Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2103/19.9T8LRS.L1-7
Relator: LUÍS FILIPE PIRES DE SOUSA
Descritores: ERRO JUDICIÁRIO
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO
PRÉVIA REVOGAÇÃO DA DECISÃO DANOSA
PRESSUPOSTO PROCESSUAL ESPECIFICO
INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 10/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I.A norma do Artigo 13º, nº2, da Lei nº 67/2007, de 31.12 (responsabilidade civil do Estado por erro judiciário), ao exigir a prévia revogação da decisão danosa, não padece de inconstitucionalidade material porquanto: a natureza da função jurisdicional e o modo como o respetivo exercício se encontra estruturado (o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais) justificam tal limitação; uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, em princípio, e salvo razões juspositivas de especial relevo, não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira; a segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores constituem bens constitucionais reconhecidos; tal solução legal não elimina o direito à indemnização por erro judiciário, limitando-se a acomodar no regime respetivo, às exigências correspondentes à estrutura e ao modo de funcionamento do sistema judiciário constitucionalmente consagrado; não exclui, nem cerceia arbitrária e desproporcionadamente o princípio da responsabilidade do Estado, consagrado no Artigo 22º da CRP.

II.O apelante não invoca nem demonstra que o julgamento, ocorrido na ação finda, demande a aplicação de direito comunitário, isto é, que haja que formular um juízo de conformidade entre as normas de Direito interno aplicadas no processo, em que o erro judiciário pretensamente ocorreu, e as normas de Direito da União Europeia cuja inobservância originou o erro judiciário. Pelo contrário, trata-se de um puro conflito de direito privado atinente à celebração de um contrato-promessa de compra e venda e vicissitudes daí emergentes.

III.Assim sendo, improcede a argumentação do apelante no sentido de que tal regime viola os princípios da lealdade comunitária e do primado do direito comunitário.

IV.A regra decorrente do Artigo 13º, nº2, da Lei nº 67/2007, de 31.12, no segmento atinente à prévia revogação da decisão danosa, não consubstancia uma norma atinente a um formalismo processual, não fixa os requisitos formais ou o tempo da prática de um ato processual, tido como indispensável para o exercício de um direito, qual seja o de responsabilizar o Estado por erro judiciário.
V.Tal segmento normativo estabelece antes um pressuposto processual específico.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:


RELATÓRIO


MC propôs ação declarativa comum contra o Estado Português, peticionando a condenação deste no pagamento de uma indemnização, a título de responsabilidade extracontratual, no valor de € 198.750,50 (cento e noventa e oito mil setecentos e cinquenta euros e cinquenta cêntimos).

Para o efeito, alegou, em síntese, que a ação ordinária, que correu termos sob o n.º (…), não foi julgado de forma equitativa, pelo que o Estado Português deverá ser responsabilizado pelos danos sofridos pelo Autor.

Concretizou que, na sequência da celebração de um contrato-promessa de compra e venda, entre si e JA, tendo pago para o efeito € 149.630,37 (cento e quarenta e nove mil seiscentos e trinta euros e trinta e sete cêntimos), o negócio nunca se concretizou e, consequentemente, perdeu o referido valor.Peticionou a condenação deste no pagamento do valor referido em dobro, mas o Tribunal fez improceder a ação e não aplicou o disposto no art. 892.º do CC respeitante à venda de bens alheios.

A Mma. Juíza a quo proferido saneador-sentença, cujo dispositivo foi o seguinte: «julgo verificada a exceção dilatória inominada consubstanciada na falta de revogação prévia da decisão danosa e, consequentemente, absolvo o Réu da instância.»

***

Não se conformando com a decisão, dela apelou o requerente, formulando, no final das suas alegações, as seguintes CONCLUSÕES:
1-A revogação é uma condição prévia da ação de indemnização e no caso dos autos tal revogação não ocorreu nem poderá ocorrer em processo algum! explica-se porque razão é impossível a revogação e a prova da mesma; é que em Portugal nunca existe qualquer erro grosseiro, evidente, crasso, palmar indiscutível e de tal modo grave que possa fundamentar o pedido do autor.
2-A interpretação normativa retirada do artigo 13. °, n.º 2, do RCEEP viola os artigos 20. °, n.os 1, 4 e 5, da Constituição e 6.°, n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
3-Limita-se consideravelmente o exercício desse direito [— o direito a ser indemnizado —], o que equivale ao “não direito”, pois, além de ser necessário alegar e provar que a decisão é “manifestamente ilegal ou inconstitucional”, faz depender ainda o exercício desse direito da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, o que nunca é possível.
4-Parece que, face ao trânsito em julgado da decisão, nunca poderia o autor exigir o pagamento de qualquer indemnização, por não ter provado a “prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente”; e isto, repete -se, ainda que seja evidente a ilegalidade da decisão.
5-A questão de constitucionalidade equacionada em termos de saber se, à luz do disposto no artigo 18.°, n.º 2, da Constituição, “a exigência de que ‘o pedido de indemnização deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente’ constitui ou não uma restrição autorizada do direito previsto naquele artigo 22, tem comme d’habitude que a restrição do n.º 2 do art. 13.° é constitucionalmente justificada pela necessidade de defender a hierarquia dos tribunais consagrada no art. 210.° da CRP !!!!....
6-A doutrina tem justificado aquela restrição com a força do caso julgado; é que se a decisão transitou em julgado já é definitiva e por isso não poderá outro tribunal aferir e apreciar a ilicitude dessa decisão, mesmo que não seja com a finalidade de a revogar; com a aplicação desta doutrina pode suceder (e muitas vezes sucederá) que a força do caso julgado acabe por transformar decisões erradas em decisões formalmente certas e, por via disso, há quem discorde da exigência desta revogação prévia, a qual, na ausência de um meio impugnatório próprio, pode redundar na impossibilidade do exercício ao direito de reparação por erro judiciário.
7-Ocorre assim um conflito de direitos: por um lado, a força do caso julgado e, por outro, o direito à indemnização por parte do lesado com a decisão transitada em julgado nos termos referidos. Ou seja, a Constituição concede ao lesado o direito a ser indemnizado. Todavia, por razões de ordem processual, esse direito, em certos casos (e serão muitos), não pode ser exercido.
8-A Lei 67/2007 estabelece a responsabilidade do Estado e doutras entidades públicas pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais.
9-A norma contida no n.º 2 do artigo 13. ° da Lei n.º 67/2007 de 31/12 é inconstitucional, por violar os arts 18. ° n. os 2 e 3, 20. ° n. os 1, 4 e 5, e 22 da CRP e 6. ° n.º 1 da CEDH;
10-Viola os princípios da lealdade comunitária e do primado; arts 4.° n.º 3 e 6.° n.º 2 do TUE — Lisboa; bem como o parágrafo 1.° do n.º 4 do artigo 5.° do TUE e 59.° n.º 1 alínea a) da CRP por estarem em causa a violação dos arts 15.°, 20.° e 31.° da CDFUE; e o Protocolo n.º 2 anexo ao TUE juntamente com os princípios da equivalência e da efetividade (cf. artigo 4.° n.º 3 e 19.° n.º 1 parágrafo 2.° do TUE e artigo 267.° do TFUE); bem como a jurisprudência comunitária, como a constante do caso Brasserie du Pêcheurs v/s RFA, constante do Ac. do TJ de 05/03/1996 (proc. apenso C -46/93 e 48/93), e Ac. do TJCE de 15/05/1986 in proc. 222/84 e de 05/03/1980 in proc. 98/79; casos Simmenthal e Traghetti; e, sobretudo, caso Francovich e o.c. República Italiana (proc. apensos C -6/90 e C -9/90).
11-A norma do artigo 13. °, n.º 2, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente atenta contra o direito à Justiça!
12-No caso de expropriação de um terreno para construir uma autoestrada logo se fixam valores para ressarcir o lesado…, mas no caso da prisão de um ser humano é “preciso” a prévia revogação do ato danoso !!!! parece fantasia, mas passa-se assim a Justiça em Portugal!!!!
13-Sobre esta vexata questio vejam-se os votos de vencido no caso do acórdão n.º 12/2005 do Tribunal Constitucional publicado no Diário da República n.º 122/2005, Série II de 2005-062005:
(…)
14-Instituiu-se em Portugal a questão da “prévia revogação do ato danoso” para demandar o Estado Português conditio sine qua non a demanda estará votada ao insucesso...que mais não constitui do que um formalismo excessivo que não colhe; trata-se de um CRIPTO ARGUMENTO que inviabiliza o acesso à Justiça e à reparação do mal cometido…mutatis mutandis o mesmo ocorre nestes autos.
15-A nulidade, invocável a todo o tempo, não colheu nos autos nº (…); uma hermenêutica assim ofende os arts 6°- 1 e 7° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que é direito positivo português sob a luz do art° 8° da nossa Lei Fundamental.
16-O formalismo excessivo refere-se a interpretações rígidas das regras processuais suscetíveis de privar os requerentes do seu direito de acesso aos tribunais; se o grau de exigência probatória for demasiado elevado, as ações intentadas nos órgãos jurisdicionais podem estar condenadas ao fracasso e os direitos das pessoas poderão na prática ser inaplicáveis.
17-O TEDH especificou critérios determinantes para verificar a eficácia do recurso compensatório no que diz respeito à duração excessiva dos processos judiciais. Se a indemnização for considerada um recurso, os órgãos jurisdicionais devem evitar formalismos excessivos, nomeadamente no tocante à prova do dano 346 As regras processuais que regem o exame de um pedido de indemnização devem observar o princípio da equidade consagrado no artigo 6. ° da CEDH. Tal inclui que o processo seja apreciado num prazo razoável e que as normas não constituam um ónus excessivo para os litigantes; neste sentido os acórdão do TEDH, Poirot contra França, n.º 29938/07, de 2011 e Masirevic contra Sérvia, n.º 30671/08, de 2014
18-O formalismo excessivo (uma interpretação rígida das regras processuais) priva o recorrente do seu direito de acesso aos tribunais; excessivas exigências de prova criam obstáculos ao acesso à justiça; inviabilizam ad eternum o direito a ter direitos!! A Justiça não pode ser assim!!!
19-Viola os princípios da lealdade comunitária e do primado; arts 4.° n.º 3 e 6.° n.º 2 do TUE — Lisboa; bem como o parágrafo 1.° do n.º 4 do artigo 5.° do TUE e 59.° n.º 1 alínea a) da CRP por estarem em causa a violação dos arts 15.°, 20.° e 31.° da CDFUE; e o Protocolo n.º 2 anexo ao TUE juntamente com os princípios da equivalência e da efetividade ( art° 4.° n.º 3 e 19.° n.º 1 § 2.° do TUE e 267.° do TFUE); bem como a jurisprudência comunitária, como a constante do caso Brasserie du Pêcheurs v/s RFA, Ac. do TJ de 05/03/1996 (proc. apenso C -46/93 e 48/93), e Ac. do TJCE de 15/05/1986 in proc. 222/84 e de 05/03/1980 in proc. 98/79; casos Simmenthal e Traghetti; e, sobretudo, caso Francovich e o.c. República Italiana (proc. apensos C -6/90 e C -9/90).
20-A norma contida no n.º 2 do artigo 13. ° da Lei n.º 67/2007 de 31/12 é inconstitucional, por violar os arts 18. ° n. os 2 e 3, 20. ° n. os 1, 4 e 5, e 22 da CRP e artigo 6. ° n.º 1 da CEDH (artigo 16. ° da CRP). 27424 Diário da República, 2.a série — N.º 186 — 23-9- 2015
21-Deve ser julgada inconstitucional a norma do artigo 13. °, n.º 2, da Lei n.º 67/2007, de 31/12 segundo o qual o pedido de indemnização fundado em responsabilidade por erro judiciário deve ser fundado na prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente.
Termos em que concedendo provimento ao recurso Vossas Excelências farão a Lídima Justiça!»

