Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1019/15.2PZLSB.L1-3
Relator: JOÃO LEE FERREIRA
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 12/06/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário: I O "mal" será de considerar como “futuro” para a verificação do crime de ameaça, desde que não se trate duma tentativa criminosa, nos termos em que o artigo 22º do Código Penal a descreve, ou seja, enquanto o agente não praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, entendendo-se como actos de execução aqueles que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime, os actos que sejam idóneos a produzir o resultado típico ou actos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, sejam de natureza a fazer esperar que se lhes sigam os anteriormente enunciados.

II A conclusão acerca da característica temporal da ameaça há-de resultar da ponderação de um conjunto diversificado de factores referentes à conformação global do facto, em que relevam quer elementos objectivos, quer elementos subjectivos referentes ao propósito ou fim visado pelo agente, impondo-se por isso saber tão seguro quanto possível se ele agiu naquela forma já com conhecimento e vontade de, por exemplo, atingir o património, a integridade física ou mesmo a vida da vítima.

(Sumário elaborado pelo Relator)

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Lisboa.


Relatório:


1. O Ministério Público deduziu acusação contra A.S.M., imputando-lhe o cometimento de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143º n.º 1 do Código Penal, por factos indiciariamente ocorridos em 6 de Dezembro de 2015.

A assistente,  L.P.R., requereu a realização da instrução, pretendendo a pronúncia do arguido por um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153º e 155º n.º 1 alínea b), ambos do Código Penal.

Após o debate instrutório, o Exm.º juiz do Juízo de Instrução Criminal da Comarca de Lisboa decidiu pronunciar o arguido pelo cometimento do crime de ofensa à integridade física simples, tal como vinha acusado pelo Ministério Público, e não pronunciar o arguido pelo crime de ameaça agravada, imputado pela assistente no requerimento de abertura de instrução.

Inconformada, a assistente interpôs recurso, concluindo que deverá ser revogada a decisão instrutória e substituída por pronúncia do arguido pelo cometimento do crime de ameaça agravada ou, se assim não se entender, pelo crime de coacção.

O Ministério Público, por intermédio do Procurador da República junto do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa, apresentou resposta, concluindo que deve ser negado provimento ao recurso e mantido o despacho de não pronúncia.

Não houve resposta do arguido.

Recebidos os autos no Tribunal da Relação de Lisboa, o Ministério Público, agora por intermédio da Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta, exarou parecer no sentido da improcedência do recurso.  
Decorrido o prazo de resposta ao parecer, recolhidos os “vistos” e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. A decisão recorrida é a seguinte (transcrição):
“Declaro encerrada a instrução.
Nos presentes autos, o Ministério Público encerrou o inquérito deduzindo acusação contra o arguido A.S.M., imputando-lhe a prática, em autoria material e na forma consumada, de um crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143°, n° 1, do Código Penal.

A assistente  L.P.R. deduziu contra o referido arguido acusação particular, imputando-lhe a prática de um crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181°, n° 1, do Código Penal.

O Ministério Público acompanhou a acusação particular deduzida.

A assistente  L.P.R. requereu a abertura de instrução, nos termos de fls. 157 e segs., pugnando pela pronúncia do arguido A.S.M. pelos factos que narrou no seu requerimento de abertura de instrução e, por via deles, também pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153° e 155°, n° 1, al. b), ambos do Código Penal.

Em sede de instrução, foram colhidas declarações à assistente.

Realizado novo interrogatório do arguido, o mesmo não prestou declarações, fazendo uso do seu direito ao silêncio.

Procedeu-se à realização do debate instrutório, em cumprimento do preceituado nos artigos 297.° e seguintes do Código de Processo Penal.

O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.

A assistente tem legitimidade para requerer a abertura da instrução.

Não ocorrem quaisquer nulidades, questões prévias ou incidentais que cumpra conhecer.

Previamente à análise do caso concreto, cumpre, antes de mais, fazer uma breve análise das finalidades e princípios que regem a presente fase processual.

