Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2733/18.6T8CSC-C.L1-8
Relator: CARLA MENDES
Descritores: PROCESSO DE PROMOÇÃO E PROTECÇÃO
CONFIANÇA COM VISTA A FUTURA ADOPÇÃO
SUPERIOR INTERESSE DO MENOR
AUDIÇÃO DO MENOR
ADMISSIBILIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 07/08/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: - A pedra basilar de todos os processos que respeitam às crianças é o do seu superior interesse.
- A lei internacional, bem como a nacional privilegiam o direito da criança em ser escutada/ouvida, bem como o seu direito a ter uma palavra a dizer nas questões que lhes respeitem desde que tenham discernimento e maturidade para o fazer
- Afastada está a audição da criança, cuja medida proposta é a da confiança com vista à futura adopção, em sede de debate judicial, com observância do contraditório e as suas declarações serem consideradas como meio probatório, não descurando a existência no processo de elementos probatórios em que a decisão se alicerçará, por ser a que melhor salvaguarda/protege o seu superior interesse.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 8ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

O Ministério Público instaurou processo de promoção e protecção relativamente ao menor Pedro ........ e outros.
Nas alegações, a progenitora Sónia ......... requereu a audição de seu filho, em sede de debate judicial.
Por despacho, de 12/3/21, foi indeferida a audição do menor com o fundamento que se transcreve:
“Em prol do superior interesse da criança, afigura-se-nos que a sua audição, como meio de prova, se revelaria bastante contraproducente para a criança, desde logo em termos emocionais e psicológicos, considerando, além do mais, a idade do Pedro.
Importa ter em especial consideração que a criança não pode, em momento algum, sentir o “peso da decisão” ou que esta estaria dependente daquela que será/seria a sua vontade (seja esta qual for), sendo que a decisão a proferir no âmbito dos presentes autos (de aplicação de medida de promoção e protecção de confiança com vista a adopção ou de outra medida), deve basear-se na prova testemunhal apresentada, em articulação com os demais elementos constantes dos autos (e indicados).
Ademais, face à alegação apresentada pela progenitora, afigura-se-nos desnecessária a audição da criança (como meio de prova)” – fls. 12 e sgs.
Inconformada, a progenitora apelou, formulando as conclusões que se transcrevem:  
A. O presente recurso é interposto do despacho de fls., proferido, em 12/3/3/21, com o nº de referência 129652680, em que se indefere a audição do menor, com 9 anos de idade, requerida pela progenitora nas alegações apresentadas.
B. No indicado despacho é referido, em suma, que a audição da criança prejudica o seu Superior Interesse, sendo contraproducente, atendendo à sua idade. Mais é referido que a criança pode sentir o peso da decisão “sendo que a decisão a proferir no âmbito dos presentes autos (de aplicação de medida de promoção e protecção de confiança com vista a adopção ou de outra medida), deve basear-se na prova testemunhal apresentada, em articulação com os demais elementos constantes dos autos (e indicados).
C. Entende a progenitora que, contrariamente ao que é defendido pelo tribunal a quo, é o Superior Interesse da Criança que clama pela sua audição.
D. Em causa nos autos, está a possibilidade de aplicação à criança da medida de confiança a instituição com vista à sua futura adopção, inibição do exercício das responsabilidades parentais aos progenitores e a cessação das visitas e contactos à criança por parte de qualquer elemento da família biológica, conforme promovido pelo Ministério Público.
E. Trata-se de um corte total e definitivo entre a criança e a família natural sem que, em momento algum do processo, a criança fosse ouvida.
F. A criança, enquanto sujeito titular de direitos, tem o direito de participação e audição, internacionalmente reconhecido e acolhido no ordenamento jurídico português.
G. Assim o proclama, a título de exemplo, o art. 12 da Convenção Sobre o Direito da Criança: “ 1. Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da Criança, de acordo com a sua idade e maturidade”.
H. Para este fim, é assegurada à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante ou de organismo adequado, segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional."
I. Na legislação nacional, no que diz respeito aos processos de promoção e protecção, tal direito vem expressamente consagrado na alínea j) do artigo 4 LPCJP, que obriga o decisor a respeitar o direito da Criança a ser ouvida e a participar nos actos e na definição da medida de promoção dos direitos e de protecção.