***

Contra-alegou o Ministério Público, concluindo pela improcedência da apelação.

QUESTÕES A DECIDIR

Nos termos dos Artigos 635º, nº4 e 639º, nº1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]

Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i.-Se a norma do Artigo 13º, nº2, da Lei nº 67/2007, de 31.12., é inconstitucional por violar os Artigos 18º, nos. 2 e 3, 20º, nos. 1, 4 e 5, e 22º da Constituição;
ii.-Se tal norma viola os princípios da lealdade comunitária e do primado do direito comunitário;
iii.-Se a interpretação que é feita de tal norma ofende os Artigos 6º, nº1 e 7º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.

FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A matéria relevante para a apreciação de mérito é a que consta do relatório, cujo teor se dá por reproduzido.

FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

SE A NORMA DO ARTIGO 13º, Nº2, DA LEI Nº 67/2007, DE 31.12., É INCONSTITUCIONAL POR VIOLAR OS ARTIGOS 18º, NOS. 2 E 3, 20º, NOS. 1, 4 E 5, E 22º DA CONSTITUIÇÃO
A argumentação expendida pelo apelante, sustentando a inconstitucionalidade material do Artigo 13º, nº2, da Lei nº 67/2007, de 31.12, já se encontra rebatida na jurisprudência do STJ e do próprio Tribunal Constitucional.

Assim, o Tribunal Constitucional no seu Acórdão nº 363/2015 teceu sobre a matéria os seguintes considerandos:
«Com efeito, é de reiterar a doutrina afirmada no Acórdão n.º 45/99:
« [O] o artigo 22º da Constituição reconhece aos cidadãos o direito à reparação dos danos que lhes forem causados por ações ou omissões praticadas por titulares de órgãos do Estado e das demais entidades públicas, ou por seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, reparação essa que deve ser integral e assumida solidariamente pela Administração. Mas o mesmo artigo 22º não estabelece os concretos mecanismos processuais através dos quais se há-de exercitar esse direito: ponto é que o legislador, ao fazê-lo, não crie entraves ou dificuldades dificilmente superáveis, nem encurte arbitrariamente o quantum indemnizatório.»

Tal entendimento – a que vai associada a ideia de suficiente determinabilidade a nível constitucional para garantir a aplicabilidade direta do preceito e a invocabilidade imediata do direito nele consagrado – não obsta, todavia, e sem prejuízo da garantia da responsabilidade direta do Estado, que se reconheça uma “larga margem de conformação ao legislador quanto à definição dos pressupostos da responsabilidade do Estado” (assim, v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. VII ao art. 22.º, p. 429, que se referem à formulação do artigo 22.º da Constituição como “tendencialmente principial”). Jorge Miranda e Rui Medeiros reconhecem igualmente a conveniência de uma intervenção do legislador ordinário (v. Autores cits., ob. cit., anot. XII ao art. 22.º, p. 480):
« Embora os juízes em geral possam e devam assegurar a tutela do direito fundamental dos lesados à reparação dos danos, uma tal via apresenta inconvenientes, tanto do ponto de vista da separação de poderes e do papel que, num Estado democrático, deve estar reservado ao legislador legitimado democraticamente, como na perspetiva da igualdade e da segurança jurídica. O legislador pode, pois, densificar os pressupostos da obrigação de indemnizar e o regime da responsabilidade, cabendo-lhe designadamente delimitar o conceito de ilicitude relevante e esclarecer em que medida uma ideia de culpa […] constitui pressuposto da responsabilidade.
A lei não pode, porém, restringir arbitrária ou desproporcionadamente o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no artigo 22.º da Constituição.»

A possibilidade de o legislador delimitar e definir o âmbito e os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual do Estado já foi expressamente reconhecida no Acórdão n.º 683/2006. Aliás, a liberdade de conformação em apreço é, nos casos de atos de autoridade ilegítimos, inerente ao caráter secundário da responsabilidade civil em relação à tutela primária dos direitos dos cidadãos assegurada pelas vias impugnatórias ou de condenação à prática de ato de autoridade devido (salienta em especial este aspeto Alves Correia, “A indemnização pelo sacrifício: …” cit., p. 147; cf. também o artigo 4.º do RCEEP). E, de todo o modo, a circunstância de os citados atos de autoridade poderem ser praticados no âmbito de qualquer uma das funções do Estado – e é pacífico ser esse o âmbito do artigo 22.º da Constituição (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. VIII ao art. 22.º, pp. 430-431; e Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., anot. IV ao art. 22.º, p. 474) –, obriga naturalmente a concretizar a garantia da responsabilidade direta do Estado, de modo a adequá-la à diferente tipologia de atuações que pode estar em causa. Com efeito, são diferentes os problemas suscitados por atos concretos ou atos normativos, assim como também são diferentes as questões colocadas pela ilicitude dos atos típicos de cada função estadual.

Ponto é, como referido, que a legislação infraconstitucional, nomeadamente as “cláusulas legais limitativas ou excludentes de responsabilidade”, não eliminem nem esvaziem de sentido a garantia da responsabilidade direta do Estado (cf. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., anot. VII ao art. 22.º, p. 429, e anot. XVIII ao mesmo art., pp. 437-438; no mesmo sentido, v. Jorge Miranda e Rui Medeiros, ob. cit., anot. XII ao art. 22.º, pp. 480-481) e não sejam arbitrárias ou desproporcionadas.

A efetivação da responsabilidade por erro judiciário implica o reexercício da função jurisdicional relativamente à mesma questão de direito ou de facto: uma primeira decisão judicial é considerada errada por um ato jurisdicional subsequente. Assim, num caso como o que é objeto do presente recurso, constituirá sempre condição necessária da procedência de uma eventual ação de indemnização, a verificação – ainda que a título meramente incidental – de que a pretensa decisão danosa incorreu num erro de direito – in casu a aplicação de uma norma inconstitucional –, verificação essa que obriga a uma nova apreciação da questão de direito – ou seja, no caso vertente, a um segundo juízo sobre a constitucionalidade da norma aplicada pela primeira decisão.