A instrução é uma fase processual facultativa, que visa a comprovação judicial da decisão de acusar ou arquivar o inquérito, iniciada sob impulso do arguido ou do assistente, dirigida por um juiz, composta por uma série maior ou menor de atos e obrigatoriamente por um debate, com o seu termo assinalado por uma decisão, designada por despacho de pronúncia ou não pronúncia (artigos 286°, n.° 1, 287°, n.1, als. a) e b), 288°, n.° 1, 289°, n.° 1 e 307°, n.° 1 e 308°, n.° 1, todos do Código de Processo Penal).

A instrução tem como finalidade a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (n° 1 do artigo 286° do CPP).

Assim, nos termos do supra referido artigo 308°, n.° 1 do Código de Processo Penal “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos”.

Nos termos do artigo 283°, n.° 2 ex vi do artigo 308°, n.°2, ambos do Código de Processo Penal, “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.

De facto, tal como refere Germano Marques da Silva, “nas fases preliminares do processo não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes e tão-só indícios, sinais de que um crime foi eventualmente cometido por determinado arguido. As provas recolhidas nas fases preliminares do processo não constituem pressuposto da decisão jurisdicional de mérito, mas de mera decisão processual quanto à prossecução do processo até à fase de julgamento.

Para a pronúncia, como para a acusação, a lei não exige, pois, a prova, no sentido de certeza moral da existência do crime, basta-se com a existência de indícios, de sinais de ocorrência de um crime, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que foi cometido o crime pelo arguido- (cfr. Curso de Processo Penal, Vol. III, Lisboa, 2a Edição, pág. 178/179).

Esta possibilidade é uma probabilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que não o tenha cometido.

Assim, na base da não pronúncia do arguido, para além da inexistência de factos puníveis, na ausência de responsabilidade do arguido ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual.

Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sua sustentação deverá buscar-se na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.

Passemos, então, ao caso concreto.

Com interesse para a decisão a proferir, indiciaram-se os seguintes factos:
1. No dia 6 de dezembro de 2015, pouco antes das 21H00, quando a assistente  L.P.R., na companhia de sua filha ARR e de uma neta menor, de 3 anos de idade, se encontrava junto da paragem de autocarros no Largo do Lumiar, em Lisboa, o arguido abeirou-se dela e, dirigindo-se-lhe, disse: “Sua puta! Sua vaca! Vai para a cona da tua mãe! Vai para os cornos do teu pai!;
2. Tendo entretanto surgido o autocarro n° 36, a assistente  L.P.R., sempre na companhia de sua filha ARR e da referida neta menor, tomou esse transporte, tendo todas descido, instantes depois, na paragem da Rua Professor …………, em Lisboa;
3. Após a assistente e acompanhantes terem atravessado a rua, o arguido, que as seguira, aproximou-se novamente da assistente e derramou-lhe sobre a cabeça um líquido, começando, em ato contínuo, a faiscar um isqueiro, também sobre a cabeça da mesma, ao mesmo tempo que lhe dizia que lhe ateava fogo;
4. A assistente, sem saber que líquido era aquele que sentira o arguido derramar sobre a sua cabeça, assustada, perguntou-lhe o que é que ele lhe estava a fazer;
5. Ato contínuo, o arguido desferiu-lhe várias pancadas com a mão na cabeça, o que fez com que a mesma caísse ao chão, desamparada;
6. Em consequência de tal agressão, a assistente sentiu dores e sofreu as seguintes lesões: uma equimose peri-orbitária à esquerda, que em 11.12.2015 se apresentava arroxeada, e traumatismo torácico à direita;
7. Tais lesões careceram de tratamento hospitalar e determinaram para a ofendida 10 dias de doença, todos com afetação da capacidade de trabalho geral, mas sem afetação da capacidade de trabalho profissional;
8. O arguido dirigiu à assistente as expressões mencionadas em 1 com o propósito de a ofender na sua honra, estando perfeitamente ciente de que as mesmas eram adequadas a alcançar esse desiderato;
9. O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar a assistente na sua integridade física, bem ciente que ao lançar líquido sobre a cabeça da mesma lhe provocaria incómodo e que as pancadas que desferiu a ofendiam no seu corpo e saúde, causando-lhe as lesões supra descritas, resultado que representou;
10. O arguido, que agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Para além dos enumerados, de entre as alegadas e com relevância para a decisão a proferir, não se mostram indiciadas quaisquer outras circunstâncias de facto.
A convicção quanto à matéria de facto suficientemente indiciada baseia-se no conjunto dos meios de prova trazidos aos autos nas fases de inquérito e instrução, designadamente nos que se encontram enumerados a fls. 102 da acusação pública e a fls. 133 da acusação particular.
Na fase da instrução, contou o Tribunal apenas com as declarações da assistente, que confirmou os factos já por si declarados nos autos, em conformidade com a narração que supra se consignou.