J. Ainda que, o processo judicial de promoção dos direitos e protecção das crianças e jovens em perigo, seja de jurisdição voluntária, sempre o decisor estará obrigado a observar o princípio do contraditório, porque é disso que se trata: dar oportunidade à Criança de exprimir a sua opinião e de a ver valorada pelo decisor, quando está em causa uma decisão que poderá alterar drasticamente a sua vida, para sempre.
K. O Tribunal a quo decidiu desconsiderar a opinião da Criança, coartando o seu direito a ser ouvida, não lhe dando sequer a oportunidade de se pronunciar sobre a requerida audição.
L. A violação do princípio do contraditório, com a desconsideração da opinião da Criança quando está em causa o seu Superior Interesse, é susceptível de influir da decisão da causa. 
M. A omissão desta formalidade legal, de audição obrigatória e participação da Criança, porque pode influir no exame e na decisão da causa, fere o processo de nulidade - que desde já se invoca, com todos os efeitos legais -, nos termos do disposto no artigo 195 CPC.
Mais se diga que,
N. Para justificar esta omissão, o Tribunal a quo alega que a audição da Criança se revelaria bastante contraproducente, desde logo em termos emocionais e psicológicos, considerando, além do mais, a idade do Pedro, mais alegando que a Criança não pode sentir o "peso da decisão".
O. A idade da criança não representa, só por si, fundamento para a preterição da sua audição.
P. Independentemente da idade, o que está em causa é a capacidade ou incapacidade da criança para formar e exprimir a sua opinião sobre um assunto que lhe é tão caro.
Q. O tribunal a quo não alega, nem fundamenta qualquer incapacidade ou imaturidade da criança para formar e exprimir a sua opinião.
R. Em diversos relatórios que fazem parte dos autos, é referida a inteligência e maturidade da criança, sendo-lhe reconhecidas “elevadas capacidades e de aprendizagem”, como bem refere o Ministério Público no art. 80 das suas alegações.
S. Nos termos do disposto no art. 154 CPC, o tribunal a quo está adstrito ao dever de fundamentar a decisão, não bastando, sem mais, invocar a idade da criança como justificação.
T. A ausência de fundamentação do despacho proferido acarreta a sua nulidade, nos termos do disposto no art. 615/1 b) CPC, que se invoca para todos os efeitos legais.
U. Assim, deve o recurso proceder, revogando-se o despacho que indefere a audição da criança, ferido que está de nulidade, substituindo-se por outro que defira essa audição, por corresponder ao Interesse Superior da Criança.
A Associação Portuguesa Para o Direito dos Menores e da Família, interveniente acidental, ao pronunciar-se sobre o efeito a atribuir ao recurso, defendeu a não audição da criança com fundamento na sua idade, maturidade e o seu estado psicológico, requerendo a audição do psicólogo que o acompanha – fls. 26 e sgs.
Por seu turno, a Exma. Patrona do menor, defendeu que, no caso concreto, a audição do menor poderá traduzir-se numa pressão sobre ele, acabando por ir ao desencontro do seu Interesse Superior, prejudicando o seu bem-estar, quando o que se pretende é garanti-lo – fls. 30 e sgs.
Nas contra-alegações o Ministério Público pugnou pela confirmação da decisão, sustentando que a audição da criança com vista à emissão de uma opinião não se confunde com a audição para tomada de declarações para efeitos probatórios (cfr. art. 5/1 e 2, 6 e 7 RGPTC, pela desnecessidade da audição do menor, em sede de debate judicial, não só face ao seu actual estado emocional e psicológico, como também pelo facto das suas declarações, com observância do contraditório (pedido formulado por sua mãe nas alegações), poderem ser consideradas como meio probatório, o que é contrário ao Interesse Superior da Criança – fls. 35 e sgs.
Factos com interesse constam do extractado supra.
Dispensados os vistos, cumpre decidir.
Atentas as conclusões da apelante que delimitam, como é regra o objecto de recurso – arts. 639 e 640 CPC – as questões que cabe decidir consistem em saber se há ou não lugar à nulidade do despacho e à audição da criança, em sede de debate judicial.
Vejamos, então:
a) Nulidade da sentença
Defende a apelante a nulidade do despacho por falta de fundamentação, porquanto estando em causa a capacidade ou incapacidade da criança de expressar a sua opinião, o despacho que indeferiu a audição do menor limitou-se a invocar a sua idade, sem ter alegado ou fundamentado a inexistência de incapacidade ou imaturidade, sendo certo que em vários relatórios junto aos autos e conforme alegado pelo Ministério Público, são-lhe reconhecidas elevadas capacidades e de aprendizagem.
