Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
1090/11.6TBCLD-C.L1-2
Relator: EZAGÜY MARTINS
Descritores: ADMINISTRADOR JUDICIAL
RETRIBUIÇÃO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
CONTA DE CUSTAS
INSOLVÊNCIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03/20/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Sumário: I - O novo estatuto do administrador judicial – estabelecido pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro – substituiu, na literalidade do seu art.º 23º, n.ºs 1 e 4, a anterior dedução da parte fixa da remuneração do administrador da insolvência, no cálculo do resultado da liquidação, para efeitos de determinação da remuneração variável daquele, pela dedução…da parte variável dessa remuneração.
II – Sob pena de insolúvel incongruência, deverá entender-se que tal resulta de lapso de remissão, mantendo-se portanto naquele cálculo, a dedução da parte fixa da remuneração.
III - Apresentadas contas sem que o nomeado administrador da insolvência tivesse cessado funções, são as mesmas extemporâneas, por inobservância de um prazo dilatório.
IV – A desconsideração, nessas contas do Administrador, do montante das custas do processo – aliás forçosa, por então ainda não elaborada a conta de custas – bem como do valor da remuneração fixa daquele, inquina – inflacionando – o resultado da liquidação da massa insolvente, a “benefício” do montante da remuneração variável, a calcular, por aplicação de multiplicadores percentuais ao saldo, dess’arte viciadamente alcançado.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação
I – Por apenso aos autos de insolvência em que é insolvente A, veio o Administrador de Insolvência nomeado apresentar, em 19-11-2012, contas da sua administração.

Em vista dos autos, nos quadros do art.º 64º, n.º 2, do CIRE, emitiu o M.º P.º o seu parecer, no sentido da não aprovação das apresentadas contas.
E, assim, “Considerando que das contas apresentadas pelo Exmo. Sr. Administrador de Insolvência não consta nem o valor das custas do processo nem o valor dos honorários, e, que quer aquelas quer estes constituem dívidas da massa, não só as despesas de liquidação serão superiores como dada a incerteza do resultado da liquidação da massa insolvente não é possível ainda proceder ao cálculo da remuneração variável (…) sendo assim a apresentação das contas extemporânea.”.

Sendo em subsequente despacho ordenada a notificação do senhor Administrador para, querendo, se pronunciar a propósito.

O que aquele fez, a folhas 18 a 20, concluindo que “a fim de evitar a não aprovação das contas tão-somente com o fundamento de que as custas do processo deverão ser incluídas, e bem assim, a remuneração fixa a atribuir ao ora Administrador de Insolvência, bem poderá aguardar-se pela elaboração da conta de custas, apresentando-se então, nessa altura o referido requerimento”…

Em nova vista dos autos…apôs o M.º P.º o seu…visto.
Após o que foi proferida sentença – reproduzida a folhas 33 – julgando “validamente prestadas as contas apresentadas pelo Sr. Administrador (d)a Insolvência.”.

Inconformado, recorreu o M.º P.º. formulando, nas suas alegações, as seguintes conclusões:
“1 - O presente recurso tem por objeto a douta decisão judicial proferida nos autos à margem identificados, que decidiu julgar corretamente prestadas as contas do Sr. Administrador de Insolvência.
2 - Em 20/11/2012, o Sr. Administrador de Insolvência veio espontaneamente apresentar as contas da sua administração, das quais consta como receita a quantia de 25.000€ - resultante da venda de 1/2 de um bem imóvel - como única despesa a quantia de 500€ referente à provisão para despesas, e, como "Saldo a favor da Massa Insolvente" (ou liquidação) o valor de 24.500€.
3 – De tais contas de administração não consta nem as custas do processo de insolvência – as quais ainda não se encontravam/encontram contados - nem a remuneração fixa do Sr. Administrador da Insolvência – a qual ainda não fora/foi paga.
4 - Caso o juiz não determine uma prestação de contas intercalar, o administrador da insolvência só deve apresentar contas dentro dos 10 dias subsequentes à cessação das suas funções.
5 - As contas têm de constituir um resumo de toda a receita e despesa que retrate a situação da massa insolvente.
6 - Quer as custas do processo de insolvência quer a remuneração fixa do administrador da insolvência constituem dívidas da massa insolvente, e, têm de constar das contas apresentadas pelo administrador da insolvência.
7 - A não consideração nas contas do administrador da insolvência das custas do processo e do valor da remuneração fixa do administrador da insolvência leva a um valor incorreto e inflacionado da liquidação, e, consequentemente, levará a um cálculo viciado da remuneração variável (como ocorre no requerimento de pagamento efetuado pelo Sr. Administrador de Insolvência nos autos principais).
8 - No caso dos autos, as custas do processo ainda não estão contadas, a remuneração fixa do Sr. Administrador da Insolvência ainda não se encontra paga e a Mma. Juiz não determinou previamente a prestação de contas intercalar, pelo que as contas apresentadas são extemporâneas.
9 - Deveria a Mma Juiz a quo ter decidido que a apresentação das contas em questão era extemporânea e, consequentemente, não as ter aprovado.
10 - Ao não decidir como decidiu, a Mmª Juiz a quo violou o disposto nos arts. 62.° n.° 3 e 51.° n.° 1 als. a) e b) do C.I.R.E. e 20.° n.° 3 da Lei n.° 32/2004 de 22/07.”.