Aqui chegados, importa apreciar se, em face do acréscimo de factos que a instrução trouxe, em relação ao acervo factual que constava da acusação pública, deverá proceder a pretensão da assistente. Tais novos factos implicarão a pronúncia do arguido também pelo crime semipúblico de ameaça agravada?

A solução para a questão encontra-se quando se atenta nos requisitos da ação tipificada no artigo 153° como crime de ameaça.

Não é qualquer anúncio de mal que integra o crime de ameaça.

A ameaça típica corresponde ao anúncio de um mal futuro.

Sobre a interpretação de mal “futuro”, encontramos vasta jurisprudência dos nossos Tribunais superiores, podendo, exemplificativamente, citar-se os seguintes e doutos Acórdãos:
a)-“/ - Tudo o que não seja execução iminente ou em curso — caso de uso de violência - é futuro, em termos de anúncio de causação de um mal, sendo indiferente que a expressão usada seja “agora ”, “hoje ”, amanhã ou para o ano.
II Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal que o seu autor diz que será causado, não acompanhada, esta, de actos correspondentes à sua simultânea ou absolutamente imediata concretização.
III Ou seja, sempre que alguém dirija a outrem uma expressão verbal - ou de outra natureza - de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa acção com os actos de execução correspondentes -permanecendo inactivo em relação à execução do mal anunciado -, todo o tempo que durar essa inacção e se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é o futuro, em termos de interpretação da expressão em causa(Ac. da Relação de Guimarães de 07/01/2008, relatado pelo Desembargador Ricardo Silva, no proc. 1798/07-2, acessível em www.desi.pt.):
b)-“Com efeito, o Prof. Taipa de Carvalho assinala que “O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex, haverá ameaça, quando alguém afirma hei-de-te matar: já se tratará de violência quando alguém afirma “vou-te matar já” (Comentário Conimbricence do Código Penal, Tomo I, cit., pág. 343).

Mas, salvo o devido respeito, este trecho do texto do Prof. Taipa de Carvalho tem de ser cuidadosamente ponderado e aquelas palavras não podem ser aplicadas acriticamente, sob pena de intoleráveis atropelos à legalidade democrática, criando áreas de impunidade criminal onde o legislador as não autoriza, para além de se atraiçoar o pensamento daquele Mestre.

Antes do mais, é manifesto que o mal objecto da ameaça tem de ser um mal futuro.

Ameaçar “é anunciar a alguém um grave e injusto dano, necessariamente futuro ” (Ac. da Rel. do Porto de 17-1-1996, proc.0 n.° 9540886, rel. Fernando Frois, in www.dssi.pt).

Mal futuro que se contrapõe a um mal passado. O anúncio de um mal que se projectaria no passado não constitui ameaça. Assim, a expressão “eu já no dia 24 deste mês era para o matar com uma carrinha ” dirigido pelo arguido ao ofendido, por ser uma ameaça de acção em tempo passado não tem objectivamente, de forma inequívoca, o sentido de uma ameaça para o futuro, pelo que não integra o crime de ameaça”(Ac. da Rel. do Porto de 6-7-2000, proc.°n.°0010392, rel. Marques Pereira, in www.dssi.vt).