Tal reexercício pode ocorrer no âmbito de um recurso ordinário interposto da primeira decisão ou fora dele. E é esta segunda hipótese que, desde sempre tem suscitado as maiores dificuldades (quanto à primeira – que corresponde, no fundo, à situação prevista no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP –, v. as condições de aplicação analisadas por Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil…, cit., anot. 8 ao art. 13.º, pp. 274-276, e anot. 9 ao mesmo preceito, pp. 277-280). Por outro lado, a circunstância de a verificação do erro judiciário exigir o reexercício da função jurisdicional cria naturais interdependências entre o regime constitucional e legal do direito ao recurso e o regime da responsabilidade por erro judiciário (cf., por exemplo, Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil…, cit., anot. 8 ao art. 13.º, pp. 272-273). Como refere Cardoso da Costa, “o instrumento para superar e corrigir a incorreção de decisões judiciais – vale por dizer, o «erro judiciário» – há-de ser primacialmente o do «recurso» (e «reclamação»)”, não o instituto da responsabilidade civil do Estado (v. Autor cit., “Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado…”, cit., p. 163). Ou, por outras palavras, “os recursos servem para corrigir decisões e as decisões erradas corrigem-se, não se indemnizam” (assim, a síntese da posição de que discorda feita por Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil…, cit., nota 1.1 ao art. 13.º, p. 344). Todavia, como observa Carlos Fernandes Cadilha, pode haver efeitos negativos gerados pelo erro judiciário que não são afastados pelo provimento de um eventual recurso (v. Autor cit., Regime da Responsabilidade Civil…, cit., anot. 8 ao art. 13.º, p. 273, nota 474). Daí o reconhecimento generalizado de especificidades próprias do regime do erro judiciário.

10.-Tais especificidades estão na origem de uma orientação seguida por este Tribunal desde o Acórdão n.º 90/84 (subsequentemente afirmada noutros arestos, como, por exemplo, no Acórdão n.º 71/2005), segundo a qual:
«Diferentemente de um órgão ou agente administrativo que faz apli­cação de uma norma legal, um órgão judicial «diz o direito» – o «direito do caso» –, e a sua declaração é plenamente válida (já acima se recor­dou) se e enquanto não for revogada, em sede de recurso, por um tribu­nal superior. Por isso mesmo, se se compreende que um ato «definitivo» da Administração possa ser posto em causa por uma instância judiciária só para efeitos indemnizatórios, não obstante para a generalidade dos efei­tos haver entretanto constituído «caso resolvido», compreende-se do mesmo modo que coisa idêntica não possa suceder com um ato judicial «conso­lidado». Quer dizer: compreende-se que este último – não havendo sido impugnado, ou, como quer que seja, apreciado pela competente instân­cia de recurso – não possa vir a ser ulteriormente «desautorizado» por outro tribunal (porventura até de diferente espécie, ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior) mesmo só para aqueles limitados efeitos.»

Este entendimento assenta numa conceção da função jurisdicional em que o juiz é o mediador necessário do direito:
«[‘D]izer o direito’ […] significa que é o juiz quem recebe e detém a legitimação (e a competência) para ‘determinar’ o conteúdo, sentido e alcance das normas jurídicas e para ‘fixar’ e ‘qualificar’ os factos a que as mesmas vão aplicar-se (sendo que, nem aquelas, nem estes, logram ‘falar por si’, e exigem justamente uma entidade mediadora para a sua ‘revelação’). Em suma, [… o juiz] não deixa de ser o necessário ‘verbo’ do direito, pertencendo-lhe dizer sobre ele a palavra definitiva. Ora, se é assim, então o ‘erro’ do juiz […] não será rigorosamente recondutível, enquanto puro ‘erro’, e só por si (isto é, quando não tenha ocorrido a consciente quebra ou incumprimento de nenhum dever deontológico, que sobre aquele impenda), a uma situação de ‘ilicitude’: quando simplesmente ‘erra’, o juiz não terá propriamente ‘violado’ o direito, mas antes feito dele uma interpretação e aplicação que, de um ponto de vista externo, serão incorretas.» (cf. Cardoso da Costa, “Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado…”, cit., p. 162)

E daí a defesa do disposto no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP:
«[S]endo a função jurisdicional e as decisões em que ela se exprime o que são, então não há-de poder atribuir-se qualquer relevo a um alegado ‘erro’ judiciário sem que ele seja reconhecido como tal pela competente instância jurisdicional de revisão. Sem tal reconhecimento, o ‘erro’ (o puro ‘erro’) só o será do ponto de vista ou no plano da análise crítico-doutrinária da decisão, não num plano jurídico-normativo: neste outro plano, o que subsiste é a definição do direito do caso, emitida por quem detém justamente o múnus e a legitimidade para tanto. É, pois, desde logo e fundamentalmente, uma razão dogmático-institucional, ligada à própria natureza da função judicial, que impõe a condição estabelecida pelo n.º 2 do artigo 13.º – e exclui que a ocorrência e o eventual relevo do erro judiciário possam ser aferidos diretamente, e sem mais, em sede de responsabilidade e pelo tribunal competente para o apuramento desta.» (v. idem, ibidem, pp. 163-164)
A doutrina sufragada por este Tribunal desde o mencionado Acórdão n.º 90/84 destaca, assim, e de acordo com este entendimento, o ilogismo institucional – “no fundo, a subversão do princípio da divisão dos poderes, enquanto também aplicável à organização da ordem judiciária” – que representaria uma solução que prescindisse de um requisito como aquele que vem estatuído no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP: uma decisão judicial transitada em julgado não deve poder vir a ser posteriormente «desautorizada» – isto é, em concreto afastada ou desconsiderada –, mesmo que só incidentalmente e para efeitos de verificação de erro de julgamento relevante em sede de responsabilidade civil por «facto» da função jurisdicional, por outro tribunal “porventura até de diferente espécie ou pertencente a uma diversa ordem de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior”(cf.Cardoso da Costa, “Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado…”, cit., p. 164).

11.Contudo, esta perspetiva não pode hoje ser aceite sem mais, isto é, sem uma explicação adicional.
Que assim é comprova-o, desde logo, a incompatibilidade com o direito da União Europeia da solução consagrada no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP.
Com efeito, na sequência dos desenvolvimentos do direito da União Europeia, em especial por força da jurisprudência Köbler (n.os 33 a 36) e Traghetti (n.os 33 a 40), é hoje consensual a admissibilidade da responsabilidade de um Estado membro da União em consequência da violação do direito da União imputável ao exercício da função jurisdicional, mesmo que tal violação resulte da decisão de um tribunal que decida em última instância. Consequentemente, o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP é inaplicável à responsabilidade do Estado Português por ações e omissões dos seus tribunais violadoras de normas do direito da União Europeia (nesse sentido, v., por exemplo: Maria José Rangel de Mesquita, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado…, cit., p. 56; e “Irresponsabilidade do Estado-juiz por incumprimento do Direito da União Europeia: um acórdão sem futuro” (anotação ao Ac. do STJ de 3.12.2009, P. 9180/07) in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 79 (jan-mar de 2010), p. 29 e ss., p. 43; Carlos Fernandes Cadilha, Regime da Responsabilidade Civil…, cit., anot. 6 ao art. 13.º, p. 268; Luís Fábrica, Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil…, cit., nota 3 ao art. 13.º, p. 361; e Jónatas Machado, “A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia…” cit., p. 273).

Acresce que a própria constitucionalidade daquela solução tem vindo a ser questionada por diversos Autores.

11.1.-Maria José Rangel de Mesquita, por exemplo, manifesta dúvidas quanto à legitimidade constitucional da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente como condição necessária da efetivação de responsabilidade civil por erro judiciário. Na verdade, e como já referido, se tal revogação apenas puder ser obtida pelo lesado de acordo com os meios processuais de reapreciação de decisões judiciais à sua disposição, pode acontecer que não seja admissível recurso ordinário (em razão do valor da causa ou da sucumbência) ou um recurso extraordinário de revisão. Mais: das decisões dos tribunais superiores, em princípio, nunca cabe recurso. Como nota aquela Autora, “tal implica que o lesado não conseguirá, por sua iniciativa, preencher o requisito da prévia revogação da decisão danosa e, consequentemente, demandar o Estado e deduzir o seu pedido de indemnização. [Ora] é duvidoso que a efetivação de um direito constitucionalmente previsto – e concretizado pelo Regime aprovado pela Lei n.º 67/2007 – possa ficar dependente de um requisito que a Constituição, ao consagrar aquele princípio, não prevê e, consequentemente, do teor da legislação ordinária ora vigente em matéria de recursos (reapreciação de decisões judiciais)” (v. Autora cit., “O novo regime da responsabilidade do Estado por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional” in Jorge Miranda (coord.), Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Martim de Albuquerque, vol. II, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2009, p. 415 e ss., pp. 427-428).
Em sentido contrário dir-se-á, todavia, que, conforme mencionado supra no n.º 8, a consagração no artigo 22.º da Constituição do princípio da responsabilidade direta do Estado (e demais entidades públicas) por ações ou omissões ilícitas imputáveis a titulares dos seus órgãos ou aos seus funcionários ou agentes, no exercício das respetivas funções, não é incompatível com a possibilidade de o legislador ordinário delimitar e definir o âmbito e os pressupostos de tal responsabilidade. Tudo dependerá da justificação material e do equilíbrio das cláusulas legais limitativas ou excludentes de responsabilidade. Deste modo, a mera omissão de previsão constitucional de um requisito ou de uma condição de procedibilidade de uma ação de indemnização destinada a efetivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas não é condição suficiente da sua inconstitucionalidade.

