência de produtos estupefacientes, tendo sido absolvido.
A decisão penal, quanto à questão da falta de causalidade entre o consumo da canábis e o acidente dos autos, tem a autoridade de caso julgado, tendo por efeito ilidir a presunção constante do art. 27/1-c. Ou seja, na decisão penal foi julgado não provado que o consumo de estupefacientes tivesse sido causal do acidente dos autos. Ao réu terão igualmente que aproveitar os efeitos reconhecidos pelo artigo 624 do CPC à decisão penal absolutória. Ou seja, o réu goza da presunção da inexistência dos factos que constituíam o crime de condução sob o efeito de produtos estupefacientes. Provou-se que “a causa do acidente nada teve a ver com o facto de ter acusado o consumo de estupefacientes e conduzir sob o efeito destes”. Pelo que está ilidida a presunção legal iuris tantum do nexo de causalidade entre o consumo de substância psicotrópica e o acto de condução causador do acidente, o que implica a improcedência do direito de regresso.
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Apreciação:
Sobre o direito de regresso da empresa de seguros dispõe o art. 27/1-c do DL 291/2007:
1 - Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
[…]
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos;
[…]
Brandão Proença explica que a norma que se pode retirar desta disposição “justifica-se não só pela censura individual (o direito de regresso emite um sinal nitidamente reprovador) mas também pela necessidade de não agravar os riscos cobertos pelo contrato, fazendo suportar definitivamente pela seguradora a carga reparadora” (Direito de regresso das seguradoras…, Julgar n.º 46, 2022, pág. 111).
Isto na linha da dupla finalidade do direito de regresso de que fala Mafalda Miranda Barbosa, citada por Brandão Proença (pág. 112): “[…] o direito de regresso comunga de uma dupla finalidade: por um lado, ele deve ser visto como um mecanismo de salvaguarda do sentido da responsabilização do lesante; por outro lado, ele deve ser entendido como um instrumento de salvaguarda do equilíbrio contratual que foi quebrado.” (Direito de regresso no caso de seguro automóvel obrigatório: a taxa de alcoolémia superior ao legalmente permitido e o problema de ‘causalidade’, Cadernos de direito privado, n.º 50, Abril/Junho de 2015, pág. 45).
Registe-se, pois, desde já: sem possibilidade de censura/responsabilização do condutor e sem risco acrescido, não se justifica o direito de regresso.
E note-se: o direito de regresso pode ser - é quase sempre -, em termos práticos, muito mais grave que uma qualquer coima ou pena criminal e, por isso, deve ser levado a sério: aquele que ganha um salário mínimo e for condenado a reembolsar 10.000€ com juros à taxa legal, onze vezes menos do que é pedido neste processo, fica preso, em termos económicos, para o resto da vida, pois que fica onerado com uma dívida de que nunca se conseguirá livrar.
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Como um dos seus pressupostos, o direito de regresso depende, em relação ao álcool, do facto de o condutor estar a conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida (art. 27/1-c do DL 291/2007).
Em relação ao consumo de estupefaciente, parece, a uma primeira leitura, estar apenas dependente da presença de estupefaciente, pois que a lei parece exigir apenas que o consumo seja “acusado”.
Mas esta interpretação linear poria logo em causa aquelas duas finalidades do direito de regresso e conduziria a uma óbvia inconstitucionalidade, por violação do princípio da igualdade.
Com efeito, exigindo a lei, para o álcool, a ultrapassagem de uma taxa legalmente admitida, está logicamente a dizer que alguém com, por exemplo, uma taxa de álcool de 0,49 g/l de sangue está fora do alcance do direito de regresso da seguradora, por a lei considerar que essa taxa não é suficiente para influenciar de forma significativa a capacidade de condução.
Se, em relação ao estupefaciente, para o direito de regresso da seguradora bastasse a presença de estupefaciente, então, a lei deixaria de se preocupar com a influência do consumo na condução, “sancionando” qualquer consumo de estupefaciente, directo ou indirecto (como aquele que acontece quando alguém está perto de uma pessoa que fuma) e fosse qual fosse a quantidade consumida.
Ou seja, o direito de regresso deixaria de estar justificado pela censura individual (o condutor podia nem se ter apercebido do consumo) e pela necessidade de não agravar os riscos cobertos pelo contrato, pois que não estaria dependente do aumento do risco.
Assim, por exemplo, um indivíduo com 0,49 g/l de álcool no sangue (que pode corresponder a ter bebido dois copos de vinho de 125 ml), que está por isso no limiar de uma condução presumida insegura devido à influência negativa do álcool, não cairia sob a alçada do direito de regresso da seguradora, enquanto um indivíduo não consumidor que tivesse estado junto a um amigo fumador de haxixe e que acusasse a presença, mínima que fosse, de canábis ficaria sujeito ao direito de regresso da seguradora.
A desproporcionalidade seria evidente, tal como o seria a incongruência valorativa, pelo que esta leitura da lei levaria a uma norma claramente inconstitucional por violação do princípio da igualdade (art. 13 da CRP), sem qualquer justificação material, visto que a lei já não teria em vista evitar um risco acrescido - pois que não há ninguém que diga que um consumo, por mínimo que seja, de marijuana ou haxixe tem influência negativa na condução – e uma conduta censurável (ou possibilidade de responsabilização), enquanto para uma conduta mais censurável (condução com álcool) já exigia o consumo acima de uma certa quantidade para que se verificasse o direito de regresso.
Saliente-se desde já o que é dito na página 7 do estudo publicitado pela EU (citado mais à frente): “O risco acrescido de acidente é menor para quem conduz com capacidade diminuída devido ao efeito de canábis do que para quem conduz com capacidade diminuída devido ao efeito do álcool” ou, na página 15: “A condução com capacidade diminuída por consumo de álcool continua a ser um problema de segurança rodoviária e de saúde pública muito maior do que a condução com capacidade diminuída por consumo de canábis […], uma vez que a diminuição das capacidades de condução é mais grave no caso do álcool e que é muito maior o número de condutores que consomem álcool do que o dos condutores que consomem canábis […].” […]. No mesmo sentido, veja-se o que se dizia na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 69/VIII, que deu origem ao aditamento do n.º 2 do artigo 292 do CP: “A condução perigosa constitui uma das principais causas da sinistralidade rodoviária e está normalmente associada ao excesso de velocidade, à prática de manobras perigosas, à condução sob influência do álcool ou em estado de embriaguez e, em menor grau, à condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.”
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Assim, a leitura correcta daquela disposição legal é aquela que exija para a existência do direito de regresso da seguradora – por só isso estar de acordo com a sua dupla finalidade – que o condutor esteja com a sua capacidade de exercício da condução diminuído devido à ingestão do álcool ou do estupefaciente, não bastando para tal a simples existência do álcool ou de estupefaciente no sangue. Só então se verifica a censurabilidade da conduta e o risco acrescido.
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Para confirmação de várias das afirmações que foram feitas acima, vejam-se as seguintes passagens do estudo Canábis e condução: perguntas e respostas para a elaboração de políticas, Serviço das publicações da União Europeia, Luxemburgo, do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência e Canadian Centre on Substance Use and Addiction (2018 – “Este documento conjunto de informação política baseia-se nos dados apresentados no Terceiro Simpósio Internacional sobre a condução sob o efeito de drogas, que teve lugar a 23/10/2017 em Lisboa. O simpósio representou um trabalho de colaboração entre o Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência (EMCDDA), o Centro Canadiano de Consumo de Drogas e Toxicodependência (Canadian Centre on Substance Use and Addiction, CCSA), o Programa Internacional do Instituto Nacional de Toxicodependência dos Estados Unidos (US National Institute on Drug Abuse, NIDA) e a Fundação para a Droga da Nova Zelândia (New Zealand Drug Foundation). Este evento de alto nível contou com mais de 100 participantes, reunindo investigadores, profissionais de saúde e peritos em política de mais de 30 países.” – pág. 4):
Página 4: Terminologia
Condução com capacidade diminuída devido à canábis: o acto de uma pessoa conduzir um veículo a motor quando a sua capacidade de o fazer se encontra prejudicada pelos efeitos cognitivos ou psicomotores do tetrahidrocanabinol (THC) presente na canábis.
Condutor com teste de canábis positivo: alguém que conduz um veículo a motor com níveis detectáveis de THC no sangue, na saliva ou na urina […]. A sua condução pode não ser necessariamente prejudicada pela canábis, por exemplo, se o nível de THC reflectir um consumo de canábis que ocorreu no passado mas ainda é detectável.
Condução sob o efeito de canábis: dependendo da jurisdição, pode referir-se a um condutor que tenha uma diminuição mensurável das capacidades cognitivas ou psicomotoras, um valor superior a um nível definido de THC no sangue, na saliva ou na urina, ou qualquer vestígio de THC no sangue, na saliva ou na urina.
Pág. 5:
[…]
O consumo de canábis afecta o desempenho cognitivo e psicomotor de formas que podem prejudicar a condução […] A canábis contém uma série de canabinoides, sendo os mais importantes o tetra-hidrocanabinol (THC) e o canabidiol (CBD), que produzem efeitos muito diversos no cérebro. […]
[…]
Pág. 6
[…]
A avaliação dos riscos inerentes à condução com capacidade diminuída por consumo de canábis é ainda dificultada pelo facto de vários factores poderem determinar se um dado nível de consumo de canábis está associado a uma diminuição da capacidade de condução. Entre esses factores inclui-se o método de consumo (inalação ou ingestão […]), a circunstância de o consumidor ser ou não um consumidor habitual e o facto de a canábis ser consumida em conjunto com outras substâncias, como o álcool […].
[…]
Pág. 6/7
[…] a presença de THC no sangue ou na urina (medida algumas horas após um acidente) não significa necessariamente que o condutor apresentasse capacidade diminuída devido ao efeito de canábis no momento do acidente. […] Apenas indica que houve um consumo de canábis no passado recente por alguém que consome canábis ocasionalmente, ou há mais tempo, se a pessoa consumir canábis regularmente.
Pág. 7
[…] o consumo de canábis está associado a um ligeiro aumento do risco de acidente. Estima-se que os condutores que consumiram canábis recentemente tenham, em média, uma probabilidade 1,5 a 2 vezes maior de se envolverem em acidentes de viação […]. […]. O risco acrescido de acidente é menor para quem conduz com capacidade diminuída devido ao efeito de canábis do que para quem conduz com capacidade diminuída devido ao efeito do álcool […]. Uma taxa de álcool no sangue (TAS) entre 0,08 % e 0,12 % […], por exemplo, aumenta o risco de acidente 5 a 30 vezes […].
[…]
3. A presença de baixas concentrações de THC no sangue não implica automaticamente o consumo recente de canábis, podendo também ser resultado de um consumo no passado para alguém que consome canábis regularmente e que, assim, pode não ter sofrido diminuição das capacidades.
[…]
[…] em consumidores diários ou quase diários, o THC deposita-se no tecido adiposo e, em seguida, volta a ser libertado na corrente sanguínea, o que resulta na presença de alguma concentração de THC no sangue por longos períodos.
[…]
Pág. 8
[…]
As políticas para reduzir a condução com capacidade diminuída por consumo de canábis têm sido frequentemente concebidas com base naquelas que provaram ser eficazes na redução da condução com capacidade diminuída por consumo de álcool nos últimos 40 anos […]. Deste modo, abrangeram:
- testes realizados na estrada de provável diminuição das capacidades relacionada com canábis, utilizando (a) um teste de diminuição das capacidades comportamentais ou (b) um teste da saliva administrado por um agente da polícia;
- nos condutores que não passam no teste realizado na estrada (por o teste da saliva ser positivo ou o agente da polícia determinar que o condutor apresenta capacidade diminuída), confirmação da infracção através de um teste para medir a concentração de THC no sangue;
- definição jurídica da condução com capacidade diminuída devido ao efeito de drogas, com base num nível específico de THC no sangue ou, ocasionalmente, na saliva […].
[…]
Pág. 9
[…]
[Noutras jurisdições um] teste à saliva realizado na estrada pode identificar os condutores que consumiram canábis recentemente e que têm, potencialmente, capacidade diminuída devido ao seu efeito. Os condutores com rastreio positivo no teste à saliva são geralmente sujeitos a uma colheita de sangue para testar a concentração de THC. Se apresentarem uma concentração de THC no sangue superior ao limite legal, considera-se que têm uma capacidade diminuída devido ao efeito de canábis ou que estão a conduzir sob o efeito da mesma. O limite determinado terá um impacto significativo no número de pessoas acusadas judicialmente. […].
A utilização de testes biológicos de THC para avaliar a diminuição da capacidade de condução apresenta desafios. Em primeiro lugar, os resultados dos rastreios à saliva e os das análises de sangue muitas vezes não correspondem. No Reino Unido, nos casos em que os rastreios à saliva foram positivos, verificou-se que 32 % das análises de sangue estavam no limite legal ou abaixo […]
Pág. 10
Em segundo lugar, a quantidade de THC no sangue ou na saliva não está tão fortemente relacionada com a diminuição da capacidade de condução quanto a TAS está associada à diminuição da capacidade de condução devido ao efeito do álcool. A proporção de indivíduos que apresentam uma diminuição das capacidades em vários domínios de desempenho aumenta progressivamente com o aumento das concentrações de THC no sangue, mas a taxa de aumento é bastante baixa e os primeiros indícios de diminuição da capacidade foram demonstrados em concentrações de THC entre 2 e 5 ng/ml […].
Meta-análises que combinam os dados de um grande número de estudos concluíram que, em geral, quanto maior a concentração estimada de THC no sangue, maior a diminuição da capacidade de condução, mas que os consumidores frequentes de canábis herbácea apresentam menor diminuição da capacidade do que os consumidores pouco frequentes (a menos que o consumo seja combinado com álcool), na mesma dose. Estudos realizados até ao momento indicam que uma concentração de cerca de 3,7 ng/ml de THC no sangue provoca uma diminuição da capacidade de condução a um nível equivalente a uma taxa de álcool no sangue (TAS) de 0,05 % (0,5 mg/ml) […].