Mas o futuro é o tempo que há-de vir, aquilo que vai ser ou acontecer num tempo depois do presente (Academia das Ciências de Lisboa, Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, Ivol., 2001, pág. 1846), o tempo que se segue ao presente, o que está por vir, que há-de ser, que deverá estar, que há-de acontecer, suceder (Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, Lisboa, 2003, tomo IV, pág. 1828), aquilo que há-de ser (Cândido de Figueiredo, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, 25aed, vol. II, 1996, pág. 1225), que há-de vir (José Pedro Machado, Grande Dicionário da Língua Portuguesa, Lisboa, 1991, vol. III, pág. 170), que está para ser, que está por acontecer (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 2004, pág. 803).

Que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o este seja curto ou longo é irrelevante (Taipa de Carvalho, cit, §7, pág. 343).

O mal iminente é o mal que está próximo, que está prestes a acontecer.

Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo, prestes a acontecer. É claro que sendo o mal iminente poderemos estar perante uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é do respectivo mal, já que segundo a alínea c) do artigo 22° do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, actos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.

Mas daí se não segue, necessariamente, que deixe de existir uma ameaça. Quando alguém afirma que “vou-te matar”, poderemos estar perante uma tentativa de homicídio, de tentativa de coacção, que consomem naturalmente a ameaça, ou perante um crime de ameaças. Tudo depende da intenção do agente.

E que, para haver tentativa não basta a prática de actos de execução é necessário que esses actos sejam de execução de um crime que o agente “decidiu cometer” (art. 22°, n.°l).

Aliás, algumas linhas à frente do excerto acima citado e que tantas incompreensões tem gerado, o próprio Prof. Taipa de Carvalho esclareceu que “Necessário é só, como vimos, que não haja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos de tentativa (cf art. 22°-2-c) - op. cit. § 7, pág. 343 (itálico nosso).

Se, por exemplo, o agente não tem intenção de matar, aquela expressão, não integra um acto de execução de um crime de homicídio, mas integra claramente um crime de ameaças, verificados os demais pressupostos deste tipo de crime, nomeadamente a consciência do agente da susceptibilidade de provocação de medo ou intranquilidade [cfr. neste sentido, v.g., o Ac. da Rel. de Lisboa de 17-6-2004,proc.0 n.° 3525/04, rel. Almeida Cabral “(...) o agente que no calor de uma discussão, de natureza familiar, diz para a vítima em tom sério ‘mato-te’, comete o crime de ameaças previsto no art.°153° do Cód. Penal) ”,in www.pgdlisboa.pt), o Ac. da Rel. do Porto de 5-1-2000, proc.°n.° 0040533, rel. Pinto Monteiro, em que estavam em causa as expressões “sua filha da puta, eu rebento-te os cornos ” e “mato-vos a todos, seus filhos da puta ” dirigidas pela arguida à assistente, o Ac. da Rel. do Porto de 25-8-1999, proc.° n.° 9910861 em que estava em causa a conduta da arguida que intimidou a assistente, encostando à cabeça desta uma pistola que sabia não estar municiada, ao mesmo tempo que disse que a matava e que já tinha sete palmos à conta dela de sepultura”, ambos in www.dgsi.pt,], sendo certo que a motivação da ameaça como crime autónomo é irrelevante (...)” (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 18/05/2009, relatado pelo Desembargador Cruz Bucho, no proc. 349/07.1 PBVCT, acessível em www.dgsi.pt.).

Com o precioso auxílio desta consolidada jurisprudência, podemos afirmar que, não obstante a relevância dos novos factos trazidos na fase de instrução, o comportamento indiciado não é suscetível de fazer incorrer o arguido na prática de crime de ameaça.

O arguido, como se indicia, atuou com o propósito de molestar a ofendida, atingindo-a na sua integridade física. O ato de derramar líquido sobre a cabeça da mesma, constitui ingerência na integridade física da ofendida, desde logo por causar incómodo e desconforto, o que o arguido bem sabia e pretendeu alcançar de modo mais intenso ao afirmar que iria (ação iminente) lançar fogo à assistente, prosseguindo na execução do crime de ofensa à integridade física, através do desferimento de pancadas que atingiram a vítima na cabeça.

