Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2014/22.0YRLSB-8
Relator: MARIA DO CÉU SILVA
Descritores: ESCRITURA PÚBLICA
AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE
VERDADE BIOLÓGICA
ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 11/17/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1 - A declaração do requerente J… numa escritura pública perante uma autoridade administrativa estrangeira não está abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1 do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada.
2 - Rever escritura de reconhecimento da paternidade conduz a um resultado manifestamente incompatível com princípio da ordem pública internacional do Estado Português - o princípio da verdade biológica -, pois o reconhecimento da paternidade por escritura pública é um reconhecimento voluntário e confirmar a escritura implicaria convertê-lo em reconhecimento judicial e, consequentemente, coartar a possibilidade de impugnação do reconhecimento quando o mesmo não corresponde à verdade biológica.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Lisboa em conferência

Na presente ação especial de revisão de sentença estrangeira intentada por F… e J…, foi proferida decisão sumária a 7 de outubro de 2022, pela qual foi negada a revisão pretendida.
Os requerentes reclamaram para a conferência, com os seguintes fundamentos:
«1º. Os Requerentes instauraram uma ação especial de revisão de sentença estrangeira, pedindo que fosse revista e confirmada a Escritura Pública de Reconhecimento de Filho, outorgada em 27-12-1994, no 2º Serviço Notarial Comarca de Extrema, Estado de Minas Gerais, da República Federativa do Brasil.
2º. O Cartório, na pessoa do seu Tabelião, “agente público” que sob as normas do Estado e por ele permanentemente fiscalizado, conferiu fé pública às declarações do outorgante, que nos termos dos artigos 351º e seguintes do Código Civil Brasileiro vigente à data (Código Civil Brasileiro de 1916), escritura que, em face da vontade do outorgante e do respeito pelos “requisitos constitucionais e legais”, declarou reconhecido o vínculo biológico entre o declarante (J…) e o seu filho (F…).
3º. Ora, refere o Código Civil brasileiro, vigente à data da escritura, que:
Art.º 355. O filho ilegítimo pode ser reconhecido pelos pais, conjuntas ou separadamente.
Art.º 356. Quando a maternidade constar do termo de nascimento do filho, mãe só a poderá contestar, provando a falsidade do termo, ou das declarações nele contidas.
Art.º 357. O reconhecimento voluntário do filho ilegítimo pode fazer-se ou no próprio termo de nascimento, ou mediante escritura pública, ou por testamento.
Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho, ou suceder-lhe ao falecimento, se deixar descendentes.
Art.º 358. Os filhos incestuosos e os adulterinos não podem ser reconhecidos. (Revogado pela Lei nº 7.841, de 1989)
Art.º 359. O filho ilegítimo, reconhecido por um dos conjugues, não poderá residir no lar conjugal sem o consentimento do outro.
Art.º 360. O filho reconhecido, enquanto menor, ficará sob o poder do progenitor, que o reconheceu, e, se ambos o reconheceram, sob o do pai.
Art.º 361. Não se pode subordinar a condição, ou a termo, o reconhecimento do filho.
4º. No nosso ordenamento jurídico a perfilhação ou reconhecimento do filho também pode revestir a escritura pública, ex vide o artigo 1853º do Código Civil Português.
5º. Por economia processual, os Requerentes remetem a sua posição para o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-07-2022, processo nº 2201/21.9YRLSB-A.S1, Relator Ferreira Lopes, disponível em www.dgsi.pt. A saber:
Se é certo que a autoridade administrativa (tabelião) não intervém para homologar ou decidir sobre o divórcio, não é menos certo que lhe compete controlar a verificação de todos os requisitos de que depende o divórcio consensual. (sublinhado e negrito nosso)
Como correctamente afirmado no acórdão da Relação de Lisboa de 27.01.2022 (Jorge Leal), “a circunstância de a autoridade administrativa não emitir uma vontade de produção de efeitos jurídicos de regulação do interesse privado em questão não retira ao acto em causa a natureza de decisão, para os efeitos da pretendida revisão. O que releva é que essa intervenção constitua requisito e fonte da produção dos desejados efeitos jurídicos no ordenamento jurídico estrangeiro, o que se pretende que ocorra também no ordenamento jurídico português.”