Verifica-se, além disso, um aumento inicial muito acentuado na concentração de THC no sangue quando um cigarro de canábis é fumado, seguido de uma queda rápida […]. A queda rápida do nível de THC no sangue ocorre no período em que a diminuição das capacidades psicomotoras e cognitivas é mais pronunciada, começando 90 minutos após o consumo e durando 2 a 3 horas.
No entanto, o THC também pode ser detectado no sangue em concentrações muito baixas, muito tempo depois do desaparecimento de qualquer diminuição da capacidade de condução relacionada com a canábis, particularmente no caso de consumidores frequentes da mesma. […]
[…]
Como já foi referido, não existe uma relação directa entre os níveis de THC no sangue e uma diminuição das capacidades, [….]
[…]
Pág. 11
[….] em muitos países da União Europeia, a concentração de THC usada para definir uma infracção relacionada com a condução sob efeito de canábis foi estabelecida entre 1 e 2 ng/ml de THC no sangue (ng/ml) (ver quadro 1 [mais à frente o estudo diz: Em Portugal, onde não existe nenhum limite legal]). […]
[…]
Comités de peritos em diferentes países recomendaram concentrações de 5 ng/ml (Reino Unido) com base no risco de acidentes rodoviários [….]. No entanto, as concentrações de THC utilizadas para definir limiares de infracção tendem a ser mais baixos do que as recomendadas pelos comités de peritos. Por exemplo, o Reino Unido adoptou um nível de 2 ng/ml, usando o limite inferior de quantificação, levando em conta a potencial exposição acidental. Esta medida reflecte uma abordagem de tolerância zero em relação à condução sob o efeito de canábis, em vez de uma associação à diminuição das capacidades.
[…]
Pág. 12
De que forma é possível sensibilizar o público e os condutores de modo a desencorajar a condução com capacidade diminuída por consumo de canábis?
[…]
Os programas que reduziram com êxito a condução com capacidade diminuída por consumo de álcool combinaram a sensibilização para os riscos de conduzir depois de beber com a aplicação rigorosa das leis que proíbem a condução com capacidade diminuída por consumo de álcool (definida por níveis específicos de TAS).
*
O que é dito atrás estava na linha do que antes de 15/08/2017 se verificava nos domínios contra-ordenacional e penal, como se passa a demonstrar.
Até 1998 não havia regulamentação da punição nem da fiscalização da condução sob o efeito do estupefaciente.
Na versão original do Código da Estrada de 1994 – que é o CE ainda hoje em vigor - a proibição e a punição da condução sob o efeito do álcool ou de estupefacientes estava prevista no seu artigo 87, mas falava-se na proibição “nos termos estabelecidos em diploma próprio.”
A situação alterou-se com o DL 2/98, de 03/01, com o qual a previsão da proibição e punição passou para o art. 81 do CE com o seguinte teor:
1 - É proibido conduzir sob a influência do álcool ou de substâncias legalmente consideradas estupefacientes ou psicotrópicas.
2 - Considera-se sob influência do álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l […]
4 - Quem conduzir sob influência do álcool é sancionado com coima de 20000$00 a 100000$00, salvo se a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,8 g/l, caso em que a coima é de 40000$00 a 200000$00.
5 - Quem conduzir sob influência de substâncias legalmente consideradas estupefacientes ou psicotrópicas é sancionado com coima de 40000$00 a 200000$00.
A qualificação das contra-ordenações correspondentes passou a constar dos artigos 146 e 147 do CE:
O art. 146/-m do CEversão98 previa como grave apenas a contra-ordenação da condução sob influência do álcool;
E o art. 147 do CEv98 previa como muito graves as seguintes contra-ordenações na parte que importa:
i) A infracção prevista na alínea m) do artigo anterior, quando a taxa de álcool no sangue for superior a 0,8 g/l;
j) A condução sob influência de substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas.
A regulamentação da fiscalização, ao abrigo do art. 164 do CEv98, constava do Decreto Regulamentar 24/98, de 30/10, e da Portaria 1006/98, de 30/11.
O artigo 9 do Dec. Regulamentar 24/98 estabelecia que os condutores e peões intervenientes em acidente de viação que careçam de cuidados clínicos devem ser submetidos a exame de rastreio do estado de influenciado por substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, exame esse que era composto por um exame médico, completado, quando necessário (por se manterem os indícios), por exames laboratoriais através de amostra biológica e quando o exame de rastreio demonstrasse que o examinando se encontrava influenciado por substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, o médico devia providenciar a remessa de uma amostra biológica de sangue e outra de urina, para a realização de análises toxicológicas de confirmação do resultado analítico daquele exame.
A regulamentação disto era concretizada na Portaria 1006/98, de 30/11 [rectificada em Dezembro98], com o seguinte capítulo na parte que importa:
CAPÍTULO II
Detecção da influência de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas
SECÇÃO I
Exame médico de rastreio
17.º São submetidos ao exame médico de rastreio referido no n.º 2 do artigo 9.º do Decreto Regulamentar 24/98, de 30/10, os indivíduos que revelem indícios de estarem influenciados por substâncias estupefacientes ou psicotrópicas, nomeadamente por se encontrarem numa das situações previstas no guia orientador constante do anexo III ao presente diploma e que dele faz parte integrante.
18.º No exame médico de rastreio referido no número anterior deve ser observado o seguinte:
[…]
SECÇÃO II
Exame analítico de rastreio
[…]
21.º Caso persistam os indícios de que o examinando pode estar sob a influência de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas o médico que procedeu à observação clínica deve proceder a exame laboratorial de rastreio.
22.º As substâncias estupefacientes ou psicotrópicas objecto de pesquisa para análise são as indicadas no quadro n.º 1 do anexo V ao presente diploma que dele faz parte integrante.
QUADRO 1: metabolitos de marijuana:
THC (ácido 11 – nor delta 9 tetrahidrocanabinol) e
THCA (11 - hidroxi tetrahidrocanabinol)
[…]
25.º São considerados positivos os exames referidos no número anterior quando os seus resultados sejam iguais ou superiores aos constantes do quadro n.º 2 do anexo V ao presente diploma e que dele faz parte integrante
[QUADRO 2 Concentrações mínimas definidoras de positividade: substâncias ou grupo de substâncias: metabolitos de marijuana.
Concentrações mínimas (ng/ml):
urina: 50; sangue 80]
26.º Concluído o exame referido no número anterior, o médico deve preencher, em triplicado, o impresso do modelo do anexo e se o resultado for positivo proceder à colheita de sangue e urina com vista ao cumprimento ao disposto no n.º 3 do artigo 9.º do DR 24/98 […].
[…]
28.º O serviço de urgência hospitalar deve obter um volume de 20 cc de sangue venoso e um volume de 50 cc de urina, para o exame toxicológico de confirmação de substâncias estupefacientes ou psicotrópicas.
[…]
SECÇÃO III
Exame toxicológico de confirmação de estupefacientes ou psicotrópicos
[…]
32.º São considerados influenciados por estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, para efeitos do disposto no artigo 147.º, alínea j), do Código da Estrada, os examinandos que no exame toxicológico efectuado pelo instituto de medicina legal apresentem concentrações de valor igual ou superior a qualquer dos constantes do quadro n.º 2 do anexo V.
[…]
Assim, em 1998, quando pela primeira fez se previu e concretizou a fiscalização da condução sob influência de estupefacientes, a conduta cuja previsão se previa era tão grave quanto o consumo de álcool com uma taxa superior a 0,8 g/l de sangue, mas só era considerado sob a influência de estupefacientes (n.º 32 da Portaria de 1998) quem estivesse com mais de 80 ng/ml de estupefacientes no sangue (ou 50 ng/ml na urina).
Ou seja, o sancionamento da contra-ordenação dependia de uma quantidade mínima determinada legalmente de álcool ou de estupefaciente que fosse suficientemente grave para fazer presumir uma condução com capacidade diminuída devido à ingestão daqueles e era antecedida de três exames: um exame médico de rasteio a que se seguiria, se persistissem indícios de influenciado, um exame analítico de rastreio; e um exame toxicológico de confirmação, se o exame analítico fosse positivo para o que era necessário que se ultrapassassem determinados valores nos metabolitos de marijuana e que tinha que levar, para ser positivo, a esses mesmos valores.
E a nível penal a situação era ainda mais exigente (não bastava a presunção derivada da influência confirmada naqueles termos), pois que o art. 292 do CP, com um número 2 introduzido pela Lei 77/2001, de 13/07, prevê:
Art. 292 do CP: Condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas
1 - Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - Na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.
Na exposição de motivos da Proposta de lei 69/VIII, que deu origem à referida lei escreve-se:
[…]
A condução perigosa constitui uma das principais causas da sinistralidade rodoviária e está normalmente associada ao excesso de velocidade, à prática de manobras perigosas, à condução sob influência do álcool ou em estado de embriaguez e, em menor grau, à condução sob influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.
[…]
Por outro lado, criminaliza-se a condução sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo, por via do aditamento de um n.º 2 ao artigo 292 do Código Penal. A fundamentação da iniciativa incriminadora é idêntica à subjacente ao crime de condução em estado de embriaguez previsto no n.º 1 do referido artigo, dado que em ambas as situações se pode presumir perigo para a segurança da circulação rodoviária.
Este crime não se confunde com a contra-ordenação prevista no Código da Estrada (alínea j) do artigo 147), nem com o crime de condução perigosa já previsto no artigo 291 no CP. Ao contrário do que sucede no âmbito do ilícito de mera ordenação social, ter-se-á de provar nesta nova incriminação que o agente não estava em condições de conduzir com segurança. Mas não será necessário provar a criação de um perigo concreto para bens jurídicos como a vida, a integridade física ou bens patrimoniais de valor elevado, assim se distinguindo tal incriminação do crime previsto no artigo 291, que é mais grave.
Portanto, um sistema sancionatório minimamente coerente e compatível com o regime do direito de regresso (consagrado então no art. 19/1-c do DL 522/85, de 31/12, nesta parte sem alterações): aquele que estivesse a conduzir sob a influência de um consumo de estupefaciente que acusasse um certo limite mínimo no organismo (comprovado por uma sequência de três exames, todos necessariamente positivos: um exame médico de rastreio, uma exame analítico de rastreio e um exame toxicológico de confirmação), podia ser condenado numa coima por uma contra-ordenação, pois que se presumia, que ele não estava em condições de conduzir com segurança; se existissem outras circunstâncias que permitissem a prova efectiva de que ele não estava efectivamente em condições de conduzir com segurança podia ser condenado numa pena por um crime. Qualquer destas situações permitia sujeitar este condutor ao direito de regresso, pois que em qualquer delas, haveria uma conduta censurável e um aumento presumido ou efectivo de risco.
*
Em 2007, sem qualquer explicação do domínio público geral, o legislador alterou o regime contra-ordenacional (e, reflexamente, o regime penal).
A regulamentação da fiscalização (da proibição da condução que agora, no art. 81 do CE, faz referência aos relatórios dos exames médicos ou periciais, o que não tem relevo para o caso), agora ao abrigo do artigo 157 do CE, passou a estar prevista no capítulo II do Regulamento de Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, de 17/05, e na Portaria 902-B/2007, de 13/08.
O art. 157 do CE e os artigos 8 a 13 capítulo II do regulamento prevêem a avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas, isto é, qualquer substância que tenha influência negativa na capacidade para o exercício da condução. A detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio efectuado através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue e serve apenas para indiciar a presença de substâncias psicotrópicas e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, realizado numa amostra de sangue, só podendo ser declarado influenciado por substâncias psicotrópicas o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação (a que é equiparado o atestado do médico que realizasse um exame médico - quando, após repetidas tentativas de colheita, não se lograsse retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste - para avaliação do estado de influenciação por substâncias psicotrópicas: art. 13 do Regulamento).
Tudo isto é desenvolvido na referida Portaria 902-B/2007, capítulo II, n.ºs 14 a 26:
CAPÍTULO II
Avaliação do estado de influenciado por substâncias psicotrópicas
Secção I
Exame de rastreio
14.º Nos exames de rastreio a efectuar, pelas entidades fiscalizadoras, em amostras de saliva, suor ou urina, o agente de autoridade deve utilizar os equipamentos aprovados e usar os procedimentos constantes do despacho de aprovação para cada equipamento.
15.º Nos exames de rastreio na urina, realizado em estabelecimentos da rede pública de saúde, são utilizados imunoensaios apropriados, tendo em conta as substâncias e concentrações previstas no quadro n.º 2 do anexo v, devendo o agente de autoridade que conduzir o examinando entregar ao médico daquele estabelecimento um impresso do modelo do anexo iv.
[quadro 2 – valores de concentração para exame de rastreio na urina. Grupo de substâncias: Canabinóides (…). Concentração (ng/ml): 50]
16.º Os exames previstos no número anterior devem ser executados, de acordo com os procedimentos do fabricante ou de validação interna, numa amostra de urina com o volume mínimo de 30 ml, sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo v.
17.º Nos exames de rastreio no sangue, realizado pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, I. P., são utilizados imunoensaios apropriados, tendo em conta as substâncias previstos no quadro n.º 1 do anexo v.
[Quadro 1 SUBSTÂNCIAS A ANALISAR.
Grupo: Canabinóides […].
Substância:
∆ 9 Tetrahidrocanabinol (THC)
11 - Hidroxi - ∆ 9 tetrahidrocanabinol (11-OH-THC)
11 - Nor – 9- carboxy- ∆ 9 tetrahidrocanabinol (THC-COOH)]
18.º Se o resultado do exame de rastreio previsto no n.º 15.º for negativo, o médico deve:
a) Preencher, completa e correctamente, o impresso do modelo do anexo iv, colocando a sua vinheta de identificação profissional e o carimbo do estabelecimento no original e no triplicado; b) Entregar o original ao agente de autoridade, o duplicado ao examinado e arquivar o triplicado no estabelecimento de saúde.