Estamos, pois, apenas e tão só, no campo do cometimento do crime de ofensa à integridade física simples.

Devendo imputar-se ao arguido todos os factos que supra se consideraram suficientemente indiciados, importará proferir decisão que, não o pronunciando pelo crime de ameaça agravada, o pronuncie apenas pelos crimes de ofensa à integridade física simples e injúrias. Assim se decidirá.
*

Em conformidade com o exposto, decido:
A Não pronunciar o arguido A.S.M. pela prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153° e 155°, n° 1, al. b), ambos do Código Penal, que lhe foi imputado pela assistente  L.P.R., ordenando nessa parte o arquivamento dos autos e condenando a assistente no pagamento da taxa de justiça que fixo em 2 (duas) UC (artigo 515°, n° 1, al. a, do Código de Processo Penal), sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido;
B pronunciar para julgamento, em Processo Comum, perante Tribunal Singular o arguido:
A.S.M., filho de JSM e de LSM, natural da freguesia de ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, solteiro, lavador de automóveis, nascido no dia 01/02/1962, residente na Rua ,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,,, em Lisboa, porquanto:
1. No dia 6 de dezembro de 2015, pouco antes das 21H00, quando a assistente  L.P.R., na companhia de sua filha ARR e de uma neta menor, de 3 anos de idade, se encontrava junto da paragem de autocarros no Largo do Lumiar, em Lisboa, o arguido abeirou-se dela e, dirigindo-se-lhe, disse: “Sua puta! Sua vaca! Vai para a cona da tua mãe! Vai para os cornos do teu pai!;
2. Tendo entretanto surgido o autocarro n° 36, a assistente  L.P.R., sempre na companhia de sua filha ARR e da referida neta menor, tomou esse transporte, tendo todas descido, instantes depois, na paragem da Rua ……………., em Lisboa;
3. Após a assistente e acompanhantes terem atravessado a rua, o arguido, que as seguira, aproximou-se novamente da assistente e derramou-lhe sobre a cabeça um líquido, começando, em ato contínuo, a faiscar um isqueiro, também sobre a cabeça da mesma, ao mesmo tempo que lhe dizia que lhe ateava fogo;
4. A assistente, sem saber que líquido era aquele que sentira o arguido derramar sobre a sua cabeça, assustada, perguntou-lhe o que é que ele lhe estava a fazer;
5. Ato contínuo, o arguido desferiu-lhe várias pancadas com a mão na cabeça, o que fez com que a mesma caísse ao chão, desamparada;
6. Em consequência de tal agressão, a assistente sentiu dores e sofreu as seguintes lesões: uma equimose peri-orbitária à esquerda, que em 11.12.2015 se apresentava arroxeada, e traumatismo torácico à direita;
7. Tais lesões careceram de tratamento hospitalar e determinaram para a ofendida 10 dias de doença, todos com afetação da capacidade de trabalho geral, mas sem afetação da capacidade de trabalho profissional;
8. O arguido dirigiu à assistente as expressões mencionadas em 1 com o propósito de a ofender na sua honra, estando perfeitamente ciente de que as mesmas eram adequadas a alcançar esse desiderato;
9. O arguido agiu com o propósito concretizado de molestar a assistente na sua integridade física, bem ciente que ao lançar líquido sobre a cabeça da mesma lhe provocaria incómodo e que as pancadas que desferiu a ofendiam no seu corpo e saúde, causando-lhe as lesões supra descritas, resultado que representou;
10. O arguido, que agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Com tais factos incorreu o arguido na prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, dos seguintes crimes:
um crime de injúrias, p. e p. pelo artigo 181°, n° 1, do Código Penal;
um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143°, n° 1, do Código Penal.”