Remata com a revogação do “despacho recorrido” a substituir por outro que não aprove as contas apresentadas pelo Sr. Administrador da Insolvência.

II – Corridos os determinados vistos, cumpre decidir.
Face às conclusões de recurso, que como é sabido, e no seu reporte à fundamentação da decisão recorrida, definem o objeto daquele – vd. art.ºs 635º, n.º 3, 639º, n.º 3, 608º, n.º 2 e 663º, n.º 2, do novo Código de Processo Civil, sendo que se trata de processo de 2011, tendo a decisão recorrida sido proferida em 24-09-2013 – é questão proposta à resolução deste Tribunal a de saber se as contas apresentadas pelo Administrador da Insolvência são extemporâneas, retirando, na positiva, as consequências que se impuserem.
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Com interesse emerge da dinâmica processual o que se deixou referido supra, em sede de relatório.
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Vejamos.

1. De acordo com o disposto no art.º 62º, n 1, do C.I.R.E., “O administrador da insolvência apresenta contas dentro dos 10 dias subsequentes à cessação das suas funções, qualquer que seja a razão que a tenha determinado, podendo o prazo ser prorrogado por despacho judicial.”.
Isto, sem prejuízo de o administrador da insolvência estar “ainda obrigado a prestar contas em qualquer altura do processo, sempre que o juiz o determine, quer por sua iniciativa, quer a pedido da comissão ou da assembleia de credores, fixando o juiz o prazo para a apresentação das contas, que não pode ser inferior a 15 dias.” (n.º 2 do mesmo art.º).
Sendo as contas “elaboradas em formas de conta corrente, com um resumo de toda a receita e despesa destinado a retratar sucintamente a situação da massa insolvente (…)”, vd., n.º 3.
A cessação de funções por parte do Administrador da insolvência – e para lá das situações excecionais de destituição e de escusa legítima – ocorrerá, normalmente, por efeito do encerramento do processo, nos termos do art.º 233º, n.º 1, alínea b), do C.I.R.E., que no entanto ressalva a subsistência das “atribuições da comissão de credores e do administrador da insolvência (…) referentes à apresentação de contas e das conferidas, se for o caso, pelo plano de insolvência.”.

Nos termos do art.º 51º, n.º 1, do C.I.R.E., “são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código”, e pelo que aqui agora interessa:
“a) As custas do processo de insolvência;
b) As remunerações do administrador da insolvência e as despesas deste e dos membros da comissão de credores;”.

Tendo o administrador da insolvência nomeado pelo juiz “direito à remuneração prevista no seu estatuto e ao reembolso das despesas que razoavelmente tenha considerado úteis ou indispensáveis.”, sendo essa remuneração, “Quando eleito pela assembleia de credores (…) a que for prevista na deliberação respetiva”, cfr. art.º 60º, n.ºs 1 e 2, do C.I.R.E.