19.º Se o resultado do exame referido no número anterior for positivo ou na impossibilidade de realização daquele exame, o médico deve providenciar a obtenção de um volume de sangue venoso destinado a exame de rastreio e confirmação […]
[…]
Secção II
Exame de confirmação
22.º O exame de confirmação da presença de substâncias psicotrópicas no sangue destina-se a identificar a substância ou substâncias e ou seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentaram resultados positivos.
23.º Considera-se que o exame de confirmação é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo v ou de outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança.
[…]
Secção III
Exame médico
25.º No exame médico destinado a avaliar o estado de influenciado por substâncias psicotrópicas referido no n.º 1 do artigo 13.º do Regulamento para a Fiscalização da Condução sob Influência do Álcool ou de Substâncias Psicotrópicas deve ser observado o seguinte:
A - Observação geral: […]; B - Estado mental: […]; C - Provas de equilíbrio: […]; D - Coordenação dos movimentos: […]; E - Provas oculares:[…]; F - Reflexos: […] H - Quaisquer outros dados que possam ter interesse para comprovar o estado do observado; I - Declarações do observado: […]: […].
[…]
Assim, a partir de 15/08/2007 deixou de importar a quantificação de canábis no sangue, isto é, não há limites mínimos; basta a simples presença de estupefaciente; o estado de influenciado passou a ser apenas uma confirmação de presença de estupefaciente; só há dois exames sucessivos: o de rastreio e o de confirmação, sendo que o de rastreio no sangue se confunde com o exame de confirmação; só há exame médico no caso de não ser possível a recolha de sangue.
Basta pois, em princípio, a simples presença de uma qualquer quantidade de canábis, mesmo que inactiva, e seja qual for a forma pela qual tenha sido ingerido, mesmo, por isso, a indirecta, para que um indivíduo seja punido por uma contra-ordenação tão grave quanto a condução sob a influência de 0,8 g/l de álcool no sangue (se tal não for rejeitado pelos tribunais criminais com base noutras regras ou princípios ou com base nas razões referidas a seguir e também tendo em conta a profunda incongruência referida a seguir).
Isto apesar de o exame de confirmação só se realizar se, no caso do exame de rastreio ter sido feito na urina, o indivíduo apresentar uma concentração de 50 ng/ml, pelo que se fizer este exame de rastreio na urina e apresentar apenas 49 ng/ml já não faz exame de confirmação e pode ir conduzir.
Ou seja, apesar da simples presença mínima de canábis levar à prática de uma contra-ordenação muito grave, ao mesmo tempo a lei admite que um indivíduo que indique a presença de 49 ng/ml de canábis na urina - que eram equivalentes a 80 ng/ml no sangue na Portaria 1006/1998 - pode conduzir sem estar a cometer qualquer contra-ordenação.
Por outro lado, se um indivíduo apresentar uma qualquer presença de THC-COOH considera-se como sob a influência de estupefaciente e é punido com uma contra-ordenação.          
Isto apesar de o THC-COOH não ter acção farmacológica, por ser um metabolito inactivo, não exercendo os efeitos psicoactivos dos canabinóides, não influenciando, assim, o indivíduo na sua condução.
Neste sentido veja-se aquilo que sistematicamente tem vindo a ser dito pelo Instituto Nacional de Medicina Legal: no acórdão do TRC de 13/07/2016, proc. 73/14.9GAPNL.C1, dá-se conta de um relatório do INML junto aos autos, onde se lê: "nesta amostra foi apenas detectado o THC-COOH. Trata-se de um metabolito que é inactivo, não exercendo os efeitos psicoactivos dos canabinóides, não influenciando, assim, o indivíduo na sua condução. A presença desta substância no organismo é unicamente indicativa do consumo de canabinóides, não se podendo estabelecer uma relação directa entre a sua presença no sangue e eventuais alterações na aptidão física, mental ou psicológica do indivíduo" e mais à frente, no campo das observações: A substância detectada, THC-COOH, corresponde a um metabolito inactivo dos canabinóides podendo persistir no organismo durante vários dias”; no ac. do STJ de 25/03/2021, proc. 313/17, citado abaixo: “A substância detectada e referida no artigo anterior, é um metabolito inactivo do THC cujo período de eliminação pode-se prolongar por vários dias após a exposição/consumo da canábis. Considerando que se trata de um metabolito farmacologicamente inactivo, ou seja, sem efeito farmacológico, embora presente no sangue, não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução”; no ac. deste TRL de 03/05/2018, proc. 7907/16.1T8SNT.L1-2: o ácido 11-nor-∆9-tetrahidrocanabinol (THC-COOH) não tem acção farmacológica; como uma testemunha médica, apresentada pela seguradora, esclareceu: é um metabolito não activo e se o resultado fosse positivo para este mas negativo para o metabolito activo “teria informado [que…] não podemos considerar que tivesse efeitos sobre qualquer acto da vida diária, nomeadamente o acto de conduzir […]”.
No ac. do TRG de 14/10/2019, proc. 3/18.9PTBRG.G1, embora se aceite que não é indiferente dizer-se que um arguido conduz sob o efeito de THC-COOH ou de THC, sugere-se, face a um estudo norte-americano, que o THC-COOH também pode ser relevante [diz-se: “embora, salvo o devido respeito, do estudo acima referido (pg. 284 e 285) não se retire a conclusão de que o THC-COOH é um metabolito inactivo, não exercendo os efeitos psicoactivos dos canabinóides, nos termos expostos nos acórdãos das Relações de Lisboa e Coimbra acima citados]; o estudo em causa, identificado como o capítulo 12, da autoria de Barry K. Logan, Marijuana and Driving Impairment, páginas 277 a 293, do livro Marijuana and the Cannabinoids Edited by Mahmoud A. ElSohly, The School of Pharmacy, The University of Mississippi; Humana Press, Totowa, New Jersey, 2007, está baseado em medidas e concepções que não há a certeza de serem idênticas às nossas; a esse estudo prefere-se um estudo nacional, de 2010 (que nem sequer é crítico da legislação em causa), que, sem especial fundamentação, certamente por parecer evidente aos seus autores, diz, de acordo com tudo aquilo que o INML continua a dizer:
“[…] b) Relativamente aos canabinóides a Lei define que se deva procurar o Δ9-Tetrahidrocanabinol (THC) e os seus metabolitos 11- hidroxi-Δ9-Tetrahidrocanabinol (THC-OH) e 11-nor-9-carboxy-Δ9-Tetrahidrocanabinol (THC-COOH). Enquanto o THC e o THC-OH são activos do ponto de vista farmacológico, o THC-COOH não é. No entanto, o metabolito carboxilado é o que apresenta maior tempo de semivida (t1/2), ou seja, é o que pode ser mais frequentemente detectado. Isto significa que a sua detecção, apesar de frequente e perfeitamente consagrada na Lei, não deverá ser tida em conta para avaliação do estado de influência, pela simples razão que não tem afinidade para os receptores dos canabinóides; […]”
(pág. 13 do artigo de revisão Procedimentos técnicos, éticos e legais da competência do médico, no cumprimento da lei da fiscalização da condução rodoviária sob influência do álcool e substâncias psicotrópicas, Ricardo DINIS-OLIVEIRA et al, Procedimentos técnicos, éticos e legais da competência do..., Acta Med Port. 2010; 23(6):1059-1082, publicado em https://www.actamedicaportuguesa.com/revista/index.php/amp/article/viewFile/743/420).
Também no resumo (apenas se tem acesso a este) da tese de doutoramento de Helena Maria de Sousa Ferreira e Teixeira, Determinação de canabinóides em amostras biológicas por cromatografia líquida de alta resolução com espectrometria de massa: aplicação em toxicologia forense, 31/07/2008 (http://hdl.handle.net/10316/7505), se diz que “a presença de Δ9-THC ou de Δ9-THC-OH em sangue serão determinantes para a afirmação de consumo recente e de estado de influenciado, uma vez que estes são os compostos activos” e fala-se no Δ9-THC como a única determinante de um estado de influenciado.
Isto tudo tornou este regime inutilizável para o efeito do direito de regresso.
Isto é, (i) não importando – para a contra-ordenação - a quantificação dos canabinóides nem se estabelecendo limites mínimos, e (ii) dando-se relevo ao THC-COOH, que é um metabolito inactivo, o facto de alguém cair no âmbito da previsão da contra-ordenação no art. 81/5 do CE já não é, por si, necessariamente equivalente a uma situação de censurabilidade/responsabilização nem de aumento de risco e, por isso, já não serve para o preenchimento inequívoco do direito de regresso. Pois que o facto de alguém ser condenado pela prática da contra-ordenação do art. 81 do CE pode querer apenas dizer que se está perante alguém que esteve junto a um amigo que estava a fumar marijuana ou haxixe e que o consumiu indirectamente em níveis mínimos e já há tempo suficiente para não ter qualquer influência na capacidade de condução.
Isto é, parafraseando o estudo citado da UE, este regime, que não tem em conta recomendações periciais de um limite mínimo, é uma legislação que “reflecte uma abordagem de tolerância zero em relação à condução sob o efeito de canábis, em vez de uma legislação que associe a contra-ordenação à diminuição das capacidades, pelo que não pode servir para levar à conclusão de uma condução com capacidade diminuída.
Ou seja, um actual exame de confirmação que dê positivo apenas pode servir para prova de que o condutor tem canábis no seu organismo (podendo ser uma quantidade mínima e apenas na sua forma inactiva), pelo que não serve de base de presunção de uma condução com capacidade diminuída, ou seja, não pode servir de base da prova deste pressuposto do direito de regresso.
Em suma: a condenação pela contra-ordenação do art. 81/5 do CE não serve de base da presunção da condução com capacidade diminuída.
E um exame médico que tenha servido de base à condenação pela contra-ordenação, se tiver sido feito, como o será normalmente, tendo em vista que o que interessa à contra-ordenação é, nos termos da lei actual, a simples presença do estupefaciente no organismo e não um estado de presumida capacidade diminuída para o exercício da condução, não seria também garantia de uma suficiente base probatória deste pressuposto do direito de regresso.
*
Já se estiver provada a prática do crime de condução sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, do art. 292/2 do CP, como ele tem como seu elemento objectivo do tipo o facto de que o condutor não estava, efectivamente, em condições de conduzir com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, poderá levar à prova deste pressuposto do direito de regresso.
Mas a prova daquele elemento objecto terá necessariamente de passar, primeiro, pela prova de que o condutor estava sob a influência de estupefaciente para o que, a partir de 15/08/2007, não basta o exame de confirmação actual, pois que esse, por si, apenas comprova a presença de estupefaciente no sangue. Quando o crime do art. 292/2 foi aditado ao CP estava em vigor o regime anterior a 15/08/2007 (grosso modo: o regime da Portaria 1006/98) para o qual a condução sob a influência de estupefacientes correspondia ao estado de influenciado previsto na Portaria 1006/98, o que pressuponha limites mínimos que actualmente não existem.
Assim, para a prova dessa base terá que haver um exame médico – que para convencer, terá que revelar que procurou apurar um estado de influência (nos termos do art. 32 da Portaria 1006/98) e não a simples presença de estupefacientes -, ou um exame de confirmação quando cumulado com uma série de outros elementos que lógica e necessariamente terão de ser também os que seriam obtidos pelo exame médico que fosse feito ao condutor nos termos do n.º 25 da Portaria 902-B/2007 (que dificilmente se vê que possam ser objecto de uma análise segura, em primeira mão, pelo juiz, que não é médico; uma coisa é fazer a apreciação de uma perícia, outra é fazer a perícia). E aquele exame de confirmação ainda terá de revelar a presença de estupefaciente/canábis (activo: não servindo pois para o efeito o THC-COOH) em quantidade suficiente para convencer o juiz, em conjunto com aqueles elementos, de que tem uma suficiente base probatória para concluir pela efectiva capacidade diminuída para o exercício da condução, pois que não se está perante uma contra-ordenação mesmo que entendida nos termos anteriores a 15/08/2007 (em que se exigia a prova da capacidade diminuída, embora em termos de simples presunção), mas perante um crime que se distinguia dela por exigir uma prova efectiva dessa diminuição de capacidade.
Mais ou menos neste sentido, veja-se Jorge Reis Bravo, na sua tese de doutoramento, Corpo e prova em processo penal, Admissibilidade e valoração, Almedina, Out2020, pág. 444.
[…] a aplicação conjugada dos artigos 12/5 do RFASP e 23 da Portaria 902-B/2007 não pode ser mobilizada para efeitos penais, de modo a afirmar-se que a simples presença de qualquer uma daquelas substâncias determina que o agente se encontre “sob a influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas (…) perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.” O que significará, em rigor, que para o preenchimento do tipo objectivo do art. 292/2 do CP a prova da presença de substâncias estupefacientes, psicotrópicas ou produtos com efeito análogo deve ser complementada pela prova de as mesmas terem tido uma influência perturbadora da aptidão física, mental ou psicológica para uma condução em segurança. Prova que apenas se poderá produzir, a nosso ver, através de meios periciais adicionais.”
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Chegando mais ou menos aos mesmos resultados, nem sempre com a mesma fundamentação, veja-se:
Para o crime do art. 292/2 do CP, o ac. do TRP de 07/09/2011, proc. 153/10.0GCVRL.P1:
A presença de produto psicotrópico no corpo do condutor, sem que resulte comprovada que aquela é perturbadora da aptidão física mental ou psicológica para a condução, não preenche o tipo de crime do artigo 292/2 do CP, antes e apenas os elementos da contra-ordenação prevista no artigo 81 do CE.
No corpo do acórdão escreve-se:
Só o relatório médico com esses itens preenchidos permitirá ao tribunal concluir se o examinado estava em condições de fazer o exercício da condução em segurança.