3. Em formulação doutrinalmente bem marcada, ainda no âmbito do Código de Processo Penal de 1929, os indícios só serão suficientes para a pronúncia quando, já em face deles, seja de considerar como razoável a probabilidade da futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.  Segundo a elaboração jurisprudencial posterior, este juízo de possibilidade razoável surge frequentemente traduzido em termos comparativos entre condenação e absolvição, como será exemplo o decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 7-10-1992 (www.dgsi.pt,processo 040528), no Acórdão de 28-06-2006, relator Conselheiro Pereira Madeira www.dgsi.pt processo 06P23125, ou nos Acórdãos de 21-05-2008, de 18-06-2006 e de 08-10-2008, todos relatados pelo Conselheiro Soreto de Barros. Neste último, in www.dgsi.pt , processo 06P2050 consta que “Tanto a doutrina como a jurisprudência têm realçado que a «possibilidade razoável» de condenação é mais positiva que negativa: «o juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido» ou, noutras palavras, os indícios são suficientes quando existe «uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição”.

Na elaboração da decisão instrutória, deve o juiz proceder a uma análise objectiva e conjunta da credibilidade e da consistência dos meios de prova disponíveis, à luz das regras normais da vivência comum e de critérios de lógica e de razoabilidade, para concluir se aqueles mesmos elementos de prova, uma vez produzidos e/ou examinados (“repetidos”) em audiência de julgamento e sujeitos ao contraditório pleno, oralidade, imediação e sob plena aplicação do princípio in dubio pro reo, permitem um juízo de probabilidade séria de condenação do arguido.

Só em caso de resposta positiva a esta questão, o juiz deve pronunciar o arguido, decidindo submetê-lo a julgamento.

Vale aqui em toda a sua extensão o princípio da livre apreciação da prova, com o concomitante dever de fundamentação das decisões jurisdicionais[1] .

4. Nestes autos, o Ministério Público considerou indiciado que o arguido A.S.M. se dirigiu à assistente  L.P.R. e desferiu-lhe várias pancadas com a mão na cabeça, causando dores e lesões no corpo da vítima. Por esses factos, o Ministério Público acusou o arguido do cometimento de um crime de ofensa à integridade física e a questão controvertida consiste em saber se o arguido deve ser sujeito a julgamento pelo cometimento de um crime de ameaça agravada.
A assistente delimitou o objecto da instrução, enunciando no requerimento inicial ter como indiciado que o arguido derramou sobre a cabeça da vítima, aqui assistente, um líquido, começando, em ato contínuo, a faiscar um isqueiro, também sobre a cabeça da mesma, ao mesmo tempo que lhe dizia que lhe ateava fogo, que a assistente assustada, perguntou ao arguido o que é que ele lhe estava a fazer, após o que, em acto contínuo, o arguido desferiu várias pancadas com a mão na cabeça da ofendida, provocando-lhe a queda ao solo. Com base unicamente nestes factos, a assistente afirmou a discordância com a acusação pública e firmou a pretensão de ver o arguido pronunciado por um crime de ameaça agravada, previsto e punido pelo artigo nos artigos 153º e 155º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal .

No recurso, a assistente pretende que se considere também indiciado, com base unicamente nas suas próprias declarações prestadas em 30-05-2017, que já depois da agressão, o arguido disse para a aqui assistente “eu vou-lhe fazer pior, vou-lhe mesmo botar fogo em si” .

Em nossa apreciação, a decisão instrutória sobre o elenco dos factos indiciados encontra-se devidamente fundamentada, sem que se verifique erro na apreciação da prova ou se encontre elemento de prova que nos imponha uma decisão diferente.

Tanto mais quanto não encontramos nem na denúncia, nem no auto das declarações e depoimentos prestados em inquérito, qualquer referência da assistente ou da sua filha, ARR  , sobre as palavras de significado ameaçador pretensamente ditas pelo arguido depois de terminadas as agressões físicas.

Ainda que assim não fosse, a inclusão na decisão instrutória destes novos factos referentes às palavras ditas pelo arguido em momento posterior constituiria uma modificação estrutural dos factos descritos no requerimento de abertura de instrução da assistente e da acusação, de modo a que a matéria de facto indiciada passaria a contar com elementos de imputação de um crime diverso. Seria por isso uma alteração substancial dos factos  
Como bem notou o magistrado do Ministério Público na resposta ao recurso, sempre estaria vedada ao juiz de instrução a pronúncia do arguido por esses factos, sob pena de nulidade processual (artigos 1º, alínea f) e 309º n.º 1 do Código de Processo Penal).   