A sentença é nula quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, aplicando-se, com as necessárias adaptações aos despachos – arts. 613/3 e 615/1 b) CPC.
Esta nulidade ocorre quando haja falta de motivação, ou seja, julgador não especifica os fundamentos, de facto e de direito, que justificam a decisão.
Uma decisão sem fundamentos equivale a uma conclusão sem premissas.
A razão substancial reside no facto de que a sentença deve representar a adaptação da vontade abstracta da lei ao caso particular submetido à apreciação do juiz; ao comando abstracto e geral da lei, o juiz substitui um comando particular e concreto.
No entanto, este comando não se pode gerar arbitrariamente, uma vez que o juiz não tem o poder de ditar normas de conduta, de impor a sua vontade às vontades individuais que estão em conflito, porque a sua atribuição é unicamente a de extrair da norma formulada pelo legislador a disciplina que se ajusta ao caso sujeito à sua decisão, cumpre-lhe demonstrar que a solução dada ao caso é legal e justa, é a emanação correcta da lei.
As razões práticas residem no facto de que as partes precisam de ser elucidadas a respeito dos motivos da decisão. Sobretudo a parte vencida tem o direito de saber por que razão a sentença lhe foi desfavorável; e tem mesmo necessidade de o saber, quando a sentença admita recurso, para poder impugnar o fundamento ou fundamentos perante o tribunal superior. Este carece também de conhecer as razões determinantes da decisão, para as poder apreciar no julgamento do recurso.
Não basta que o juiz decida a questão posta, é necessário e indispensável que produza as razões em que se apoia o seu veredicto.
O valor doutrinal da sentença, valor como elemento de convicção, vale o que valerem os seus fundamentos.
Acresce ainda que existe uma distinção entre a falta total de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada.
O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiente ou deficiente motivação, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não acarreta nulidade – cfr. A. Reis CPC Anotado, vol. V – 138 segs., Coimbra Editora, ano 1981.
In casu, constata-se que no despacho impugnado, de 12/3/21, se encontra explanada a razão (s), alicerçada no Superior Interesse da Criança, da sua não audição, como meio de prova, em sede de debate judicial, considerando-a contraproducente (idade e em termos emocionais e psicológicos), referindo que “em momento algum, a criança, pode sentir o “peso da decisão”, devendo a decisão assentar, na prova (testemunhal e demais elementos constantes dos autos).
Assim, atento o extractado supra, o despacho encontra-se fundamentado e, ainda que se considerasse a fundamentação insuficiente e/ou deficiente, o que não sucedeu, o despacho não enferma da nulidade arguida.
Destarte, falece a pretensão da apelante.
b) Audição da criança
Defende a apelante a nulidade do processo com fundamento na preterição do dever legal de audição e participação da criança, omissão essa susceptível de influir no exame a na decisão da causa.
Os presentes autos são de jurisdição voluntária, não estando sujeitos a critérios de legalidade estrita, devendo ser adoptada, em cada caso, a solução mais conveniente e oportuna – arts. 986 CPC e 12 RGPTC (DL 141/2015 de 8/9).
A questão que aqui se discute é a de saber se há ou não lugar à audição do menor, em sede de debate judicial, com observância do contraditório, podendo as suas declarações serem consideradas, no processo, como meio probatório – cfr. art. 5/6 e 7 RGPTC.
A pedra basilar de todos os processos que respeitam às crianças, enquanto menores, é o do seu interesse - cfr. arts. 1878/1, 1885, 1905, 36 e 69 CRP, arts. 3/1, 6/3 e 12 da Convenção Sobre os Direitos das Crianças, RGPTC, Lei de Protecção das Crianças e Jovens em Perigo.
O art. 12 da Convenção dos Direitos da Criança, aprovado na Assembleia-Geral das Nações Unidas, de 20/11/89, e ratificada por Portugal em 21/9/90 dispõe:
1 – Os Estados Partes garantem à criança com capacidade de discernimento o direito de exprimir livremente a sua opinião sobre as questões que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas em consideração as opiniões da criança, de acordo com a sua idade e maturidade.
2 – Para este fim é assegurado à criança a oportunidade de ser ouvida nos processos judiciais e administrativos que lhe respeitem, seja directamente, seja através de representante ou de organismo adequado segundo as modalidades previstas pelas regras de processo da legislação nacional.     