Para além da questão quantitativa abordada na sentença, tais requisitos essenciais não constam do competente relatório pericial.
Para a contra-ordenação (art. 81/5 do CE) e para o crime (art. 292/2 do CP), veja-se o ac. do TRP de 09/04/2014, proc. 1328/10.7TASTS.P1:
I - A contra-ordenação muito grave «condução sob a influência de substâncias psicotrópicas» distingue-se do crime doloso ou negligente de «condução sob a influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas» pelo elemento objectivo constitutivo deste, que se consubstancia no facto de o agente não se encontrar «em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de ... produtos ... perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica».
II - A demonstração da «influência de substâncias psicotrópicas», constitutiva da contra-ordenação muito grave basta-se, nos casos previs-tos no art. 8/1, alíneas a), b), c) d) da Lei 18/2007, com a realização de uma «prova técnica», que é o «exame de confirmação» com resultado igual ou superior a um dos discriminados no quadro 2 do anexo V da Portaria 902-B/2007, obtido em «exame de rastreio» que foi anteriormen-te realizado e permitiu fundamentar a realização daquele «exame de confirmação».
III - A demonstração de «não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de ... produtos ... perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica» passa pela realização de uma «prova pericial» consistente em «exame médico» de avaliação do estado do condutor pelos aspectos discriminados no Ponto 25 da Secção III e Anexo VII da Portaria 902-B/2007.
IV - Não obstante os ensinamentos da Farmacologia, a Lei 18/2007 hierarquiza a diligência de produção processual dos meios de prova, só permitindo a realização de «exame médico» como modo «especial» de demonstração da infracção (relativamente ao modo «normal» do «exame de confirmação» seguinte a «exame de rastreio» positivo) «quando, após repetidas tentativas de colheita, não se lograr retirar ao examinando uma amostra de sangue em quantidade suficiente para a realização do teste».
V - Assim, não há possibilidade de demonstração do crime de «condução sob a influência de estupefacientes ou de substâncias psicotrópicas» no processo em que se realizou o «exame de confirmação» seguinte a «exame de rastreio», que é possível efectuar, nem de demonstração da contra-ordenação muito grave «condução sob a influência de substâncias psicotrópicas», no processo em que se realizou «exame de confirmação» seguinte a «exame de rastreio», com resultados inferiores a um dos discriminados no quadro 2 do anexo V da Portaria 902-B/2007.
Este acórdão, como o que se segue, ainda consideram a contra-ordenação do art. 81/5 do CE como tendo a ver com uma presumida condução com condições diminuídas, ao invés de a considerarem e aceitarem como um exemplo radical de legislação de tolerância zero “em relação à condução sob o efeito de canábis, em vez de [como devia ser] uma [legislação com] associação [da contra-ordenação] à diminuição das capacidades”, pelo que este acórdão, tendo em conta as inúmeras incongruências de regime já assinaladas representa, em termos de aplicação da lei, a posição mais de acordo com os princípios, como já assinalado acima.
Para a contra-ordenação do art. 81/5 do CE, veja-se o ac. do TRE de 07/01/2016, proc. 1050/13.2GCFAR.E1:
I – Não obstante o n.º 5 do art. 81 do CE se limite a dispor que “É proibido conduzir sob influência de (…) substâncias psicotrópicas”, sem prever um valor mínimo a partir do qual a condução sob o efeito dessas substâncias constitua contra-ordenação, essa norma não pode deixar de ser conjugada com as normas que regulam os procedimentos a seguir em ordem a detectar o estado de influenciado por tais substâncias, o que logo inculca a ideia de que o consumo das mesmas tenha sido em quantidade tal que ainda esteja, no momento, a causar alterações na percepção do mundo exterior, com os reflexos que esse estado de consciência alterado possa ter no comportamento estradal.
II - Assim, o art. 10 da Lei 18/2007, de 17/5, (que aprova o regulamento de fiscalização da condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas) estabelece que “A detecção de substâncias psicotrópicas inclui um exame prévio de rastreio e, caso o seu resultado seja positivo, um exame de confirmação, definidos em regulamentação”. Quanto ao primeiro, que se destina apenas a indicar a presença de substâncias daquela natureza, é efectuado “através de testes rápidos a realizar em amostras biológicas de urina, saliva, suor ou sangue” (art. 11/1 do referido diploma), “sendo os resultados considerados positivos quando os valores obtidos forem iguais ou superiores às concentrações indicadas no quadro n.º 2 do anexo V” (art. 16 da Portaria nº 902-B/2007 de 13/8, que veio regulamentar, nomeadamente, “os tipos de exames médicos a efectuar para detecção dos estados de influenciado por álcool ou substâncias psicotrópicas”), ou seja, de 50 ng/ml para o grupo dos canabinóides.
III - Só no caso de o exame de rastreio acusar um resultado superior a este valor é que haverá lugar ao exame de confirmação, que se destina “a identificar a substância ou substâncias e ou seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentarem resultados positivos” (art. 22 da aludida Portaria), só podendo ser – excepção feita ao caso especial, previsto no art. 13 da Lei 18/2007, de impossibilidade de colheita de amostra de sangue após repetidas tentativas - declarado influenciado por tais substâncias “o examinado que apresente resultado positivo no exame de confirmação” (nº 5 do art. 12 da referida Lei), considerando-se que este exame “é positivo sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo V ou outra substância ou produto, com efeito análogo, capaz de perturbar a capacidade física, mental ou psicológica do examinado para o exercício da condução de veículo a motor com segurança” (art. 23 da Portaria acima aludida).
IV – Não se considera como exercendo a condução sob influência de substâncias psicotrópicas aquele que, sem ser submetido a prévio exame de rastreio, revelou no exame realizado uma concentração estimada de THC-COOH de 22 ng/ml”.
Para o crime do art. 292/2 do CP, no caso em que o condutor acusava 99 ng/ml de THC-COOH, o ac. do TRE de 08/02/2022, proc. 245/20.7GASSB.E1:
Conduzir um veículo na via pública com vestígios de substâncias estupefacientes no sangue, não é suficiente para o preenchimento dos elementos objectivos do tipo de ilícito, tornando-se necessário que aquela circunstância impeça o exercício da condução em segurança.
Só ao juiz caberá, adicionalmente, aferir se o condutor não estava em condições de fazer uma condução segura, para tanto avaliando os sinais colhidos no local e momento próprios (se o condutor cambaleava, se tinha as pupilas dilatadas, a respiração ofegante, se mostrava desnorteado ou descontrolado, se fazia uma condução bizarra ou grosseiramente imprudente, etc.). Só com esse juízo positivo se poderá julgar provado o facto correspectivo.
Embora este acórdão – tal como o seguinte - admita, como se vê (como a jurisprudência maioritária de que se falará à frente), que seja o juiz a fazer tal juízo, reporta tal juízo a elementos que constem do exame médico previsto na Portaria e que sejam colhidos no local e momento próprios, isto é, quando se deu o acidente. O arguido, para além dos 99 ng/ml de THC-COOH acusava ainda 3 ng/ml de OH-THC. Foi absolvido.
Para o crime do art. 292/2 do CP, o ac. do TRE de 22/02/2022, proc. 668/16.6GASSB.E1:
I. Conduzir um veículo na via pública com vestígios (mais ou menos elevados) de substâncias estupefacientes no sangue, apurados nos termos regulamentares, não é suficiente para o preenchimento do elemento objectivo do tipo de ilícito, tornando-se também necessário que aquela circunstância seja impeditiva do exercício da condução em segurança.
II. Ao contrário do que sucede com a taxa de álcool no sangue, o exame toxicológico relativo às substâncias estupefacientes serve apenas para indicar a presença vestígios de substâncias no sangue do examinado. Cabendo ao juiz, adicionalmente, aferir se o condutor não estava em condições de fazer uma condução segura.
Segue a posição do anterior. No caso, o arguido, para além dos 10 ng/ml de THC-COOH acusava ainda 0,7 ng/ml de THC. Este caso tem a particularidade de, no próprio exame toxicológico, se afirmar: “O nível ou intensidade das alterações provocadas ao individuo em concreto pelo THC ou qualquer outra substância não são possíveis de avaliar sem um exame clínico no momento da colheita, uma vez que existem variáveis que determinam que para as mesmas concentrações sanguíneas as alterações cognitivas e psicomotoras que afectam a capacidade para conduzir possam ser diferentes entre indivíduos. […]” Este acórdão também absolveu o arguido.
Para o direito de regresso, já citado na sentença recorrido, o ac. deste TRL de 03/05/2018, proc. 7907/16.1T8SNT.L1-2 (redigido pelo relator do actual):
Para efeitos de direito de regresso da seguradora (art. 27-c do DL 291/2007), não é suficiente que um condutor que deu causa a um acidente acuse a presença no sangue de 2 ng/ml de canabinóides [ou seja, o ∆9-tetrahidrocanabinol (THC)] e 0,7 ng/ml do seu metabolito activo [que é o 11-hidroxi-∆9-tetrahidrocanabinol (11-OH-THC)].
Também negando o direito de regresso, veja-se o ac. do TRE de 07/11/2019, proc. 2489/17.5T8STR.E1:
Para efeitos do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do RJSORCA, à seguradora cabe alegar e provar que, para além de ter dado culposamente causa ao acidente, o condutor se encontrava sob influência de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, nos termos previstos nos artigos 81.º, n.ºs 1 e 5 e 157.º do CE.
No corpo do acórdão escreve-se [transcreve-se, dado tocar em que todas as questões que estão também em causa nestes autos, embora sem as notas]:
Começando a reapreciação da prova produzida partindo do relatório pericial junto a fl. 21 dos autos, dele consta que, realizado teste ao sangue colhido do ora apelante a seguir ao acidente, acusou 0.8 ng/ml de tetra-hidrocanabinol ou THC, única substância determinante de um estado de influenciado, e 4.3 ng/ml (nanogramas por mililitro) de TCH-COOH, que se explica ser “um metabolito sem acção farmacológica, cujo período de concentração se pode prolongar por vários dias após o consu-mo de canábis”, afigurando-se ainda pertinente fazer notar que, tal como assinalado no referido relatório, as ditas substâncias assim detectadas não estão incluídas no âmbito da acreditação do Serviço de química e toxicologia forenses da delegação sul do INML que procedeu à análise.
Quanto à sentença condenatória proferida no âmbito do processo criminal […], encontrando-se imputada ao ali arguido, ora réu/apelante, a prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 69/1-a e 137/1-2 do CP, resultou provado que antes de se deslocar para Lisboa, pelas 23h do dia anterior àquele em que ocorreu o acidente, o ali arguido havia consumido pólen de haxixe (sem qualquer informação quanto ao modo de ingestão), tendo ainda ingerido cervejas durante essa noite, dando-se igualmente por assente que “imprimia ao veículo uma velocidade superior a 60 km/h”, “Na rua… perdeu a direcção do veículo sucessiva e reiteradamente, o qual invadiu a hemi-faixa esquerda de rodagem, onde veio a embater na roda dianteira do lado direito do tractor agrícola (…)”, “em consequência directa e necessária da conduta praticada pelo arguido, (…) sofreu lesões (…) que determinaram a sua morte”, que “não agiu com a diligência e consideração a que se encontrava obrigado e era capaz relativamente ao tráfego rodoviário, deveres inerentes ao exercício da condução automóvel que incluem a abstenção de consumir produtos estupefacientes e ingerir bebidas alcoólicas”, afirmando-se finalmente que tinha previsto e estava ciente que “as bebidas alcoólicas que ingerira, o estupefaciente que consumira e o cansaço que sentia fossem susceptíveis de determinar que pudesse vir a colidir com outras viaturas”.
Por força da referida sentença encontram-se provados por presunção que, todavia, pode nestes autos ser ilidida, “os factos que integram os pressupostos da punição, os elementos do tipo legal de crime e, bem assim, os que respeitam à forma do crime (cfr. o artigo 623 do CPC). Assim, por não ilidida a presunção, tem-se por assente os factos acima mencionados, designadamente que na noite anterior o aqui réu havia consumido (não se sabe como, sendo certo que, sabe-se, não é de todo indiferente o modo de consumo), pólen de haxixe, e ainda que previra a susceptibilidade/possibilidade do consumo do haxixe, ingestão de bebidas alcoólicas e cansaço da noite sem dormir poderem determinar um acidente não se tendo abstido, ainda assim, de conduzir. Não se diz que aquando da colisão o arguido estivesse sob influência do pólen de haxixe qua havia consumido horas antes, tal como não resulta que estivesse sob a influência do álcool, pois para que assim se considerasse era necessário que estivesse provada uma TAS superior à legalmente permitida, pelo que tais factos não podem dar-se assentes por presunção face a tal meio de prova.
Diz-se na fundamentação que “(…) no caso dos autos, o réu conduzia de forma desatenta, com velocidade superior à adequada, dando causa ao acidente, sendo certo que realizava um percurso aparentemente conhecido. Tal comportamento apresenta-se temerário e que é compatível com a condução sob influência de canabinóides”. Antes de mais, não está dado como assente que o réu conhecia o percurso nem […] a circunstância de residir na “zona, ainda que em diferente localidade” autoriza tal ilação. Depois, a condução desatenta e com velocidade superior à adequada pode ter diversas causas, afigurando-se não poder ser aproveitado como facto base para se concluir que o arguido se encontrava sob a influência de produto estupefaciente.
Vejamos, pois, se tal facto emerge da demais prova produzida nos autos.
[…]
Fundamento da acção de regresso na alínea que se analisa são determinadas situações atinentes à pessoa do condutor que se considera acarretarem um sensível agravamento dos riscos normalmente associados à circulação, extravasando, portanto, do que se deve considerar abrangido pelas obrigações assumidas pela seguradora no âmbito de um contrato que é também comutativo, sob pena de grave desequilíbrio em desfavor desta. Impondo a lei às seguradoras que antecipem o ressarcimento dos lesados, atenta a dimensão social do contrato de seguro, concede-lhe, em contrapartida, e como forma de restabelecer, de algum modo, o equilíbrio do contrato, o direito de repercutir o dispêndio na esfera jurídica do lesan-te, dele reclamando o reembolso do que pagou a título de indemnização.