Assim, dissentindo do acórdão recorrido, entendemos que o controlo feito pelo tabelião da verificação dos requisitos de que depende o divórcio consensual por escritura pública, consubstancia a intervenção de uma entidade administrativa que cauciona o acto de divórcio, ao qual são atribuídos efeitos pela ordem jurídica brasileira. A escritura controlável pelo notário deve ser equiparada, pois, à expressa decisão jurisdicional ou administrativa. (…)
Neste sentido decidiu o Supremo Tribunal de Justiça nos acórdãos de 12.07.2005, P. 05B1880, de 25.06.2013, e de 09.03.2021, P.241/20, citados pelos Recorrentes.
Consta do sumário deste último aresto:
Por provir de autoridade administrativa (tabelião ou substituto), a escritura pública prevista no art.º 733º do Código de Processo Civil brasileiro, através da qual se pode realizar o divórcio consensual, com fundamento em separação de facto por mais de 2 anos, previsto no art.º 1580º, §2º, do Código Civil Brasileiro, consubstancia uma decisão administrativa sobre direitos privados, abrangida pela previsão do art.º 978º do CPC, carecendo, por isso, de revisão para produzir efeitos em Portugal.
6º. Sendo da competência do Tabelião a verificação de todos os requisitos necessários para que o reconhecimento de paternidade (ou reconhecimento de filho), prevista nos artigos 355º Código Civil Brasileiro de 1916 e agora previsto nos artigos 1609º e seguintes do Código Civil Brasileiro de 2002, o reconhecimento de paternidade proferido por aquela entidade legalmente competente para esse efeito, produza efeitos no registo civil brasileiro.
7º. Assim, a referida escritura deve ser considerada uma decisão no que concerne à expressão decisão jurisdicional ou administrativa.
8º. Pelo exposto, e salvo melhor opinião, no presente caso não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade do instrumento notarial revidendo, nem sobre a inteligência do seu conteúdo.
9º. O reconhecimento de paternidade foi proferido pela entidade brasileira legalmente competente para esse efeito e tal competência não foi provocada em fraude à lei.
10º. Acresce que a decisão revidenda não versa sobre matéria da competência exclusiva dos tribunais portugueses.
11º. Não lhe podem ser opostas as exceções de litispendência ou caso julgado, com fundamento em causa afeta a tribunal português.
12º. A decisão revidenda foi proferida com observância dos princípios de igualdade das partes.
13º. E o seu reconhecimento não é suscetível de conduzir a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.
14º. Pelo que estão, assim, verificados os requisitos necessários para a confirmação da decisão, conforme estabelecido no art.º 980º do Código de Processo Civil.»
É a seguinte a questão que importa decidir:
- da verificação dos requisitos para a confirmação.
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Com interesse para a decisão da causa, resultou provado, pelo documento 3 junto com a petição inicial, o seguinte facto:
1 - Por escritura lavrada a 27 de dezembro de 1994, no 2º Serviço Notarial da Comarca de Extrema, do Estado de Minas Gerais, o requerente J… declarou reconhecer F… como seu filho.
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Da decisão sumária consta a seguinte fundamentação:
«”O nosso sistema de revisão de sentenças estrangeiras inspira-se basicamente no chamado sistema de delibação, isto é, de revisão meramente formal. O que significa que o tribunal, em princípio, se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma, não conhecendo, pois, do fundo ou mérito da causa. Ou seja, desde que o tribunal nacional se certifique de que tem perante si uma verdadeira sentença estrangeira, deve reconhecer-lhe os efeitos típicos das decisões judiciais, não fazendo sentido que proceda a um novo julgamento da causa” (www.dgsi.pt acórdão do STJ de 12 de julho de 2011, processo 987/10.5YRLSB.S1).
Nos termos do art.º 978º nº 1 do C.P.C., “sem prejuízo do que se ache estabelecido em tratados, convenções, regulamentos da União Europeia e leis especiais, nenhuma decisão sobre direitos privados, proferida por tribunal estrangeiro, tem eficácia em Portugal, seja qual for a nacionalidade das partes, sem estar revista e confirmada.”