11.2.-Seguindo uma linha argumentativa assente na rejeição dos pressupostos em que se funda a jurisprudência iniciada com o Acórdão n.º 90/84, Luís Fábrica considera que a norma do n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP viola o princípio da igualdade, por força do tratamento discriminatório imposto aos lesados que sofrem danos causados por erros judiciários correspondentes a sentenças que, por um ou outro motivo, não podem ser objeto de recurso (Autor cit., Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil…, cit., nota 3 ao art. 13.º, p. 359). Por outro lado, considerando que a atribuição de uma indemnização constitui uma das principais formas estabelecidas no ordenamento jurídico para garantir a efetiva tutela dos direitos lesados pelo facto danoso, o mesmo Autor, entende que retirar da esfera do lesado a via indemnizatória de reparação “por circunstâncias estritamente processuais” significa uma ilegítima restrição do direito fundamental à efetiva tutela jurisdicional, “tanto mais chocante quanto o dano sofrido não resulta de ilicitudes comuns, mas de ilegalidades manifestas e de erros grosseiros, imputáveis precisamente aos órgãos a quem a Constituição comete a tarefa de proteger os direitos e interesses legalmente protegidos” (v. idem,ibidem,p.360).Tal posição, porém, abstrai das especificidades próprias do regime do erro judiciário, em especial a circunstância de a verificação do mesmo implicar um reexercício da função jurisdicional sobre uma questão já objeto de decisão judicial – o que, como de resto foi justamente salientado no Acórdão n.º 90/84 –, afasta qualquer analogia com o caso decidido dos atos administrativos. Na verdade, reconhecendo embora que no caso da ação de indemnização o juiz, ainda que em vista de um fim diferente, volta a ter de exercer a função de «dizer o direito» sobre uma questão relativamente à qual «o direito já foi dito», LUÍS FÁBRICA não retira de tal novo exercício da mesma função quaisquer consequências (v. ibidem, pp. 358-359).
Contudo, na verificação do erro judiciário, diferentemente do que sucede em relação ao caso decidido administrativo, o juiz depara-se com o «direito do caso», tal como previamente decidido (declarado com a autoridade própria das decisões judiciais) por um outro juiz. Ou seja, ao reapreciar esta primeira decisão, o juiz da ação de responsabilidade exerce necessariamente sobre a mesma questão função idêntica à do juiz que decidiu em primeiro lugar – ocorre, por conseguinte, um reexercício da função jurisdicional; aliás, é precisamente nesse reexercício que reside a semelhança entre as ações de indemnização por erro judiciário e os recursos reconhecida por aquele Autor. Daí o problema: porque é que a decisão do juiz da ação de responsabilidade dever prevalecer sobre a decisão do juiz da causa inicial? Sem resposta a esta questão, o entendimento firmado no Acórdão n.º 90/84 continua a ser suficiente para infirmar a citada analogia (cf. supra o n.º 10). E, assim sendo, é na própria natureza da função jurisdicional e no modo como o respetivo exercício se encontra estruturado – o sistema de recursos e a hierarquia dos tribunais – que se pode encontrar justificação para a não arbitrariedade e para a justificação de uma limitação como a estatuída no n.º 2 do artigo 13.º do RCEEP.

Como a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia evidencia, de modo particular no Acórdão Köbler, os problemas não se situam no plano técnico-processual do respeito do caso julgado (v., em especial, o respetivo n.º 39: um processo destinado a responsabilizar o Estado não tem o mesmo objeto e não envolve necessariamente as mesmas partes que o processo que deu origem à decisão danosa e que entretanto transitou em julgado; o demandante numa ação de indemnização contra o Estado obtém, em caso de êxito, a condenação deste no ressarcimento do dano sofrido – tutela secundária –, mas não a revogação ou revisão da decisão que causou o dano – tutela primária) ou no plano institucional da independência e autoridade dos juízes (v., em especial, os respetivos n.os 42 e 43: a responsabilidade civil do Estado por erro judiciário não é confundível com a responsabilidade pessoal do juiz que errou e a existência de uma via de direito que permita a reparação dos efeitos danosos de uma decisão judicial errada “pode também ser vista como sinónimo de qualidade de uma ordem jurídica e, portanto, finalmente, também da autoridade do poder judicial”). O que está em causa é a racionalidade sistémica e a coerência institucional: uma decisão judicial definitiva sobre uma dada questão, em princípio, e salvo razões juspositivas de especial relevo (como as que estão presentes nos recursos extraordinários de revisão), não deve poder ser desconsiderada por outra decisão judicial, uma vez que inexiste qualquer critério jurídico-positivo para fazer prevalecer a segunda sobre a primeira (nem tão-pouco uma eventual terceira ou quarta decisão sobre a decisão imediatamente anterior – é o problema da regressão infinita); menos ainda se poderá admitir, igualmente salvo razões juspositivas de especial relevo, que a decisão judicial definitiva sobre uma dada questão adotada por um tribunal superior possa vir a ser desconsiderada pela decisão de um tribunal hierarquicamente inferior.
(…)
E a questão coloca-se precisamente porque, em termos de racionalidade sistémicae de coerência institucional não é irrelevante que uma decisão judicial transitada em julgado volte a ser apreciada por um tribunal e, muito menos, que a apreciação de uma questão jurídica feita por um tribunal inferior possa prevalecer sobre a apreciação de idêntica questão feita por um tribunal superior. Nesse plano institucional em que se considera o sistema judiciário como um todo orgânico, contrariamente ao que se deve fazer no plano processual, a dissociação entre o ato judicante – a decisão – e os seus efeitos – o respetivo conteúdo –, embora possível, não é necessária e, frequentemente, não será conveniente. Isto é: pode haver razões de peso que justifiquem a modelação do direito à indemnização sempre que este interfira com a lógica de organização e funcionamento do próprio sistema judiciário. E são tais razões que também podem justificar a solução do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP quando cotejada com os parâmetros constitucionais da igualdade ou da tutela jurisdicional efetiva.

A segurança jurídica, associada às decisões judiciais transitadas em julgado, e a autoridade das decisões dos tribunais superiores, inerente à estrutura hierarquizada do sistema judiciário – em que, por regra, as decisões mais importantes e mais bem fundamentadas são tomadas por tribunais onde têm assento os juízes mais qualificados (cf. por exemplo, o artigo 211.º e ss. da Constituição) – constituem bens constitucionais reconhecidos. Por outro lado, é ainda uma lógica sistémica que explica que o recurso jurisdicional não seja nem universal nem ilimitado, ou que os tribunais se organizem de acordo com certos critérios de especialização. Ora, são precisamente estas considerações que estão na base da ideia de que permitir que um ato judicial «consolidado» – porque não impugnável ou não impugnado tempestivamente – possa vir a ser ulteriormente «desautorizado», mesmo que para os efeitos limitados de reconhecimento de um erro judiciário, por outro tribunal – porventura até de diferente espécie ou pertencente a uma ordem diversa de jurisdição, ou inclusivamente da mesma espécie, mas de grau inferior – constitui um ilogismo institucional (cf. o Acórdão n.º 90/84 e Cardoso da Costa, “Sobre o novo regime da responsabilidade do Estado…”, cit., p. 164).

De resto, mesmo a solução do direito da União Europeia relativamente à responsabilidade dos Estados membros por erro judiciário – “uma responsabilidade excecional reservada para situações especialmente graves” (assim, v. Jónatas Machado, “A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia…” cit., p. 259) –, e em que uma desautorização daquele tipo acaba por ser possível, não é isenta de problemas. Aliás, Jónatas Machado – que chega a falar em disfunções sistémicas – evidencia-o bem, a propósito dos temas da “disfunção hierárquica e defeito de independência”, da “imparcialidade e juízo em causa própria” e do “controlo das decisões dos tribunais superiores” (v. Autor cit., “A responsabilidade dos Estados Membros da União Europeia…” cit., respetivamente, pp. 284-285, 285-286 e 286-288). Sucede, isso sim, que, conforme o mesmo Autor explica, “as apontadas dificuldades e anomalias são amplamente compensadas pela necessidade de assegurar a primazia e a efetividade do direito da UE e da jurisprudência do TJUE, juntamente com a tutela jurisdicional efetiva dos particulares diante das decisões dos tribunais nacionais de última instância que violem direitos e interesses legalmente protegidos pelo direito da UE" (v. ibidem, p. 288; cf. também o Acórdão Köbler, n.os 33 a 36).