Aceitando-se que a redacção do art. 27/1-c […], quando confrontada com o teor do anterior art. 19/-c do DL 522/85, favorece uma interpretação que se basta com a verificação objectiva de cada uma das situações ali previstas, tal ocorre porque e na medida em que representam um perigo presumido dos normais riscos da circulação, potenciando um agravamento sensível desses riscos, dispensando-se assim a demonstra-ção de um concreto e efectivo nexo causal entre a circunstância verificada e o acidente.
A norma em causa assume, no entanto, uma natureza remissiva, impondo que se recorra ao art. 81 do CE para se determinar quando é que o condutor apresenta uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, sendo certo que só ultrapassado este limite se pode considerar que se encontra sob a influência do álcool, que constitui assim pressuposto do direito de regresso da seguradora. E se assim é em relação à alcoolemia afigura-se - interpretação que se afigura a mais consentânea com os critérios interpretativos consagrados no art. 9 do CC, designada-mente quando manda ter em conta a unidade do sistema jurídico - que idêntico entendimento terá de ser perfilhado quando esteja em causa o consumo de estupefacientes. Dito de outro modo, se nem toda a taxa de alcoolemia é relevante para efeitos de se considerar que influencia a condução, só sendo de reconhecer o direito de regresso da seguradora quando exceda o limite legal, o mesmo é dizer, quando estivermos perante um ilícito contra-ordenacional ou de natureza criminal, isso mesmo deverá entender-se quando, ao invés de uma taxa de alcoolemia, o condutor culpado do acidente – cuja conduta tenha sido causal do acidente - acusa o consumo de produtos estupefacientes, o que sucederá quando se prove que conduzia sob a influência destas substâncias proibidas.
Afirmou-se na decisão que “O CE considera infracção muito grave a condução sob influência de substâncias psicotrópicas, independente-mente da quantidade apresentada, ao contrário do que se encontra definido para o álcool (…). Para a lei o que releva é o consumo só por si, considerando relevante a alteração que provoca no comportamento das pessoas, independentemente da quantidade”.
Ora, se é verdade que o CE não consagra directamente limites quantitativos, acima dos quais se impõe considerar que o condutor se encontra sob influência do produtos estupefacientes, não prescindiu deste último requisito, ou seja, o condutor terá de ter as suas capacidades diminuídas por força do consumo de produtos daquela natureza para que a actividade de conduzir possa ser considerada ilícita, sob pena de se punir uma conduta que em nada interfere com a actividade de conduzir (note-se que as finalidades de punição, quer se considere o tipo legal de crime, quer a conduta contra-ordenacional, não visam o consumo de produtos estupefacientes). E sendo ainda verdadeiro que a lei não distingue a conduta meramente contra-ordenacional daqueloutra com relevância penal com apelo a um critério quantitativo, não deixa de o fazer estribando-se num critério qualitativo (cfr. artigos 81/1-5 do CE e 292 do CP), sendo certo que num e noutro caso a demonstração do carácter ilícito da condução se faz por meio dos exames de rastreio e de confirmação a que se reporta o art. 157 do CE, a realizar nos termos previstos na Lei 18/2007 (que aprovou o regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas), importado ainda quanto dispõe a este respeito a portaria 902-B/2007.
Resulta dos artigos 10 a 12 da citada Lei 18/2007 e 14 a 22 da Portaria que há sempre lugar a um exame de rastreio para detecção das substâncias psicotrópicas, o qual pode ser realizado em amostras de saliva, suor ou urina pelos agentes da autoridade, em estabelecimento da rede pública de saúde ou até no INML (artigos 11 da Lei e 14 a 17 da Portaria). No caso de tal exame apresentar resultados positivos – desconsiderando as hipóteses, que aqui não relevam, de ter lugar perícia médica -, há lugar à realização do exame de confirmação, “o qual é realizado numa amostra de sangue, após exame de rastreio com resultado positivo” pelo INML (art. 12 da Lei 18/2007).
O exame de confirmação, que se destina, consoante dispõe o art. 22 da Portaria, a “identificar a substância ou substâncias e os seus metabolitos que, em exame de rastreio, apresentaram resultados positivos”, será por seu turno positivo, nos termos do art. 23, “sempre que revele a presença de qualquer das substâncias psicotrópicas previstas no quadro n.º 1 do anexo v (…)”.
Pois bem, não fixando a lei um limite quantitativo a partir do qual considera que o condutor se encontra sob a influência de produtos estupefacientes, afigura-se que a exigência de um prévio exame de rastreio com resultado positivo para a presença de substâncias proibidas desempenha função equivalente, sabendo-se, por exemplo, que só há lugar a exame de confirmação, nos casos em que está em causa exame de rastreio na urina realizado em estabelecimento de saúde pública, quando os valores obtidos para os canabinóides ultrapassem os 50 ng/ml previstos no quadro 2 do anexo V, pois só a partir deste nível de concentração o resultado é considerado positivo (cf. artigos 15 e 16). Por outras palavras, não é todo e qualquer nível de concentração que leva à realização do exame de confirmação, antes se exigindo que a presença das substâncias proibidas seja antes detectada no exame de rastreio (que, repete-se, no caso de ser realizado em estabelecimento de saúde em amostra de urina tem que apresentar uma concentração superior a 50 ng/ml) para se proceder ao exame de confirmação, este sim considerado positivo desde que revele a presença das substâncias psicotrópicas identificadas no quadro 1 do anexo V, nesse caso quaisquer que sejam os níveis de concentração. Mas tal exame de confirmação, na lógica do diploma, só será válido se precedido de um exame de rastreio positivo. E a razão desta exigência compreende-se quando se considere que a condução pode não ser prejudicada pela canábis, como ocorre nos casos em que o resultado positivo reflecte um consumo que ocorreu no passado mas ainda é detectável.
No caso que nos ocupa, estando o réu legalmente obrigado a sujeitar-se ao exame de rastreio (cf. art. 157/2 do CE), a verdade é que nada se apurou nos autos quanto a ter sido sujeito ao mesmo, encontrando-se a fl. 22 apenas e só o resultado daquele que seria o exame confirmatório e que deu um resultado positivo para THC de 0,8 ng/ml, não tendo no entanto ficado demonstrado que tal nível de concentração fosse detectável em exame prévio de rastreio, do qual a lei, como tentou demonstrar-se, não prescinde.
Face a este resultado, e pese embora se aceite sem reserva que o consumo de produtos estupefacientes e designadamente de canábis é susceptível de influenciar a actividade de conduzir, “diminuindo os reflexos, originando um atraso na reacção aos elementos externos e no controle dos movimentos, e não permitindo avaliar de forma correcta as situações, nem a elas reagir adequada e tempestivamente”, conforme se expendeu na decisão apelada – daí a proibição legal de conduzir sob a sua influência –, cremos firmemente não poder afirmar-se, por apelo ao senso comum e à experiência do homem médio, ou seja, por mero recurso a presunções judiciárias, que o réu, apresentando um nível de concentração no organismo de THC de apenas 0,8 ng/ml, conduzia sob influência de canabinóides.
Defluência de quanto se deixou dito, não fazendo o relatório final cuja cópia consta de fl.22 prova de que o arguido conduzia sob a influência de estupefacientes, nem constando tal facto da sentença condenatória, antes indiciando o baixo valor de concentração encontrado que assim não sucederia - a este respeito não pode deixar de se fazer notar que apesar de ter igualmente acusado uma taxa de concentração de etanol no sangue de 0.04 g/l, ninguém ousou afirmar que conduzia sob a influência do álcool -, e não sendo possível dar como comprovado tal facto por mero recurso a regras da experiência considerando precisamente os referidos níveis de concentração, tanto mais que se desconhecem os seus eventuais hábitos aditivos e compleição física, aspectos que comprovadamente influenciam o efeito destas substâncias, conclui-se, secundando os argumentos do recorrente, que a prova existente nos autos não assumiu a consistência necessária para que se possa dar como demonstrada a factualidade impugnada.
E na fundamentação de direito:
Conforme se deixou antes referido a propósito da impugnação da matéria de facto, a lei parece bastar-se agora com a demonstração de que o acidente se ficou a dever a culpa do condutor da viatura segurada e de que este conduzia sob a influência do álcool (o que pressupõe uma TAS superior à legalmente permitida) ou de outras substâncias proibidas, sentido em que deve ser interpretada a expressão “acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos”. E tal pressupõe a realização prévia de um exame de rastreio ou detecção e, no caso de ser positivo, de um exame confirmatório, em ordem a identificar a ou as substâncias e seus metabolitos. Com efeito, afigura-se outra não poder ser a solução, não sendo concebível que um condutor sujeito, por hipótese, a exame de rastreio na urina em estabelecimento e que acusasse uma concentração inferior a 50 ng/ml – resultado negativo nos termos dos artigos 15 e 16 e quadro 2 do anexo v da Portaria 902-B/2007 –, encontrando-se portanto apto a prosseguir a viagem, viesse de seguida, e na sequência da realização de exame de sangue sem rastreio prévio por ter dado causa a acidente, a ser considerado como “tendo acusado consumo de estupefacientes” para efeitos do preenchimento da previsão do art. 27.
De algum modo repetindo o que se deixou já dito, impõem os critérios de interpretação do art. 9 do CC, designadamente o princípio da unidade do ordenamento jurídico, que a seguradora faça prova de que se está perante condução ilícita, por se encontrar o condutor sob influência de substâncias proibidas, o que pressupõe que a presença dessas mesmas substâncias no organismo atinjam um limiar de relevância.
No caso que nos ocupa, revisitada a factualidade apurada, verifica-se que tendo sido a conduta culposa do réu a dar causa ao embate, posto que invadiu a meia faixa esquerda de rodagem destinada ao trânsito que se processava em sentido contrário, conforme era o caso do tractor agrícola interveniente no acidente, infracção estradal (cf. art. 13/1 do CE) que foi a causa imediata e directa do acidente, não só não há evidência de que tal invasão se ficou a dever ao consumo de canabinóides – recorda-se que o réu encetara a viagem sem dormir, sabendo-se que o cansaço e privação de sono são susceptíveis de minar de forma decisiva a capacidade de concentração – nem, tão pouco, circunstância que é facto constitutivo do direito que a autora pretende fazer valer, que o mesmo réu estivesse a conduzir sob a influência de canabinóides ou outras substâncias psicotrópicas, conforme exige a al. c) do n.º 1 do art.º 27.º. E é quanto baste para que a presente acção não possa proceder.
Ainda para o direito de regresso, o acórdão do TRP de 28/04/2020 (não publicado mas citado pelo ac. do STJ referido a seguir):
[…] não se deve considerar que qualquer quantidade, por mínima que seja, permita desencadear a presunção de que o acidente ficou a dever-se ao consumo de estupefacientes.
A afirmação de que o condutor conduzia sob influência de estupefacientes é conclusiva, pois necessário se torna demonstrar, em primeiro lugar, o teor do consumo.
Assim, a presunção de que o acidente foi influenciado pelo consumo de estupefacientes deveria ter como base um teste, efectuado nos termos regulamentares, cujo resultado fosse superior a 50 ng/ml, visto estar em causa o consumo de canabinóides.
[…]
[…] resulta claramente do ponto 32 da matéria de facto que a substância detectada é um metabolito inactivo do THC cujo período de eliminação pode-se prolongar por vários dias após a exposição/consumo da canábis. Considerando que se trata de um metabolito farmacologicamente inactivo, ou seja, sem efeito farmacológico, embora presente no sangue, não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução.”
E ainda para o direito de regresso o acórdão do  STJ de 25/03/2021, proc. 313/17.2T8AVR.P1.S1, já citado pela sentença recorrida. Neste caso, o tribunal de 1.ª instância tinha dado razão à seguradora, com base na prova da condução sob a influência de 14 ng/ml de THC-COOH, o que foi considerado insuficiente quer pelo TRP, quer pelo STJ, para provar a condução com capacidade diminuída por consumo de estupefaciente, entre o mais porque o THC-COOH não é um metabolito activo:
Diz o corpo do acórdão do STJ:
“Nesta acção de regresso, incumbia à [seguradora] alegar e provar, além do mais, que o réu, na qualidade de condutor segurado causador do acidente, acusou consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos, nos termos definidos no art. 27/1-c do DL 291/2007.
E para tal importa ter presente que, nos termos do art. 81/5 do CE, se considera sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos deste Código e legislação comple-mentar, seja como tal considerado me relatório médico ou pericial.
Assim, diferentemente do que sucede nos casos de alcoolemia em que se encontram legalmente estabelecidos quantitativos em função dos quais se considera verificada a condução sob a influência do álcool (art. 81/2 do CE), no caso de substâncias psicotrópicas a sua influência deverá ser determinada especificamente mediante relatório médico ou pericial, nos termos preconizados no art. 81/5 do CE e estabelecidos em legislação complementar […]
Porém, o que se verifica é que os juízos probatórios sobre a influência da substância psicotrópica na condução do condutor segurado, constantes da decisão proferida na acção primitiva não se mostram minimamente objectivados quanto às características e efeitos da substância psicotrópica detectada naquele condutor, aquando do acidente, e identificada no relatório de fl. 39 em termos de concretização da sua influência no acto de condução que deu causa ao acidente de viação em referência.
Como se refere no acórdão recorrido, “a afirmação de que o condutor conduzia sob influência de estupefacientes é conclusiva”, tornando-se necessário demonstrar, em primeiro lugar, o teor do consumo. E ali mais se observa que: “a presunção de que o acidente foi influenciado pelo consumo de estupefacientes deveria ter como base um teste, efectuado nos termos regulamentares, cujo resultado fosse superior a 50 ng/ml, visto estar em causa o consumo de canabinóides.”