Consagrando o art.º 20º, n.º 1 do estatuto do administrador da insolvência –estabelecido pela Lei n.º 32/2004, de 22 de Julho, vigente à data da nomeação do apresentante das questionadas contas, como da própria apresentação destas – “O direito do administrador da insolvência, nomeado pelo juiz (…) a ser remunerado pelos actos praticados, de acordo com o montante estabelecido em portaria conjunta dos Ministros das Finanças e da Justiça.”.
Mais se dispondo no n.º 2 daquele art.ºT, que “O administrador da insolvência nomeado pelo juiz aufere ainda uma remuneração variável em função do resultado da liquidação da massa insolvente, cujo valor é o fixado na tabela constante da portaria prevista no número anterior.”.
Considerando-se (n.º 3), “Para efeitos do número anterior (…) resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no número anterior e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.”.

Tratando-se, a sobredita, da portaria n.º 51/2005, de 20 de Janeiro, estabelecendo no seu art.º 1º o valor fixo da remuneração do administrador da insolvência nomeado pelo juiz, em € 2000, e, no art.º 2º, aprovando “as tabelas que estabelecem a remuneração variável do administrador.”.
Sendo que a tabela do anexo I indica valores pecuniários do resultado da liquidação da massa insolvente, para os relacionar com multiplicadores percentuais de determinação dos honorários variáveis, sendo esses multiplicadores regressivos e diferenciados por escalões, diminuindo a percentagem dos honorários, escalão a escalão, à medida que o valor do resultado da liquidação aumenta.
Quanto a despesas, nos termos do art.º 3º daquela, “Presume-se que a provisão para despesas paga pelo Cofre Geral dos Tribunais nos termos do n.º 5 do art.º 26º e do n.º 2 do art.º 27º da Lei n.º 32/2004, de 22 de junho, corresponde às despesas efetuadas pelo administrador da insolvência, não havendo lugar à restituição da mesma ainda que as despesas efetivamente realizadas sejam inferiores ao valor da provisão.”.
Já o novo estatuto do administrador judicial – estabelecido pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro, que entrou em vigor em 28 de Março de 2013, vd. art.º 34º – teria alterado, aparentemente, e no tocante ao que aqui está em causa, tal quadro legal.
Dispondo-se, em continuidade, é certo, no art.º 23º, n.º 1, daquele, que “o administrador da insolvência em processo de insolvência nomeado por iniciativa do juiz tem direito a ser remunerado pelos atos praticados, de acordo com o montante estabelecido em portaria dos membros do governo responsáveis pelas áreas das finanças, da justiça e da economia.”.
E, no n.º 2, que o administrador da insolvência “nomeado por iniciativa do juiz aufere ainda uma remuneração variável em função do resultado (…) da liquidação da massa insolvente, cujo valor é o fixado nas tabelas constantes da portaria referido no número anterior.”.
Mas sendo já, porém, que (n.º 4) “Para efeitos do n.º 2, considera-se resultado da liquidação o montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa, com exceção da remuneração referida no n.º 1 e das custas de processos judiciais pendentes na data de declaração da insolvência.”.

2. Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda[1] consideram, no domínio do anterior Estatuto do administrador da insolvência, que “O pagamento desta parte da remuneração (variável) depende, pois, do resultado da liquidação. Daí a necessidade sentida pelo legislador de estabelecer, no n.º 3, do art.º 20º do Estatuto, o significado desta expressão.”.
E “O valor a que se atende, para o efeito, é o «apurado para a massa insolvente». Esta fórmula, em si mesmo ambígua, tem de ser entendida em correlação com o resultado da liquidação. Entendemos, por isso, que está em causa o montante apurado na realização do ativo da massa insolvente.
A este montante são depois subtraídos, como valores passivos, digamos, as dívidas da massa insolvente, mas não todas. Na verdade, não são consideradas, nessa dedução, a remuneração variável do administrador e as custas dos processos judiciais pendentes na data da declaração da insolvência. Contudo, em vista da redação do n.º 3, já é deduzida a parte certa da remuneração do administrador, prevista no n.º 1.”, (o sublinhado é nosso).

Perante isto – e salvo erro de interpretação, da nossa parte, do expendido por aqueles autores – teríamos, até aqui, que o cálculo da parte variável da remuneração do administrador se faria por aplicação das tabelas anexas à portaria - prevista no art.º 20º, n.º 2, do Estatuto estabelecido pela Lei n.º 32/2004 – ao montante apurado na realização do ativo da massa insolvente.
No entanto, os mesmos autores, prosseguindo na sua anotação, são já expressos a referir que “Para cálculo da parte variável da remuneração do administrador é ao saldo apurado nos termos da nota anterior que se aplica a Portaria prevista no n.º 2 do art.º 20º do Estatuto.”,[2] (sublinhado nosso).
Com o que se retorna aos limites interpretativos impostos pela impressiva literalidade do “Estatuto”.