Com efeito, no quadro do direito da União Europeia, e face à impossibilidade de os cidadãos demandarem diretamente os Estados membros junto do Tribunal de Justiça por incumprimento daquele direito ou de forçarem o reenvio prejudicial em vista da sua correta interpretação e aplicação (cf., respetivamente, os artigos 258.º e 259.º e o artigo 267.º, todos do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia), a tutela secundária correspondente à responsabilidade do Estado membro fundada em erro judiciário relativo ao direito da União Europeia constitui um importante fator de tutela jurisdicional dos direitos dos cidadãos conferidos por esse mesmo direito e de garantia da respetiva primazia face ao direito de cada um dos Estados membros. Comprova-se, assim, a existência de mais-valias sistémicas justificativas da solução do direito da União Europeia.

13.Analisando agora a solução prevista no artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP, importa começar por recordar o amplo espaço de conformação legislativa quanto à definição do âmbito e dos pressupostos da responsabilidade do Estado reconhecido pelo artigo 22.º da Constituição (cf. supra o n.º 8). Em especial, no que se refere à responsabilidade do Estado por erro judiciário, esta interfere, pelas razões já mencionadas, com a própria configuração e modo de funcionamento do sistema judiciário, tal como prefigurados na Constituição (cf. supra os n.os 9, 10 e 12), ampliando desse modo ainda mais o campo de intervenção do legislador ordinário. Assim, para além da previsão genérica do direito à reparação pelos ilícitos cometidos pelos titulares dos órgãos do estado e demais entidades públicas, que, justamente por ser geral, também deve abranger os juízes e os ilícitos que estes eventualmente cometam no exercício das respetivas funções, não é possível a partir do citado preceito constitucional determinar com mais exatidão os contornos do direito à indemnização fundada em erro judiciário.
Certo é que a mencionada solução legal não exclui em absoluto tal direito, limitando-se a estabelecer que o erro judiciário relevante seja previamente reconhecido pela jurisdição competente, o mesmo é dizer, que o reexercício da função jurisdicional coenvolvido na reapreciação da decisão judicial danosa se faça com respeito pelas competências e hierarquia próprias do sistema judiciário e de acordo com o seu específico modo de funcionamento: o reconhecimento do erro judiciário implica uma revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente no quadro de um recurso ou de uma reclamação (ou, porventura, de uma revisão oficiosa). Ao fazê-lo, o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não está a interferir com qualquer âmbito de proteção constitucionalmente pré-definido (muito menos a invadi-lo). E, por isso mesmo, também não se pode dizer que essa norma revista a natureza de uma lei harmonizadora destinada a resolver um qualquer conflito de bens jurídicos fundamentais ou de uma lei restritiva de um direito fundamental (sobre estas categorias e as consequências jurídicas que a elas vão associadas na dogmática dos direitos fundamentais, v., por todos, Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., pp. 216-217 e, quanto às leis restritivas, p. 277 e ss., e quanto às leis harmonizadoras, p. 298 e ss.).
Em rigor, a norma do artigo 13.º, n.º 2, RCEEP concorre, juntamente com a do n.º 1 do mesmo artigo, para a configuração do conteúdo do direito de indemnização emergente da responsabilidade do Estado por erro judiciário do Estado. É, nessa exata medida, uma lei conformadora ou constitutiva: “não restringe o conteúdo do direito ou da garantia, porque é a ela própria que cabe determiná-lo, para além do conteúdo mínimo do direito ou do núcleo essencial da garantia, que decorrem da Constituição” (cf. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, cit., p. 213). Na verdade, o direito à indemnização por erro judiciário civil foi fixado, na parte respeitante à determinação de quem é o juiz competente para realizar a apreciação da decisão judicial danosa, legislativamente pelo artigo 13.º, n.º 2, em causa (cf. Vieira de Andrade, ibidem, que, na nota 63, refere como exemplo de direitos e faculdades cujo conteúdo é juridicamente construído pelo legislador, entre outros, os direitos às indemnizações previstas nos artigos 27.º, n.º 5, e 29.º, n.º 6, da Constituição – isto é: as indemnizações por erro judiciário penal).

Como explica Vieira de Andrade, “apesar do poder legislativo de configuração, ao juiz cabe ainda verificar o respeito pelo conteúdo essencial do direito (que será em regra o seu conteúdo mínimo) […], avaliado segundo um critério de evidência” (v. o Autor cit., ob. cit., p. 214). Ora, como referido, a norma do artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP não elimina o direito à indemnização por erro judiciário, limitando-se a acomodar no regime respetivo, as exigências correspondentes à estrutura e ao modo de funcionamento do sistema judiciário constitucionalmente consagrado. Inexiste, por conseguinte, qualquer evidência de desrespeito pelo conteúdo essencial do referido direito.

Se à partida, e de modo constitucionalmente legítimo, o direito à indemnização em causa é delimitado negativamente em função da possibilidade legal de reapreciação judicial pelo tribunal competente antes do trânsito em julgado da decisão tida como danosa, também não se coloca qualquer problema de acesso ao direito. Este último, enquanto direito-garantia, pressupões um direito material, que, no caso, inexiste. Finalmente, as referidas exigências orgânico-funcionais relacionadas com o sistema judiciário explicam satisfatoriamente a solução legal, afastando a ideia de que a mesma seja arbitrária
(sublinhados nossos).

Por sua vez, o Supremo Tribunal de Justiça no seu acórdão de 24.2.2015, Pinto de Almeida, 2210/12, analisou a questão nos seguintes termos:
«Tem de reconhecer-se que a norma do art. 13º nº 2 do RRCEE, interpretada nos termos acima indicados – afastando o exercício do direito de indemnização nos casos em que não seja possível a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente –, comporta uma compressão do princípio consagrado no art. 22º da CRP, restringindo o direito subjetivo de reparação que, como se referiu, se entende conferido diretamente por esta norma.
Apesar disso, é reconhecida ao legislador ordinário uma larga margem de conformação quanto à densificação da norma do referido art. 22º, mormente no que toca à definição dos pressupostos da responsabilidade civil do Estado.
Por outro lado, será de admitir a aludida compressão pela necessidade de compatibilizar o referido regime de responsabilidade com outras normas constitucionais, para salvaguarda de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos (cf. art. 18º nºs 2 e 3 da CRP), como adiante se verá.
É certo que, como tem sido sublinhado, a referida liberdade de conformação do legislador tem de "atender ao sentido da norma de proibição que o art. 22º também transporta e que se traduz na garantia de responsabilidade direta do Estado e das demais entidades públicas (…), sendo vedado ao legislador excluir, por via de lei, essa garantia". Ou seja, a lei não pode restringir "arbitrária ou desproporcionadamente" o direito fundamental à reparação dos danos consagrado no art. 22º.
Não é esta, porém, a situação que decorre da exigência do pressuposto previsto no art. 13º nº 2 do RRCEE.
Recorde-se que, como se prescreve no nº 1 desse preceito, o erro de direito deve ser manifesto e, por isso, especialmente qualificado e intenso e, por outro lado, o erro na apreciação dos pressupostos de facto deve ser grosseiro.
Ora, qualquer destas situações é sanável, podendo o erro ser reparado ou eliminado através do competente recurso ordinário da decisão. Será este, como acima referimos, o instrumento normal para superar a incorreção da decisão judicial, não a ação de responsabilidade.
Mas, mesmo que a decisão danosa seja irrecorrível – em razão da alçada ou por o tribunal decidir em última instância –, é ainda admitida amplamente a possibilidade de reparação do erro. Com efeito, nos termos do art. 616º nº 2 do CPC, qualquer das partes pode requerer a reforma da sentença quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos ou quando constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.
Por outro lado, pode o erro de direito consistir na aplicação de norma tida por inconstitucional (com infração do disposto na Constituição ou dos princípios nela consignados – art. 204º). Mas de tal decisão pode ser interposto recurso para o Tribunal Constitucional (art. 280º nº 1 b) CRP) que, em caso de procedência, pode revogar a decisão recorrida quanto à questão de constitucionalidade e ordenar que o tribunal recorrido proceda à reforma dessa decisão para se conformar com a decisão daquele Tribunal quanto à questão de constitucionalidade (art. 80º nº 2 da LTC).
Não é de excluir, por fim, a relevância do recurso extraordinário de revisão, como meio de obtenção da revogação da decisão jurisdicional danosa, nas situações previstas nas als. d) – se a confissão não era no caso admissível, e) – nulidade ou falta de citação que o juiz tem de verificar, e f) – no caso de erro por violação do direito europeu, do art. 696º do CPC.
Mas, como se afirmou, a compressão do princípio consagrado no art. 22º da CRP é resultado também da necessidade de harmonizar o regime de responsabilidade com outros preceitos constitucionais, como é o caso dos que respeitam à função jurisdicional, em especial no que toca à independência dos tribunais e à força do caso julgado.
Aos tribunais incumbe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos, reprimir a violação da legalidade e dirimir os conflitos de interesses (art. 202º nº 2 da CRP) e tais competências só podem ser prosseguidas se houver independência dos tribunais (art. 203º) – a implicar o princípio da irresponsabilidade do juiz pelas suas decisões (art. 216º nº 2) –, e se os litígios forem definitivamente resolvidos por decisões dotadas de especial autoridade e estabilidade (art. 205º nº 2 da CRP).
Daí que, quanto aos pressupostos substanciais de responsabilidade, se impusesse um regime particularmente cauteloso, como acima se notou.
Mas, por outro lado, como também se sublinhou, o tribunal diz o direito do caso e a sua declaração perdura plenamente válida se e enquanto não for revogada. Assim, "nenhum outro órgão pode invocar a lei para contestar a solução dada ao caso, pois o sentido dessa lei nas circunstâncias do caso concreto não lhe cabe a ele defini-la, mas sim ao tribunal com competência para decidir o caso".
Compreende-se, por conseguinte, que, não tendo sido impugnada a decisão, ela não possa posteriormente vir a ser desautorizada por outro tribunal, porventura, como se disse, de diversa jurisdição ou da mesma jurisdição mas de grau inferior, o que representaria o aludido ilogismo institucional, com derrogação da estrutura hierárquica judicial, e postergaria, bem assim, a segurança e certeza jurídica do caso julgado.
Caso julgado que se toma aqui, não no sentido próprio da exceção de caso julgado, por ser evidente a falta de identidade objetiva e subjetiva entre as duas ações (ação em que foi proferida a decisão e ação de indemnização), mas com o significado mais amplo acima apontado, de a decisão alegadamente danosa dizer o direito do caso, resolvendo definitivamente a questão concreta que lhe foi submetida para apreciação.
Do que fica exposto, decorre que o regime do art. 13º nº 2 do RRCEE, ao pressupor a prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, não exclui, nem cerceia arbitrária e desproporcionadamente o princípio da responsabilidade do Estado, consagrado no art. 22º da CRP, não violando esta norma.»
Em sentido confluente com os acórdãos citados, vejam-se ainda: Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 10.5.2016, Fonseca Ramos, 136/14, de 23.10.2014, Fernanda Isabel Pereira, 1668/12; Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13.9.2018, Ondina Alves, 9000/16; Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 24.4.2018, Igreja Matos, 1196/12, de 10.7.2019, Alexandra Pelayo, 8819/18.