Subjaz à Lei de protecção da criança e jovens em perigo, como princípio orientador, a obrigatoriedade da audição e participação da criança e jovem com mais de 12 anos – a criança e jovem, em separado ou na companhia dos pais ou de pessoa que tenha a sua guarda de facto, têm direito a ser ouvidos e participar nos actos e na definição da medida de promoção dos direitos e de protecção – cfr. art. 4 e 5 f) da Lei 147/99 de 1/9.
Princípio este acolhido nos processos tutelares cíveis (RGPTC)  dispondo o seu art. 4 que estes processos regem-se pelos princípios orientadores estabelecido na lei de protecção de crianças e jovens em perigo e ainda pela simplificação instrutória e de oralidade, consensualização e audição e participação da criança.
No respeitante à audição e participação da criança dispõe a alínea c) cit. art. que a criança com capacidade de compreensão dos assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade, é sempre ouvida sobre decisões que lhe digam respeito, preferencialmente com o apoio da assessoria técnica do tribunal, sendo garantido, salvo recusa fundamentada do juiz, o acompanhamento por adulto da sua escolha sempre que nisso manifeste interesse.
Estipula o art. 5/1 que a criança tem direito a ser ouvida, sendo a sua opinião tida em conta pelas autoridades judiciárias na determinação do seu superior interesse.
Sempre que o interesse da criança o justificar, o tribunal, a requerimento ou oficiosamente, pode proceder à audição da criança, em qualquer fase do processo, a fim de que o seu depoimento possa ser considerado como meio probatório nos actos processuais posteriores, incluindo o julgamento, obedecendo a tomada de declarações às regras constantes do nº 7 do cit. art.
Tal também decorre, em sede de regulação das responsabilidades parentais, art. 35 da RGPTC, que na conferência de pais, a criança com idade superior a 12 anos ou com idade inferior, com capacidade para compreender os assuntos em discussão, tendo em atenção a sua idade e maturidade é ouvida pelo tribunal nos termos da alínea c) art. 4 e 5, salvo se a defesa do seu superior interesse o desaconselhar.
Verifica-se, assim, que, quer a lei internacional, quer a nacional, privilegiam o direito da criança em ser escutada, bem como o seu direito a ter uma palavra a dizer nas questões que lhe respeitem, desde que, para tal, tenham discernimento –   cfr. Ac. RL de 4/7/2007, relator Bruto da Costa, in www.dgsi.pt.
Não obstante, a audição da criança cede face à defesa do seu Superior Interesse, i. é, estando este em causa afastada/desaconselhada está a audição da criança.
A audição pressupõe duas vertentes, a saber: uma relacionada com a opinião da criança e outra para a tomada de declarações como meio de prova.
In casu, atento o extractado supra, o superior interesse da criança, o processo em questão (tutelar cível) a medida proposta pelo Ministério Público (confiança judicial com vista à adopção), a idade da criança (8/9 anos), os aspectos emocionais e psicológicos do menor subjacentes a toda esta situação, o facto da audição solicitada visar não já a sua opinião, mas sim a sua audição em sede de debate judicial, com observância do contraditório e as suas declarações serem consideradas como meio probatório, a existência no processo de elementos (documentos, pareceres, relatórios, etc.), cujo atendimento sustentará a decisão, não se olvidando também a prova testemunhal, afastada/desnecessária/desaconselhada está a audição do menor, por se afigurar, tal como referido pela 1ª instância, prejudicial, contraproducente e pouco avisada, sendo esta decisão a que melhor salvaguarda/protege o superior interesse da criança.
Destarte, soçobra a pretensão.
Concluindo:
- A pedra basilar de todos os processos que respeitam às crianças é o do seu superior interesse.
- A lei internacional, bem como a nacional privilegiam o direito da criança em ser escutada/ouvida, bem como o seu direito a ter uma palavra a dizer nas questões que lhes respeitem desde que tenham discernimento e maturidade para o fazer
- Afastada está a audição da criança, cuja medida proposta é a da confiança com vista à futura adopção, em sede de debate judicial, com observância do contraditório e as suas declarações serem consideradas como meio probatório, não descurando a existência no processo de elementos probatórios em que a decisão se alicerçará, por ser a que melhor salvaguarda/protege o seu superior interesse.

Pelo exposto, acorda-se em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirma-se a decisão.
Custas pela apelante.

Lisboa, 8/7/2021.
Carla Mendes
Rui da Ponte Gomes
Luís Correia de Mendonça