Os referidos autores, desta feita já na consideração do novo Estatuto do administrador judicial – vigente à data da prolação da sentença recorrida – expendem que:
“O pagamento desta parte da remuneração (variável) depende, pois, do resultado da liquidação. Daí a necessidade sentida pelo legislador de estabelecer, no n.º 4, do art.º 23º do Estatuto, o significado desta expressão.”.
E “O valor a que se atende, para o efeito, é o «apurado para a massa insolvente». Esta fórmula, em si mesmo ambígua, tem de ser entendida em correlação com o resultado da liquidação. Entendemos, por isso, que está em causa o montante apurado na realização do ativo da massa insolvente.
A este montante são depois subtraídos, como valores passivos, digamos, as dívidas da massa insolvente, mas não todas. Na verdade, não são consideradas, nessa dedução, a remuneração fixa do administrador e as custas dos processos judiciais pendentes na data da declaração da insolvência. Contudo, em vista da redação do n.º 3, já é deduzida a parte variável da remuneração do administrador, prevista no n.º 2.”.
Também aqui mantendo que “Para cálculo da parte variável da remuneração do administrador é ao saldo apurado nos termos da nota anterior que se aplica a Portaria prevista no n.º 2 do art.º 20º do Estatuto.” (o sublinhado é nosso).

Ora, sendo verdade que o novo estatuto, na sua literalidade, substituiu a anterior dedução da parte fixa da remuneração do administrador, pela dedução da parte variável dessa remuneração, devemos observar que tal coloca uma dificuldade interpretativa, qual seja a de saber como será possível calcular a remuneração variável do administrador, por aplicação de multiplicadores percentuais a um montante apurado para a massa insolvente, depois de deduzidos os montantes necessários ao pagamento das dívidas dessa mesma massa…em que se inclui…a remuneração variável do administrador da insolvência…
O que nos leva a concluir ter-se tratado, no art.º 23º, n.º 4, deste último Estatuto, de manifesto lapso de remissão, que, para dissipar dúvidas que possam persistir, urgiria sanar em via de retificação.

3. De todo o modo, ponto é que as apresentadas contas o foram sem que o nomeado administrador da insolvência tivesse cessado funções – o que, em termos de normalidade, e como visto já, apenas ocorrerá com o encerramento do processo – sendo como tal extemporâneas, por inobservância de um prazo dilatório, cfr. art.º 145º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil de 1961 (com correspondência no art.º 139º, n.ºs 1 e 2, do novo Código de Processo Civil).
E, em qualquer caso, naquelas não foram consideradas as custas do processo de insolvência que, como também assinalado supra, “são dívidas da massa insolvente”.
Nem tal seria viável, na circunstância – de que o próprio Administrador da insolvência dá notícia na sua informação de 11-09-2013, a folhas 18 a 20 – de não haver sido ainda elaborada a conta de custas respetiva, que sempre terá de lhe ser notificada, nos termos do art.º 31º, n.º 1, do Regulamento das Custas Processuais.
O que, só por si, logo inquinou – inflacionando – o resultado da liquidação da massa insolvente, a “benefício” do montante da remuneração variável, a calcular, e como visto, por aplicação de multiplicadores percentuais ao saldo, dess’arte viciadamente alcançado.
Isso, para além de, com idênticas consequências, também se não refletir nas apresentadas contas a remuneração fixa do Administrador.

Não podendo assim subsistir o julgamento da validade das ditas contas.

Com procedência das conclusões do Recorrente.

III - Nestes termos, acordam em julgar a apelação procedente, e, revogando a sentença recorrida, recusam aprovação às contas apresentadas pelo Administrador da insolvência.

Custas pela massa.
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Lisboa, 2014-03-20

Ezagüy Martins
Maria José Mouro
Maria Teresa Albuquerque
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[1] In “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado”, Vol. I, Quid Juris, 2005, pág. 277, anotação 4. Mantendo-se idêntica anotação  na 2ª ed., 2013, a págs. 365, e já considerando o Estatuto aprovado pela Lei n.º 22/2013, de 26 de Fevereiro.
[2] In op. et loc. cit., mas agora já na nota 5.