Apesar do apelante se insurgir contra a jurisprudência assim veiculada, nenhuma argumentação de relevo ou genuinamente inovatória é aduzida pelo mesmo. Não vemos quaisquer razões para divergir da jurisprudência assim sedimentada, razão pela qual improcede a tese da inconstitucionalidade material do regime do Artigo 13º, nº2, da Lei nº 67/2007, de 31.12.
SE TAL NORMA VIOLA OS PRINCÍPIOS DA LEALDADE COMUNITÁRIA E DO PRIMADO DO DIREITO COMUNITÁRIO.

No que tange à articulação entre o regime da Lei nº 67/2007 com o direito comunitário, são claras as considerações expendidas no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.11.2020, Catarina Serra, 30060/15, que passam a extratar-se:
«Alega a recorrente que foi cometido um erro judiciário no Proc. 2718/09.3..., tendo o Acórdão do Tribunal da Relação de … de 8.05.2013 violado a CDFUE, nomeadamente por violação dos princípios da igualdade e justiça. Estariam, assim, segundo ela, reunidos os pressupostos da responsabilidade civil e o Tribunal recorrido teria decidido mal ao não reconhecer esta responsabilidade.
Antes de mais, e, como já se disse atrás, mesmo que se entendesse que, no caso dos autos, estavam em causa princípios ou direitos consagrados na CDFUE, a verdade é que a alegação não relevaria para os efeitos pretendidos, pois que, nos termos do artigo 51.º, n.º 1, da CDFUE, os destinatários da CDFUE tem como destinatários as instituições, os órgãos e os organismos da União bem como os Estados-Membros apenas quando apliquem o direito da União, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados. Ora, não decorre dos autos que tenha sido aplicado Direito da União no Proc. n.º 2718/09.6..., em que foi, alegadamente, cometido o erro judiciário.
Mas ainda que se equacionasse estar em causa a violação de alguma norma de Direito da União neste processo, tão-pouco ela relevaria para o efeito da responsabilidade do Estado que a recorrente ver reconhecida, dado que, como se viu, desde o Acórdão Köbler e demais Acórdãos acima referidos, o TJUE tem entendido que o erro judiciário relevante para fundamentar tal responsabilidade deve implicar uma “violação suficientemente caracterizada” do Direito da União.

Conforme se diz no Acórdão Köbler:
“os Estados-Membros são obrigados a ressarcir os danos causados aos particulares pelas violações do direito comunitário que lhes são imputáveis quando a norma de direito comunitário violada se destine a conferir direitos aos particulares, a violação seja suficientemente caracterizada e exista um nexo de causalidade direto entre a violação e o dano sofrido pelas pessoas lesadas. A fim de determinar se tal violação é suficientemente caracterizada quando a violação em causa resulte de uma decisão de um órgão jurisdicional decidindo em última instância, o juiz nacional competente deve, tendo em conta a especificidade da função judicial, assim como das exigências legítimas de segurança jurídica, apurar se essa violação tem carácter manifesto. Em especial, o órgão jurisdicional nacional deve atender a todos os elementos que caracterizam a situação que lhe é submetida. Entre tais elementos constam designadamente o grau de clareza e de precisão da regra violada, o carácter intencional da violação, o carácter desculpável ou não do erro de direito, a atitude eventualmente adotada por uma instituição comunitária, bem como o não cumprimento, pelo órgão jurisdicional em causa, da sua obrigação de reenvio prejudicial por força do artigo 234.º, terceiro parágrafo, CE. De qualquer modo, uma violação do direito comunitário é suficientemente caracterizada quando a decisão em causa foi tomada violando manifestamente a jurisprudência do Tribunal de Justiça na matéria”.

No caso concreto o TJUE decidiu que:
“uma violação do direito comunitário não tem o carácter manifesto exigido para que haja, por força do direito comunitário, responsabilidade de um Estado-Membro por uma decisão de um dos seus órgãos jurisdicionais decidindo em última instância, quando, por um lado, o direito comunitário não regula expressamente a questão de direito em causa, a questão também não encontra resposta na jurisprudência do Tribunal de Justiça e esta resposta não é evidente, e, por outro, a referida violação não apresenta um carácter deliberado, mas resulta da leitura errada de um acórdão do Tribunal de Justiça”.
Em plena harmonia com esta jurisprudência do TJUE, o Supremo Tribunal de Justiça tem circunscrito a qualificação como erro grosseiro ao erro que seja “grosseiro, evidente, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial numa decisão claramente arbitrária, assente em conclusões absurdas, demonstrativa de uma atividade dolosa ou gravemente negligente” ou “indesculpável, aquele em que não incorreria um julgador prudente, agindo com ponderação, conhecimento e competência”[27].
(…)
Como se referiu acima, o TJUE tem afirmado de forma consistente, entre outros, no Acórdão Ferreira da Silva e Brito, que é admissível a responsabilidade dos Estados-Membros em consequência da violação do direito da União Europeia imputável ao exercício da função jurisdicional mesmo quando tal violação resulta da decisão de um tribunal que decida em última instância. Tal jurisprudência torna inaplicável o artigo 13.º, n.º 2, do RCEEP à responsabilidade do Estado português por ações e omissões dos seus tribunais que sejam violadoras de normas do direito da União Europeia.
No entanto, como bem se adverte no Acórdão recorrido, tanto no Acórdão Ferreira da Silva e Brito, como nos (anteriores e também emblemáticos) Acórdãos Köbler, Fallimento Olimpiclub, Traghetti e, mais recentemente, nos Acórdãos de 28.07.2016 (C-168/15), de 29.07.2019 (C-620/17) e de 4.03.2020 (C-34/19), a responsabilidade civil prende-se com erros judiciários que envolvem a violação do Direito da União Europeia e sendo tal violação a causa dos danos invocados.
Por outras palavras: não é diretamente apreciada, naquela jurisprudência, a conformidade entre as normas aplicáveis à ação de responsabilidade do Estado (o artigo 13.º, n.º 2, do RRCEE) e as normas de Direito da União Europeia, mas antes a conformidade entre as normas de Direito interno aplicadas no processo em que o erro judiciário ocorreu e as normas de Direito da União Europeia cuja inobservância originou o erro judiciário. Assim, quando se reporta à violação de normas de Direito da União, o TJUER refere-se à violação de normas aplicáveis no âmbito da ação em que foi proferida a decisão danosa.
Ora, como acima se disse, a recorrente não invoca que o Acórdão do Tribunal da Relação de 8.05.2013, que julgou improcedente a ação por ela intentada no Tribunal do Trabalho, tenha dado origem à violação de quaisquer normas do Direito da União Europeia – apenas invoca a violação da CDFUE (sendo certo que, como se explicitou, esta alegação não adquire relevância para os presentes efeitos) » (sublinhados nosso).