Com efeito, tais juízos foram alicerçados na mera consideração de que resultavam do exame toxicológico de fl. 39 e do “conhecimento geral, baseado em dados científicos […]. Mas dessa motivação não consta qualquer referência específica ao tipo de influência que a dita substância tivesse na capacidade ou aptidão física ou psíquica de condução do segurado, não constando também uma tal referência do próprio relatório de fl. 39.
Acresce que, na acção de regresso, provou-se que a substância identificada no referido relatório, detectada no condutor, aquando do acidente, era um metabolito farmacologicamente inactivo, ou seja, sem efeito farmacológico, embora presente no sangue, e que não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução.
Além disso, do mesmo relatório consta uma quantificação dessa substância na ordem dos [14] ng/ml, quando do quando 2 do Anexo v da Portaria 902-A/2007, os valores de concentração para exame de rastreio, quanto ao grupo canabinóides, deverá ser de 50 (ng/ml).
Nestas circunstâncias, os referidos juízos probatórios formulados na acção principal apresentam-se desprovidos da objectividade e concretude necessárias para que se possa identificar sequer o tipo de influência da referida substância no ato de condução do réu segurado que originou a produção do acidente.
[…]
Ademais, uma tal indeterminabilidade não permite tão pouco inferir que o condutor segurado tenha acusado, à data do acidente, consumo de substância psicotrópica com características, propriedades e em quantidade susceptíveis de influir na sua capacidade e aptidão física ou psíquica, e que, como tal, tenha sido considerado em relatório médico ou pericial, nos termos e para os efeitos do artigo 81/5 do CE.
[…]”
                                                                 *
A jurisprudência maioritária sobre a interpretação do art. 292/2 do CP) lê o elemento do tipo ‘condução sob influência de estupefaciente’, como se ele se fosse uma remissão para o estado de influenciado da Portaria 902-B/2007, que, como se vê no seu n.º 23 revela a simples presença de estupefaciente (e não, como devia ser lido, como uma remissão para o art. 32 da Portaria 1006/98), e por isso permite a prova daquele elemento do tipo com base num exame de confirmação ou num exame médico que vise o estabelecimento daquele estado de influenciado assim entendido (simples presença), e, depois, para a prova das condições diminuídas de condução, admite qualquer tipo de prova desde que ela seja julgada suficiente para o efeito.
Pelas razões já referidas, não se concorda com esta jurisprudência.
De qualquer modo, à cautela, diga-se que, para o caso dos autos, a aplicação desta jurisprudência não levaria a resultado diferente, pois que os factos provados não permitiriam chegar à conclusão das condições diminuídas.
O facto de um consumidor de heroína (facto 49)), com mais de 31 anos de idade (facto 52)), não se sabe de que compleição física, acusar 2,3 ng/ml de THC e 1,5 ng/ml de OH-THC (facto 6)), não se sabe consumida quando nem como ou em que condições, não é suficiente, só por si, para permitir a conclusão de que a forma como se deu o acidente se deveu à influência do consumo daquele estupefaciente.
Lembre-se que no estudo publicitado pelos serviços da UE se diz que “os primeiros indícios de diminuição da capacidade foram demonstrados em concentrações de THC entre 2 e 5 ng/ml” e que entre os factores que podem “determinar se um dado nível de consumo de canábis está associado a uma diminuição da capacidade de condução” se inclui, “a circunstância de o consumidor ser ou não um consumidor habitual e o facto de a canábis ser consumida em conjunto com outras substâncias, como o álcool.”
Ora, a dúvida sobre estes factores não pode ser utilizada contra o réu, pelo que, podendo este ser um consumidor habitual de heroína com mais de 31 anos, de forte compleição física, e não ter consumido álcool ou outra drogas, não há razões para crer que a presença dos elementos activos do canábis num total de 3,8 ng/ml pudesse ser o que levou o réu a actuar como foi dado como provado na acção prévia, não havendo nos factos provados nenhum daqueles elementos, colhido no momento próprio, que permitiria, num exame médico, a conclusão de que ele estava com capacidade diminuída para o exercício da condução (nem tendo ele sido submetido a um exame de rastreio na urina que desse um resultado superior a 50 ng/ml).
*
E muito menos se pode chegar à prova da capacidade diminuída com base nos factos provados na acção prévia e, por isso, não se pode determinar o aditamento, no facto provado sob 17, de que o embate se deveu ao facto de o réu estar influenciado pelo consumo de estupefacientes.
Isto é, o facto de o embate se ter devido ao facto do arguido conduzir o seu veículo de forma imprevidente e descuidada, iniciando a marcha do veículo sem assinalar com a devida antecedência a sua intenção e sem adoptar as precauções necessárias para evitar embater na vítima, não permite concluir que tal se deveu ao facto de estar a conduzir com capacidade diminuída devido ao consumo de estupefaciente.
A imprevidência e o descuido podem ser, só por si, a causa do acidente, pois que ocorrem mesmo que o condutor não tenha ingerido álcool ou estupefaciente, pelo que não podem servir para provar que o condutor não estava em condições de conduzir devido ao consumo de álcool ou estupefaciente.
A inversa é que é verdadeira e por isso é ela que está na base da presunção que se costuma usar: se o condutor estava com a capacidade para o exercício da condução diminuída por consumo de estupefaciente presume-se (seja judicial ou legalmente) que o acidente se deveu a isso.
Mas para isso é necessário provar essas condições diminuídas, sendo que estas não se bastam com o simples consumo de estupefaciente, como não se bastam com o simples consumo de álcool, e por isso é que lei deixa que um indivíduo com 0,49 ng/ml de THC ou OH-THC na urina conduza, tal como deixa que um indivíduo com 0,49 g/l de álcool no sangue conduza.
Assim se vendo que não é verdade que a lei presuma que após o consumo de estupefacientes não existem as condições necessárias para a condução de veículos; e por isso não se pode dizer que se vem a ocorrer um acidente em consequência de uma conduta culposa do condutor que apresenta um consumo de estupefacientes tal foi necessariamente a causa do acidente ou se possa presumir que o foi.
*
O que acabou de ser dito, trata, no essencial, do primeiro pressuposto do direito de regresso, no que importa ao caso, isto é, do pressuposto do condutor estar sob a influência prejudicial do consumo de álcool ou estupefaciente para o exercício da condução.
Mas o direito de regresso não tem só este pressuposto.
É ainda necessário, diz o artigo 27/1-c do DL 291/2007, que o condutor tenha dado causa ao acidente e estivesse a conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.
Ora, tendo em vista as duas finalidades do direito de regresso referidas acima, elas só se podem dizer preenchidas quando uma coisa –: dar causa ao acidente – estiver ligada à outra -: condução com uma taxa de álcool acima da legalmente admitida/ condução com consumo de estupefaciente em medida tal que se possa dizer que a sua capacidade de condução está prejudicada.
Pois só assim pode ser feito contra ele o juízo de censurabilidade ligado ao acréscimo de risco exigidos para o direito de regresso. Só assim, dito de outro modo, se pode dizer que o direito de regresso está a servir como mecanismo de salvaguarda do sentido da responsabilização do lesante e de salvaguarda do equilíbrio contratual que foi quebrado, com o acréscimo de risco censuravelmente assumido pelo condutor.
Dito de outro modo: se o acidente se deveu a uma imprevidência ou a um descuido do condutor que não se prove estarem ligadas ao facto de ele estar a conduzir com as suas capacidades diminuídas, ele não deve ser obrigado a reembolsar a seguradora pela indemnização que ela foi obrigada a suportar em primeira linha frente ao lesado, porque aquele é um risco coberto pelo seguro (obrigatório ou voluntário).
Aqui, no entanto, intervém uma presunção de causalidade: se o condutor estava com as suas capacidades diminuídas por ter consumido álcool ou estupefaciente, pode-se presumir que aquela imprevidência ou descuido do condutor estavam ligadas àquele consumo pelo tal nexo de causalidade.
No caso do consumo de álcool, já se viu, presume-se que ele está com aquelas capacidades diminuídas se tiver ultrapassado os limites legais e, por isso, o consumo para além do mínimo contra-ordenacional (0,5 ou 0,8 g/l) faz presumir aquele nexo de causalidade.
Quanto ao consumo de estupefaciente, desaparecido qualquer limite legal e sabido que, como já se demonstrou acima, um condutor pode ser condenado pela contra-ordenação apenas com base num consumo mínimo indirecto com canábis já inactivo, sem por isso qualquer ligação com a diminuição de capacidade, a condenação pela contra-ordenação não pode servir, só por si, de base para qualquer presunção de culpa e de risco acrescido. Apenas a condenação pelo crime do art. 292/2 do CP poderia servir para o efeito, porque para ela é necessário “provar […] que o agente não estava em condições de conduzir com segurança”, no pressuposto óbvio de que se tenha de facto feito essa prova nos termos referidos acima.
Em suma, para a seguradora ter o direito de regresso contra o condutor é necessário que este tenha dado causa ao acidente e que estivesse a conduzir com uma taxa de álcool acima da legalmente admitida ou com um consumo de estupefaciente em medida tal que se possa dizer que a sua capacidade de condução estava prejudicada, presumindo a lei, então, que a causa do acidente está ligada a este consumo.
Quer isto dizer que a ultrapassagem da doutrina do assento 6/2002 (ac. do STJ de 28/05/2002, proc. 3470/2001) – que dizia que “A alínea c) do artigo 19 do DL 522/85 exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente” – tem de ser feita considerando-se que o nexo de causalidade se presume pela existência de uma TAS de álcool no sangue superior à legal, ou pela via da prova de que o condutor consumiu canábis em medida suficiente para diminuir a sua capacidade de conduzir.
*
Como explicou Lopes do Rego no ac. do STJ de 06/04/2017, processo 1658/14.9TBVLG.P1.S1:
1. A alteração legislativa corporizada na art. 27/1-c do DL 291/2007 (apagando a expressão agido sob influência do álcool e substituindo-a pelo – muito mais objectivado - segmento normativo conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida) teve como consequência dispensar a seguradora do ónus de demonstração de um concreto nexo causal entre o erro ou falta, cometido pelo condutor alcoolizado no exercício da condução, - e que despoletou o acidente - e a situação de alcoolemia, envolvendo a normal e provável diminuição dos reflexos e capacidade reactiva do condutor alcoolizado.
2. Assim, o sentido a atribuir ao regime normativo introduzido pelo DL 291/07 é o de ter estabelecido uma presunção legal, assente nas regras ou máximas de experiência, na normalidade das situações da vida, segundo a qual o concreto erro ou falta cometido pelo condutor alcoolizado – e que consubstancia a responsabilidade subjectiva por facto ilícito que lhe é imputada - se deveu causalmente à taxa de alcoolemia verificada objectivamente por meios técnicos adequados – deixando naturalmente a parte beneficiada pelo estabelecimento desta presunção legal de estar onerada com a prova efectiva do facto a que conduz a presunção, nos termos do art. 350/1 do CC.
3. O direito de regresso invocado pela seguradora apenas se verificará, porém, na medida em que o acidente e o evento danoso sejam de imputar a um facto culposo do condutor, não abrangendo a parcela correspondente à medida em que o agravamento dos danos é antes de imputar à concorrência de um facto culposo do próprio lesado, justificando a aplicação do regime contido no art. 570 do CC.
Na linha deste, veja-se também o acórdão do STJ de 25/03/2021, processo 313/17.2T8AVR.P1.S1, já citado acima:
I - Do disposto no art. 27/1-c do DL 291/2007, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia ou a evidência de consumo de substância psicotrópica e o acto de condução causador do acidente, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em acção de regresso, o ónus da sua ilisão, ainda que não se mostre exigível que a influência da alcoolemia ou do consumo de substância psicotrópica seja a causa exclusiva da conduta causadora do acidente, devendo essa influência ser ponderada, para tais efeitos, à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação.
[…]
VIII - Na acção de regresso instaurada pela seguradora contra o condutor segurado, fundada em condução sob influência de substâncias psicotrópicas, nos termos definidos no art. 27/1-c, última parte, do DL 291/2007, incumbe à autora alegar e provar que o réu, na qualidade de condutor segurado causador do acidente, acusou consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos.
IX - Para tal importa ter presente que, nos termos do actual art. 81/5 do CE, se considera sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do mesmo código e de legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.
X - Assim, diferentemente do que sucede nos casos de alcoolemia em que se encontram legalmente estabelecidos quantitativos em função dos quais se considera verificada a condução sob a influência do álcool (art. 81/2 do CE), no caso de substâncias psicotrópicas a sua influência deverá ser determinada especificamente mediante relatório médico ou pericial, nos termos preconizados no art. 81/5 do CE e estabelecidos em legislação complementar, nomeadamente nos artigos 13, n.ºs 1 e 3, do Regulamento de fiscalização da condução sob influência do álcool ou de substâncias psicotrópicas, aprovado pela Lei 18/2007, e conforme os procedimentos prescritos na Portaria 902-B/2007.
XI - Quando a decisão condenatória proferida na acção principal não contenha um juízo de imputação concretamente determinável do nexo de causalidade entre a evidência do consumo de substância psicotrópica e o acto de condução do segurado que originou o acidente, não permitindo saber em que termos se deve ter por verificado, objectivamente, aquele nexo de causalidade, não se afigura lícito concluir que o ali decidido, sobre esse segmento, possa valer com autoridade de caso julgado como decisão indiscutível em relação ao objecto da ulterior acção de regresso.”
Este acórdão do STJ, lembra que o acórdão do STJ de 09/10/2014, proferido no processo 582/11.1TBSTBTB.E1.S1, que defende que a presunção é um presunção inilidível, apenas poderia ser compatível com o preceituado no art. 81/2 do CP (álcool com uma taxa superior à legal), mas não com o consumo de estupefaciente, na medida em que a lei, não estabelecendo, como no caso de alcoolémia, limites quantitativos, considera como tal o que for considerado em relatório médico pericial, dependendo assim de avaliação do estado de “influenciação”, por substância psicotrópica, na capacidade para a condução.