No caso dos autos, não temos uma sentença, mas sim uma escritura pública.
“… desde há muito que se sedimentou a interpretação jurisprudencial no sentido de que a decisão de uma autoridade administrativa estrangeira sobre direitos privados deve ser considerada como abrangida pela previsão do artigo 1094º, n.º 1 do Código de Processo Civil, carecendo de revisão para produzir efeitos em Portugal” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 25 de junho de 2013, processo 623/12.5YRLSB.S1).
Da escritura pública em questão nestes autos não consta qualquer decisão do tabelião, mas apenas declaração do outorgante.
A declaração do requerente J… numa escritura pública perante uma autoridade administrativa estrangeira não está, pois, abrangida pela previsão do artigo 978º nº 1 do CPC, pelo que não pode ser revista e confirmada (www.dgsi.pt Acórdãos do STJ proferidos a 10 de dezembro de 2019, processo 249/18.0YPRT.S2; a 9 de maio de 2019, processo 828/18.5YRLSB.S1; a 21 de março de 2019, processo 559/18.6YRLSB.S1; a 28 de fevereiro de 2019, processo 106/18.0YRCBR.S1).»
O entendimento plasmado na fundamentação da decisão sumária é aquele que este coletivo acolhe e que tem apoio na jurisprudência recente do STJ, conforme resulta dos acórdãos citados na decisão sumária, como também do acórdão proferido pelo STJ a 20 de janeiro de 2022, no processo 151/21.8YRPRT.S1.
Na fundamentação deste último acórdão, pode ler-se:
«cotejada a “escritura pública”, cuja revisão e confirmação vem rogada nesta demanda, distinguimos que esta limita-se a confirmar as aludidas declarações dos Requerentes/AA e BB, sem que o Tabelião tenha sobre elas feito incidir qualquer juízo vinculativo, com força de caso julgado, e que, enquanto tal, tivesse competência para emitir, daí que, não reconheçamos que a invocada “escritura pública” esteja compreendida, enquanto “decisão”, pelo normativo adjetivo civil decorrente do citado art.º 978º n.º 1, do Código de Processo Civil, devendo apenas ser valorado como meio probatório, sujeito à livre apreciação do julgador (a “escritura pública” ajuizada prova que os Requerentes/AA e BB fizeram perante o tabelião a afirmação de que conviviam maritalmente desde certa data, mas não prova que seja verdadeira a afirmação), não possuindo, por, isso, força de caso julgado, não tendo virtualidade para poder ser confirmada/ revista pelos Tribunais portugueses.»
No caso dos autos, temos uma escritura de reconhecimento de paternidade.
A verdade biológica “é o princípio alicerçante do regime da filiação”, sendo “os direitos de identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade (onde se inclui o direito de conhecer e ver reconhecida a ascendência biológica e a marca genética de cada pessoa), reconhecidos constitucionalmente enquanto direitos fundamentais” (www.dgsi.pt Acórdão do STJ de 15 de fevereiro de 2018, processo 2344/15.8T8BCL.G1.S2; Acórdão do STJ de 21 de setembro de 2010, processo 495/04; cf. art.º 26º nº 1 da C.R.P.).
Rever escritura de reconhecimento da paternidade conduz a um resultado manifestamente incompatível com princípio da ordem pública internacional do Estado Português - o princípio da verdade biológica -, pois o reconhecimento da paternidade por escritura pública é um reconhecimento voluntário (cf. art.º 1853º al. c) do C.C.) e confirmar a escritura implicaria convertê-lo em reconhecimento judicial e, consequentemente, coartar a possibilidade de impugnação do reconhecimento quando o mesmo não corresponde à verdade biológica (cf. art.º 1859º nº 1 do C.C.).
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Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação, em conferência, em indeferir a reclamação, mantendo a decisão sumária pela qual foi negada a revisão.
Custas da reclamação pelos reclamantes.

Lisboa, 17 de novembro de 2022
Maria do Céu Silva
Teresa Sandiães
Octávio Diogo