5. A questão controvertida no enquadramento jurídico dos factos indiciados reside na interpretação e aplicação do conceito referente à concretização no tempo, uma vez que o mal anunciado, enquanto elemento objectivo do tipo de crime de ameaça, tem de ser futuro.
Na construção do conceito de “mal futuro” tem sido frequentemente invocado o entendimento do Professor Taipa de Carvalho constante do Comentário Conimbrisence. Segundo este autor, "O mal ameaçado tem de ser futuro. Isto significa apenas que o mal objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois que, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, isto é, do respectivo mal. Esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre ameaça (de violência) e violência. Assim, p. ex, haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de te matar”: já se tratará de violência quando alguém afirma “vou-te matar já” e,  depois de referir que considera irrelevante que o agente indique o prazo dentro do qual concretizará o mal anunciado, o mesmo autor afirma novamente que considera necessário para o preenchimento do tipo de ameaça “que não aja iminência de execução, no sentido em que esta expressão é tomada para efeitos da tentativa” (Comentário Conimbricense, Coimbra Editora, 1999, I, § 7, p. 343).

A especificação do critério adequado reside precisamente nesta última frase da citação: o mal será de considerar como “futuro”, com relevo para a verificação do crime de ameaça, desde que não se trate duma tentativa criminosa, nos termos em que o art.º 22º do Código Penal a descreve, ou seja, enquanto o agente não praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, entendendo-se como actos de execução aqueles que preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime, os actos que sejam idóneos a produzir o resultado típico ou actos que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, sejam de natureza a fazer esperar que se lhes sigam os anteriormente enunciados.

Ainda no mesmo sentido, escreveu-se no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17-03-2015.
“Para efeitos do preenchimento do tipo legal previsto no art. 153º do C. Penal a ameaça com a prática de um dos crimes de referência do artigo 153º não é típica se ocorrer em simultâneo com a sua execução, sob a forma tentada ou consumada, ou se a execução do crime prometido ainda não se iniciou mas está iminente, pois em ambas as situações, ou seja, quando se verifique identidade do crime prometido com o crime concretamente executado, o desvalor inerente à ameaça é desconsiderado pelo legislador por estar abrangido pela incriminação do crime prometido.

Isto é, a execução iminente do crime prometido não se distingue da efetiva execução do mesmo, a título tentado ou consumado, para efeitos da exclusão da tipicidade da ameaça a que se reporta o art. 153º do C.Penal, merecendo o mesmo tratamento jurídico-penal.

Na verdade, apesar de ser autonomizável o desvalor contido na ameaça com a prática de um crime cuja execução se lhe segue de imediato - pois a experiência mostra que em muitos casos (vg aquando da inflição de ofensas à integridade física que se prolongam no tempo) a potencialidade da ameaça para provocar medo ou inquietação (grosso modo) não deixa de verificar-se enquanto dura a execução respetiva ou no curto período de tempo que medeie entre a ameaça e a sua concretização - , o legislador pressupõe já a punição por aquele mesmo desvalor na punição do crime cometido, como referido.

Isto é, se bem vemos a questão, a desconsideração do desvalor da ameaça pressuposta pelo legislador só se verifica nos casos em que a ameaça é seguida ou acompanhada da execução do crime prometido ou por ele consumido – e não outro -, tanto na forma consumada como tentada, ou seja, quando se verifique identidade do crime prometido com o crime concretamente executado.