E, depois das considerações já transcritas acima sobre aquilo que aqui se considera o primeiro pressuposto, escreve:
“Nestas circunstâncias, os referidos juízos probatórios formulados na acção principal apresentam-se desprovidos da objectividade e concretude necessárias para que se possa identificar sequer o tipo de influência da referida substância no acto de condução do réu segurado que originou a produção do acidente.
Por outras palavras, o caso julgado formado pela decisão proferida no processo [prévio] não contém um juízo de imputação concretamente determinável do nexo de causalidade entre a evidência do consumo da substância em referência e o acto de condução do réu segurado que provocou o acidente, não permitindo saber em que termos se deve ter por verificado, objectivamente, aquele nexo de causalidade.
Ademais, uma tal indeterminabilidade não permite tão pouco inferir que o condutor segurado tenha acusado, à data do acidente, consumo de substância psicotrópica com características, propriedades e em quantidade susceptíveis de influir na sua capacidade e aptidão física ou psíquica, e que, como tal, tenha sido considerado em relatório médico ou pericial, nos termos e para os efeitos do artigo 81/5 do CE.
E não se pense que poderíamos estar aqui perante uma mera falta ou ininteligibilidade de fundamentação de facto ou de erro de facto notório da sentença proferida na acção principal, entretanto consumido pela ocorrência do respectivo efeito de caso julgado.
Não é o que está aqui em causa. Mais do que isso, o que se verifica é a própria indeterminabilidade do alcance desse caso julgado quanto àquele fundamento delimitador, para os efeitos do artigo 621 do CPC, mais precisamente no que respeita à influência potenciada pela substância psicotrópica em referência.
Perante tão grave indeterminabilidade, não se afigura lícito concluir que o decidido, nesse segmento, na acção principal possa valer com autoridade de caso julgado como decisão indiscutível prejudicial em relação ao objecto da presente acção de regresso.
Assim sendo, nada obsta a que deva prevalecer o juízo probatório da falta desse nexo de causalidade que o réu logrou demonstrar nesta acção de regresso, tal como foi decidido, neste particular, no acórdão recorrido.”
Ainda para o direito de regresso, o já citado acórdão do TRP de 28/04/2020 (não publicado mas citado pelo ac. do STJ acabado de referir):
“O nexo de causalidade não faz parte do objecto da acção que constitui causa prejudicial do direito de regresso.
Razão por que as excepções a que se alude neste artigo se reportam necessariamente ao objecto da acção prejudicial, e não à defesa do chamado contra o aí réu, que nenhuma influência jogava naquela acção.
Por outras palavras, este artigo contempla apenas factos susceptíveis de influenciar a decisão da causa - absolvição ou condenação da seguradora em montante inferior -, nunca podendo contemplar a questão do nexo de causalidade em discussão.
Ora, não podendo o interveniente acessório alargar o âmbito do objecto da acção prejudicial, tem que se admitir que ele discuta a questão do nexo de causalidade em apreciação na acção de regresso, sob pena de se violar o princípio do contraditório.
[…]
Estando a questão equacionada em termos de saber se deve reconhecer-se à seguradora direito de regresso sobre o apelante por causa do consumo de estupefacientes, a resposta tem de ser seguramente negativa, considerando-se ilidida a presunção de existência de nexo de causalidade entre o consumo de canabinóides e o acidente.
Com efeito, resulta claramente do ponto 32 da matéria de facto que a substância detectada é um metabolismo inactivo do ‘THC’ cujo período de eliminação pode-se prolongar por vários dias após a exposição/ /consumo da canábis. Considerando que se trata de um metabolismo farmacologicamente inactivo, ou seja, sem efeito farmacológico, embora presente no sangue, não deve ser associado a alterações da aptidão física ou psíquica que perturbem a capacidade para a condução.
Por outras palavras, aquela substância não teve qualquer efeito na produção do acidente.”
Brandão Proença no estudo já citado, especialmente páginas 106 a 113, defende que o actual texto legal continua a não afastar a demonstração/ /constatação de que a TAS [ou a condução com estupefaciente - TRL] foi a causa ou uma das causas do acidente”.
Assim, depois de lembrar, entre o mais, que:
“A acção de regresso […] não visa discutir a responsabilidade do segurado do segurado/condutor perante o lesado, mas procura convencê-lo da falta de causa da cobertura do dano pelo seguro” (pág. 110)
explica:
“Desde que não se diga, como não se diz, que a prova da conexão causal efectiva deve ser directa, não vemos obstáculo à defesa de uma orientação que, para nós, deve continuar na senda do AUJ [6/2002]. E é por isso que reputamos de sensata e juridicamente correta, até pela maior intensidade do risco presente na condução, a posição de princípio adoptada pela jurisprudência suavizadora do ónus de prova a cargo das seguradoras ou mesmo a doutrina (a favor de uma mais discutível presunção legal de causalidade) seguida pelo Supremo no referido ac. de 06/04/2017.” (pág. 113).
Ou seja, lembrando que Sinde Monteiro,
“aceitando o teor do AUJ […], na sua anotação [Cadernos de Direito privado 2/2003, páginas 40 a 52], tinha tido consciência da dificuldade da prova directa, avocando o auxílio das presunções judiciais ou de experiência e deixando para o condutor fazer a contraprova (de que, por ex., a infracção estradal não foi efeito do álcool mas de uma avaria, do rebentamento de um pneu ou, até, da conduta imprudente do lesado)” e que “[o] ilustre jurista admitia, mesmo, que no caso de uma TAS igual ou superior a 1,2 g/l «dada a altíssima probabilidade de a condução ser influenciada pelo excesso de álcool, parecer justificar-se uma inversão do ónus da prova”, defende a aplicação do AUJ, mas tendo em conta “[o] problema probatório […] destacado nalguns votos de vencido ao AUJ, como foi o caso dos Conselheiros Garcia Marques, Oliveira Barros e Araújo Barros, aceitando suavizar o ónus probatório da seguradora com as presunções naturais ou, até, ‘vendo’ na norma uma presunção legal.” (pág. 113).
Assim, este autor defende que
“A seguradora pode provar ou ver constatada dedutiva ou presuntivamente (sem contraprova de que não foi a TAS a provocar o despiste ou que sempre ocorreria sem a TAS) a conexão causal especifica entre a TAS relevante e o acidente, funcionando aquela como causa mediata e juridicamente mais relevante para o acidente.” (pág. 113).
Tudo isto tendo em conta que:
“[…O] que lemos na al. c) é que o legislador nem seguiu o AUJ, nem o pôs de lado. O texto é equívoco, como já o era o preceito anterior, e têm ambos colorações objectivas e subjectivas. Não vejo diferença relevante entre «agir sob a influência do álcool» e «conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legal», que leve a afirmar para a primeira frase um nexo causal subjectivo e, para a segunda, um entendimento objectivo. A interpretação literal pouco ajuda, sendo preciso ir mais longe e ver a teleologia da norma e do direito de regresso.” (pág. 110)
“[…]
O recurso aos critérios interpretativos do art. 9 do CC não permite concluir pelo afastamento da al. c) do art. 19 do DL 522/85 e da subsequente uniformização jurisprudencial. Não se pode dizer que o legislador, com as suas palavras, não quis exigir a conexão causal aqui discutida. Apesar de a letra da lei não ser feliz pensamos que o legislador razoável não terá querido afastar-se da referida uniformização. A alteração dos dizeres legais não é concludente, deixando caminho para uma interpretação consonante com a teleologia própria do direito de regresso. […]” (pág. 111).
“[…]
Ao retirar da expressão «tenha dado causa ao acidente» o pressuposto da responsabilidade subjectiva do condutor parece-nos, sempre com o devido respeito, nada justificar reconduzir à frase a exigência da culpa. Na verdade, e em rigor, a primeira parte da al. c) não tem propriamente a ver com o direito de regresso, não é um seu pressuposto, pois, como sabemos, o direito de regresso só se coloca após a verificação e declaração da responsabilidade total ou concorrente do segurado. […]” (pág. 111)
“[…]
[…] não se deve trazer para o direito de regresso e como fundamento autónomo uma questão prévia que diz respeito às relações entra a seguradora e o lesado […] E se o legislador foi coerente só podemos entender essa primeira parte da norma num sentido de conexão com a segunda parte, ou seja, como se o legislador tivesse querido dizer que o direito de regresso está dependente de a causa do acidente ter a ver com a TAS superior a 0,5 g/l. o que nos permite afirmar que o direito de regresso, pelo seu objecto, tem mais a ver com a presença de uma certa TAS e de um certo comportamento do que com a questão (preliminar) da responsabilidade civil. Aliás, cabe ao lesado fazer a prova dos pressupostos da responsabilidade, embora, segundo certa doutrina, possa beneficiar de uma presunção de culpa (art. 493, 2) no caso da condução sob o efeito do álcool (actividade perigosa). Para nós, nunca se poderá falar num duplo fundamento, mas, quando muito, num fundamento compósito (articulação entre a ilicitude da TAS e a probabilidade certeza do evento lesivo/danoso) com o “transporte”, para o direito de regresso, do «adquirido» juízo responsabilizante. Esta «separação das águas» é colocada exemplarmente nos fundamentos do AUJ: “Trata-se de fundamentos jurídicos diversos. A responsabilidade da seguradora resulta da culpa ou do risco causado pelo veículo conduzido, nexo de causalidade e dano. O direito de regresso fundamenta-se na circunstância de o condutor seguir sob a influência do álcool, sendo este o facto constitutivo do direito da seguradora a ser reembolsada pelos prejuízos sofridos” […]”. (pág. 112)
Note-se que a exigência desse nexo de causalidade também resulta do art. 144/2 da Lei do contrato de seguro:
2 - Sem prejuízo do disposto em legislação especial ou convenção das partes, não tendo havido dolo do tomador do seguro ou do segurado, a obrigação de regresso só existe na medida em que o sinistro tenha sido causado ou agravado pelo facto que é invocado para exercer o direito de regresso.
José Vasques, na LCS anotada, 4.ª edição, Almedina, 2020, pág. 496, escreve a este propósito:
O n.º 2 admite o exercício do direito de regresso, ainda que não tenha havido dolo do tomador ou do segurado, mas requisita, nesse caso, a existência de uma relação de causalidade entre o facto invocado para exercer o direito de regresso e o sinistro ou o seu agravamento – regra que, no entanto, cederá perante disposição legal ou convenção em contrário.
No mesmo sentido, veja-se o ac. do STJ de 31/03/2022, proc. 898/19.9T8PTL.G1.S1, para uma cláusula de um contrato de seguro com o seguinte teor:          
Facto 14: Consta das condições gerais do seguro de vida em causa, e como exclusões aplicáveis a todas as coberturas, na cláusula 5.1-b: “acções ou omissões praticadas pela pessoa segura […] quando lhe for detectado um grau de alcoolemia no sangue superior a 0,5 gramas por litro.”
O ac. do TRG confirmado pelo ac. do STJ já dizia:
“no caso vertente, para que haja exclusão da cobertura do seguro, qualquer que ele seja, é necessário que a condução sob o efeito do ´álcool possa ser considerada uma das condições concretas do acidente e que, segundo as regras da experiência comum, seja adequada ou apropriada ao seu desencadeamento.”
E o STJ depois de dizer
“entende-se, por um lado, que um contraente ‘medianamente cuidadoso, diligente e informado’ […], que pretende segurar o risco da sua morte nomeadamente em consequência de acidente de viação não causado por terceiro, interpretaria a cláusula de exclusão no sentido de apenas excluir da cobertura do contrato a morte resultante de acidente concretamente causado pelo excesso de álcool, não sendo facilmente apreensível o sentido oposto – que se baste com a prova da mera coincidência temporal entre a causa do sinistro e o excesso de álcool para afastar os efeitos do contrato de seguro.”
Conclui:
“Entende-se, assim, que a […] cláusula […] deve ser interpretada no sentido de que a exclusão do sinistro resultante de acto ou omissão praticado pela pessoa segura que se encontrasse com um grau de alcoolémia superior a 0,5 gramas de álcool por litro de sangue exige que o excesso de álcool tenha causado o acidente em causa.
Sucede que, não obstante a seguradora ter alegado, na contestação, que “o referido acidente ficou a dever-se ao facto de o infeliz CC conduzir sob a influência do álcool (…)” (artigo 10.º), e voltar a esta ideia nas alegações de revista, a prova não estabeleceu essa causalidade naturalística entre o excesso de álcool e o acidente de que veio a resultar a sua morte. Cabendo à ré o correspondente ónus da prova, porque se trata de um facto impeditivo do direito exercido nesta acção (n.º 2 do artigo 342.º do Código Civil), a acção procede.
E ainda acrescenta, em relação à habitual argumentação das seguradoras (de que a autora destes autos também se faz eco, como se vê na parte final da síntese da petição inicial feita no relatório deste acórdão, embora tenha deixado cair esta argumentação no recurso) que:
Resta recordar que a circunstância de constituir contra-ordenação a condução na via pública com uma TAS superior a 0,5 d/l (artigo 81 do CE) apenas impede a celebração de contrato de seguro de responsabilidade contra-ordenacional (artigo 14/1-a do Regime jurídico do contrato de seguro), mas não da “responsabilidade civil eventualmente associada” (n.º 2). Interpreta-se este artigo como não impedindo que um seguro de vida abranja o sinistro morte, mesmo quando a morte tenha ocorrido quando o condutor que causou o acidente se encontrasse com excesso de álcool.
Sendo este acórdão do STJ de 31/03/2022 sumariado assim na DGSI na parte que importa:
V. Devendo ser interpretada a referida cláusula no sentido de que apenas se exclui da cobertura do contrato a morte resultante de acidente causado por excesso de álcool, não bastando a prova da mera coincidência temporal entre a causa do sinistro e esse excesso para afastar os efeitos do contrato de seguro, a falta de prova do nexo de causalidade implica que a acção seja julgada contra a seguradora, a quem incumbia o ónus da prova.