Por sua vez, o Tribunal de Justiça no seu Acórdão de 9.9.2015, Processo C-160/14, afirmou que:
«46.-Com a sua terceira questão, o órgão jurisdicional de reenvio pretende saber, em substância, se o direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça sobre a responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional nacional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que obstam à aplicação de uma norma nacional que exige como fundamento do pedido de indemnização a prévia revogação da decisão danosa, quando essa revogação está, na prática, excluída.
47.-A este respeito, importa recordar que, atendendo ao papel essencial do poder judicial na proteção dos direitos que as regras do direito da União conferem aos particulares, a plena eficácia destas seria posta em causa e a proteção dos direitos que as mesmas reconhecem ficaria diminuída se os particulares não pudessem, sob certas condições, obter ressarcimento quando os seus direitos são lesados por uma violação do direito da União imputável a uma decisão de um órgão jurisdicional de um Estado-Membro decidindo em última instância (v. acórdão Köbler, C-224/01, EU:C:2003:513, n.º 33).
48.-O órgão jurisdicional de reenvio questiona-se sobre a compatibilidade, com esses princípios, da regra que figura no artigo 13. °, n.º 2, do RRCEE, que prevê que um pedido de indemnização a título da referida responsabilidade «deve ser fundado» na prévia revogação da decisão danosa pelo órgão jurisdicional competente.
49.-Decorre dessa regra que as ações de responsabilidade do Estado por violação da obrigação resultante do incumprimento da obrigação prevista no artigo 267. °, terceiro parágrafo, TFUE são inadmissíveis caso não haja revogação da decisão danosa.
50.-Importa recordar que, quando estão preenchidos os requisitos da responsabilidade do Estado, o que cabe aos órgãos jurisdicionais nacionais determinar, é no âmbito do direito nacional que incumbe ao Estado reparar as consequências do prejuízo causado, entendendo-se que os requisitos estabelecidos pelas legislações nacionais em matéria de reparação dos prejuízos não podem ser menos favoráveis do que os aplicáveis a reclamações semelhantes de natureza interna (princípio da equivalência) nem ser organizados de maneira a, na prática, tornarem impossível ou excessivamente difícil a obtenção da reparação (princípio da efetividade) (v. acórdão Fuß, C-429/09, EU:C:2010:717, n.º 62 e jurisprudência referida).
51.-Ora, uma regra de direito nacional como a que figura no artigo 13. °, n.º 2, do RRCEE pode tornar excessivamente difícil a obtenção da reparação dos danos causados pela violação do direito da União em causa.
52.-Com efeito, resulta dos autos no Tribunal de Justiça e dos debates na audiência que as hipóteses de reapreciação das decisões do Supremo Tribunal de Justiça são extremamente limitadas.
(…)
57.-Com efeito, a tomada em consideração do princípio da segurança jurídica teria como consequência, quando uma decisão proferida por um órgão jurisdicional que decide em última instância se baseie numa interpretação manifestamente errada do direito da União, impedir o particular de invocar os direitos que lhe são reconhecidos pela ordem jurídica da União e, especialmente, os que decorrem do princípio da responsabilidade do Estado.
58.-Ora, este último princípio é inerente ao sistema dos Tratados em que se funda a União (v., neste sentido, acórdão Specht e o., C-501/12 a C-506/12, C-540/12 e C-541/12, EU:C:2014:2005, n.º 98 e jurisprudência referida).
59.-Nestas circunstâncias, um obstáculo importante, como o que resulta da regra do direito nacional em causa no processo principal, à aplicação efetiva do direito da União e, designadamente, de um princípio tão fundamental como o da responsabilidade do Estado por violação do direito da União não pode ser justificado pelo princípio da autoridade do caso julgado nem pelo princípio da segurança jurídica.
60.-Resulta das considerações precedentes que há que responder à terceira questão que o direito da União e, em especial, os princípios formulados pelo Tribunal de Justiça em matéria de responsabilidade do Estado por danos causados aos particulares em virtude de uma violação do direito da União cometida por um órgão jurisdicional que decide em última instância devem ser interpretados no sentido de que se opõem a uma legislação nacional que exige como condição prévia a revogação da decisão danosa proferida por esse órgão jurisdicional, quando essa revogação está, na prática, excluída» (sublinhado nosso).

No Acórdão Siragusa, Processo C-206/13, o Tribunal de Justiça afirmou que:
«22.-Esta definição do âmbito de aplicação dos direitos fundamentais da União é corroborada pelas explicações relativas ao artigo 51.o da Carta, as quais, nos termos do artigo 6.o, n.o 1, terceiro parágrafo, TUE e do artigo 52.o, n.o 7, da Carta, devem ser tomadas em consideração para efeitos da sua interpretação (v., neste sentido, acórdão de 22 de dezembro de 2010, DEB, C-279/09, Colet., p. I-13849, n.o 32). Nos termos das referidas explicações, a obrigação de respeitar os direitos fundamentais definidos no quadro da União apenas se impõe aos Estados-Membros quando estes agem no âmbito do direito da União.
(…)
24.-Cabe, porém, recordar que o conceito de «aplicação do direito da União», na aceção do artigo 51.o da Carta, impõe a existência de um nexo de ligação de um certo grau, que ultrapassa a mera proximidade das matérias em causa ou as incidências indiretas de uma matéria na outra (v., neste sentido, acórdão de 29 de maio de 1997, Kremzow, C-299/95, Colet., p. I-2629, n.o 16).
25.-Para determinar se uma regulamentação nacional pertence ao domínio de aplicação do direito da União na aceção do artigo 51.o da Carta, importa verificar, entre outros elementos, se tem por objetivo aplicar uma disposição do direito da União, qual o caráter dessa legislação e se a mesma prossegue objetivos diferentes dos abrangidos pelo direito da União, ainda que seja suscetível de afetar indiretamente este último, bem como se existe uma regulamentação de direito da União específica na matéria ou suscetível de o afetar (v. acórdãos de 18 de dezembro de 1997, Annibaldi, C-309/96, Colet., p. I-7493, n.os 21 a 23; de 8 de novembro de 2012, Iida, C-40/11, n.o 79; e de 8 de maio de 2013, Ymeraga e o., C-87/12, n.o 41).
26.-Nomeadamente, o Tribunal de Justiça tem concluído pela inaplicabilidade dos direitos fundamentais da União a uma regulamentação nacional em razão de as disposições da União no domínio em causa não imporem aos Estados-Membros qualquer obrigação relativamente à situação do processo principal (v. acórdão de 13 de junho de 1996, Maurin, C-144/95, Colet., p. I-2909, n.os 11 e 12).
(…)
34.-Quanto ao princípio da proporcionalidade, o mesmo faz parte dos princípios gerais do direito da União que devem ser respeitados por uma regulamentação nacional abrangida pelo âmbito de aplicação do direito da União ou destinada a aplicá-lo (v., neste sentido, acórdãos de 18 de fevereiro de 1982, Zuckerfabrik Franken, 77/81, Recueil, p. 681, n.o 22; de 16 de maio de 1989, Buet e EBS, 382/87, Colet., p. 1235, n.o 11; de 2 de junho de 1994, Exportslachterijen van Oordegem, C-2/93, Colet., p. I-2283, n.o 20; e de 2 de dezembro de 2010, Vandorou e o., C-422/09, C-425/09 e C-426/09, Colet., p. I-12411, n.o 65)» (sublinhado nosso).

Ora, no caso em apreço, o apelante não invoca nem demonstra que o julgamento ocorrido na ação ordinária nº 5545/06 demande a aplicação de direito comunitário, isto é, que haja que formular um juízo de conformidade entre as normas de Direito interno aplicadas no processo, em que o erro judiciário pretensamente ocorreu, e as normas de Direito da União Europeia cuja inobservância originou o erro judiciário. Pelo contrário, trata-se de um puro conflito de direito privado atinente à celebração de um contrato-promessa de compra e venda e vicissitudes daí emergentes.

Improcede a apelação também neste segmento.

SE A INTERPRETAÇÃO QUE É FEITA DE TAL NORMA OFENDE OS ARTIGOS 6º, Nº1, E 7º DA CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREOTOS DO HOMEM
Finalmente, sustenta o apelante que a interpretação que tem vindo a ser feita quanto à questão da prévia revogação do ato danoso constitui um formalismo excessivo, que ofende os Artigos 6º, nº1 e 7º da CEDH, privando o apelante do seu direito de acesso aos tribunais. Invoca jurisprudência do TEDH atinente à duração excessiva dos processos judiciais.
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem encontra-se em vigor em Portugal desde 9.11.1978, tendo uma posição infraconstitucional e valor supralegal (cf. Irineu Cabral Barreto, A Convenção Europeias dos Direitos do Homem, 6ª Ed., pp. 33 e 42). A jurisprudência do TEDH funciona com elemento densificador da fundamentação de uma decisão nacional e como fonte interpretativa (Filipa Aragão Homem, O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos e o Sistema de Proteção de Direitos Fundamentais Nacional, Almedina, 2019, p. 181).