Significa isto, que o critério determinante para aferição da incriminação autónoma da “ameaça” é que da conduta global do agente praticada em dado momento resulte que o desvalor contido na ameaça não se esgota no desvalor do ilícito típico executado na mesma ocasião, aferida esta pelo critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito-global adiantado e explicado pelo Prof. F.Dias (vd, Direito Penal, parte Geral, Tomo I, 2ª ed., 2007, especialmente o § 18 do cap. 43º a pp. 1016 e sgs.). Isto é, o desvalor da ameaça estará contido na punição do crime prometido quando, por se verificar aquela mesma punição, façam parte de um mesmo acontecimento ilícito-global.” (in www.dgsi.pt, proc.1857/11.5PCSTB.E1, António Latas):
Assim, a conclusão acerca da característica temporal da ameaça há-de resultar da ponderação de um conjunto diversificado de factores referentes à conformação global do facto, em que relevam quer elementos objectivos, quer elementos subjectivos referentes ao propósito ou fim visado pelo agente, impondo-se por isso saber tão seguro quanto possível se ele agiu naquela forma para perturbar a liberdade de acção da pessoa visada ou antes, já com conhecimento e vontade de, por exemplo, atingir o património, a integridade física ou mesmo a vida da vítima.

No nosso caso, o arguido disse que iria “pegar fogo” à assistente e logo praticou actos susceptíveis de constituírem o início de execução desse mal, vertendo no corpo da vítima um líquido que poderia ser entendido como combustível e accionando um isqueiro.
Ou seja, o mal apregoado pelo arguido não se projecta para um momento futuro, sendo antes contemporâneo do próprio anúncio.

Na “imagem global do facto” teremos ainda de considerar que o arguido de imediato começou a atingir fisicamente a ofendida, desferindo-lhe pancadas com a mão na cabeça de  L.P.R. Reinaldo
Neste circunstancialismo, a expressão utilizada pelo arguido acabou por não ter qualquer repercussão na liberdade de decisão e de acção futura da vítima, sendo de concluir que o intenso desvalor da conduta do arguido ao dizer que iria pegar fogo e ao derramar o líquido na cabeça da ofendida, se encontra, ainda assim, abrangido na punição pelo cometimento do crime de ofensa à integridade física.

Por tudo isto, propendemos para considerar que a matéria de facto indiciada não permite o preenchimento do tipo objectivo do crime de ameaça agravada relativo ao “anúncio de um mal futuro”, mas apenas do tipo de crime de ofensa à integridade física.

Nestes termos terá de ser negado provimento ao recurso da assistente.

6. Em caso de improcedência total do recurso, há lugar a condenação da assistente nas custas pela actividade processual a que deu causa, compreendendo a taxa de justiça e os encargos (artigo 515º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal), sem prejuízo da isenção de que beneficie por protecção jurídica.

Tendo em conta o disposto no artigo 8º nº 5 e tabela III do Regulamento das Custas Processuais e a complexidade do processo, considera-se justo e equitativo fixar a taxa de justiça devida em quatro UC.

7. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso da assistente  L.P.R., mantendo na íntegra a decisão instrutória.
Condena-se a assistente nas custas do recurso, com quatro UC de taxa de justiça, sem prejuízo da isenção de que beneficie.



Lisboa, 6 de Dezembro de 2017.


Texto elaborado em computador e revisto pelos juízes desembargadores que o subscrevem.


João Lee Ferreira
Nuno Coelho



[1]Vide, a propósito da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, ou da “íntima convicção”, a todas as fases do processo, incluindo a instrução, Paulo Saragoça da Mata, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença” in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, paginas 221 a 279 e, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-10-2009, Cons. Souto Moura processo 1/08.0TRLSB.L1 in www.dgsi.pt em que se escreveu, a propósito de uma decisão instrutória, que “não podemos olvidar que estamos no âmbito da livre apreciação da prova e o Tribunal é soberano neste aspecto. A prova é apreciada de harmonia com as regras de experiência e a livre convicção da entidade competente, tendo como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e de lógica do homem médio. É o tribunal que faz a análise das provas produzidas e delas extrai livremente as suas conclusões segundo as regras da experiência. É ao tribunal que julga que compete livremente apreciar se um só depoimento, ou documento é decisivo para formar a sua convicção, tanto mais que "testium fides diligenter examinanda est" (cfr. Vaz Serra, in Excertos da Exposição de Motivos, com referência ao artigo 396.°, do C. Civil). (…). O que é necessário é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique "os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento de facto".