(este acórdão do STJ refere jurisprudência em sentido contrário ao que seguiu).
*
Na linha do ac. do STJ de 06/04/2017, processo 1658/14, falando também numa presunção juris tantum, ilidível, do nexo de causalidade, de que beneficia a seguradora que, por isso e nessa medida (embora isto nem sempre seja explicitado no sumário dos acórdãos como se vê no caso dos dois últimos acórdãos que se seguem), não tem o ónus de provar aquele nexo, vejam-se, apenas como exemplo, os acórdãos:
- do TRC de 22/06/2021, proc. 2313/19.9T8PBL.C1:
V - Na acção de regresso instaurada pela seguradora ao abrigo do art. 27/1-c do DL 291/2007, à autora basta provar que o réu foi o responsável, aquilianamente, pelo sinistro e que conduzia com taxa de álcool superior à legalmente permitida, não lhe sendo exigível a prova do nexo de causalidade entre esta taxa e o sinistro; é que tal excesso faz presumir, juris tantum, este nexo, e, assim, compete ao réu, para se desonerar, ilidir esta presunção.
- do TRP de 09/01/2020, proc. 2486/17.5T8PNF.P1:
I - Aquando do exercício do direito de regresso pela seguradora na hipótese contemplada no art. 27/1-c do DL 291/07, esta está dispensada de demonstrar um concreto nexo causal entre a falta cometida pelo condutor alcoolizado no exercício da condução que veio a ocasionar o acidente e o estado de alcoolemia em que aquele se encontrava.
II – O regime normativo pretendeu fixar uma presunção legal juris tantum, assente nas regras máximas da experiência.
III – Pelo que está facultado ao condutor na persecução de afastar a sua responsabilidade em via de regresso, alegar e provar que a situação de alcoolemia não lhe ser imputável ou que não ocorreu qualquer nexo causal efectivo entre essa situação e a eclosão do acidente.
- do TRL de 19/12/2019, proc. 3631/18.9T8LSB.L1-2, já citado pela sentença recorrida:
IV - Para o exercício do direito de regresso previsto no art. 27/1-c do DL 291/2007, a seguradora não carece de provar a existência de nexo causal entre o consumo de estupefacientes que o condutor acusou e o facto ilícito-culposo praticado por este que ocasionou o acidente.
[…]
- do TRP de 16/01/2018, proc. 74/16.2T8AND.P1:
No domínio da vigência RSSORCA, para que a seguradora que satisfez a indemnização goze do direito de regresso sobre o condutor etilizado basta que a alegue e prove que foi ele que deu causa ao acidente e que conduzia com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, dispensando-se a alegação e a prova da existência de nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e a produção do acidente.
*
Aplicação ao caso dos autos:
O primeiro pressuposto - o consumo de estupefaciente em medida suficiente para não permitir a condução em condições de segurança -, como já se viu e sintetizando, só pode ser provado ou por um exame médico que tenha procurado apurar um estado de influência e não a simples presença de estupefacientes, ou por um exame de confirmação que terá de revelar a presença de estupefaciente (activo: não servindo pois para o efeito o THC-COOH no caso do canábis) em quantidade suficiente para convencer o juiz, em conjunto com uma série de outros elementos que logica e necessariamente terão de ser também os que seriam obtidos pelo exame médico que fosse feito ao condutor nos termos do n.º 25 da Portaria 902-B/2007, de que tem uma suficiente base probatória para concluir que o condutor estava com efectivas condições diminuídas para o exercício da condução.
No caso dos autos não existe nem exame médico, nem um exame de confirmação que revele uma quantidade suficiente de estupefaciente activo, nem foram apurados, no momento próprio, todos aqueles elementos que permitiriam, conjugados com aquele exame de confirmação, que, num exame médico (a que o juiz se substituiria), o réu fosse considerado com capacidade diminuída para a condução, pelo que o primeiro pressuposto não está preenchido nem pode vir a ser preenchido, por já não ser possível realizar nenhum daqueles exames.
Foi isso, aliás, que levou à absolvição do arguido/réu do crime de condenação com capacidade diminuída pelo consumo de estupefaciente, sendo que a contra-ordenação se baseou apenas num exame de confirmação que não preenche os requisitos acabados de referir.
Note-se, no entanto, que o facto de se concluir que, nesta acção de regresso não se pode dizer preenchido o pressuposto da condução com capacidade diminuídas, designadamente porque não há no caso nenhuma presunção que possa funcionar para o efeito, não quer dizer que se esteja a aproveitar o caso julgado que resulta da sentença que decidiu o enxerto cível do processo-crime, isto é, a sentença da acção que antecedeu esta acção de regresso.
Veja-se:
O réu pode provocar a intervenção acessória de terceiro, quando alegue que tem acção de regresso contra ele para ser indemnizado do prejuízo que lhe cause a perda da demanda (art. 321/1 do CPC). A intervenção do chamado circunscreve-se à discussão das questões que tenham repercussão na acção de regresso invocada como fundamento do chamamento (art. 321/2 do CPC). O juiz defere o pedido, entre o mais, quando face às razões invocadas, se convença da viabilidade da acção de regresso e da sua efectiva dependência das questões a decidir na causa principal (art. 322/2 do CPC). O chamado é citado, correndo novamente a seu favor o prazo para contestar e passando a beneficiar do estatuto de assistente, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 328.º e seguintes (art. 323/1 do CPC). A sentença que venha a ser proferida constitui caso julgado quanto ao chamado, nos termos previstos no artigo 332.º, relativamente às questões de que dependa o direito de regresso do autor do chamamento, por este invocável em ulterior ação de indemnização (art. 323/4 do CPC). A sentença proferida na causa constitui caso julgado em relação ao assistente, que é obrigado a aceitar, em qualquer causa posterior, os factos e o direito que a decisão judicial tenha estabelecido, excepto: […]
O que faz caso julgado na relação entre a seguradora e o chamado/ /assistente é pois a decisão que condena o réu na acção inicial com base nos factos que a sentença deu como provados (artigos 619/1 e 323/4 do CPC).
O caso julgado e a extensão da sua força aos factos provados (nos termos da posição de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa, Manual de processo civil, AAFDL, 2022, pág. 400, com desenvolvimentos em Miguel Teixeira de Sousa, CPC online, art. 311 a 341, versão de 2022.06, especialmente nas páginas 25 a 27), ou o efeito vinculativo que emerge do art. 332 do CPC (nos termos da posição de Maria José Capelo, em Segurador e causador do dano…, julgar, 43, Jan/Abril 2021, Almedina, páginas 103/104 e 111/112, mas que também são usados por Miguel Teixeira de Sousa), não abrange, pois, nem a decisão que absolveu o arguido de um crime, nem as alegações de facto que não ficaram provadas.
Por outro lado, os artigos 623 e 624 do CPC, relativos à eficácia probatória da sentença penal, não servem para concluir o contrário, pois que estes artigos apenas dizem respeito aos factos que tiverem sido dados como provados (Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, CPC anotado, vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, 2017, páginas 762 a 766).
No caso dos autos o que importa, pois, porque faz caso julgado em relação à seguradora (art. 619/1 do CPC) e em relação ao arguido/chamado/assistente, agora réu nesta acção de regresso (art. 323/4 do CPC), na relação entre eles, é apenas que o arguido foi condenado por ter acusado a presença de canábis no sangue, ou seja, pela contra-ordenação do art. 81/5 do CE.
Nesta parte, pois, não se está de acordo com a sentença recorrida (apesar de apoiada no ac. do STJ de 25/03/2021, proc. 313/17), ao considerar julgada com trânsito a questão da falta de causalidade entre o consumo e o acidente e que assim está ilidida a presunção constante do art. 27/1-c, ou ao considerar que o réu goza da presunção da inexistência dos factos que constituíam o crime (ou seja, a condução em condições diminuídas por consumo de estupefacientes), ou que se tenha provado que a causa do acidente nada tenha a ver com o facto de o réu ter acusado esse consumo e o conduzir sob o efeito deste (afirmação que o réu também faz nas contra-alegações do recurso), pois que uma alegação de facto não provada não equivale à prova do facto contrário, como repetidamente se tem afirmado.
Mas, como se vê, não são estas as razões que estão na base do aqui decidido. 
Dito de outro modo:
Os pressupostos do direito de regresso que agora importa são os seguintes:
A condução em condições diminuídas devidas ao consumo de estupefaciente e o nexo de causalidade entre essa condução e a causa do acidente.
A prova do primeiro pressuposto pode vir da acção prévia (como no caso da condução com uma taxa de álcool acima da permitida, ou no caso da condenação pelo crime de condução sob a influência de estupefacientes, porque este tem como seu elemento objectivo do tipo a condução com capacidade diminuída devido ao consumo do estupefaciente) e, estando ele provado, presume-se o nexo de causalidade. Pelo que, nestes casos, bastará à seguradora juntar a sentença da acção prévia, invocando implicitamente a presunção do nexo de causalidade.
Mas se a prova do primeiro pressuposto (condução com capacidade diminuída por consumo de estupefaciente) não vêm da sentença proferida no processo prévio, essa prova teria que ser feita na acção de regresso, sob pena de não se poder presumir o nexo de causalidade.
A prova do simples consumo de estupefaciente, ao contrário do consumo do álcool em medida superior à permitida, não serve para prova do primeiro pressuposto do direito de regresso.
Assim sendo, não estando sequer provado o primeiro pressuposto do direito de regresso, o réu não tem de fazer a prova de nada, designadamente não tem de ilidir uma presunção de que não se verifica a respectiva base (não tendo de provar quaisquer factos modificativos, extintivos ou impeditivos de um direito de que não estão verificados os respectivos pressupostos).
Em suma: o caso julgado formado na acção prévia com base na prova daquele consumo de estupefaciente (simples prova da presença) não serve de prova da condução sob condições diminuídas, e por isso não basta para presunção do nexo de causalidade; pelo que a procedência da acção de regresso fica afastada pela falta de prova destes dois pressupostos.
Dito ainda de outra forma: a improcedência da acção não se baseia no facto de estar provado que o acidente não teve a ver com o consumo do estupefaciente, mas com o facto de não estar provada a condução com capacidade diminuída devido ao consumo de estupefaciente, nem, por isso, que tenha sido este a causa do acidente.
É este o sentido essencial da sentença recorrida, tal como do acórdão do STJ de 25/03/2021 (e do acórdão do TRP que o ac. do STJ confirmou), que apenas vêem a questão de outra perspectiva, isto é, como se o réu tivesse ilidido a presunção do nexo de causalidade que decorre do caso julgado quando do que se trata, segundo agora este TRL está a defender, é que o caso julgado da acção prévia é insuficiente para a presunção por só fazer prova do consumo de estupefaciente, não de uma condução com capacidade diminuída. Neste sentido (de que é este o sentido essencial da sentença e dos acórdãos em causa), veja-se de novo a seguinte passagem do acórdão do STJ: “Ademais, uma tal indeterminabilidade não permite tão pouco inferir que o condutor segurado tenha acusado, à data do acidente, consumo de substância psicotrópica com características, propriedades e em quantidade susceptíveis de influir na sua capacidade e aptidão física ou psíquica, e que, como tal, tenha sido considerado em relatório médico ou pericial […].”
*
Quanto ao facto de constar dos factos provados que o réu estava a conduzir sob a influência de estupefacientes, quer apenas dizer que ele tinha no seu organismo aquele estupefaciente.
Como decorre de tudo o que já foi dito, desde 15/08/2007, data da entrada em vigor do actual regime da fiscalização do consumo de estupefaciente, entre elas a Portaria 902-B/2007, estar a conduzir sob a influência de estupefacientes quer dizer apenas que o condutor tem estupefaciente no seu organismo e não, como no regime anterior, que estava com a capacidade diminuída para o exercício da condução.
Repare-se que no caso objecto dos acórdãos do TRP e do STJ de 31/03/2021, citados acima, se deu expressamente como provado (factos 120 e 121) que o segurado da ré conduzia sob influência de substâncias psicotrópicas, designadamente sob o efeito de canabinóides, que havia consumido em momento anterior a ter iniciado a condução e que a presença de substâncias psicotrópicas no organismo do chamado influenciou a sua condução e tal não evitou a consideração de que não se tinha provado o nexo de causalidade (por falta de base para a presunção).
Daí que não haja a mínima ininteligibilidade ou contradição na sentença penal, ao condenar o réu pela contra-ordenação do art. 81/5 do CE, por ele estar a conduzir sob a influência de estupefacientes (= ter estupefacientes no seu organismo = acusar a presença de estupefacientes) e ao absolvê-lo do crime do art. 292/2 do CP que exige como elemento do tipo a capacidade diminuída para o exercício da condução.
Aliás, para tentar afirmar o contrário, a seguradora - que ataca a sentença recorrida como se ela não tivesse apoio nos acórdãos que cita, entre eles o acórdão do STJ de 25/03/2021, que confirma a improcedência da acção de regresso num caso quase idêntico ao dos autos -, vem quase na parte final do recurso invocar contra ela aquele acórdão do STJ, sem dar conta de que o acórdão é a base da sentença recorrida e que o que é dito pelo STJ é no sentido de (i) afastar o alcance que a 1.ª instância, no caso que estava a decidir, deu ao caso julgado formado na acção prévia para condenar o réu na acção de regresso, e de (ii) aceitar o alcance que foi dado a esse caso julgado pelo acórdão da Relação do Porto que revogou aquela sentença e julgou a acção de regresso improcedente.
O que antecede afasta toda a argumentação da seguradora.
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Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente.
Custas, na vertente de custas de parte (não existem outras), pela autora (que é quem perde o recurso).

Lisboa, 15/09/2022
Pedro Martins
Inês Moura
Laurinda Gemas