Dispõe o Artigo 6º, nº1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que:
«1- Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, o qual decidirá, quer sobre a determinação dos seus direitos e obrigações de carácter civil, quer sobre o fundamento de qualquer acusação em matéria penal dirigida contra ela. O julgamento deve ser público, mas o acesso à sala de audiências pode ser proibido à imprensa ou ao público durante a totalidade ou parte do processo, quando a bem da moralidade, da ordem pública ou da segurança nacional numa sociedade democrática, quando os interesses de menores ou a proteção da vida privada das partes no processo o exigirem, ou, na medida julgada estritamente necessária pelo tribunal, quando, em circunstâncias especiais, a publicidade pudesse ser prejudicial para os interesses da justiça

Por sua vez, o Artigo 7º da mesma Convenção dispõe que:
«1- Ninguém pode ser condenado por uma ação ou uma omissão que, no momento em que foi cometida, não constituía infração, segundo o direito nacional ou internacional. Igualmente não pode ser imposta uma pena mais grave do que a aplicável no momento em que a infração foi cometida.
2- O presente artigo não invalidará a sentença ou a pena de uma pessoa culpada de uma ação ou de uma omissão que, no momento em que foi cometida, constituía crime segundo os princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas
No que tange à densificação do Artigo 6º da CEDH, o TEDH tem, de facto, vindo a reportar-se ao conceito de formalismo excessivo como um entrave de acesso ao direito.

Assim, no Acórdão de 31.1.2017, Hasan Tunç e Outros contra Turquia, o TEDH afirmou que:
«32.-La Cour rappelle également que c’est au premier chef aux autorités nationales, et notamment aux cours et tribunaux, qu’il incombe d’interpréter la législation interne. Son rôle se limite à vérifier la compatibilité avec la Convention des effets de pareille interprétation. Cela est particulièrement vrai s’agissant de l’interprétation par les tribunaux de règles procédurales telles que celles fixant les délais à respecter pour l’introduction des recours (Tejedor García c. Espagne, 16 décembre 1997, § 31, Recueil 1997-VIII, et Mottola et autres c. Italie, no 29932/07, § 29, 4 février 2014). Les règles relatives aux délais à respecter pour recourir visent à assurer une bonne administration de la justice. Cela étant, l’application qui est faite des règles en question ne devrait pas empêcher le justiciable d’utiliser une voie de recours disponible. Par ailleurs, il convient dans chaque cas que la Cour procède à une appréciation à la lumière des particularités de la procédure dont il s’agit et en fonction du but et de l’objet de l’article 6 § 1 de la Convention (Miragall Escolano et autres c. Espagne, nos 38366/97, 38688/97, 40777/98, 40843/98, 41015/98, 41400/98, 41446/98, 41484/98, 41487/98 et 41509/98, § 36, CEDH 2000-I).
33.-La Cour rappelle aussi qu’il résulte de ces principes que, si le droit d’exercer un recours est bien entendu soumis à des conditions légales, les tribunaux doivent, en appliquant des règles de procédure, éviter à la fois un excès de formalisme qui porterait atteinte à l’équité de la procédure et une souplesse excessive qui aboutirait à supprimer les conditions de procédure établies par les lois (Walchli c. France, no 35787/03, § 29, 26 juillet 2007). En effet, le droit d’accès à un tribunal se trouve atteint lorsque sa réglementation cesse de servir les buts de la sécurité juridique et de la bonne administration de la justice et constitue une sorte de barrière qui empêche le justiciable de voir son litige tranché au fond par la juridiction compétente (Efstathiou et autres c. Grèce, no 36998/02, § 24, 27 juillet 2006).»

No acórdão de 31.3.2020, Dos Santos Calado e Outros contra Portugal, reiterou o TEDH que:
«116.-Troisièmement, il s’agira de savoir si les restrictions en question peuvent passer pour révéler un « formalisme excessif ». Il est bien établi dans la jurisprudence de la Cour qu’un « formalisme excessif » peut nuire à la garantie d’un droit « concret et effectif » d’accès à un tribunal découlant de l’article 6 § 1 de la Convention. Pareil formalisme peut résulter d’une interprétation particulièrement rigoureuse d’une règle procédurale, qui empêche l’examen au fond de l’action d’un requérant et constitue un élément de nature à emporter violation du droit à une protection effective par les cours et tribunaux (Zubac, précité, § 97). La Cour a, ainsi, constaté, à plusieurs reprises, sur ce fondement, une violation du droit d’accès à un tribunal (voir, par exemple, Miragall Escolano et autres c. Espagne, nos 38366/97 et 9 autres, § 38, CEDH 2000-I, Běleš et autres c. République tchèque, no 47273/99, §§ 50-51, CEDH 2002-IX, Zvolský et Zvolská c. République tchèque, no 46129/99, §§ 48‑55, CEDH 2002-IX, Bulena c. République tchèque, no 57567/00, §§ 30-31, 20 avril 2004, Henrioud c. France, no 21444/11, § 67, 5 novembre 2015, Meggi Cala c. Portugal, no 24086/11, § 49, 2 février 2016, et Miessen c. Belgique, no 31517/12, §§ 72-74, 18 octobre 2016).

117.-Au demeurant, si le droit d’exercer un recours est bien entendu soumis à des conditions légales, les tribunaux doivent, en appliquant des règles de procédure, éviter à la fois un excès de formalisme qui porterait atteinte à l’équité de la procédure, et une souplesse excessive qui aboutirait à supprimer les conditions de procédure établies par les lois (Walchli c. France, no 35787/03, § 29, 26 juillet 2007). Le droit d’accès à un tribunal se trouve atteint dans sa substance lorsque sa réglementation cesse de servir les buts de la sécurité juridique et de la bonne administration de la justice et constitue une sorte de barrière qui empêche le justiciable de voir son litige tranché au fond par la juridiction compétente (Zubac, précité, § 98, Efstathiou et autres c. Grèce, no 36998/02, § 24, 27 juillet 2006)» (sublinhados nossos).

Por exemplo, no caso Meggi Cala c. Portugal (acórdão de 2.2.2016), o TEDH entendeu que ocorreu uma violação do Artigo 6º, nº1, na medida em que o STJ interpretou o Artigo 425º, § 6, do Código de Processo Penal, no sentido de que a contagem do dies a quo para interpor recurso da decisão de um tribunal superior se inicia a partir da notificação do defensor, não se exigindo uma notificação pessoal do arguido, acabando por fazer recair sobre o arguido a prova de um facto negativo (que não teve conhecimento do teor do acórdão condenatório). Já no acórdão Dos Santos Calado, uma das situações relevadas pelo TEDH foi a de ter sido rejeitado um recurso de constitucionalidade pela singela omissão da norma constitucional violada.

Ora, a regra decorrente do Artigo 13º, nº2, da Lei nº 67/2007, de 31.12, no segmento atinente à prévia revogação da decisão danosa, não consubstancia uma norma atinente a um formalismo processual, não fixa os requisitos formais ou o tempo da prática de um ato processual, tido como indispensável para o exercício de um direito, qual seja o de responsabilizar o Estado por erro judiciário. Tal norma é classificada maioritariamente com um requisito de procedência desta ação. Todavia, em rigor, estamos mais perante uma norma atinente a um pressuposto processual. Afirma a este propósito TEIXEIRA DE SOUSA, «É discutível que a prévia revogação da decisão danosa seja uma condição de procedência da ação de indemnização contra o Estado e que a ausência dessa revogação determine a improcedência dessa ação; melhor é qualificar essa prévia revogação como um pressuposto processual: perante a falta dessa revogação, a ação deve ser considerada inadmissível» (Blog do IPPC, 30.11.2015).

Com efeito, os pressupostos processuais são «os requisitos que têm que estar previamente preenchidos para que o tribunal possa apreciar o mérito da causa, julgando a ação procedente ou improcedente, ainda que parcialmente (…)» (Remédio Marques, Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, 2ª ed., p. 222), são «as condições cuja verificação é indispensável para que o tribunal se ocupe do mérito da causa» (Ana Prata, Dicionário Jurídico, 4ª Ed., p. 911). E, de facto, só mediante a prévia demonstração da revogação prévia da decisão é que o tribunal entra na apreciação sobre a (in)existência do erro judiciário.

Assim, a norma em causa não respeita a um formalismo (alegadamente excessivo) mas sim a um pressuposto processual, sendo a argumentação do apelante improcedente.

A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art. 154º, nº1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).

DECISÃO

Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pelo apelante na vertente de custas de parte (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).


Lisboa, 12.10.2021



Luís Filipe Sousa
José Capacete
Carlos Oliveira

(assinado eletronicamente)



[1]Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª ed., 2018, p. 115.
[2]Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 119.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana LuísaGeraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).